ALMANAQUEO ano dos dias cinzentos e noites vermelhasO Paraná enfrentou geada forteque esturricou os campos e SãoPedro não mandava chuvaRogério ReccoHulda tinha de 15 para16 anos e morava comos pais e os irmãosnuma pequena propriedaderural em Doutor Camargo,região de Maringá.Corria o ano de 1963 e ela serecorda como se fosse hoje:“Não se via a cor do céu, estavatudo cinzento. A fumaceiraera tanta que os dias sepassavam e aquilo não tinhafim. Até o sol havia perdido obrilho e dava pra admiraraquela enorme bola vermelhasobre as nossas cabeças”.Foi um ano em que o Paranáenfrentou geada forte que esturricouos campos e SãoDetalhe da família em Doutor Camargo, no começo dos anos 19603 0 | J or n al d e Se r viç o Coc a ma r
Pedro não mandava chuva.Bastaram pequenas queimadase o fogo se alastrou igualnotícia ruim. Os ventos espalhavamfagulhas fazendo surgiremnovos focos. Com isso,perdeu-se o controle e tudo foisendo devorado pelas chamas,inclusive as matas originais dofuturo Parque do Ingá, em Maringá,que arderam por váriosdias.Quando viu que era caso perdido,seu Augusto desesperouse:escancarou as porteiraspara o gado, o cavalo e os porcosirem embora. Pelo menospoderiam escapar. “Felizmentenossa propriedade sofreu poucosdanos, mas teve gente queperdeu tudo”, recorda-se Hulda,uma jovem obstinada, queencarava qualquer serviço nosítio.INCÊNDIOS - Atordoadas, asautoridades e a população faziamo possível, mas a estiagemsó fazia aumentar os incêndios.Às pressas, abriam-seaceiros, em mutirões, paratentar impedir seu avanço.Todo mundo queria ajudar. Masnão havia jeito: fragmentos incandescentesvoavam paracair logo adiante e, quandomenos se esperava, o fogaréujá estava em marcha, promovendodestruição.“O céu despejava fuligem otempo todo, não podia deixaruma janela aberta”, conta Hulda,lembrando que, ao entardecer,o sol se punha de umlado do horizonte e, de outro,permanecia aquele clarão intenso,rivalizando com a escuridão.Uma vermelhidão quelembrava o amanhecer. Foi umano estranho, de dias cinzentose noites vermelhas. “Quando agente ligava o rádio, só se falavano incêndio, dava medo,até parecia o final dos tempos.”UM OLHO ABERTO - Segundoela, seus pais Augusto e Querubina,assim como os agricultoresda vizinhança, demoravama pegar no sono, preocupados.Adormeciam com umolho fechado e outro aberto,prevenidos, deixando tamborese tinas cheios de água ao redordas casas.DERRUBAR MATO - A vida nãohavia sido fácil para a família,que chegara ao Paraná em1944, vindo de Minas. Foramparar na Caixa de São Pedro,em Apucarana, para trabalharno café. De lá, seu Augusto foisozinho derrubar o mato emFloriano ainda antes de Maringáser município, empreitadopela Companhia de Terras.Suportou de tudo, menoso bote de uma cascavel.Só no outro dia é que o WaldemarBarbudo, o encarregado,apareceu para socorrer o coitado,deixando-o com o farmacêuticoMário Jardim. Ele poderiater morrido de dor, defebre e inchaço, mas um casalde moradores, Antônio Carniele sua mulher dona Encarnação,apiedaram-se e fizeram a caridadede recolhê-lo em sua casa.Augusto delirava, pareciaestar entregando a alma. Masfoi melhorando e sobreviveu.MUITO TRABALHO - Não apenasaguentou o tranco comocontinuou derrubando mato,depois de trazer a família paraMaringá. Ele e mais algunsabriram ruas, desmatando nobraço o trecho entre as atuaisavenidas São Paulo e Paraná.Ele também trabalhou na serrariados Phillip, passou porCampo Mourão e, quando conseguiujuntar um dinheiro,aplicou tudo em pequenos lotesde terra. Foi agricultor emDoutor Camargo e depois emSão Jorge do Ivaí. Até que, jácom idade, cansados, ele e aesposa largaram mão dessavida, mudando-se para aproveitaro final de seus anos nomerecido sossego em Maringá.Dona Querubina, que semprefoi da roça, era daquelas cozinheirasque sabia honrar a tradiçãomineira. Fazia qualquertipo de comida com um temperosó dela, pães irresistíveis,bolos e doces cuja gostosuramuita gente passou a encomendarpara seus casamentos.RUMO AO SUL - Essas recordaçõesHulda, mãe de três filhos,perpetuou em um livro queresgata a saga de sua família.“Rumo ao Sul” deixa registradopara as gerações do presentee do futuro que a gentedaquela época não se curvavaaos desafios. “Era forte igual auma figueira que, povoando afloresta, estava também sujeitaa ter que enfrentar umaqueimada”, diz.Por essas belezas da vida,quando alguém acredita que oHulda: memória do grande incêndio quedeixou muita destruição no Paranáfogo poderia aniquilar uma espécieassim, eis que, após umaboa chuva, ela volta a rebrotar,faceira, até se encher outra vezde folhas, como se nada tivesseacontecido. E, em poucotempo, assim como o bravopovo pioneiro da região, estarápronta pra outra."Fotos: Colaboração/Alvaro Sady de BritoJ orn a l de Ser v iç o C oc a m ar | 3 1