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UnicaPhoto - Edição 16

Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)

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COLUNA

MINHA TIA MESMERIANA

Sidney Rocha

Eu conversava dia desses com um amigo. Ele tem trinta

anos de idade e não alcançou a televisão de tubo.

Eu comentava de como assistir TV numa casa pobre

era, sobretudo, lutar contra fantasmas. As imagens

chuviscavam, perambulavam “vivas” em ondas pelas

ruas de areia do bairro. Algumas vezes, entravam nas

casas. Quando saltavam vultos aos nossos olhos, enfim,

eram resultado de um grande esforço de decodificação,

fruto mágico da nossa fé&desejo associados à fagulha

arbitraríssima das válvulas. Desejo e fé. Duas tias minhas

se converteram ao Espiritismo ou talvez ao Mesmerismo

diante da TV, do fenô meno magneto-elétrico, ali na sala

naqueles anos 70.

E o que viam ou imaginavam ver? Espectros se

duplimultiplicando: vinte tarcísios-meira beijando

incontáveis miasmas de glórias-menezes, nos infinitos

pontos de flashes de luz e escuridão do tubo. Então, o

trabalho da gente da casa era decidir, optar, entre o

“real” e o espectral, e seguir por ali, perseguindo sua

escolha hertziana. Víamos a programação de jeito particular

e único, para além do que já sabemos de vivermos

em mundos distintos, por conta de cada psiquismo e de

cada caverna. Por isso, lá em casa a fenomenologia era

mais embaixo. Cada qual tinha seu próprio repertório

de não-imagens, sua experiência peculiar e sensorial.

Extrassensorial algumas vezes. Formas. Metaformas.

Metaformoses. Morfoses. Era o todo, depois cada parte

dos fantasmas, que resultava a experiência completa.

Portanto, não foram os alemães, mas nós, lá em casa, os

criadores da gestalt.

“Sou da geração que consumiu fantasmas”, eu disse

para meu amigo. “Platão sabia disso mais que os artistas

(da imagem) contemporâneos. Para ele, as primeiras

imagens são sombras. Depois, reflexos num espelho

d’água. Somente depois são os esses corpos opacos,

brilhantes, onde a luz, para não fracassar completamente

em sua travessia, se reflete neles.

Se Deus é luz é somente o homem é fotógrafo, que Deus

é este, o da imagem? É o deus da permanência, que luta

contra a (nossa) morte, que vende a ideia de uma alma

imortal, e nisso consiste o modo como nos relacionamos,

mas as imagens (máscaras mortuárias, sepulcros,

câmeras, grotas) porque algumas imagens (primais,

arquetípicas) antecedem inclusive as ideias.

“Entendo”, meu amigo respondeu.

Aproveitei que ele mentia e pulei uns séculos.

“Somente mais à frente passamos a entender a

imagem como objeto, em si. E depois a imagem no

sentido avassalador, invasivo, a imagem midiática, toda

relacionada ao desejo, ao consumo, em um tempoespaço

onde todo tipo de imagem co existe, disputa, e

que não quer somente nossa contemplação. Não busca

somente familiaridades ou reconhecimento. As imagens

requerem novas experiências psicológicas catalogáveis,

úteis para os mercados dos you-tubos e dos I’Tudos. Essa

estesia, hiperestesia, hístero-estesia, é a nova Aestesis

ou Estética, a experiência-total, da imagem-total, meio &

mensagem ao mesmo tempo.

“Medium”, diria minha tia Mesmeriana.

Mas ela não precisa entender que a imagem

contemporânea (mais antiga do que muitos pensam)

e a imagem-mídia são conceitos mais amplos, que não

cabem numa simplificação somente possível nessa

categoria da fé. A fé é uma simplificação, tia, como a

felicidade é também, o senso comum, eu pensava. Uma

imagem é também uma simplificação, um fantasma.

Uma evocação. Já não queremos a ideia da Sombra

(arquétipo ou fenômeno natural da luz projetada)? Platão

que se exploda. Nem queremos somente a Imago, a ideia

da máscara mortuária, portanto de novo a imagem de um

fantasma. Ou de um sonho. Minha tia não conheceu a

ortodoxa judaica Mélanie Klein nem o católico Lacan, nem

Henri Wallon, que não sei qual fé professava, nisso das

imagens mentais, oníricas, sobretudo das crianças.

Infantilmente, queremos a ideia do homem-imagemsemelhança,

que a filosofia e o mundo judaico-cristão

nos ensinou, imagens diante das quais nos prostremos,

imagens-vivas, de um novo monoteísmo, amém, querida

Tia Mesmeriana? A fé que vence a ideia da morte. A morte

é imagem e permanece imagem, como disse o morto

Barchelard. Eis uma imagem que precede sua própria

ideia.

Mas voltei a dar atenção ao amigo.

“Somos nós agora os aparelhos.”

“’Aparelhos’?” Ele perguntou. “A palavra ainda é do mundo

dos espíritos, não?”

“Eu sei.”

No fundo, toda imagem, uma fotografia, por exemplo,

é sobre a morte. A “alma do mundo”. Sobre um tempo

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