UnicaPhoto - Edição 16
Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)
Revista do curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)
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morto. Toda imagem termina sendo um tipo de memento
moris. Toda foto carrega uma única legenda: “Lembre-se.”
O resto é retoricismo.
A forma como a sociedade lida com as imagens está
intimamente ligada à forma como lida com a ideiaimagem-símbolo
da morte. Mesmo que sejamos
sociedades humanas híbridas, em fusão, não deixamos
de ser sobretudo simbólicos.”
“Mas de quais sociedades você está pensando?”, ele me
perguntou.
“Da nossa. Da de todos os tempos.”
“Retórica. Isso não diz tudo.”
“Quando falo das sociedades me refiro à sociedade onde
todos vivem. Onde vivemos. Está bom assim para você?
“Mas aí está seu erro.”, ele me disse. E prosseguiu: “Note: a
maioria das sociedades está morta. Nossos antepassados
são mais sociedade que nós, os vivos, os visíveis. São
em maior número. Diante da TV miasmática de sua tia,
estaremos sempre nos reportando a chuviscos, chiados,
a imagens imperfeitas, por nunca mais se completarem,
pretéritas, de homens e mulheres das quais não sabemos
mais os nomes, mas nos afligimos pelo que acorreu a eles
e que, inexoravelmente, nos ocorrerá.”
Ele tinha razão. Não há outro assunto para a literatura
ou as artes: Amor+Morte. Amorte. A contra-imagem do
primeiro mistério a enfrentar. Essa presente Ausência,
essa ausente Presença. Disforme e horrível efígimagem.
Não importam as revoluções técnicas, as novas culturas
do olhar, as imagens sempre serão um incômodo visível
para uma angústia invisível, com a qual conviveremos até
o último disparo do botão, o último touch da tela.
“E como as sociedades lidam com essa ideia, você sabe?”
“Não”, respondeu.
“Eu lhe digo: por compensação.”
“Compensação?”
“Sim. Sob a eterna ameaça da morte, lidamos com as
imagens do modo imediato. Por símbolos. E símbolos
não têm necessariamente correspondência natural com
a coisa. Os símbolos são essa compensação. As imagens
servem para nos submeter.”
“Beba mais.”
“Quem transmite uma imagem submete um inocente”,
não é assim que disse aquele filósofo?”
“Qual?”
“Régis Débray.”
“Caracas. Você conhece esse fantasma?”
Eu não disse ao amigo nem sim nem não. Débray
influenciou toda uma geração à luta armada contra a
ditadura no Brasil. Quando cheguei ao Recife, um velho
professor me falava dele como alguém vivo, da família. E
esse professor perdera um irmão para o regime.
“Isso é outro papo”, desconversei. E bebi mais.
Estava indo longe demais nisso da história das
mentalidades, ou seja, de como as imagens influenciaram
mais e menos a sociedade. A “imagem” da família diante
da TV da casa-morta ainda se me iluminava como fosse
uma fotografia. Eu pensava mais para dentro agora,
em um mundo interior deflagrado por essa iconografia
pessoal, tardia, sentimental, em certa semiologia;
buscava recuperar, agora usando o intelecto, tentava
ler (“intelecto” vem de legere: ler, escolher) a imagem
por dentro da coisa, seu aspecto simbólico, o panorama
interno da forma que é ao mesmo tempo conteúdo,
reviravolta, paradigmas.
Meu pensamento era um carrossel. Santaela cita Bazin
apud Dubois: a fotografía terminou por criar uma
“reviravolta radical na psicologia da imagem”. Esse é
um dos três paradigmas da imagem. Paradigma é uma
palavra paradigmática, hoje. A palavra tem uns sessenta
anos que frequenta o texto acadêmico, é lugar-comum,
mas serve ainda para apontar para as ambiguidades, os
vários sentidos de algo, sobretudo na fotografia, esse
tipo de representação.
Uma representação sugere a pré-existência do
representado.
Errado.
Para Pierce, a de sua teoria os signos, por exemplo, essa
correspondência não é obrigatória. A representação
pode ser usada pra qualquer algo, qualquer coisa, visível
e invisível, ao mesmo tempo, fantasmagorias sequer
imaginadas, até.
O signo é o agente de alteração, o que nos faz
compreender, ampliar ou mudar nosso entendimento
sobre as coisas do mundo. Inclusive o mundo. Disso
trata o signo. Das coisas. Coisas que se confundam com
objeto que o signo consiga ser aplicado para lhe dar um
valor. Denotativo ou conotativo. De três categorias, pelo
menos. Primaridade...
“Pare. Você não vai me dar aula.”
Pensava alto. Eu só estava tentando dizer que o signo é
algo que, em algum panorama ou modo, representa algo
para alguém. Mas isso diria Pierce, para quem a semiótica
é somente uma parte de suas formas de interpretar o
mundo, sua lógica, ética e estética. Contudo, deixei o
amigo em paz, um pouco.
Como aqueles malucos do filme “O ponto de mutação”,
tergiversava, sozinho. Pensava como a teoria semiótica
serve para lidarmos tanto com uma abstração quanto
com uma cadeira. Um comportamento ou uma
mentalidade. Uma Fotografia ou uma fotografia.
Sobretudo a fotografia, esse ente híbrido: antes físicoquímica,
hoje menos que o ar, informação e nuvem. A
semiótica está intimamente ligada à imagem e seus
usos e, particularmente, à fotografia e ao ato e a prática
fotográfica.
Sua importância ou relevância na fotografia está na
construção de uma gramática própria, especulativa, no
desenvolvimento de uma lógica crítica, baseada nessa
gramática.
“Gramática? Especulativa?”
“Poxa”, respondi ao amigo. “Pensei que você dormia.
Explico: gramática especulativa é a soma de todos
os signos possíveis, interpretação, denotações,
significações...”
“Entendo. Um alfabeto próprio. Um “letramento”.
“Nada. Esqueça essas palavras da moda. É mais do que
isso e é mais simples ainda: uma ciência que é ao mesmo
tempo (sua própria) linguagem.”
“Uma tudologia.”
“Isso. A Teoria Geral do Tudo. É isso. Você entendeu. Na
mosca.”
“Por isso ela é importante em todas as áreas do
conhecimento e mais ainda na prática fotográfica: é a
partir dessa gramática que fotógrafos podem buscar
classificações, análises para variações da linguagem,
sinais, códigos, buscando novantigas objetivações &
interpretações.”
“Arbitrárias.”
“Ora, que seja. O ato fotográfico é também arbitrário.
O ato fotográfico é um ato ditatorial. De ruptura. O
enquadramento não é somente uma ‘moldura’, mas um
ato intencional, intelectual e profundo, escolhido para
representar parte do mundo, objetivo ou não. Não é à toa
que o obturador se assemelha a uma guilhotina. Várias.
Uma foto é um corte. Uma decepação.”
“Você parece irritado.”
“Não estou.”
“Mas parece. Beba menos.”
Não estava. Contudo, a ideia-imagem da morte voltava a
perambular pelo ambiente e saí para respirar um pouco,
ali onde os outros se fumavam.
Voltei. Quando me sentei, era a imagem do olho-signo
do filme de Bruñel que não deixava de ocupar todos os
meus pensamentos. A navalha, para além da navalha,
dinamicamamente.
A sensação era que o uber me levaria para casa, a
estranha antiga casa-morta, no passado, onde as velhas
tias dormiam na sala, diante da TV, profundamente.
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