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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição

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Felipa de Sousa, algarvia

condenada na Inquisição pelo

“pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita



Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo

“pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Professor da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve

A 18 de Dezembro de 1591, em Salvador da Bahia –

uma das mais ricas e prósperas cidades do Brasil –, os

esbirros da Inquisição após persistente interrogatório,

conseguiram obter da cristã-velha, Paula de Siqueira,

de 38 anos de idade, a denúncia de haver praticado o

“abominável pecado nefando” da «sodomia

foeminarum», isto é, o sacrilégio da contranatura, com

uma mulher de 35 anos, chamada Felipa de Sousa,

natural de Tavira, no reino do Algarve. Deste modo, tão

imprevisto quanto surpreendente, emergiu ao

conhecimento público o primeiro caso de perseguição

sexual e de condenação da prática de lesbianismo pelo

Tribunal do Santo Ofício em terras de Vera Cruz. A

singularidade deste tipo de flagício herético, o modo

como o processo foi dirimido pelo Inquisidor, e sobretudo

o facto da principal vítima ser uma mulher algarvia, de

quem se ignorava a própria existência, mas que é hoje

um símbolo universal da liberdade de género e da

opção sexual, levou-me a escrever este trabalho, não

apenas por curiosidade académica, mas também por

solidariedade com os que sofrem a exclusão, o opróbrio

e o estigma da diferença.

Este é o sumário, digamos assim, de um vasto processo,

assaz curioso e deveras incomum, que ilustra a sanha

persecutória levada a cabo no Brasil pelo Tribunal do

Santo Ofício, instituído oficialmente, e com toda a

pompa e circunstância, a 28 de Julho de 1591, pela

mão do licenciado Heitor Furtado de Mendonça, fidalgo

e deputado da Inquisição portuguesa.

Em reconhecimento da sua «competência e sã

consciência», foi o padre Heitor Furtado de Mendonça,

nomeado Visitador do Santo Ofício, pela mão do Cardeal

Arquiduque Alberto d’Austria 1 , Inquisidor Geral no

1 Alberto d’Austria, ou Alberto VII, que foi cardial e arquiduque,

com o cognome de Piedoso, teve aura de grande proeminência no

nosso país, que o enviou, a 2 de Março de 1591, às

terras de Vera Cruz, com a missão de ouvir confissões

e denúncias de heresias e práticas de judaísmo, nas

cidades da Baía, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. 2

No dia 9 de Junho, domingo da Santíssima Trindade,

decorridos cem dias de viagem, aportava a Salvador da

Baía a nau do Santo Ofício, cujo Visitador vinha “mui

enfermo”, nauseado pela ondulação marítima, debilitado

seio da nobreza europeia, na segunda metade do século XVI. Basta

dizer que era filho do Imperador Maximiliano II, neto de Carlos V,

irmão do Imperador Rudolfo II e sobrinho de Filipe II. Nasceu em

Neustadt, em 1559 e faleceu em Bruxelas em 1621. Veio ainda

criança para a corte espanhola, onde foi educado sob a protecção

de Filipe II, que o destinou à vida eclesiástica. Mercê da protecção

real vestiu aos 14 anos a púrpura cardinalícia e aos vinte tornavase

arcebispo de Toledo. Se a carreira religiosa foi meteórica, não

o foi menos na política. Assim, quando Filipe II, em 1583 (após

ter passado em Lisboa dois anos de plena felicidade, que jamais

voltaria a experimentar), decidiu regressar a Madrid, escolheu para

o representar no trono luso, o seu sobrinho – o cardial e arquiduque

Alberto d’Austria. Com apenas 24 anos de idade chegava a Lisboa

investido do título de Vice-Rei de Portugal. Pouco depois recebia o

priorado do Crato, de que fora esbulhado o rebelde D. António, por

força das suas pretensões ao trono pátrio. Como legado da Santa

Sé em Portugal, cortou os benefícios de que usufruíam os cristãosnovos

e protegeu com privilégios e isenções o Tribunal do Santo

Ofício em Lisboa e Évora. Ao cabo de doze anos na corte lusa, partiu

para a Holanda a mando de Filipe II, com o título de Governador,

para combater na Flandres as tropas de Henrique IV da França. Em

1598 acordou a paz em Vervins com Henrique IV, renunciando à

soberania dos Países Baixos, mas para isso teve de casar-se com

a princesa Isabel Clara Eugénia, para o que obteve dispensa dos

votos eclesiásticos, pelo Papa Clemente VII, em 1599. É curioso

que a sua administração política teve grande sucesso, sobretudo

no foro jurídico, através do Edicto perpectuo, e na protecção e

desenvolvimento das artes – que o diga o emérito Rubens e a

sua escola de pintura. Mas não soube conter-se nos assuntos de

liberdade religiosa, que lhe valeram sucessivos desastres bélicos

contra os protestantes.

2 Parece inconcebível a nomeação de um cardeal austríaco para o

desempenho das sagradas funções de Inquisidor Geral em terras lusas!

Mas tudo isso tem a ver com a perda da nossa independência em 1580,

mercê da herança da coroa e da consequente ocupação do trono pelo

rei de Espanha, Filipe II – o primeiro da dinastia a que deu o nome

em Portugal. Foi por vontade e indicação de Filipe II, que o Papa Sisto

V nomeou, por bula de 25 de Janeiro de 1586, o arquiduque Alberto

d’Austria (então Vice-Rei de Portugal) para o cargo de Inquisidor Geral

dos reinos e senhorios da antiga administração lusa. Assim se justifica

a nomeação do Licenciado Heitor Furtado de Mendonça para Visitador

do Santo Ofício no Brasil.

Veja-se o interessante estudo de CAEIRO, Francisco. O Arquiduque

Alberto de Áustria, Lisboa, 1961.

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O arquiduque Alberto, filho do Imperador Maximiliano II da Austria, foi

vice-rei de Portugal, no reinado de Filipe I, e Inquisidor-geral do Santo

Ofício. Perseguiu os cristãos novos e promoveu Visitações do Santo

Ofício às colónias. Quadro do pintor flamengo Frans Pourbus, o jovem

(1569-1622), existente no Convento das Descalças Reais, Valladolid,

Espanha.

pela incontinência de alimentos, e pelo desconforto dos

seus acanhados aposentos. Chegava acompanhado pelo

recém-nomeado governador da Baía, Francisco de Sousa,

e pelos seus ajudantes particulares – o notário Manoel

Francisco e o meirinho Francisco Gouveia, executor de

ordens e oficial de justiça. Uma pequena equipa para tão

auspicioso desafio. O Visitador, mal pôs o pé em terra foi

refugiar-se no colégio da Companhia de Jesus, onde

procurou tratamento das suas moléstias e recobro das

forças físicas. Durante os cinquenta dias da convalescença,

ali recebeu as autoridades locais e ali organizou o seu

cartório, de tal modo que o velho colégio se transformaria

na sede oficial do Santo Ofício no Brasil. A opção de

desembarcar em Salvador da Baía foi premeditada, pois

sabia-se que nela habitava uma próspera comunidade de

cristãos novos, importados da metrópole, alguns deles

até já conhecidos do Santo Ofício, por processos anteriores

julgados em Évora, Lisboa ou Coimbra, onde haviam sido

inquiridos ou acusados dos flagícios da heresia, cisma

religioso, “marranismo” ou práticas secretas de judaísmo,

luteranismo e feitiçaria, assim como de falso casamento,

luxúria dos sacerdotes, bigamia e sodomia. Nesta altura,

convém dizer, que a cidade de Salvador teria para cima de

três mil vizinhos, dos quais menos de um terço eram

brancos, que exerciam a autoridade civil, judicial e

eclesiástica, dominavam o comércio e possuíam as vastas

fazendas que compunham o Recôncavo baiano (perímetro

geográfico da administração colonial situado em torno da

região da Baía), em cujos quarenta engenhos do açúcar

trabalhavam centenas de índios nativos, escravos negros,

os capatazes brancos e as famílias dos ricos proprietários

europeus. A cidade da Baía era então um amplo espaço

de prosperidade económica agro-industrial, onde

coexistiam a tolerância e a inclusão, tanto da cultura

indígena como dos costumes e rituais africanos dos

escravos, em suma, respirava-se ali a liberdade de uma

vida sem pecado nem estigma.

Para se fazer uma ideia da importância socioeconómica

daquela região, basta dizer que em 1580 – pouco mais

de duas gerações após a chegada dos seus primeiros

colonizadores –, o Brasil já ultrapassava em valor e

quantidade a produção açucareira da ilha da Madeira, a

tal ponto que no final do século XVI aquela colónia era

já considerada como o maior produtor mundial de

açúcar. Os principais engenhos da agro-indústria

sacarina concentravam-se na Várzea do Capibaribe, em

Pernambuco, e no Recôncavo da Baía. Por causa do

incremento açucareiro é que a migração de europeus

para o Brasil cresceu de uma forma exponencial,

Armada holandesa ancorada na Baía de Todos os Santos, frente à

cidade de Salvador, em1624. Na gravura vê-se a ampla enseada e a

orografia do terreno, a que chamam Recôncavo baiano.

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suscitando igual crescimento na importação de mãode-obra,

infelizmente de origem escrava, proveniente

de várias nações tribais da costa africana. As capitanias

de Porto Seguro, Ilhéus, Baía, Pernambuco, Paraíba e

Itamaracá, atraíram a maioria dos migrantes europeus,

que nelas construíram o fulcro económico do Brasil.

Assim se justifica que em 1549 a Baía se tenha

transformado em sede do governo-geral do Brasil, com

uma população europeia estimada em mais de três mil

almas de várias raças e credos. Muitos desses migrantes

eram cristãos-novos, atraídos pelo sucesso do negócio

sacarino. Não admira, por isso, que a Inquisição de

Lisboa, tenha decidido enviar um Visitador oficial às

capitanias da Baía e Pernambuco, por residir aí o eixo

económico do Brasil, a fim de reprimir o desenvolvimento

do judaísmo e das ideias reformistas exportadas da

Europa pelos emigrantes luteranos e calvinistas. 3

Mas a primeira evidência que desperta a atenção do leitor

é a Inquisição, essa temível máquina persecutória da

liberdade e da tolerância religiosa, que deixou na nossa

memória colectiva um rasto de morte, de violência e de

desumanidade. Instituída pela Igreja Católica para a

vigilância e conservação dos fundamentos da Fé, tornouse

numa organização de terror, com poderes discricionários,

para perseguir e torturar os que fossem delatados por

heresia, blasfémia, bruxaria e sobretudo judaísmo. Nas

suas masmorras padeceram milhares de inocentes,

muitos dos quais pereceram antes da própria formalização

de culpa. Homens e mulheres de todas as condições

sociais, foram alvo da sanha persecutória do Santo Ofício.

O mais horrendo que a História conserva, são os

denominados Autos de Fé, esses abomináveis espectáculos

da morte na fogueira, para servirem de exemplo e

demonstração do poder supremo da Igreja. Jamais, no

presente e no futuro, poderá a Humanidade olvidar as

atrocidades da Inquisição.

Por isso, abrimos, aqui um breve parêntesis para tecer

a respeito dessa terrífica instituição algumas palavras

sobre as suas origens, os seus objectivos, e os seus

horrendos procedimentos judiciais.

3 A propósito do incremento açucareiro e do crescimento económico do

nordeste brasileiro, veja-se o artigo de VIEIRA, Fernando Gil Portela.

«Análise historiográfica da primeira visitação do Santo Ofício da

Inquisição do Brasil (1591-1595)», in História, imagens e narrativas,

Ano I, n.º 2, Abril, 2006, pp. 45-70.

Gravura antiga, representando a imolação das bruxas e feiticeiras de

Nuremberga. As fogueiras “purificadoras” acenderam-se na europa

central muito antes da Inquisição católica.

Inquisição, perseguição e terror como

instrumentos do poder

A Inquisição foi instituída pela Santa Sé como tribunal

eclesiástico para indagar, perseguir e julgar a heresia e

os desvios da fé.

Nos primórdios, o Cristianismo punia a heresia, a

blasfémia ou o sacrilégio, com a penitência eclesiástica,

podendo nos limites condenar à excomunhão. Com o

evoluir do tempo, os pontífices Lúcio III (1181-1185) e

Inocêncio III (1198-1216), acrescentaram aos delitos

da fé os desvios de comportamento sexual e outras

disposições, que englobavam quase todas as formas de

vida social. Neste período, séculos XII e XIII, a Igreja e

o Estado, identificaram como inimigos sociais os

hereges, os hebreus, os mouros, os leprosos, os

pestíferos e os homossexuais. A partir de então a alçada

persecutória da Igreja tornara-se na espada de

Démocles, que impendia sobre a cristandade sem

respeito por privilégios, raças e credos. E assim era

difícil distinguir o pecado da virtude.

A partir do séc. XV recrudesceu o ódio e a perseguição

ao povo hebraico devido ao facto da maioria dos recursos

económicos estarem na sua posse, com a agravante da

maioria dos seus devedores serem cristãos. Por outro

lado, os monarcas tinham o mau hábito de arrendarem

a cobrança dos impostos, mediante a entrega prévia de

um montante inferior ao apuro estimado nos anos

anteriores. Quem arrematava esse negócio eram os

judeus. Como não descuravam os seus interesses,

exigiam o pagamento dos tributos fiscais, sob pena da

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confiscação dos bens dos devedores. Este processo de

sublocação das rendas fiscais aos hebreus, repetiu-se

durante vários anos, a tal ponto que fez recair sobre a

nação judaica o ódio geral, sobretudo dos mais

desfavorecidos. Por outro lado, os judeus tinham hábitos

alimentares, crenças e comportamentos muito diferentes

dos cristãos, viviam à parte, em bairros exclusivos,

adoravam um Deus diferente e não se casavam com os

cristãos. Tudo isto somado fazia impender sobre eles o

desprezo, a antipatia, o rancor e a repulsa da maioria,

que era de credo cristão. O judeu tornou-se aos olhos da

cristandade, numa espécie de inimigo público.

Coube ao papa Gregório IX (1227-1241) a fatídica

glória de haver instituído a Inquisição em Roma, que

em breve se dispersava por toda a cristandade. Em

1542, o papa Paulo III, impôs aos diversos tribunais

que se fundissem num só, sob a égide romana. O papa

Sisto V chamou-lhe Santo Ofício, ou Congregação

Universal da Inquisição, com superintendência sobre as

nações católicas, para reprimir a expansão das ideias

que colocassem em causa a Fé, os costumes e as

tradições cristãs. É evidente que a Inquisição – com o

vigor persecutório e desumanidade de processos que

lhe deu fama e temor – surgiu como resposta

fundamentalista ao processo de renovação das ideias e

de tolerância religiosa, emergente do movimento da

Reforma, também designado como Reforma Protestante.

Na verdade, as proposições de Martinho Lutero

incendiaram as mentalidades, fomentando o

independentismo das nações cristãs contra o

imperialismo mental de Roma, incutindo o nacionalismo

nas coroas do centro-norte europeu, cada vez mais

descrente das razões políticas sustentadas pela casa

dos Habsburgos. Esse processo de retrocesso às raízes

e fundamentos da doutrina cristã, iniciou-se

precisamente com Paulo III através da reunião do

famoso Concílio de Trento, iniciado em 1545 e só

concluído em1563. 4 Este período ficou conhecido na

4 Na cidade de Trento, no norte de Itália, reuniu-se a 13 de Dezembro

de 1545, o 19º Concílio da Igreja católica romana, sob a égide do Papa

Paulo III, de cuja agenda digamos assim, faziam parte os seguintes

propósitos: definir a doutrina da Igreja, eliminar a corrupção do clero

e esconjurar a heresia. O Concílio prolongou-se por três períodos

diferentes. O primeiro decorreu entre 1545-1547, e nele decidiram

que os fundamentos da Igreja seriam: a tradição, a Bíblia Sagrada,

o pecado original, os sacramentos e o baptismo. Os dogmas foram

considerados irrevogáveis. No segundo período, sob a égide do novo

História como Contra-Reforma, e dele emanaram o

reforço das tradições cristãs, dos dogmas da Fé, da

autoridade incontestada do Papa, e até do Latim como

língua oficial da Igreja. 5

Em Portugal, a Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício,

foi fundada pelo Papa Clemente VII, a pedido expresso

e insistente do rei D. João III, através da Bula «Cum ad

nihil magis» datada de 17 de Dezembro de 1532,

através da qual se atribuía às terras lusas o privilégio

de possuir um Inquisidor Geral, sob escolha régia e

nomeação papal. 6 Nessa bula instituía-se Frei Diogo da

Silva como comissário da Sé Apostólica Romana e

inquisidor do reino de Portugal, e de todos seus

domínios. 7 A escolha recaiu num frade menor de espírito

conciliador e sem ambições na hierarquia da Igreja.

No ano seguinte o Papa anulava a sua decisão, e em 7 de

Abril de 1533 concedia bula «Sempiterno Regi» de perdão

aos cristãos-novos. Mas o seu sucessor Paulo III –

acedendo às influências da Casa de Habsburgo, à qual

pertenciam as coroas ibéricas – concedeu a 23 de Maio de

1536 a bula «Cum ad nihil magis», instituindo com

Papa Júlio III, que decorreu entre 1551-1552, decidiu-se conservar a

confissão, a eucaristia, a unção dos doentes, a disciplina e sujeição do

clero a Roma, a jurisdição eclesiástica, e os benefícios ou rendimentos

do clero. O terceiro e último período, mandado reunir pelo Papa Pio

IV, decorreu entre 1562-1563, extraindo-se como principal conclusão

que a autoridade pontifícia era incontestável na cristandade, e

insubmissível ao poder secular ou político. Publicaram-se também

vários decretos conciliares, confirmados em 1563 pela bula «Benedictus

Deus», reconhecendo a conservação da liturgia da missa, o celibato

eclesiástico, a fundação de novas ordens religiosas e a reconfirmação

das já existentes.

5 A principal consequência da Contra-Reforma foi o recrudescimento

dos antagonismos religiosos, a luta contra o Protestantismo estendeuse

ao campo político até degenerar em conflitos militares, de que são

exemplo as guerras contra a Hungria, a Polónia e os Países Baixos,

fazendo-os retornar ao catolicismo. De má memória foi a guerra em

França contra os huguenotes, que resultou numa purga sanguinária. A

Inglaterra seguiu o caminho nacionalista, criando a Igreja Anglicana.

As dissensões político-religiosas agudizaram-se por toda a Europa até

culminarem na Guerra dos Trinta Anos, que decorreu entre 1618 e 1648,

da qual resultaria a definição territorial das áreas de influência das

Igrejas Católica e Protestante, que ainda hoje se mantém, praticamente

inalterável. O mais fatídico de tudo isto foi o fortalecimento do Tribunal

do Santo Ofício, que se tornou num instrumento de extermínio do

judaísmo e da heresia.

6 Cf. Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da

Inquisição em Portugal, 3 vols., Lisboa, Liv. Bertrand, 1975, vol. I, pp.

222-223.

7 Este Frei Diogo da Silva foi um dos mais proeminentes dignatários da

Igreja do seu tempo. Começou a sua carreira eclesiástica como frade

capucho da Província do Algarve, mas como era muito inteligente,

bondoso e humilde, depressa deu nas vistas, chegando a Confessor

do Rei e do Conselho Real. Pelo seu relacionamento na Corte recebeu

o bispado de Ceuta, e posteriormente o arcebispado de Braga, um

dos lugares mais prestigiados, e, por isso, mais pretendidos da lusa

eclésia.

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com o cargo de Inquisidor Geral, que competia a Frei

Diogo da Silva por imposição da bula papal. Pode

dizer-se que foi a partir da nomeação de D. Henrique

que a Inquisição verdadeiramente nasceu. E também

pode dizer-se que foi por sua influência que a

Companhia de Jesus, veio para Portugal. Em 1545, o

rei premiou-o com o ambicionado título de Cardeal. Os

anos seguintes foram extenuantes, não só na

superintendência da Inquisição, como também na

regência do trono após a morte do irmão em 1557, na

educação do sobrinho D. Sebastião, e após o desastre

de Alcácer Quibir, ascendeu ao trono pátrio em 28-8-

1578, num momento particularmente difícil e

desastroso da nossa história. Teve um trono efémero,

pois faleceu em 31 de Agosto de 1580, abrindo

caminho à entronização da dinastia filipina.

Devido aos excessos perpetrados pelos tribunais do

Santo Ofício em Coimbra, Lamego, Tomar, Évora e

Lisboa, o mesmo Papa Paulo III, que os havia instituído,

decidiu extingui-los em 1544 e suspender todas as

D. Diogo da Silva, o primeiro Inquisidor Geral, bispo de Ceuta e

arcebispo de Braga. Retrato existente na Galeria dos Arcebispos de

Braga.

carácter irreversível a Inquisição portuguesa, com sede

em Évora, por ser aí que se encontrava a Corte. 8 Nessa

nova versão da bula instituidora, nomeava para

comissários e inquisidores em Portugal os bispos de

Ceuta, de Coimbra e de Lamego, um triunvirato difícil de

contentar e de convencer, que emperrava o bom

funcionamento do Santo Ofício.

A comunhão de interesses, entre o Rei e a Igreja, era

tão clara e evidente que D. João III, para empalmar o

poderoso tribunal, tomou a decisão política de

escambar, em 1540, o cobiçado lugar de Arcebispo de

Braga, pertencente ao próprio irmão, D. Henrique,

8 A Bula «Cum ad nil magis», de Paulo III, concedeu ao rei de Portugal

a fundação da Inquisição com a prerrogativa de nomear o Inquisidor.

ANTT, Bulas, Maço 9, nº15. Apud. Isaías da Rosa Pereira, Documentos

para a História da Inquisição em Portugal, século XVI, Porto, Arquivo

Histórico Dominicano Português, 1984, fasc. 18, pp. 23-27.

Cardeal D. Henrique, grande impulsionador da Inquisição portuguesa

e verdadeiro instituidor do Tribunal do Santo Ofício; retrato da sua

efémera passagem pelo trono português.

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sentenças da inquisição portuguesa, concedendo

perdões gerais aos cristãos-novos em 1546 e 1547.

Mas as influências políticas foram mais fortes e o Papa

acabou por ceder, atribuindo ao rei de Portugal, a 16 de

Julho de 1547, a bula «Meditatio Cordis», que

confirmaria o estabelecimento definitivo do Tribunal do

Santo Ofício, desta vez em Lisboa. 9 Nesta bula

concediam-se os mesmos privilégios do seu congénere

castelhano, isto é, com absoluto sigilo nos processos de

acusação e inquirição de testemunhas, continuando a

nomeação dos Inquisidores Gerais a ser privilégio do

poder político. Foi nesse ano de 1547 que a Inquisição

de Lisboa publicou o primeiro Index, proibindo a leitura

de certas obras consideradas perniciosas à conservação

da Fé e aos bons costumes. Em 5-09-1552 o cardeal D.

Henrique, na qualidade de Inquisidor Geral do Reino,

promulgou o primeiro Regimento da Inquisição

portuguesa, que viria a ser sucessivamente revisto e

alterado. 10 Em 1555, numa provisão exarada pela mão

do próprio cardeal inquisidor passou a constar, pela

primeira vez, como pecado capital contra os costumes

e preceitos da fé cristã, os ajuntamentos carnais ou

desencaminhamentos sexuais, principalmente a

sodomia 11 , bigamia, adultério, mancebia, fornicação,

9 ANTT, Bulas, Maço 9, nº 16. Apud. Isaías da Rosa Pereira, op. cit.,

fasc. 18, pp. 38-41

10 As sucessivas revisões, de que foi alvo o primeiro Regimento da

Inquisição portuguesa, ocorreram em 1613, pela mão do inquisidor

espanhol D. Pedro de Castilho, em 1640, por D. Francisco de Castro,

devido à restauração da nacionalidade, e em 1774, pelo Cardeal da

Cunha, a instâncias do Marquês de Pombal, que com a publicação

do Beneplácito Régio e o fim da distinção entre cristãos-velhos e

cristãos-novos em 1773, retirou ao Tribunal do Santo Ofício todo

o seu poder persecutório e atemorizador. Em 31 de Março de

1821, os vencedores da Revolução Liberal apresentaram às Cortes

Constituintes um decreto para a extinção da Inquisição, por ser

perniciosa à paz social, às liberdades individuais e aos direitos de

cidadania. O decreto foi de imediato aprovado. Se acaso não tivesse

sido extinta poderia vir a tornar-se num perigoso instrumento de

perseguição às ideias democráticas e sobretudo à maçonaria. Em

todo o caso, a Igreja Católica manteve-a em funcionamento para uso

interno. De facto, em 1965, o Papa Paulo VI, fundou a «Congregação

para a Doutrina da Fé» cujas funções se assemelham às do antigo

Tribunal do Santo Ofício, servindo para combater a apostasia e a

heresia dentro do próprio clero.

11 Convém esclarecer que para classificar a sodomia como muito grave,

são necessárias duas condições: a penetração e a polução. A primeira

declarava a intenção, a segunda a consumação. Cumpridas estas duas

condições, a sodomia significava não só a cópula entre duas pessoas

do mesmo sexo, e nesse caso designava-se por sodomia perfeita, como

também entre homem e mulher, designada como sodomia imperfeita.

No âmbito da sodomia incluía-se também a bestialidade e a molície.

Veja-se a este propósito a obra de BELLINI, Lígia. A Coisa Obscura

– Mulher Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial, São Paulo, Editora

Brasiliense, 1989, pp. 71 a 92

bestialidade 12 e até a molície. 13 Deste modo, o leque de

“crimes” visados pela Inquisição passou a abranger

praticamente todos os comportamentos da vida em

sociedade. E tudo o que pudesse colidir com os preceitos

da Santa Madre Igreja, com os procedimentos da boa

moral cristã, com a decência familiar e com a fidelidade

aos mandamentos católicos, poderia ser considerado

uma heresia, uma blasfémia, uma aberração da

doutrina católica e uma apostasia da fé, punível em

diversas gradações, desde a simples penitência

eclesiástica até à pena capital, eufemisticamente

designada por “relaxamento ao braço secular”.

Em 1569, o cardeal-inquisidor, D. Henrique, criou o

Conselho Geral do Santo Ofício, ao qual atribuiu, no ano

seguinte, o respectivo Regimento. Ao Conselho Geral

competia apreciar e despachar os apelos das sentenças,

a cedência de perdão ou a comutação da pena, a

censura e a licença para a impressão de livros, a

elaboração das listas de livros proibidos que compunham

o Index, sendo que um dos seus poderes mais

importantes era o de indagar a pureza de sangue dos

candidatos a Familiares do Santo Ofício.

A propósito disso, importa dizer que a Inquisição se

transfiguraria numa perigosa máquina de perseguição

das liberdades individuais, quando estendeu os seus

tentáculos por todo o país, da aldeia à cidade, através

da sua rede de Familiares, recrutados às famílias de

boa índole, os quais eram instruídos para estarem

atentos às conversas alheias, aos ditos e boatos, aos

escritos e leituras dos «estrangeirados», amantes da

cultura alheia. Os Familiares do Santo Ofício eram uma

12 A bestialidade, isto é, o sexo praticado com animais, pertencia

desde a Idade Média ao foro civil, no qual era considerado como um

delito muito grave. Nas «Ordenações do Reino» constava que, homem

ou mulher, acusado de praticar sexo com alimárias (vacas, cavalos,

burros, ovelhas e suínos), poderia incorrer na pena capital, isto é, ser

“queimado e feito pelo fogo em pó”. Mais tarde, a partir de 1555, por

provisão do Cardeal D. Henrique, a Inquisição passou a ter alçada sobre

esse tipo de transgressão, podendo em casos muito extremos relaxar o

culpado ao braço secular. Que se saiba não houve nenhum auto-de-fé,

no nosso país, com fundamento na prática da bestialidade.

13 Na teologia moral da Igreja considera-se que a molície consistia

na masturbação (solitária ou mútua), na felação (sexo oral com

homem) e na cunilíngua (sexo oral com mulher). No âmbito da molície

integravam-se as chamadas práticas torpes, como era o caso de “fazer

sacanas”, isto é, penetração sem ejaculação, “fazer coxetas”, ou seja,

gozo nas nádegas, “fazer acessos no vaso traseiro”, isto é, roçar ou

tentar introduzir o “membro desonesto [pénis] no vaso traseiro [ânus]

sem polução [ejaculação]”. Todos estes actos eram do tipo contranatura,

menos graves, é certo, do que a sodomia, integráveis no

âmbito daquilo a que podemos chamar homoerotismo.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

O antigo Palácio dos Estaus, paço real situado no Rossio, onde se

estabeleceu a Inquisição. O terramoto de 1755 arrasou o velho paço

medieval, sendo construído no seu lugar o edifício que viria a ser o

Teatro Nacional D. Maria II.

espécie de polícia secreta, verdadeiros esbirros da

Inquisição, perscrutantes inquiridores, desprovidos da

sotaina eclesiástica, que controlavam discretamente

os mais elementares gestos e atitudes da vida social,

desde as palavras iradas até às expressões injuriosas

que podiam ser confundidas com blasfémias; desde os

hábitos e costumes alimentares até aos preceitos de

higiene, que podiam ser confundidos com rituais de

judaísmo; por fim o comportamento sexual, cujos

desvios podiam ser considerados como pecado

literalmente mortal. Note-se que ser Familiar do Santo

Ofício era uma honra e uma ambicionada distinção,

por envolver a elaboração de um minucioso processo

comprobatório da ancestral pureza de sangue dos

seus ascendentes. 14 A confirmação da limpidez de

sangue hebraico garantia ao candidato receber a

medalha e o hábito de Familiar do Santo Ofício, que

podia usar em público, especialmente nas procissões

14 As chamadas Habilitações do Santo Ofício, exigidas para a

confirmação da “limpeza de sangue” e para a obtenção do Hábito

de Familiar do Santo Ofício, encontram-se depositadas no Arquivo

Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, onde são milhares os

processos dos requerentes, entre os deferidos e indeferidos,

nos quais se podem recolher notáveis pormenores da maior

importância, nomeadamente para a genealogia portuguesa, já que

as inquirições abrangiam os ascendentes e avós, do candidato e

até dos seus colaterais. Através deles os candidatos pretendiam

comprovar que não possuíam qualquer contaminação sanguínea de

“raça infecta”, isto é, a mais ligeira relação com judeus, mouros,

negros ou mulatos, visto que a heresia era associada à ascendência

infiel e impura. Curiosamente indeferiam-se os processos onde

constasse que o candidato não possuía uma boa moral ou tivesse

uma conduta sexual desviante, isto é, praticasse o concubinato,

vivesse amancebado, frequentasse prostíbulos, ou pior ainda, se

fosse sodomita.

Reconstituição da tortura da Polé executada nos cárceres da Inquisição.

O prisioneiro, de mãos ligadas atrás das costas, e com pesos de

pedra atados aos pés, era içado até três níveis de diferentes alturas,

deixando-o cair depois sem tocar no chão. O terceiro lanço, de cinco ou

mais metros, que os torcionários designavam por “esperto”, podia ser

fatal à vítima, pelo que raramente se efectuava.

e, nos autos-de-fé em que, trajado a rigor,

acompanhava os condenados no trajecto do suplício

em direcção ao cadafalso ou à fogueira. 15 Acima de

tudo, usufruía de vários privilégios, dispensas e

isenções, nomeadamente o de não pagar fintas, talhas

e outros tributos, de não ser tutor ou curador, de

exercer ofícios concelhios contra a sua vontade, de

ceder a sua casa para a aposentadoria real ou de

entregar as suas cavalgaduras para o serviço militar;

também não se lhe podiam requisitar ou tomar pela

força o pão, o vinho, ovos, cevada, palhas, lenhas,

roupas, aves, gados e bestas; podia andar armado na

15 Veja-se o importante estudo de Luís de Bivar Guerra, «Os processos

crime da Inquisição e os de habilitação do Santo Ofício como fonte

histórica», in Anais da Academia Portuguesa de História, 2ª série,

Lisboa, vol. I, 1975, pp. 309-327.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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via pública e a sua mulher e filhos podiam usar vestidos

de seda, contrariando assim as leis contra a

sumptuária. 16

As prerrogativas judiciais de que a Inquisição

beneficiava em exclusivo, consistiam em graves erros

de índole processual, quer na formulação da prova,

quer na avaliação da culpa. Começava, desde logo,

pela recusa de informar os denunciados sobre a

identidade das testemunhas que os tinham delatado,

e depois pelo recurso à tortura como meio de obter a

confissão das culpas que lhe eram imputadas. 17 A

tudo isto acresce, ainda, o desprezo pelas leis e

prerrogativas consignadas nas antigas «Ordenações

do Reino», em benefício da autoridade e vontade do

próprio inquisidor. Quer isto dizer que portas a dentro

quem mandava não era a lei nem o direito, mas tão

só o arbítrio e a suprema autoridade da Inquisição. O

tormento, infligido pelo uso do potro e da polé, eram

instrumentos de suplício do mais desumano e bárbaro,

que viriam a tornar-se na imagem de marca da

própria Inquisição. 18

No caso de o réu vir a ser condenado, o que era o mais

expectável, perdia todos os seus bens em benefício da

Igreja e do Rei, por força da aliança que entre os dois

poderes se estabeleceu desde a origem e criação do

Tribunal do Santo Ofício. Tanto assim era que quando o

acusado era relaxado ao braço temporal, o mais certo e

previsível era ser condenado à morte, através da

imolação em auto-de-fé.

16 Os privilégios concedidos aos Familiares do Santo Ofício encontramse

devidamente elencados na Carta Real de D. Sebastião datada de 14

de Dezembro de 1562.

17 A tortura como meio de obtenção de prova, para a confissão da

culpa, era não só legítima como tradicional nos cárceres da Inquisição,

estando consignada desde 1252 pelo Papa Inocêncio IV. na bula «Ad

extirpanda».

18 Na terceira revisão do Regimento do Santo Ofício, reformulado em

1640, consta que o potro e a polé eram os meios de tortura mais

eficazes na obtenção da confissão, por serem os que mais sofrimento

causavam nos réus. Para se ter uma ideia, esclarecemos que o potro

era uma espécie de cama de ripas à qual se atava o acusado, nas

pernas e braços, com várias voltas de cordas, as quais se apertavam

lentamente através de um arrocho, até começarem a cortar a carne,

os músculos e os tendões da vítima. A polé consistia num movimento

descendente muito rápido da vítima, que de mãos atadas e com pesos

amarrados aos pés, ficava suspensa num forte moitão cravado no tecto

da sala de tortura. Quando o carrasco largava a corda, a vítima caía

rapidamente em direcção ao solo, mas era travada bruscamente antes

de tocar-lhe, o que causava uma dor lancinante na coluna, ancas,

joelhos e articulações. O «ad faciem tormenti» da polé, compunha-se

de três lanços, dois ligeiros e um rápido.

Tortura da polé nos cárceres da Inquisição. Ex-voto italiano de 1599.

Veja-se a presença do inquisidor interrogando o punido, do meirinho

puxando a corda, e do escrivão anotando a confissão do torturado.

Não se sabe ao certo o número de vítimas que sofreram

na carne os flagelos da Inquisição. Apesar de Herculano

falar em cinco mil vítimas, pensa-se que o número total

de condenados à fogueira pelos tribunais de Lisboa,

Coimbra e Évora, não deverá ter alcançado as mil e

duzentas mortes, 90% dos quais condenados por

judaísmo. Acresce a esta cifra cerca de setenta efígies

queimadas em autos-de-fé, relativas a judeus exilados

no estrangeiro. Em todo o caso, não sabemos quantos

morreram durante a fase instrutória do processo, em

que eram torturados e detidos em insalubres enxovias.

Muitos deles foram detidos por tempo indeterminado e

sem culpa formada, acabando por morrer nos cárceres

inquisitoriais. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo,

em Lisboa, existem para cima de quarenta mil processos,

dos quais cerca de trinta mil resultaram em condenações

de vário tipo, convertidas em penitência, açoites em

praça pública, reclusão monástica para a purificação da

fé, desterro para as colónias, condenação às galés, e,

por fim, o “relaxamento ao braço secular” um eufemismo

que traduz a pena de morte em auto-de-fé.

Em suma, fazendo minhas as palavras largamente

proferidas pelos delatados, nomeadamente em pleno

auto-de-fé, a Inquisição foi uma “fábrica de judeus e

um tribunal de ladrões”. Primeiro porque a população

hebraica residente no país era escassa e dispersa, não

podendo justificar os mais de quarenta mil processos

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Reconstituição da tortura do Potro numa gravura do século XVI. Os

torcionários prendiam os braços e pernas da vítima a uma banca móvel

de madeira, esticando-lhe o corpo até à exaustão. A cedência das

articulações causava lesões irreparáveis para o resto da vida. O imortal

Camões, depois de sujeito a esta tortura ficou inutilizado dos membros

inferiores, usando muletas até ao fim da vida.

Réplica do manipulo da polé, exibido em exposições de tortura, e

existente em vários museus da Europa.

que compõem o arquivo da Inquisição. Segundo,

porque os interesses económicos envolvidos nos

processos de acusação eram avultados, visto que os

bens das vítimas eram confiscados e revertidos em

benefício do Santo Ofício e até da própria Coroa. Por

essa razão é que a esmagadora maioria desses

processos dizem respeito aos estratos sociais da

burguesia, sobretudo, mercadores, lavradores,

médicos, boticários, barbeiros, advogados, escrivães,

proprietários, alfaiates, sapateiros, tendeiros, trapeiros,

sirgueiros, ferreiros, almocreves, ourives, etc. Tudo

gente de porta aberta, isto é, com loja ou oficina de

trabalho, que produz, cria e transforma, lidando com

dinheiro vivo, que lhes permite poupar e investir,

nomeadamente na compra de terra, adquirindo

prestígio e importância social. Os seus descendentes

vão estudar para a universidade de onde regressam

para serem integrados num patamar superior da

sociedade. E isso era o que mais desagradava à fidalguia

de linhagem, e às dignidades religiosas do alto clero,

pois temiam que a ascensão social dos plebeus - mercê

da sua valorização por mérito intelectual ou por

acumulação financeira, resultante do trabalho e

transações mercantis – pudesse vir a provocar a

alteração das mentalidades, a renovação económica, e

a desagregação do antigo regime, estruturado em

ordens e castas familiares. Por isso, tentando obstar à

evolução mental do tempo, «é para a mercancia, é para

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objectivo da própria colonização, mas também é

verdade que muitos dos povoadores brancos acabavam

por se deixar influenciar pelas culturas autóctones,

adoptando comportamentos e até crenças religiosas

estranhas. Ora, acontece que no século XVI assistiu-se

a uma crescente emigração dos Países Baixos para a

América do Sul, sobretudo para o Brasil, contagiando

os seus povoadores com ideias luteranas e filossemíticas.

Pior do que isso, espalhando e incentivando ideias

sediciosas conducentes à emancipação da colónia. 20 É

claro que a informação oficial que chegava a Lisboa

dava conta desses perigos, nomeadamente da

existência de uma crescente comunidade hebraica,

iniciada primeiramente através das condenações ao

degredo – por judaísmo – e continuada ao longo dos

anos através da emigração de cristãos-novos que

buscavam nos Brasis uma nova oportunidade de vida. 21

Para obstar ao crescimento do livre-arbítrio e à

resistência do judaísmo, a Inquisição decidiu-se a

Iluminura datada de 1380, representando o suplício dos Cavaleiros

Templários. O rei Filipe IV de França, em 1307 mandou prender os mais

poderosos membros da Ordem do Templo, condenando-os à imolação

pública. Comprova-se que os autos-de-fé remontam à Idade Média,

como penitência e “purificação” da heresia.

os mercadores, artífices e intelectuais que se volta o

ódio, não regimental, dos esbirros inquisitoriais». 19

A expansão territorial da Inquisição às terras de

Vera Cruz.

A primeira Visitação do Tribunal do Santo Ofício ao

nordeste e capitanias do sul do Brasil, inseria-se numa

estratégia de expansão da área de influência, controlo

e vigilância da Inquisição sobre as colónias atlânticas.

O Atlântico era uma espécie de estrada de disseminação

da civilização europeia e da cultura cristã. Favorecia

não só o trânsito de mercadorias e bens, que animavam

o trato mundial, como também facilitava a troca de

ideias, de costumes e até de hábitos alimentares, não

só exportados da Europa como também importados do

Novo Mundo e Oriente. A aculturação europeia era o

19 COELHO, António Borges. Inquisição de Évora, dos primórdios a

1668, 2 vols., Lisboa, Editorial Caminho, 1987, vol. I, p. 365.

20 Uma quantidade imensa de judeus portugueses emigrou para

a Holanda entre 1496 e 1497, período limite para poderem fugir

do país e assim escaparem à conversão forçada ao cristianismo,

imposta pelo rei D. Manuel I. Esses judeus portugueses sediados

nos Países Baixos, sobretudo em Amsterdão, abriram importantes

negócios relacionados com o comércio externo, principalmente com

Portugal e o seu império. Foram essas empresas holandesas, de

importação e exportação de mercadorias oriundas da pátria lusa,

que desenvolveram a nossa economia com o norte da europa. Essas

relações mercantis eram estabelecidas com empresas de cristãosnovos,

que tinham ficado em Portugal. Os judeus portugueses

que foram para os Países Baixos eram designados por sefarditas,

e falavam uma língua própria, mesclada do português, a que

chamavam ladino ou latino. Organizaram-se e juntaram-se em

bairros exclusivos nas cidades de Roterdão, Amesterdão, Antuérpia,

e outras, onde se distinguiam dos judeus askhenazi, pela sua

dedicação à música e ao estudo, sobretudo à medicina. De entre

os sefardins mais famosos da cidade de Amesterdão será sempre

lembrada a memória de Espinosa.

21 Não se sabe ao certo o número de sefarditas de Amesterdão, isto é,

luso-hebreus, que emigraram para o Brasil, sobretudo para a capitania

de Pernambuco no nordeste brasileiro. O móbil dessa atracção pelas

terras de Vera Cruz estava no açúcar, um negócio chorudo à volta do

qual gravitavam mercadores oriundos das igrejas protestantes, que

não condenavam o lucro, a riqueza e o sucesso, como acontecia com

os católicos. Não admira, por isso, que a maioria desses mercadores

fossem flamengos, britânicos e hebreus. Aliás, foram eles que

animaram o trato brasileiro com a Companhia das Índias Ocidentais,

de tal forma que na cidade de Recife os hebreus holandeses e os

cristãos-novos portugueses chegaram a juntar-se num bairro a que

deram o nome de «Rua dos Judeus», que em holandês se designava

por «Jodenstraat». A presença judaica foi de tal modo importante

e numerosa que existiam no Recife duas sinagogas, a primeira e

a mais antiga designava-se «Kahal Kadosh Zur Israel», a segunda

construída mais tarde do outro lado do rio que limita a cidade, em

Capibaribe, tinha a invocação de «Kahal Kadosh Maghen Abraham».

Nestas duas sinagogas, sobretudo na primeira, reconverteram-se à Fé

de Israel algumas centenas de cristãos-novos portugueses, que até aí

andavam tresmalhados, uns porque após a conversão ao catolicismo

descuraram ou esqueceram o culto, outros porque sendo de gerações

posteriores quase nem conheciam as raízes a que pertenciam.

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integrar o Brasil na esfera da soberania católica.

Repare-se que foi nesse espírito que o mesmo Visitador,

após inspecionar as capitanias da Baía e de Pernambuco,

deveria ter seguido para S. Tomé e Cabo Verde, o que

não viria a acontecer devido ao excessivo tempo

despendido no Brasil. Aliás, foi na persecução da

estratégia de expansão do Santo Ofício pela zona

atlântica que se realizaram outras visitações,

nomeadamente a do padre Jerónimo Teixeira, nesse

mesmo ano de 1591, efectuada aos Açores e Madeira.

E em 1596 e 1598, o padre Jorge Pedreira realizou duas

Visitações às terras de Angola, que do ponto de vista da

Inquisição alcançou resultados pouco significativos.

Retomemos o fio à meada. Quando o Visitador do Santo

Ofício, o licenciado Heitor Furtado de Mendonça,

aportou à cidade de Salvador da Baía, no dia 9 de Junho

de 1591, vinha como já dissemos doente e muito

indisposto com as agruras da viagem. Por essa razão

foi acolher-se no Colégio dos Jesuítas, onde

paulatinamente recuperou forças para iniciar a sua

missão. Em 15 de Julho, já recuperado, preparou-se

para dar início à visitação. Primeiro apresentou os seus

dois auxiliares, o notário Manoel Francisco e o meirinho

Francisco Gouveia, ao bispo da Baía, informando-o que

o colégio dos Jesuítas, onde se acolhera para convalescer

da viagem, passaria a ser a sede do Tribunal da

Inquisição em Salvador. No dia 22, apresentou-se com

os seus auxiliares aos juízes, aos vereadores e aos

nobres locais, para que tivessem consciência da sua

sagrada missão.

A apresentação oficial do Santo Ofício ao povo da Baía,

fez-se com toda a pompa e circunstância perante as

principais autoridades religiosas, civis e militares, que

publicamente deram provas da sua sujeição, ao

ajoelharem-se perante o Visitador. O próprio bispo da

Baía, o cisterciense D. António Barreiros, sujeitou-se a

ler em público o texto da Provisão da Visita, após o que

beijou o papel e colocou-o sobre a cabeça, num gesto

de submissão e de vassalagem, que reflectia também o

temor que todos sentiam em presença da Inquisição.

No dia 28 de julho de 1591, domingo da Oitava do

Pentecostes, bem cedo pela manhã, cinzenta e chuvosa,

o Visitador do Santo Ofício, Heitor Furtado de Mendonça,

inaugurava a sua “cruzada contra a heresia” perante

uma audiência avaliada em alguns milhares de fiéis,

Igreja da Ajuda em Salvador da Baía, fotografia publicada na revista «A

Illustração Brazileira», 6º ano, n.º 128, setembro de 1914. Vê-se que

foi restaurada e alterada para facilitar a circulação viária.

oriundos das mais de sessenta igrejas e ermidas

espalhadas pelo recôncavo da Baía, cujos párocos locais

incitaram os colonos brancos e os trabalhadores dos

engenhos a comparecerem na cidade de Salvador, a fim

de louvarem e agradecerem a presença do Inquisidor

nas terras de Vera Cruz. O povo aguardava com

expectativa que se abrissem as portas da igreja da

Ajuda, conhecida por “Sé de palha”, para ver sair a

procissão da Santa Inquisição. E não deu por mal

empregue o tempo da espera.

Com magnificência e solenidade, o cortejo religioso

percorreu as ruas de Salvador em direcção à Catedral,

apresentando-se o Inquisidor à cabeça do préstito,

debaixo de um soberbo pálio tecido a seda e ouro,

empunhando uma imponente cruz, divisa do sacrifício e

da piedade, que é também o venerável símbolo da

Inquisição. Na altivez da sua arrogância, na ostentação

dos seus adereços e sagrados paramentos, e na unção

do poder que o Santo Ofício lhe conferia, o fidalgo

Visitador chamava a si todas as atenções do povo, que

nas ruas se persignava à sua passagem. Logo atrás do

pálio vinha o Bispo e os membros do Cabido, seguido

dos oficiais da justiça, da administração e governo

local, dos diversos eclesiásticos e frades das ordens

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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franciscana, beneditina e jesuítica. A Inquisição era isto

– aparato e força.

A procissão cessou o itinerário solene na Sé Catedral de

Salvador, onde o povo e todo o préstito ouviu missa,

celebrada pelo Chantre, auxiliado por dois cónegos. O

Visitador da Inquisição mantinha-se revestido de toda a

pompa, na sua soberba glória de representante

supremo de todas as autoridades presentes. Estava

sentado num cadeiral dourado, forrado em veludo

carmesim, e debaixo de um dossel de damasco

escarlate, emoldurado a ouro. No fim da missa, subiu

ao púlpito o provincial da Companhia de Jesus, padre

Marçal Beliarte, para fazer um sermão sobre a pureza

da Fé e a obediência dos fiéis à Santa Madre Igreja.

Depois foi a vez do Arcediago da Sé, Baltasar Lopes,

subir à tribuna para ler em voz alta os seguintes

documentos, considerados de suma importância: o

«Edital da Fé», o «Edital da Graça», o «Monitório da

Inquisição» e a Bula do Papa Pio V. O primeiro, estava

firmado pelo Rei, e concedia a conservação dos bens

àqueles que confessassem, no prazo de trinta dias, ou

seja, no designado “tempo da Graça”, todas as suas

prevaricações de heresia, blasfémia e conduta moral.

Os fiéis deviam igualmente denunciar as infracções

alheias perpetradas contra a Fé e os preceitos da Igreja.

O segundo, convidava os fiéis a confessarem as suas

faltas de forma voluntária e sincera, no tempo da Graça,

no decurso de trinta dias, por forma a que os mesmos

pudessem ser perdoados pela Mesa da Inquisição. O

terceiro, elencava todas as iniquidades contra os

preceitos da Fé Católica, que poderiam ser criminalizadas

pelo Tribunal do Santo Ofício. O último emanado pelo

supremo poder espiritual, ameaçava com pena de

excomunhão «ipso facto incurrenda», os que não

acatassem a autoridade e ofendessem os representantes

do Santo Ofício, ou de algum modo estorvassem o

regular exercício do seu múnus eclesiástico e judicial.

Curiosamente o Arcediago da Sé salientou que a todos

os católicos incumbia entregar aos ministros da

Inquisição uma lista completa dos livros que tivessem

em casa, para serem confrontados com as listas do

Index. Repare-se no pormenor atentatório da mais

elementar das liberdades individuais, a leitura e o

autodidatismo. Os esbirros da fogueira adaptaram à

máxima popular uma nova proposição: “diz-me o que

lês, dir-te-ei quem és”. A posse ou leitura de obras

“sediciosas”, hoje anódinas, como a comédia

«Eufrosina», de Jorge Fernandes de Vasconcelos, o

romance pastoril «Diana» de Jorge de Montemor, as

«Metamorfoses» de Ovídio, «O Príncipe» de Nicolau

Maquiavel, ou até mesmo a própria Bíblia traduzida do

latim, poderiam desencadear um processo cujo

desfecho eventual seria, na pior das hipóteses, o

degredo, as galés 22 ou a reclusão ascética. A posse de

um simples livro, cujo detentor poderia nem saber que

era atentatório da fé e dos bons costumes, era o

suficiente para iniciar um processo de acusação, do

qual resultariam os maiores dissabores. Este tipo de

actuação inquisitorial foi um dos principais factores de

atraso científico e de estagnação da cultura lusa em

relação às nações do eixo europeu.

A cerimónia na Sé Catedral de Salvador terminaria ao

cabo de três horas com o juramento de fidelidade ao

Santo Ofício, prestado pelas autoridades locais, em

primeiro lugar o governador da Baía, D. Francisco de

Sousa, seguido pelos seis vereadores da câmara, pelo

alcaide e outras personalidades representativas da

burguesia agro-industrial. Tinham de se persignar

humildemente, isto é, postar-se de joelhos com as

mãos sobre dois missais e duas cruzes de prata

colocadas sobre o altar-mor, e jurarem cumprir as

disposições ordenadas no Regimento da Inquisição,

promulgado pelo Cardeal D. Henrique em 1552, no

tempo em que desempenhou as funções de Inquisidor

Geral do reino. 23

22 A condenação às galés era quase uma condenação à morte,

porque as privações, o esforço supliciante do remo, a insalubridade

e desconforto da embarcação traduziam-se numa vida de sofrimento,

da qual resultava inevitavelmente uma morte lenta. O nosso imortal

poeta, que conheceu de perto o suplício da galé, chamou-lhe a morte

“crua e feia”. Às galés apenas podiam ser condenados os plebeus ou

gente vil. Na primeira Visitação da Inquisição ao Brasil os principais

sentenciados às galés foram os bígamos, os nefandos ou sodomitas,

fornicários, heréticos e blasfemos.

23 Este Regimento de 1552 compunha-se originalmente por 141

capítulos, aos quais o próprio Cardeal D. Henrique, acrescentaria em

1564 mais 23 adições e algumas declarações especiais, destinadas a

fazer frente à crescente difusão do luteranismo, e ao cumprimento das

disposições emanadas pelo Concílio de Trento. Foi neste Regimento de

D. Henrique que se incluiu o chamado “segredo originário”, isto é, a não

revelação do nome do denunciante, para não ser alvo de perseguições

pelos denunciados. Também foi neste Regimento que se declarou como

legítimo o recurso à tortura, para obter do delatado a confissão das

faltas de que estava acusado. Nas disposições acrescentadas em 1634

incluiu-se a repressão dos comportamentos imorais (p. e. mancebia e

bigamia) e a coibição dos desvios sexuais (p. e. a sodomia, molície, a

bestialidade e a fornicação em geral).

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e sincera as culpas, faltas e erros que lhes pesassem na

consciência, ou que denunciassem tudo o que

soubessem, quer tivessem visto ou ouvido dizer, sobre

práticas que contrariassem a fé católica. 24 Essas práticas

eram judaísmo, luteranismo, asserções heréticas,

blasfémia, apostasia, pacto com o diabo, leitura de

livros proibidos, insultos contra a Igreja e a Fé (p. e.

contestar a virgindade de Maria), bruxaria, quebranto e

feitiçaria. 25 O chamado criptojudaísmo ou heresia

judaica era considerado um grave delito. Consistia,

grosso modo, em guardar o calendário judaico, cumprir

os rituais funerários dos judeus, não trabalhar aos

sábados, abster-se de comer carne de porco, etc.

O texto do «Monitório», datado de 1536, constituía o

elenco pormenorizado dos crimes que recaíam na

alçada do Santo Ofício. 26 Curiosamente, nele não

24 O chamado “período da Graça”, ou seja, os trinta dias concedidos

aos fiéis para confessarem os seus pecados e receberem a absolvição

da Inquisição, era uma espécie de presente envenenado, porque caso

o Visitador considerasse que a confissão não era total, por não coincidir

com todas as acusações delatadas por outros confitentes, seria alvo de

um processo de incriminação pelo Santo Ofício.

Capa do exemplar publicado em 1564 pela Real Mesa Censória sobre os

livros indexados como perniciosos à fé e à conduta católica, sendo por

isso proibida a sua leitura.

Após a cerimónia, e de todo o aparato de obediência e

submissão, começava oficialmente a Visitação, e, para

não surpreender, com um gesto de repressão,

consubstanciado na afixação do «Edital da Fé», à porta

das igrejas e em outros locais públicos. Nele se instigava

os crentes a denunciarem heresias, práticas irregulares

da fé e comportamentos desviantes da boa moral. Por

outro lado, no portal da Sé Catedral da Baía afixava-se

o «Monitório da Inquisição», no qual se concedia trinta

“dias de graça” aos habitantes de Salvador e das aldeias

ao redor de uma légua. Durante o chamado período da

Graça, os fiéis deveriam confessar de forma voluntária

25 A feitiçaria não era uma acusação de somenos importância, porque

lhe estava adicionado o mau olhado, a quebradura, o encantamento

e, sobretudo, a impotência sexual. A crendice popular atribuía grande

importância às feiticeiras, geralmente mulheres pobres, idosas e

viúvas, que viviam em locais recônditos, ou afastados das aldeias,

conhecedoras de rezas, de plantas, unguentos, mezinhas e elixires,

capazes dos maiores prodígios. No caso da Visitação às terras da

Baía, foram acusadas três mulheres por feitiçaria, todas elas com

alcunhas assaz curiosas: Isabel Rodrigues, a “Boca Torta”, Antónia

Fernandes, a “Nóbrega” e Maria Gonçalves, a “Arde-lhe o Rabo”.

Foram todas acusadas pelo Inquisidor de conluio ou pacto com o

diabo, proxenetismo e outros sacrílegos sexuais, facultar pós miríficos

e orações gentílicas aos que requisitavam os seus serviços para

aproximar casais desavindos, etc. O pior é que certos homens quando

chegavam ao período da andropausa acusavam as feiticeiras de serem

as causadoras da sua impotência. Mas havia também o contrário, isto

é, quem se queixasse da ineficácia dos feitiços, ao que a “Arde-lhe o

Rabo” respondeu na voz da denunciante: “por muito que ella me dê,

muito mais lhe mereço, por que eu ponho me a meia noite no meu

quintal com a cabeça ao ar e com a porta aberta para o mar, enterro

e desenterro umas botijas e estou nua da cinta para cima e com os

cabelos e falo com os diabos e os chamo e estou com eles em muito

perigo”. Este tipo de depoimento era obviamente indiciador de pacto

com o demónio, um género de heresia ou blasfémia perfeitamente

tipificado no «Monitório» da Inquisição.

Primeira Visitação do Santo Officio às Partes do Brasil, pelo licenciado

Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-92, Prefácio

de Capistrano de Abreu, São Paulo, Homenagem de Paulo Prado, 1922,

p. 20.

26 O documento em si, datado de Évora, a 18 de Novembro de 1536,

foi emanado por D. Diogo da Silva, como Inquisidor mor, e tem a

seguinte designação «Monitorio do Inquisidor Geral, per que manda a

todas as pessoas que souberem d’outras, que forem culpadas no crime

de heresia, e apostasia, o venhão denunciar em termo de trinta dias».

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, nº 4828, fls. 7-9v.

Pode ler-se na sua versão integral, com transcrição diplomática em

Primeira Visitação do Santo Officio às Partes do Brasil, pelo licenciado

Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-92, Prefácio

de Capistrano de Abreu, São Paulo, Homenagem de Paulo Prado, 1922,

pp. 39-45.

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n.º 20 2018

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Reconstituição da Mesa da Inquisição durante a fase da instrução do

processo, ouvindo as declarações do arguido. O inquisidor interroga e

o notário escreve as declarações testemunhais. Esta gravura, embora

relativa à inquisição espanhola, retrata a realidade portuguesa.

constavam os de índole moral e sexual. Porém, durante

as cerimónias oficiais da Visitação, celebradas na Sé

Catedral, o arcediago Baltasar Lopes apregoou de viva

voz, que caíam na alçada da Inquisição, as imputações

de bigamia, mancebia, sodomia, fornicação e molície,

que deveriam ser confessados, de forma livre e

espontânea, à Mesa da Inquisição, durante o período

da Graça. Iniciava-se o tenebroso espaço da purificação

da fé, da perseguição ao judaísmo e às ideias heréticas,

através dos meios mais abjectos à dignidade humana:

a delação da suspeita, a denúncia da fé, e a criminalização

da diferença – quer fosse da liberdade de pensamento,

dos comportamentos sexuais ou até mesmo da raça.

Abro aqui um breve parêntesis para acrescentar que a

Inquisição, no início da Contra-Reforma, endureceu os

seus métodos de avaliação da pureza da Fé, a tal

ponto que passou a considerar os judeus como subhumanos,

isto é, deixou de os prezar como pessoas,

com direitos iguais, ainda que de raça diferente, para

os observar e apreciar com absoluta desumanização.

O auto-de-fé, é disso exemplo, porque apesar de ser

considerado um acto religioso e sacramentado, era,

contudo, um espectáculo de morte, a que o público

acorria para testemunhar o sofrimento dos cristãosnovos,

sem qualquer escrúpulo, remorso ou piedade.

Essa desumanização também se estendia, de algum

modo, às mulheres, que em desconsideração social se

equiparavam aos judeus. Quantas vezes não se

identificou a mulher com a mentira, a traição, a

perfídia, o mal e o diabo. A própria Igreja usou a

imagem bíblica da mulher (Eva, Salomé, Maria

Madalena, etc) como móbil da aliciação e da perfídia,

para justificar o pecado nos homens. Nos países

germânicos a figura da mulher foi muito desvalorizada,

a tal ponto que eram frequentemente imoladas em

autos-de-fé. Entre nós, latinos, as mulheres foram

associadas em determinadas épocas à feitiçaria, de tal

modo que, nos sortilégios da magia e da maldade, as

equiparavam aos judeus. 27 As mulheres que se

dedicassem à transmissão empírica das benzeduras e

do curandeirismo, velhas tradições da medicina

popular, eram vulgarmente designadas por bruxas, e

muitas delas viram-se perseguidas e acusadas pelo

Santo Ofício, delatadas não raras vezes pelos médicos,

que delas sentiam o efeito da concorrência.

Durante o período da Graça efectuaram-se 121

confissões, das quais resultaram mais de trezentas

denúncias, extraindo-se delas uma grande diversidade

de crimes, principalmente palavras torpes, blasfémias,

deformação ou deturpação da prática litúrgica, judaísmo

e gentilidades, isto é, cultos e ritos de divindades

autóctones, cujo processo na Inquisição ficaria

conhecido por “abusão indígena” ou a Santidade de

27 Na crença popular e na própria mentalidade eclesiástica tanto

as mulheres como os judeus, andavam próximos e equiparados,

por terem similitudes nas artes do embuste. A tal ponto que o povo

chegava a dizer que os judeus, homens, eram menstruados, havendo

nisso confusão com o facto de serem circuncisados. Quanto às

mulheres feiticeiras dizia-se que faziam sexo com Satanás, dando à

luz os demónios que espalhavam o mal pelo mundo. Por outro lado,

as mulheres judias eram acusadas de praticaram a bestialidade, e

por isso davam à luz bebés com focinho de animais. Os padres e

religiosos difundiram a ideia de que os judeus celebravam em casa

uma imitação da missa cristã, mas em vez de Deus adoravam o

diabo e na celebração da comunhão usavam o sangue dos cristãos,

e às vezes até o seu esperma. Tudo isto eram ignominiosas

mentiras de índole racista que prejudicavam a imagem dos judeus

e das mulheres, contribuindo para a sua depreciação popular e

inferioridade social.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Auto de Fé realizado na Plaza Mayor de Madrid. Repare-se na majestosidade e grandeza do acto público, para o qual foi montado um palco central e

duas bancadas para conter centenas de assistentes da nobreza e alto clero. Famoso quadro a óleo sobre tela, 277 x 438 cm, da autoria de Francisco

Ricci, datado de 1683, existente no Museu do Prado, em Madrid.

Jaguaripe. Causou uma certa estupefação a quantidade

de transgressões de índole sexual, o que vem

demonstrar que o Brasil era uma espécie de “Terra sem

Mal” onde não existia o estigma do pecado, e as

diferenças, tanto sociais como morais, eram geralmente

toleradas. Em todo o caso, a Inquisição considerava

esse tipo de infracções como menos gravosas e de

pouco interesse para os objectivos da Visitação, que

eram sobretudo os de extirpar o culto judaico, o

luteranismo, os credos gentílicos, e acusar os cristãosnovos,

detê-los e enviá-los para Lisboa a fim de serem

julgados. 28 Mas o Visitador, Heitor Furtado de Mendonça,

entre 1591 e 1595, entreteve-se a julgar e condenar

delitos menores, nomeadamente distorção e omissão

de práticas religiosas ou litúrgicas, denúncia falsa,

feitiçaria, pacto com o diabo, blasfémias, livros

proibidos, palavras contra o clero, bigamia, sodomia,

superstições etc. Em vez de se preocupar em combater

e perseguir as práticas secretas de judaísmo e de

luteranismo, andou a perder tempo, a exorbitar os seus

poderes e a ultrapassar as instruções que recebera. 29

É certo que extirpou o culto judaico e encerrou algumas

sinagogas no sertão, denunciou o referido “abusão”

indígena que se preparava para desencadear uma

revolta contra a escravatura e colonização portuguesa,

28 A maioria dos acusados que foram julgados ainda no Brasil sofreram

diferentes penitências, para os delitos ligeiros, mas nos casos mais

perniciosos as sentenças foram infamantes e dolorosas, como açoites,

degredo para longe da capitania, sequestro dos seus bens, etc. Menos

de uma dezena dos condenados foram acusados de judaísmo, sendo

por isso remetidos para Lisboa a fim de serem julgados pelo Tribunal

do Santo Ofício.

29 O Visitador do Santo Ofício tinha a estrita missão de apenas

averiguar as práticas e vivências dos colonos, sobretudo os cristãosnovos

de origem judaica, para apurar se existiam evidentes desvios da

Fé, dos dogmas e outros preceitos da Igreja Católica. Podia sentenciar

os chamados delitos menores, de que eram exemplo as blasfémias,

as asserções heréticas, e até a bigamia e outras condenações da

abjuração de levi, desde que fossem cometidas por ignorância e de

forma involuntária.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

e prendeu a matriarca dos cristãos-novos da Baía. 30

Mas teve uma conduta muito irregular e exagerada,

exorbitando as suas competências ao incriminar 101

homens de práticas homoeróticas, condenando

dezanove sodomitas ao açoite em público, às gales e ao

degredo, para além de processar “fornicários”,

blasfemos e bígamos, perdendo nisto mais tempo do

que o expectável, e não cumprindo com a agenda

previamente estabelecida. 31 Isto fez com que caísse em

descrédito e perdesse a confiança do Conselho Geral da

Inquisição, que acabou por exonerá-lo e exigir o seu

regresso a Lisboa, pondo-se deste modo fim à primeira

Visitação do Santo Ofício às terras de Vera Cruz. 32

1. Quem era o Visitador do Santo Ofício

A escolha do Licenciado Heitor Furtado de Mendonça,

para a dignificante incumbência de primeiro Visitador

do Santo Ofício nos bispados de Cabo Verde, São Tomé

30 Tratava-se de Ana Rodrigues, que juntamente com as filhas, foi

acusada de manter no engenho da família em Matoim, no Recôncavo

da Baía, uma “esnoga” (sinagoga) para o culto e divulgação dos

rituais judaicos, que conservava no seu quotidiano, nomeadamente

guardar o sábado, proferir orações judaicas, cumprir os rituais

funerários hebraicos e não comer carne de porco. Esta Ana

Rodrigues, era em 1591 uma respeitável octogenária, descendente

dos primeiros convertidos ao cristianismo, de forma compulsiva, em

1497, pelo rei D. Manuel. O seu marido, Heitor Antunes, a quem

chamavam o rabino de Matoim, já tinha falecido, mas tal como

Ana, havia sido condenado pela Inquisição de Lisboa, por conservar

o culto judaico. Emigrou para o Brasil, numa das primeiras levas

de colonizadores, onde construiu um enorme engenho de açúcar,

tornando-se num rico e poderoso fazendeiro, facto que certamente

atraiu a cobiça da Inquisição. A esposa, Ana Rodrigues sobreviveulhe

para sofrer o opróbrio da delação, da confissão e consequente

detenção, sendo enviada em 1593 para Lisboa, enjaulado como um

animal feroz, acabando por falecer nas masmorras do Santo Ofício

sem ter assistido ao julgamento que a sentenciou à fogueira. Ainda

assim a sanha inquisitorial não se esqueceu dela, desenterrou-lhe

os ossos e meteu-os na efígie que a representava, queimando-a no

auto-de-fé de 1604. A memória de Ana Rodrigues foi amaldiçoada

pela Inquisição e um retrato do seu suplício (ainda que em efígie)

seria enviado para a igreja de Matoim, onde deveria permanecer

afixado ao público para todo o sempre.

31 A respeito das perseguições sexuais, das acusações e condenações

atrabiliárias efectuadas pelo padre Heitor Furtado de Mendonça,

primeiro Visitador do Santo Ofício ao Brasil, veja-se a obra de VAINFAS,

Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no

Brasil, 2ª edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, pp. 195-220.

32 O Visitador da Santa Inquisição ao Brasil, Heitor Furtado de

Mendonça, demonstrou nos quatro anos em que esteve naquela colónia

que extrapolou largamente os limites da sua competência, ignorando

e até contrariando as disposições emanadas pelo Conselho Geral. O

poder que lhe fora outorgado subiu-lhe à cabeça, de tal modo que

chegou a realizar autos-de-fé em Olinda, para os quais não possuía nem

autorização nem competência. O mesmo aconteceu quando defendeu a

necessidade de instalar um Tribunal do Santo Ofício no Brasil.

Cf. MELLO, José António Gonçalves de. Gente da Nação – Cristãosnovos

e judeus em Pernambuco 1542-1654, Recife, Fundação Joaquim

Nabuco / Editora Massangana, 1996, pp. 167-198.

e Brasil, parecia acertada e tinha justificação, pois

pelo seu trajecto de vida possuía foro de nobreza e

soubera granjear o estatuto de grande probidade

moral e eclesiástica. Porém, as suas origens foram

objecto de dezasseis inquirições sobre a sua limpeza

de sangue, que comprovaram a sua genuinidade como

cristão-velho. Se assim não fosse ser-lhe-ia impedida

a entrada na inquisição. A integridade e rectidão que

evidenciara no desempenho das anteriores funções de

Desembargador Real, de deputado do Santo Ofício, e

sobretudo de Capelão privado do rei, justificavam a

sua nomeação para o alto cargo de Visitador das terras

de Vera Cruz.

Não sabemos ao certo que idade teria o Inquisidor,

quando iniciou esta espécie de tribunal volante da

Inquisição por terras do nordeste brasileiro. Mas pelas

suas aptidões e títulos, presume-se que teria entre os

35 e os 45 anos de idade.

Abro aqui um parêntesis para acrescentar que o

primeiro inquisidor do Brasil tinha sangue algarvio.

Era neto de um tal António Collaço, de alcunha

“Bagageu”, que se amancebou com Brites Gonçalves,

a quem chamavam a “Beleguina”, fazendo-lhe um

filho, de nome Amador Collaço, nascido em Montemoro-Velho.

Separou-se dela, quando estava ainda

grávida, e partiu para a Ilha de São Tomé, onde fundou

um engenho e amealhou dinheiro para voltar a Lisboa.

O filho, Amador, deixou a mãe (que, entretanto, casara

e tivera mais filhos) para ir viver em Coimbra ao

serviço do bispo D. João Soares, que cuidou da sua

educação e o mandou mais tarde para a capital,

juntar-se ao pai. Em Lisboa fez-se gente, criando

relações sociais de privilégio, vindo a casar-se em

1543 com Leonarda Lampreia de Mendonça, filha de

Heitor Lampreia, da nobre família dos Arraes do

Algarve. Recebeu, como dote, os ofícios de Escrivão de

Agravos da Relação, de Meirinho dos Degredados, e de

Solicitador da Justiça, dos quais soube usufruir com

sucesso e pingues benefícios.

Do casamento nasceram três filhos: duas meninas

(uma das quais ficaria solteira) e um rapaz, de nome

Heitor, cuja data de nascimento se ignora, devendo

rondar o início da década de 1550, no reinado de D.

João III. O pai, Amador, faleceu aquando da “peste

grande” de Lisboa, em 1569. A mãe, Leonarda, de

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n.º 20 2018


Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Ofício, apesar do seu desentendimento com o Conselho

Geral que o acusou de exceder as suas prerrogativas e

poderes, originando a cessação da sua Visitação ao

Brasil. 33

Felipa de Sousa uma algarvia na alçada da

Inquisição

Reconstituição do Engenho do açúcar, uma unidade agro-industrial de

transformação da cana sacarina, da qual se extraía não só o melaço

como ainda se destilava aguardente muito apreciada e consumida nos

meios indígenas.

ascendência algarvia, casaria depois com um tal Braz

da Costa, que avocou os almejados ofícios do dote da

mulher. Não tiveram filhos, sorte ou felicidade, porque

pouco tempo depois faleceria o marido, deixando

Leonarda mais uma vez na condição de viúva.

O percurso de vida de Heitor Furtado de Mendonça

está consignado nas credenciais que apresentava

como Visitador do Santo Ofício. Em primeiro lugar era

licenciado, isto é, possuía o curso de Leis e Cânones

pela Universidade de Coimbra, o que constituía um

título importantíssimo para a época. Certamente com

base nos seus conhecimentos jurídicos chegou a

Desembargador Real e depois a Capelão d’El Rei, o

que era um grande privilégio, já que ouvia em confissão

toda a família real. Desse relacionamento próximo da

Corte obteve o foro e a dignidade conferida aos

membros da nobreza. Tinha, por isso, direito ao

tratamento de fidalgo, sendo então considerado nobre.

Todos estes atributos permitiram-lhe alcançar o título

de Deputado do Santo Ofício, o que era sinónimo de

grande confiança dentro da esfera de influência da

Igreja. Só assim se compreende que tenha sido

escolhido para as notáveis funções de primeiro

Visitador da Inquisição no Brasil.

Após concluir a sua peregrinação inquisitorial às terras

do nordeste brasileiro, o licenciador Heitor Furtado de

Mendonça, regressou a Lisboa e à sua posição no Santo

Após o “período da Graça”, os tais trinta dias de

confissão voluntária, sincera e plena, restava ao

Inquisidor decidir se as declarações dos confitentes

eram de carácter venial ou se, pelo contrário,

evidenciavam um grau de perversidade e de maleficência

que exigisse esclarecimento, indagação e consequente

punição. Por isso, o principal resultado desta

peregrinação do Santo Ofício às capitanias brasileiras

da Baía e Pernambuco, são os «Livros das Confissões»,

dos quais se podem extrair importantes ilações sobre

os hábitos e costumes, as crenças, as actividades

económicas e profissões, enfim, uma imensidade de

informações de suma importância para o conhecimento

histórico-sociológico do nordeste brasileiro.

Todavia, não é a história da Baía ou de Pernambuco

que, neste momento, preenche o nosso interesse. Na

verdade, o que nos assaltou a curiosidade foi o facto de

constar entre os condenados uma algarvia, por sinal

uma das principais vítimas dessa ignominiosa visita da

Inquisição à capitania da Baía.

A nossa principal visada nesta história, chamava-se

Felipa de Sousa, nascida em 1556 na cidade de Tavira,

filha de Manoel de Sousa e de “Mor” [Maria?] Gonçalves.

Em data ignorada migrou para a antiga capitania da

Bahia, no Brasil, na condição de casada com um cristãonovo,

serigueiro de profissão, isto é, produtor de seda,

como era tradição entre a nação judaica. Não consta

33 “Assoberbado com julgamentos de criptojudeus, sodomitas, bruxas,

bígamos, fornicários e tantos outros, Heitor Furtado foi obrigado, pelo

estilo da colonização, a julgar também o que ignorava. Atordoado,

e deixando-se impregnar pelo clima de prepotência senhorial que

grassava na Colônia, o visitador acabaria por extrapolar as instruções

que recebera de Lisboa. Mandou prender suspeitos sem licença do

Conselho Geral; processou em última instância réus cujas culpas

deveriam ser julgados na metrópole; absolveu indivíduos que, no

entender do inquisidor geral, mereceriam penas rigorosas; sentenciou

outros que o conselho julgava inocentes; realizou, enfim, verdadeiros

autos de fé públicos sem qualquer autorização de Lisboa, embora não

tenha relaxado ninguém à Justiça secular”

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios – catolicismo e rebeldia no

Brasil colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 168-169.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Mapa ilustrativo da baía de Salvador, vendo-se a esquadria urbana da

cidade e toda a sua envolvência geomorfológica.

dos «Livros de Confissões» a sua identidade, porque já

havia falecido.

Sabia ler e escrever, o que era raro nas mulheres, tinha

preceitos de civilidade e sob a sua conduta nada

constava em desabono. Era cristã-velha, embora as

suas amantes dissessem no processo inquisitorial que a

presumiam cristã-nova, descendente dos hebreus

convertidos à força ao cristianismo por imposição régia

de 5-12-1496. Na verdade, o rei D. Manuel I havia

confrontado os judeus com duas possibilidades, ou

saíam do país ou aceitavam a religião cristã como seu

único e exclusivo credo. Os que aceitaram a conversão

forçada passaram a designar-se cristãos-novos,

enquanto aos outros por oposição chamavam-lhes

cristãos-velhos. E esta dicotomia durou até 1773,

cabendo ao Marquês de Pombal acabar com esse ignóbil

epíteto, e açaimar a Inquisição. 34

Felipa de Sousa fixou residência em Salvador, numa

casa situada perto da igreja da Ajuda, um dos locais

mais antigos e tradicionais da cidade. No processo

inquisitorial consta que tinha casa na rua de São

Francisco. As testemunhas e suas cúmplices no pecado

nefando, afirmaram que Felipa de Sousa era cristãnova,

porém quando esta foi chamada a depor jurou

perante o Visitador, com as mãos sobre os santos

Evangelhos, que era cristã-velha, o que este

34 Acerca da perversa dicotomia entre cristãos-velhos (crentes

anteriores à conversação dos judeus) e cristãos-novos (judeus e seus

descendentes, convertidos à força no reinado de D.Manuel I), veja-se

a obra de SANCHES, António Ribeiro. Origem da denominação cristãovelho

e cristão-novo em Portugal, Lisboa, 1956.

confirmaria após a interrogar sobre questões de fé e

de a mandar rezar o credo. Confirmou também que

havia enviuvado, mas que anos depois casou-se com o

pedreiro Francisco Pires, cuja idade seria já avançada,

pois que o notário Manoel Francisco o descreve como

“homem velho”. No seu processo inquisitorial consta

também que não tinha filhos, “ganhando sua vida pela

agulha”. Na verdade, auferia o seu sustento a talhar e

costurar roupa para as senhoras da sociedade, razão

pela qual estabelecia relacionamentos fáceis e íntimos.

Pelos autos do processo sabemos que no dia 18 de

Dezembro de 1591, Filipa de Sousa, com 35 anos de

idade, foi detida para prestar depoimento no Tribunal

do Santo Ofício, a fim de se defender da acusação de

“práticas nefandas” com outras mulheres. A culpa

estava formada, e daí até sair em auto-de-fé demorou

apenas alguns meses.

O pecado nefando ou homoerotismo feminino

A igreja pouco ou nada sabia acerca do tribadismo.

Parecia-lhe perverso e até incongruente que duas

mulheres se deleitassem sexualmente sem a intervenção

falocêntrica do macho. É uma posição andrógena, muito

peculiar na mentalidade sexista da cristandade. Não

admira, por isso que no Tribunal do Santo Ofício

imperasse uma visão misógina da sexualidade,

atribuindo exclusivamente ao homem o direito ao

desfrute do prazer. O poder eclesiástico não compreendia

o interesse, ou a volúpia que as mulheres obtinham do

nefando 35 ou prática da sodomia, considerando até que

35 O chamado “nefando” foi sempre considerado como uma

transgressão do foro sexual, mas nunca chegou a ser objecto de

conceptualização por qualquer área científica, desde a Psicologia à

Sociologia, e nem mesmo na sexologia se conseguiu chegar a uma

significação conclusiva. O vocábulo em si aparece no dicionário de

Raphael Bluteau publicado em 1728, no qual se afirma que nefando

é «coisa indigna de se exprimir por palavras, coisa da qual não se

pode falar sem vergonha». Ora acontece que desde os finais da Idade

Média que a Igreja falava do “nefando” como uma falta muito grave,

referente à prática da sodomia, isto é, cópula entre dois homens

com penetração do membro viril intra-vasus e pulsão. Em 1547,

praticamente no período de instalação do Santo Ofício em Portugal,

a Mesa da Inquisição processou e acusou dezasseis sodomitas, os

primeiros a serem penitenciados pelo dito nefando. Mas, em 1551,

a Inquisição, sediada em Évora, condenou à pena capital, imolando

em auto-de-fé, um homem acusado de praticar o nefando. A este

propósito veja-se a obra de MENDONÇA, José Lourenço de; MOREIRA,

António Joaquim. História dos principais actos e procedimentos da

Inquisição em Portugal, Lisboa, Tipografia de J. B. Morão, 1845, pp.

292-293.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Auto de fé realizado no Terreiro do Paço, no século XVI. Repare-se no

realismo das fogueiras, dos réus vestidos com o sambenito, dos caixões

contendo as ossadas dos condenados a posteriori, e da multidão que

observa tão bárbaro espectáculo.

não havendo penetração apenas ocorreriam actos

lúdicos de deleite, a que hoje chamamos homoerotismo 36

– a não ser que neles interviesse o uso de objecto

pecaminoso, ou seja, um falo artificial. 37

Daí que a igreja geralmente se alheasse, ou fechasse

os olhos, à prática do lesbianismo, por ser para os

inquisidores uma doença do foro mental, um

comportamento pueril ou um desequilíbrio da natureza

feminina. Não encontramos na literatura teológicoeclesiástica

indícios de conhecimento sobre a

36 O homoerotismo é um conceito muito próximo, e até

confundível, com o homossexualismo. Consiste nos procedimentos,

atitudes e comportamentos eróticos entre duas ou mais pessoas

do mesmo sexo. O uso do conceito de homoerotismo é mais útil à

sexologia, visto ser mais flexível para a identificação da diversidade

de relacionamentos, de práticas e desejos entre pessoas do

mesmo sexo. A abrangência do homoerotismo é sexualmente

muito mais vasta do que a homossexualidade, porque não exige

as duas condições essenciais ao nefando ou sodomia: a intenção

(penetração), nem a consumação (ejaculação). Para melhor

esclarecimento do assunto veja-se a obra de Jurandir Freire Costa.

A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo, Rio de Janeiro,

Relume Dumara, 1992, pp. 13-40.

37 A penetração sexual era a prova da intenção, sendo por isso

considerada como condição essencial à formulação do delito criminal.

Curiosamente, uma das mulheres inquiridas neste processo, Isabel

Antónia, tinha como alcunha “a do veludo”, derivada do facto de

usar nas suas práticas sodomíticas com a amante, Francisca Luiz,

um objecto talhado na forma de um falo, que, presume-se, estaria

revestido de veludo. Eram ambas solteiras, naturais da cidade do Porto,

de onde foram degradadas para a Baía, por praticarem o nefando.

Neste caso, o uso de artifício penetrante com intensão sexual, indiciava

a abertura de um processo de acusação, o que aconteceu em 1580 sem

consequências desastrosas. Quando o Visitador do Santo Ofício chegou

à Baía, já a principal visada no processo, precisamente “a do veludo”,

Isabel Antónia, havia falecido.

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Isabel Antónia, nº 13787.

sexualidade feminina, embora a Igreja descreva e

identifique a mulher – em muitos casos, e até mesmo

na Bíblia – como agente desviante do Bem e da Moral,

cúmplice do Mal e aliada do Diabo. Em todo o caso, as

diversas formas de sodomia, masculina e feminina,

passaram para a alçada da Inquisição de uma forma

progressiva, porque a Igreja duvidava que os desvios

do comportamento sexual pudessem ser considerados

uma heresia, uma blasfémia ou simplesmente um

pecado venial. Tanto é que, no texto do «Monitório»

que acompanhou em 1536 a fundação da Inquisição em

Portugal, não consta a sodomia nem qualquer outro

desalinho do foro sexual. Só em 1553, por provisão de

D. João III, acrescida em 1555 da resolução do

inquisidor-geral D. Henrique, é que a sodomia passou

para a competência jurisdicional do Tribunal do Santo

Ofício. As referidas provisões – régia de 1553, e

inquisitorial de 1555 –, só foram ratificadas por breves

Apostólicos da Santa Sé em 1562, por Pio IV, e em

1572, por Clemente III. O novo regimento inquisitorial

de 1613, incorporou as mencionadas disposições

apostólicas, fundamentando a sodomia ou “pecado

nefando” como atentatório da Fé, da Moral Cristã, e dos

bons costumes.

O depoimento de Felipa de Sousa foi perturbador, aos

ouvidos do Inquisidor, pela forma realista como

descreveu alguns factos constituintes da inusitada

prática da «sodomia foeminarum». No processo

revelam-se apenas meia dúzia de mulheres com as

quais manteve relações, mas percebe-se que na

realidade devem ter sido muitas mais, que os

inquisidores não quiseram identificar, talvez para não

aumentar as proporções do escândalo. Falou-se no

processo em mais de quarenta mulheres envolvidas

na sua plurivalência sexual. Numa perspectiva actual,

ficamos com a sensação de que Felipa de Sousa era

uma sedutora convicta e persistente, que vivia a sua

sexualidade em liberdade e sem a noção consciente do

pecado. Não obstante, fazia-o em segredo, com

discrição e no espaço insuspeito da alcofa conjugal.

Mas o facto desses encontros se efectuarem no

desconhecimento dos maridos (mulheres casadas), ou

dos pais (jovens solteiras), e com total desprezo pela

matriz masculina, deixou os inquisidores incomodados

e desconcertados pelo desvio dos modelos comuns e

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n.º 20 2018

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Procissão vinda do antigo Paço dos Estáus, sede da Inquisição,

dirigindo-se ao Terreiro do Paço, para serem sentenciados em auto de

fé os réus acusados de renunciar à fé católica.

clássicos da vivência conjugal e familiar. Pior do que

tudo isso, e ao contrário de outras mulheres que

renegaram os seus actos ou se arrependeram deles na

presença do inquisidor, foi constatar que Felipa de

Sousa revelou sem rebuço nem contrição, a veracidade

das suas preferências sexuais, dos seus sentimentos e

das suas relações amorosas. Teve mesmo a ousadia

de confessar que “namorava e tinha damas” porque as

amava, isto é, sentia por elas “grande amor e afeição

carnal”. Essa afeição era tão natural que não conseguia

reprimi-la, porque bastava-lhe ver uma mulher bonita

para logo sentir uma forte atracção. Significa isto que

era intrinsecamente lésbica. Mas a sua conduta e

convicção não fazia dela a predadora sexual que o

inquisidor quis infamar com o ferrete do “nefando” ou

«sodomia foeminarum».

Tudo começou – conforme reconheceu – em 1583,

quando se “enamorou e se afeiçoou” por Maria Peralta

de 18 anos, filha de Gaspar da Vila Costa e de Anna de

Siqueira, cristãos-novos, residente em Salvador, “então

solteira, moça virgem que inda não tinha conhecido

home”. Felipa de Sousa confessou no seu processo

inquisitorial que «por estarem das portas adentro

aconteceo que dormirão ambas em sua cama e ella Ré

[Felipa de Sousa] provocou a ditta Maria de Peralta e se

pos em cima della ajuntando seus vasos dianteiros hum

com o outro e aí se deleitarão, mas desta primeira vez

ella Ré não comprio da maneira que internamente as

molheres costumão comprir estando no acto carnal». 38

Porém, esta casou-se depois com Tomás Bibentaon,

cristão-novo de Pernambuco. Não obstante,

prosseguiram a sua relação, continuando as duas a

encontrar-se em segredo, nomeadamente na casa de

Gaspar da Vila Costa, para “cumprir acto carnal”. Disse

que a certa altura a jovem estava grávida, mas ainda

assim ajuntaram os seus corpos numa cama pela

segunda vez: «estando ella inda prenhe se ajuntarão

ambas em huã mesma cama e então a ditta Maria de

Peralta se pos em cima della ajuntando seus vasos

como dito he e desta vez estando ella debaixo comprio

ella Ree, e tambem comprio a dicta moça como costuma

cumprir a molher estando com home no acto carnal”. 39

Também confessou que teve outras amantes com as

quais teve esporádicas relações, nomeadamente uma

tal Maria Lourença, esposa de um caldeireiro que

morava às portas da cidade. Disse que «se pos em cima

della Ree sendo a principal que provocou a ella Ree a

isso e assim estiveram ambas ajuntando seus vasos

como ditto he mas ella Ree não comprio nem sabe se

comprio a dicta Maria Lourenço». Jurou que foi esta a

única vez que estiveram juntas no acto carnal. 40

Confessou também que, «auera anno e meo pouco

mais ou menos, ella Ree [Felipa de Sousa] com afeição

carnal e deshonesta, Requestou de amores com cartas

e Recados a Pauloa de Sequeira molher do contador

Antonio de Faria». Esta foi a mais importante das suas

amantes, e também a principal causadora do seu

processo inquisitorial, cuja confissão, voluntária e

inoportuna, constituiu a prova de acusação de que

resultaria a incriminação de ambas no pecado nefando,

sendo que apenas Felipa de Sousa sairia em auto-defé.

Paula de Siqueira, de 35 anos de idade, cristã-velha,

natural de Lisboa, filha de Manoel Pires, ourives da

prata, meio flamengo de sangue, e de Mecia Roiz

[Rodrigues], ambos já falecidos. Era casada com

António de Faria, Contador da Fazenda d’el Rei na Baía,

38 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Felipa de Sousa, nº 1267, com 24 folhas de papel, microfilme nº 5442.

39 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Felipa de Sousa, nº 1267.

40 ANTT, Idem, processo de Felipa de Sousa, nº 1267.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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o que fazia dela uma senhora de primeira grandeza na

cidade de Salvador. Pelos autos nota-se que o marido

lhe dava pouca atenção, talvez pela idade ou por

dedicação a amores clandestinos. Daí que, para reverter

a situação, a esposa procurasse auxílio junto de uma

“mulher virtuosa”, uma bruxa ou feiticeira, de alcunha

“a Boca-Torta”, que lhe ensinou orações de bem-querer,

cartas de tocar (!), rezas que invocavam “estrelas e

diabos”, filtros do amor, elixires e até as palavras da

consagração da hóstia sagrada – tudo para abonançar

o génio do marido.

Por causa do esfriamento do marido é que soçobrou aos

insistentes assédios de Felipa de Sousa. Revelou em

confissão, que durante dois anos foi vítima de obstinada

perseguição sexual, pela Felipa de Sousa, que lhe

enviava “cartas de requebros e amores”, a agarrava e

puxava para si dando-lhe beijos e abraços, com palavras

impúdicas e desavergonhadas. Sempre resistiu aos

seus avanços, até que um dia esta lhe deu um beijo

“com tenção desonesta” (na boca), deixando-a

desorientada. Era um domingo, dia de festa de Nossa

Senhora do Ó, em Dezembro desse ano de 1591.

Ficaram juntas na igreja de São Francisco, convidando-a

Paula de Siqueira para sua casa «e antes de jantar se

deitaram sobre a cama, com a porta fechada e a dicta

Pauloa de Sequeira se pos em cima dela, e alli ajuntando

seus vasos dianteiros teue a dicta Pauloa de Sequeira

comprimento [orgasmo]». 41 Continuaram juntas todo o

dia, até que, após o jantar e depois de terem bebido

algum vinho a mais, Paula convidou-a novamente a

ajuntarem suas naturas, cumprindo três vezes,

enquanto ela, Felipa, não conseguiu chegar ao clímax.

Depois disso, nunca mais tiveram encontros nefandos. 42

É claro que estava a mentir, porque a relação amorosa

entre ambas sabemos que se prolongou nos três anos

seguintes, sendo interrompida apenas com a chegada

do Visitador da Inquisição ao Brasil.

Do processo inquisitorial de Felipa de Sousa consta

ainda que teve contacto pecaminoso com a mulher de

um ferreiro, chamada Ana Fiel, que era sua vizinha, a

quem deu um abraço e um beijo, com afeição desonesta,

Reconstituição de um auto-de-fé, vendo-se no plano inferior a procissão

que conduzia os réus envergando o sambenito, e no plano superior as

bancadas para os convidados assistirem ao “espetáculo”.

mas «o ditto abraço e beijo derão por cima de hua

parede dentre os seus quintais». Concluiu o seu

depoimento declarando que «todos as vezes que teue

ajuntamento carnal com as ditas molheres por diante

foi sempre sem outro Instrumento algum, mais que

seus corpos somente». 43 Isto era decisivo, porque sem

penetração não existia a intensão do pecado nefando,

cuja delimitação na doutrina católica romana enferma

da mentalidade andrógina e da concepção falocêntrica

da sexualidade. Aos grandes teólogos da Igreja nunca

lhes passou pela cabeça que as mulheres pudessem ter

sexualidade própria, autónoma e independente, sem

necessidade da participação e domínio do macho. Por

isso, a sodomia feminina não fazia sentido, pois que

não existindo um instrumento penetrante não poderia

consumar-se o nefando nem concluir-se a cópula.

No processo de acusação de Felipa de Sousa,

transcrevem-se os pecados cometidos com outras

mulheres, porém a sua descrição deixa muito a desejar

porque o escrivão evita os pormenores mais realistas

ou perversos, preferindo repetir imagens conhecidas de

outros processos semelhantes. Nos casos em que se

descreve a sodomia masculina, usam-se quase sempre

os mesmos termos e as mesmas imagens, dando a

ilusão de serem todos praticados da mesma maneira.

41 ANTT, Idem, processo de Felipa de Sousa, nº 1267.

42 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Paula de Siqueira, nº 3306.

43 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Felipa de Sousa, nº 1267.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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As descrições do nefando feminino (lesbianismo),

variam um pouco, embora não se apresentem com um

realismo convincente.

Felipa de Sousa assume-se convictamente lésbica, ao

contrário de todas as outras acusadas de sodomia

foeminarum. Por isso confessou que a visão e o contacto

com outras mulheres, cuja beleza a atraía, eram o suficiente

para se perder de amores: «que todas estas comunicações

lhe causava o grande amor e afeição carnal com que da

vista se afeiçoaua ás ditas molheres». Isto demonstrava a

sua preferência e convicção para o safismo.

Por fim, o inquiridor perguntou-lhe por que razão não foi

confessar os seus «abomináveis pecados nefandos»,

durante o período de graça, isto é, no mês seguinte à

chegada do Visitador do Santo Ofício à cidade de

Salvador; ao que respondeu ter-lhe sido dito pelo jesuíta

António Velasquez que bastava ter-se confessado

sacramentalmente para tudo lhe ser perdoado. Isto

significa que as suas preferências sexuais já eram do

conhecimento da igreja local, não sendo de abstrair a

hipótese de terem depreciado o seu desalinhado

comportamento sexual por não constar, no interior da

própria diocese de Salvador da Baía, uma formalização

teológica de reconhecer a sodomia feminina como

prática atentatória da Fé, ou dos bons costumes da

religião católica. Não sendo reconhecido pela Igreja, era

o mesmo que não existir. Mas, contrapondo-se a esta

afirmação, o Visitador increpou-a de mentirosa, pois

seria impossível que o dito padre jesuíta não soubesse

que a sodomia, mesmo feminina, era um pecado muito

grave, passível de incriminação inquisitorial.

Em todo o caso, impõe-se esclarecer que a Igreja na

sua acção de vigilância da moral sexual repressiva,

combateu de forma violenta e estigmatizante a

homossexualidade masculina, muito frequente nos

conventos e mosteiros. Na Inquisição de Coimbra,

Lisboa e Évora abriram-se centenas de processos contra

frades e monges de quase todo o país, acusando-os e

em muitos casos condenando-os por sodomia ou

“pecado nefando”, geralmente praticado dentro das

casas religiosas. Porém, tanto a Igreja como o Tribunal

do Santo Ofício, sempre mostraram grande tolerância

na Europa com os amores homoeróticos femininos,

desde que nessas práticas não houvesse recurso a

objectos penetrantes que imitassem o falo masculino.

Significa que na sodomia feminina, ou lesbianismo, só

seria repulsiva a ideia da penetração, caso contrário

seria apenas uma folia erótica ou brincadeira infantil de

cariz sexual. A Igreja perante estes casos preferia

fechar os olhos e ignorar a sua existência, considerando

o erotismo e as manifestações de prazer sexual entre

mulheres como espontâneas revelações da ingenuidade

infantil. Não falar no assunto era o mesmo que negar a

sua existência. Por isso a Inquisição e a justiça civil

passaram uma esponja sobre o assunto,

descriminalizando o lesbianismo.

A acusação que despoletou o processo inquisitório de

Felipa de Sousa partiu de Paula de Siqueira, que em

20 de Agosto de 1591, durante o chamado “período

da graça”, se apresentou em Salvador, perante a

mesa da Inquisição, para confessar de forma

voluntária os seus pecados, constantes no «Monitório»

do Santo Ofício. A sua confissão desencadearia a

denúncia e implicação de vinte e nove mulheres

moradoras na Baía e Recôncavo, todas acusadas do

crime de sodomia feminina. A principal visada nas

suas relações pecaminosas era Felipa de Sousa, com

quem manteve uma amizade “desonesta” e com

“ajuntamento carnal” durante mais de três anos. É

preciso notar que esta Paula Siqueira não era uma

mulher qualquer, porque se tratava da esposa do

Contador da Fazenda, António de Faria. Por isso, ao

Inquisidor interessava-lhe muito ter na mão um

trunfo como este, para poder usá-lo quando fosse

necessário submeter as autoridades civis ao supremo

poder da Igreja e da Inquisição.

A estratégia de funcionamento do Santo Ofício baseavase

na delação alheia, mais até do que na confissão,

porque através da denúncia do pecado se revelava a

ofensa a Deus e à pureza da Fé. Na óptica inquisitorial, a

virtude cristã consiste na delação do pecaminoso, do

transgressor dos dogmas, do infiel corruptor dos

fundamentos e tradições da Santa Madre Igreja. Para

quebrar a amizade e todos os mecanismos de

solidariedade, que pudessem existir na sociedade civil e

até na religiosa, a Inquisição usava a suspeita, a denúncia

secreta, para intimidar e aterrorizar os que se julgavam

imunes, pelas suas origens ou pela sua fidelidade a Deus

e ao Rei. Ninguém estava seguro, da choupana ao Palácio,

perante uma instituição tão poderosa como a Inquisição.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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autoridades religiosas descobriram um livro proibido no

Index. A partir desse momento a infeliz Paula Siqueira

tornou-se numa transgressora da Fé, a contas com a

Inquisição.

Esclareça-se que o Index, propriamente designado

como «Index Librorum Prohibitorum», consistia num

índice ou lista de livros que a Inquisição considerava

perniciosos à pureza da fé ou contrários à doutrina

católica, visto conterem ideias e princípios reformistas,

discordantes dos dogmas, anti-papistas e hereges.

Além destes havia também outros livros considerados

malignos e funestos, por versarem temáticas adversas

à doutrina e conduta cristã, nomeadamente o

diabolismo, a feitiçaria, a blasfémia, a objecção da

puridade da Virgem, a sodomia, a bigamia, e a

fornicação. Os livros que fossem autorizados pelo

Index, tinham impresso no verso da folha de rosto a

palavra “imprimatur”, que traduzido à letra significa

“que seja publicado”. Acrescento, porém, que toda e

qualquer publicação que corresse em letra de forma,

livro, jornal ou folha volante, teria que previamente ser

alvo do escrutínio de três instituições: o Conselho Geral

do Santo Ofício, fundado em 1536, responsável pela

censura papal; o Ordinário da Diocese, responsável

pela censura episcopal, e o Desembargo do Paço, que a

partir de 1576 ficou incumbido da censura régia, ou

seja, da decisão final. Só depois da anuência destas

«A prova de fogo», título do quadro de Pedro Berruguete, existente no

museu do Prado, em Madrid. Representa a condenação dos livros pela

Igreja, considerados veículos de difusão do livre-arbítrio, das ideias

iluministas e do espírito reformista que se vivia no norte da Europa.

A «Diana», um romance de “maus costumes”

A confissão de Paula Siqueira deu como resultado

imediato uma inspecção e busca à sua residência, e,

mais concretamente, aos seus aposentos íntimos.

Procuravam, talvez, os tais objectos penetrantes que

poderiam incriminar Paula Siqueira de praticar sodomia

feminina. 44 Nessa revista ou devassa domiciliária, as

44 Importa acrescentar que a sodomia era um desvio comportamental,

que se transformaria primeiro numa imoralidade e depois num crime

do foro sexual. A Igreja conviveu, muros a dentro, com a sodomia

nos conventos, mosteiros e, mais tarde, nos seminários. Considerou

tratar-se de um comportamento odioso, repelente e execrável, que

por ser contra a natureza deveria ser criminalizado. Deu-lhe então

a designação de nefando ou abominável, mas instruiu os superiores

hierárquicos responsáveis pelas instituições religiosas, que sendo

um delito tão grave nem sequer dele se deveria falar. Isto é, não se

devia mencionar, muito menos por escrito, para que se considerasse

inexistente. Muito embora a sodomia fosse repudiada e perseguida

desde o «Foro Juzgo» dos Visigodos, adoptado por Fernando III, “o

Santo”, no séc. XIII, passando pelo «Foro Real» promulgado por

Afonso X, “o Sábio”, em 1255, até às «Posturas de Lisboa», e, por

fim, às «Ordenações Afonsinas», o certo é que só em 1553, por

provisão do rei D. João III, passou a constar do rol de crimes visados

pela Inquisição. A decisão partiu do Cardeal D. Henrique, irmão do

rei D. João III, e inquisidor-mor, que não se esqueceu de incluir

também a sodomia feminina.

Já agora, para confirmar a sua antiguidade persecutória,

transcrevemos uma breve passagem das Ordenações Afonsinas,

Livro V, título XVII (Dos que cometem pecado de Sodomia), onde

consta que «Sobre todosllos peccados bem parece Seer mais torpe,

çujo, e desonesto o peccado da Sodomia, e nom he achado outro tam

avorrecido ante DEOS, e o mundo (…) porem Mandamos e poemos

por Ley geral, que todo homem, que tal peccado fezer, per qualquer

guiSa que Seer poSSa, Seja queimado, e feito per fogo em poo, e

por tal que já nunca de Seu corpo, e Sepultura poSSa Seer ouvida

memoria» (o itálico é nosso, e serve para destacar o radicalismo das

velhas Ordenações, que são a mais antiga fonte legislativa de que

descende o Direito português).

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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parnaso, nem aos subterfúgios mitológicos, para fazer

do amor um gesto de lealdade e um acto de sincero

deleite. A «Diana» enaltece a beleza das coisas simples

que fazem o caminho da felicidade e do prazer, mesmo

que para isso seja necessário quebrar barreiras e tabus.

O erotismo lésbico é um sentimento que sobressai

nesta obra, ainda que de forma velada e escrupulosa. O

amor e o deleite, surge nesta obra como algo sublime e

irrefragável, que se afasta e contraria os cânones

Frontespício do «Index-librorum-prohibitorum», publicado em 1596, no

qual constavam os títulos das obras proibidas em todos os territórios da

cristandade. É curioso que até a Bíblia era proibida, desde que estivesse

traduzida em qualquer língua que não fosse o Latim.

três instituições censórias é que se podia obter o

«imprimatur» e avançar para a sua edição e distribuição

pública.

Obviamente o livro que fora apreendido a Paula Siqueira

não possuía o «imprimatur». Também não era

propriamente um livro contrário à pureza da fé, mas

apenas adverso aos bons costumes e à “pureza da

carne”. Em todos os sentidos se percebe que era um

livro clandestino de autor proibido no Index. Ora, o

livro apreendido na casa de Paula Siqueira era, nada

mais, nada menos, do que a «Diana» de Jorge de

Montemor, publicada em 1559, uma novela pastoril, de

inspiração bucólica, que relata as aventuras amorosas

de duas pastoras serrenhas, que experimentam o

prazer de amar sem limites de género nem fronteiras

de pecado. Uma obra modelada na sinceridade dos

sentimentos, na simplicidade da vida campestre, na

comunhão com a natureza. Não recorre ao lirismo do

A «Diana», de Jorge de Montemor, foi originalmente escrita em

castelhano e publicada em Valencia, talvez em 1559, com o título

«Los siete libros de la Diana». Tratou-se do primeiro romance pastoril

publicado na Espanha. A primeira tradução e edição na língua lusa é de

1624, quando já havia sido editado na Itália, na França e em Inglaterra.

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O amor entre mulheres, visto por Chris Riddell, ilustrador do livro «A

Bela e a Adormecida» da autoria de Neil Gaiman, no qual aborda o

lesbianismo de uma forma muito criativa e sem tabus.

misóginos da época em que foi escrito, recusando os

limites sexuais de género. Essa exaltação de liberdade,

em contraposição ao estigma pecaminoso, é fruto do

ambiente social em que decorre o romance, numa

sublime harmonia com a natureza e o sentimento. Nos

verdes campos da planície, ou nos nevados cumes da

montanha, respira-se o ar puro da liberdade, onde os

sentimentos refulgem livres e sem reproche. Ao

contrário, na cidade, vive-se e respira-se o ar da

civilização, que tudo controla e reprime, outorgando à

Igreja, aos padres e frades, o papel de vigiarem o

cumprimento dos mandamentos e dos bons costumes,

numa Santa Aliança entre a ordem pública – expressa

na lei e na vontade do Rei – e a submissão à Fé em

Deus.

Felipa de Sousa acusada de «sodomia foeminarum»

Indagada na sua conduta homoerótica, apurou-se que

Paula Siqueira teve e manteve relações pecaminosas

com outras mulheres, principalmente com Filipa de

Sousa, que indicou ao inquisidor como provocadora e

estimuladora dos seus ímpios procedimentos. A sua

confissão degenerou num processo de acusação contra

várias mulheres cujas vidas íntimas passaram a ser

objecto de devassa inquisitorial. No decurso do processo

instrutório, ou seja, durante as fases de interrogatório

e de averiguações, cada nome que fosse sugerido

pelo inquirido ficava registado como denunciado.

A identidade do delator ficaria em segredo, mas se o

delatado acertasse logo no denunciante o processo

seria relegado para reapreciação, podendo ser

encerrado. Ora o que acontecia é que raramente alguém

acertava à primeira no denunciante, pelo que um

simples auto de interrogatório suscitava a abertura de

vários outros processos de denúncia ao Santo Ofício.

Esta prática judicial era muito inconveniente à paz

social e à liberdade de pensamento.

No processo inquisitorial de Felipa de Sousa,

acrescentou o Inquisidor a confissão prestada a 28 de

Agosto de 1591, de forma voluntária por uma tal Maria

Lourenço, cristã-velha, natural do termo (concelho) de

Viseu, de quarenta anos de idade, filha de António

Pires, caldeireiro de profissão, e de Maria Francisca, a

residir em Salvador, casada com António Gonçalves,

também caldeireiro. 45 Revelou que, quatro anos antes,

teve com Felipa de Sousa relações amorosas, com

deleite e “cumprimento”, em mais do que uma vez. A

descrição do seu primeiro encontro com Felipa de

Sousa, aconteceu numa roça do açúcar, isto é, numa

quinta do sertão brasileiro, situada a meia légua de

Salvador, onde vivia a tal Maria Lourenço. O relato

desse encontro é revelador da forma carinhosa, mas

persistente, como esta cortejava e induzia as suas

amantes a terem relações amorosas e a comprazeremse

mutuamente através do “ajuntamento carnal”.

Ouçamos a descrição:

«(…) estando ella confessante na ditta roça cõ Felipa de

Sousa (…) se fechou em huã sua camara cõ ella, hum

dia despois de jantar pella sesta e lhe começou de falar

muitos requebros, e amores, e pallauras lasciuas milhor

aynda do que se fora hum rofiam a sua barregam, e lhe

deu muitos abraços, e beijos, e emfim a lançou sobre

sua cama e estando ella confessante lançada de costas

a ditta Fellipa de Sousa se deitou sobre ella de bruços

com as fraldas dellas ambas arregaçadas, e assim cõ os

seus vasos dianteiros ajuntados se estiverão ambas

deleitando a que a ditta Felipa de Sousa que de cima

45 Um caldeireiro é um artesão que trabalha na produção de caldeiras,

latas, panelas e muitos outros recipientes em cobre, estanho, latão e

zinco, sendo muito comuns nos séculos XVI a XIX os trens de cozinha

feitos num metal amarelo brilhante a que chamam “arame”, o qual

consiste numa liga obtida através da fusão do cobre com zinco e outros

metais. Mas, neste caso, caldeireiro era um operário especializado que

trabalhava nas caldeiras dos engenhos de açúcar brasileiros.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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estaua comprio e assim fizeram huã cõ outra como se

fora hum home cõ molher, porem não ouve nenhum

Instrumento exterior penetrante entre ellas mais que

somente seus vasos naturais dianteiros.» 46

Pelos vistos a Maria Lourenço não apreciou muito o

“deleite” porque na noite seguinte já a Felipa de Sousa

“quizera deitar se na sua cama pera dormir com ella”, o

que não consentiu. A insaciável Felipa de Sousa nessa

mesma noite «se fingio doente da madre e fez levãtar

da cama ao ditto velho seu marido [Francisco Pires],

pera que ella confessante se fosse deitar cõ ella fingindo

que pera a curar, porem ella o não quis fazer». 47

Mas uma semana depois, quando voltou para a sua

casa de Salvador foi novamente visitada pela Felipa que

voltou a seduzi-la, de forma irresistível e com deleite

mútuo. A descrição feita pelo notário da Mesa da

Inquisição peca sempre pela forma andrógina como

representa a cópula feminina, usando o modelo

heterossexual para servir de comparação:

«dalli a cinquo ou seis dias, estando ella confessante

já nesta cidade em sua casa veo a ella ter a ditta

Felipa de Sousa hum dia e despois de acabarem de

jantar se tornarão a fechar na camara della

confessante e a ditta Fellipa de Sousa a tornou a

requestar de amores apalpandoa e abraçandoa, e

beijandoa, e emfim sobre a sua cama se lançou de

costas a ditta Fellipa de Sousa, e ella confessante se

lançou em cima della de bruços e alleuantadas as

fraldas ambas ajuntarão seus vasos dianteiros

deleitandose huã cõ outra como se forão home cõ

molher ate que a ditta Felipa de Sousa cõprio». 48 É

curioso que Felipa de Sousa no seu depoimento ao

Visitador, e mesmo no texto do processo enviado

para Lisboa, não consta que alguma vez tenha

“comprido” com alguma das suas amantes. Bem pelo

contrário, eram sempre elas que atingiam o orgasmo,

«Interior de casa de negros», desenho da autoria de Joaquim Cândido

Guillobel, publicado em 1814. Vê-se a extrema pobreza e acanhamento

das instalações em que viviam as famílias de escravos nas roças do

açúcar brasileiro.

como se fosse essa a sua suprema intenção –

proporcionar prazer e volúpia às suas namoradas.

A Maria Lourenço acrescentou que nunca entre elas

houve recurso a qualquer objecto penetrante, e que

apenas ajuntaram seus corpos nesses dois encontros,

nos quais ela, ao contrário da Felipa, nunca “comprio”,

isto é, nunca atingiu o clímax. 49

Acrescentou que esta lhe disse haver mantido

«deshonesta e nefanda amizade» com Paula Siqueira,

«e com Paula Antunes molher de hum pedreiro, e com

Maria Pinheira, molher de Simão Nunes Ultra». Além

disso gabava-se que «Paula de Sequeira lhe dera hum

anel de ouro e que assim todas lhe fazião muitos mimos

motejando a ella confessante de esquiva e sequa». 50

A confissão de Maria Lourenço foi demolidora para a

presunção de inocência que Felipa de Sousa sustentou

até ao momento em que a Mesa da Inquisição lhe abriu

um processo de acusação por práticas nefandas. O

Visitador Furtado de Mendonça havia coligido um leque

46 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Felipa de Sousa, nº 1267. Esta confissão encontra-se também transcrita

na obra Primeira Visitação do Santo Officio às Partes do Brasil, pelo

licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-

92, Prefácio de Capistrano de Abreu, São Paulo, Homenagem de Paulo

Prado, 1922, p. 93.

47 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. Nº 1267.

Idem, ibidem.

48 ANTT, Idem, proc. Nº 1267. Idem, Confissão de Maria Lourenço,

p. 94.

49 «…e que estas duas vezes fez o ditto peccado nefando com a ditta

Fellipa de Sousa da ditta maneira não intervindo entre ellas outro

Instrumento penetrante senão somente seus vazos naturais mas que

nehuã das ditas vezes ella confessante comprio». ANTT, Idem, proc. Nº

1267. Idem, p. 94.

50 ANTT, Idem, proc. Nº 1267. Idem, Confissão de Maria Lourenço,

p. 95. O que Felipa de Sousa quis dizer acerca de Maria Lourenço

com a palavra “esquiva” é que, talvez por não estar acostumada aos

comportamentos homoeróticos, sentia-se inibida e pouco à vontade na

correspondência das carícias, beijos e tocamentos lascivos. Dessa falta

de estímulo escasseava também o desejo, e daí chamar-lhe “sequa” ou

seca, traduzindo nesse chiste a falta de lubrificação que a impedia de

atingir o clímax.

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REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL DE LOULÉ

n.º 20 2018


Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

de denúncias que a incriminavam de praticar

insistentemente a sodomia, um crime muito grave

inserido no âmbito da heresia contra a boa moral cristã.

É claro que, neste caso, a chamada sodomia foeminarum

fugia de certo modo à compreensão lógica do Tribunal do

Santo Ofício, por causa da sua mentalidade andrógena

estar eivada da presunção falocêntrica como condição

indispensável à obtenção do prazer sexual. Para a Igreja

o sexo não tinha outra função que não fosse a reprodução,

por isso era heterossexual. A ideia do prazer e a prática

do sexo sem objectivos reprodutivos, não era bem vista

pelo aparelho eclesiástico nem pela moral teológica.

Levou tempo até aceitar a ideia de prazer e deleite, mas

só no prisma do casal de conjugues, porque fora desses

limites o sexo era considerado como algo sujo,

pecaminoso e até abominável, sobretudo quando fosse

praticado contra-natura, isto é, quando a cópula fosse

praticada entre dois amantes do mesmo género. Por isso

é que a Igreja o designava por nefando, ou seja, algo

que é condenável, odioso e repelente. E o pecado de que

era acusada Felipa de Sousa, embora fosse considerado

safismo, não se enquadrava no âmbito da sodomia

(perfeita ou imperfeita) por não existir um elemento

natural de penetração, a não ser que fosse introduzido

nessa prática um instrumento assemelhável a um falo.

Essa era, aliás, uma das preocupações constantes dos

depoimentos prestados pelas mulheres acusadas do

“nefando” – negar sempre a utilização de qualquer

elemento penetrante que pudesse assemelhar a cópula

feminina com o coito heterossexual. Essa era uma

condição atenuante na avaliação da pecaminosa e

execrável sodomia foeminarum.

Maria Lourenço, porém, não se cansava de lançar achas

para a “fogueira”, em que “ardia” a Felipa de Sousa. De

tal modo que afirmou ter ouvido dizer que esta pagou a

uma jovem casada para ter com ela relações, o que era

muito grave por se tratar de um suborno sexual:

«… ouvio ella confessante dizer a alguãs pessoas não

lhe lembra quais que a ditta Fellipa de Sousa daua mil

reis a huã moça casada com hu ferreiro alcorcovado de

fronte de Sambento que dormissem ambas, e que mais

lhe não lembra.» 51

51 Idem, Confissão de Maria Lourenço, p. 95.

A corrupção sexual ou o aliciamento com benefício, era

mais grave do que a prostituição, porque tanto a

sociedade civil como religiosa entendiam que o sexo

mercenário era um serviço prestado de forma

profissional. Embora segregada em bairros ou ruas

próprias, a prostituta tinha direitos próprios, que a

própria Igreja respeitava. Só muito mais tarde é que se

começou a acusar as meretrizes de transmitirem

doenças, de contagiarem os seus clientes e de serem

um foco infecioso ambulante. Nas cidades portuárias,

como Lisboa, e nas urbes mais cosmopolitas da Europa,

a prostituição passou a ser depreciada e perseguida. 52

Já o lenocínio, isto é, a exploração sexual das mulheres,

era considerado um delito muito grave. O mesmo

acontecia com o suborno sexual, geralmente usado na

pedofilia e na sodomia, altamente condenável pela

sociedade, sendo que no foro jurídico se equiparava a

uma espécie de lenocínio invertido. Por isso, a acusação

– ouvida, mas não vista – de suborno sexual endossada

a Felipa de Sousa, deixava-a sob a suspeita de algo

mais pernicioso, isto é, da compra de participação

sexual em acto ilícito, a sodomia feminina.

A confissão de Maria Lourenço foi tão importante para

a acusação, que o padre Heitor Furtado de Mendonça

lhe deu uma penitência banal («dois dias de jejum e

nove rosários»), acompanhada de alguns conselhos em

forma de censura e recriminação pelo seu relacionamento

com Felipa de Sousa. 53

A prática pecaminosa da sodomia feminina não deixava

de surpreender o Visitador. Uma outra declarante,

requisitada a depor perante a Inquisição, chamava-se

Guiomar Pinheiro, mulher mameluca 54 , viúva por três

52 Veja-se a obra clássica de CRUZ, Francisco J dos Santos. Da

Prostituição na cidade de Lisboa, Lisboa, Pub. D. Quixote, 1984.

53 «e por dizer que não lhe lembra mais que confessar, o senhor

visitador a reprendeo e amoestou com pallauras de muita caridade que

se affaste de semelhantes culpas e das ocasiões dellas e das pessoas de

cujas conversações lhe pode vir dano a sua alma e que viva bem com

seu marido e seja amiga de Deos e muito devota da Virgem Sagrada

e sse comfesse muitas vezes e tome o senhor de conselho de seus

confessores e que saiba certo que se outra vez cay en semelhante culpa

á de ser castigada muy rigurossamente como este pecado de sodomia

e contra natura mereçe». Idem, Confissão de Maria Lourenço, p. 95.

54 Chamavam mamelucos aos filhos de homem europeu e de mulher

indígena – tinham pele mais clara e traços de índio, reflectiam o

domínio do homem branco e a miscigenação do colonialismo luso. Eram

considerados socialmente inferiores por serem mistos. Os indígenas

desprezavam-nos e os brancos não lhes davam a importância nem a

integração social que mereciam.

REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL DE LOULÉ

n.º 20 2018

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

vezes, que confessou ter feito um “ajuntamento de vasos”

com outra mulher mameluca, de nome Quitéria Seca, por

várias vezes, mas nem sempre com deleite e cumprimento.

Também Guiomar Piçarra, de 38 anos, natural de Moura,

no Alentejo, casada e a residir em Itaparica, revelou que

aos 12 ou 13 anos de idade teve “ajuntamento carnal”

com uma “negra ladina da Guiné”, chamada Mécia,

criada na sua casa. Continuaram “amigas” pela vida

fora, mesmo depois de Mécia ter casado com um negro,

alfaiate, 55 escravo do convento dos jesuítas. Outro caso

curioso é o de Madalena Pimentel, natural de Pernambuco,

viúva, de 46 anos, que revelou ter tido «uma amizade

tola e de pouco saber com outras moças da mesma

idade com contactos carnais» (sodomia foeminarum),

nomeadamente com Mícia Lemos, Iria Barbosa e Ana

Fernandes, com deleite e cumprimento mútuo por

diversas vezes e em tempos diferentes. Esta Ana

Fernandes era casada com um ferreiro, que não lhe deve

ter dado a melhor atenção conjugal. Foi, por isso,

assediada por Felipa de Sousa que a teve por amante,

embora ao inquisidor apenas revelasse tê-la agarrado e

encostado aos muros do mosteiro de S. Bento, onde a

amassou de beijos. Apesar de a ter convidado para ir

dormir a sua casa, a Ana Fernandes sempre se recusou.

E com isso a livrou das garras da Inquisição.

O caso desta Madalena Pimentel tem algumas

similitudes com o de Paula Siqueira e da própria Felipa

de Sousa, com a diferença que não teve o mesmo

desfecho destas. 56

Uma mameluca de nome Isabel Marques, natural de

Salvador, casada, disse ao inquisidor que teve

ajuntamento carnal com uma tal Catarina Baroa,

casada com o alfaiate Diogo Rodrigues. Confessou-lhe

esta que aos 15 anos não resistia à vontade de

“namorar” com outras meninas, de dez e menos anos

de idade. Ela mesma foi uma das suas requisitadas

namoradas. E depois disso, acrescentou, a Catarina

Baroa continuou o “nefando” com várias outras jovens

da Baía. 57

Igreja de S. Bento na cidade de Salvador da Baía, um dos mais

imponentes templos da igreja brasileira, muito reformado e alterado

na sua traça original. É ainda hoje um dos expoentes do estilo barroco

português no Brasil. Foi junto aos muros do convento anexo à Igreja

de S. Bento que Filipa de Sousa assediou algumas das suas amantes.

Passou-se um caso muito semelhante com Catarina

Quaresma, filha de um rico fazendeiro, que por volta

dos 19 anos não descansava de requestar moças da

sua idade, pouco mais ou menos, para se deitarem

na sua cama e “cumprirem em seus deleites mútuos”.

Anos depois viria a casar-se com o proprietário de

um dos mais notáveis engenhos do Recôncavo

baiano. 58

Não menos curioso é o processo de bissexualismo

evidenciado pela viciosa Maria de Lucena, mameluca de

25 anos, que vivia em casa de um rico fazendeiro, onde

55 Primeira Visitação do Santo Officio às Partes do Brasil, pelo licenciado

Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-92, Prefácio

de Capistrano de Abreu, São Paulo, Homenagem de Paulo Prado, 1922,

p. 209.

56 Idem, p. 206.

57 Estas e várias outras revelações sobre a prática da sodomia

foeminarum entre os escravos e gentios baianos, consta dos autos

inquisitoriais designados por «Confissões da Bahia» transcritos na obra

Primeira Visitação do Santo Officio ás Partes do Brasil, op. cit., pp.

206-210.

58 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Catarina Quaresma, nº 1289.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Moendra manual do açúcar, ilustração de Jean Baptista Debret. Estes

torniquetes serviam para triturar a cana e produzir o melaço dentro

de portas ou em qualquer lugar, permitindo a pequenos produtores

venderem o melaço aos grandes empresários agro-industriais.

dormira com homens e até tivera um filho. Mas o que lhe

enfeitiçava os sentidos era o safismo. Foi acusada de

“dormir carnalmente com as negras da casa”

nomeadamente as escravas índias Margarida e Vitória,

duas jovens que trabalhavam na fazenda onde vivia. Uma

outra escrava de nome Mónica, quando apanhou em

flagrante a Maria Lucena com a Margarida “uma sobre a

outra fazendo movimentos e sinais como se fossem

homem com mulher” cuspiu-lhes encima dizendo-lhes

“que não faziam aquilo por falta de homens”, porque na

verdade os havia, e muitos, só que não sabia que alguns

deles tinham sido antigos amantes da íncuba. 59

Não obstante esta diversidade de exemplos que atestam

a prática da sodomia foeminarum com certa regularidade

e abundância na região baiana, o certo é que a Mesa da

Inquisição optou por fazer de Felipa de Sousa uma

espécie de bode expiatório, um exemplo paradigmático

do nefando entre mulheres.

Concluído o interrogatório a que fora sujeita, Filipa de

Sousa acabou presa no cárcere do Colégio dos Jesuítas

de Salvador, edifício onde se instalara desde início o

Tribunal do Santo Ofício. Pior do que isso foi constatar

que da sua confissão resultou também a denúncia de

outras seis mulheres, residentes na cidade de Salvador,

59 Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo licenciado

Heitor Furtado de Mendonça. Denunciações de Pernambuco – 1593-

1595, Introdução de Rudolfo Garcia, São Paulo, Eduardo Prado, 1929,

pp. 47-50.

incriminadas do “pecado nefando” (lesbianismo), e de

cujas declarações resultariam mais vinte e nove

processos de acusação. É curioso notar que as mulheres

indígenas ou as escravas citadas como intervenientes

na arguição de culpa, não foram processadas por se

considerar o seu testemunho incredível.

Para se fazer uma ideia das confidências homoeróticas

contidas no depoimento de Paula Siqueira, basta

extratar a seguinte descrição, contida numa das suas

relações carnais:

«...estando ela confessante em sua casa nesta cidade

[de Salvador], veio a ela a dita e ambas tiverão

ajuntamento carnal hua com a outra por diante e

ajuntando seus vasos naturais hum com o outro, tendo

deleitação e consumando com effeito o comprimento

natural de ambas as partes como se propriamente

forão homem com molher e isto foi pella menhaã, antes

de jantar per duas ou três veçes pouco mais ou menos,

tendo do ditto ajuntamento sem instromento algum

outro penetrante.» 60

Este pedaço de prosa, veladamente descrito, demonstra

a preocupação do inquisidor em esconder as afirmações

mais pecaminosas e lascivas, que foram proferidas na

devassa inquisitorial, trocando-as por palavras que

poderiam ser escutadas pelos seráficos ouvidos dos

seus irmãos eclesiásticos. Percebe-se que as relações

sexuais entre as duas mulheres foram consumadas

pelo “ajuntamento dos seus vasos naturais” e foram-se

repetindo “uma com a outra por diante”, o que induz na

culpa de consciente persistência. Para além disso,

acresce o “abominável pecado nefando” do prazer

carnal, “tendo deleitação”, isto é, juntavam-se por

vontade de satisfação mútua, do que resultaria um

clímax conjunto: “consumando o cumprimento natural

de ambas as partes”. A palavra “cumprimento” significa

a consumação do acto sexual através de orgasmo.

Este tipo de descrição, acima transcrito, acerca da

prática de tribadismo é praticamente igual em dezenas

de outros casos semelhantes. Parece que a Inquisição

adoptou um modelo, heterossexual e falocêntrico, que

serve de bitola para todas as descrições de sodomia

foeminarum. Consiste sempre na ideia de que as

60 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo de

Felipa de Sousa, nº 1267.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

mulheres fazem a cópula de frente (como na posição do

missionário), juntando os seus vasos naturais como se

fossem homem com mulher, atingindo o deleite (prazer)

e, por vezes, o cumprimento (orgasmo) através da

fricção e da repetição de movimentos. Se na cópula

feminina não houver lugar à intervenção de um

instrumento de penetração, semelhante ao falo

masculino, então o safismo deverá ser considerado

imperfeito e punível apenas com penitência espiritual.

Daí, que em todas as confissões sobressaia sempre que

não houve recurso a qualquer objecto penetrante.

Curioso é o facto de nessas descrições nunca se

mencionarem posições alternativas, sexo oral

(cunilíngua), palavras lascivas, filtros amorosos, enfim

uma sensaboria, que obviamente não correspondia à

realidade, mas era fruto do desprezo que a Igreja sentia

pela líbido feminina.

Embora à Paula Siqueira lhe parecesse que estava a

proceder de modo torpe e contra a natureza, não

cuidava, porém, que estivesse a cometer uma ofensa

tão grave quanto depois da confissão veio a descobrir. 61

O que se havia passado, na sua presunção, era

simplesmente um acto de prazer, um momento de

deleite, fugaz e passageiro, cometido na intimidade da

alcofa, sem importunar ninguém e muito menos sem

prejudicar a relação conjugal de ambas as intervenientes.

De um modo desafiante questionava até o interesse

que nisso podia ter a própria Inquisição. A sua inusitada

irreverência não foi esquecida pelo Visitador no

momento de lavrar a sentença…

No fim de contas, foram acusadas de lesbianismo, vinte

e nove mulheres, todas residentes na circunscrição da

Capitania da Baía, no Brasil. Certamente raras seriam

as convictamente lésbicas, pois que tanto nas Confissões

como nos processos inquisitoriais, verifica-se que

começavam ainda jovens a experimentar certos

61 E acrescentava, na sua voluntária confissão, perante a Mesa da

Inquisição mais alguns pormenores da sua relação com a Felipa de

Sousa, sem nunca pensar ou saber que estaria a cometer uma

prevaricação tão grave: «… e depois que jantarão tornarão a ter outras

tantas vezes o mesmo ajuntamento torpe pella dicta maneira usando

ella confessante [Paula Siqueira] sempre do modo como se ella fosse

homem pondo-se de cima. E disse que quando cometeu estas dictas

culpas tam torpes ella não cuidava que era pecado tam grave e contra

natura como despois soube em sua confissão.» in Primeira Visitação

do Santo Officio às Partes do Brasil, pelo licenciado Heitor Furtado de

Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-92, Prefácio de Capistrano de

Abreu, São Paulo, Homenagem de Paulo Prado, 1922, p. 61.

tocamentos, carícias e apalpações, beijos e abraços,

brincadeiras eróticas e gestos sensuais, que acabariam

por convergir na imitação da cópula conjugal, com

obtenção de deleite e de surpreendente clímax. A partir

dessa descoberta, já conscientes do seu próprio prazer

e sensualidade, repetiam a experiência com a certeza

de que não arriscavam a preservação da sua virgindade.

O objectivo dessas jovens era satisfazerem as suas

necessidades básicas, o prazer sexual, sem se exporem

ao perigo de serem infamadas caso cometessem a

imprudência de namoriscar rapazes. E se essas relações

nefandas fossem descobertas pelas mães e familiares

seriam entendidas e perdoadas, por se tratarem de

“ardores juvenis”, ficando tudo em segredo. Pelos

depoimentos prestados ao inquisidor constata-se que

não tinham noção de estarem a cometer o pecado

nefando, mas tão só a expressarem a sua sexualidade

sem riscos para a sua castidade, que desejavam

preservar até ao casamento. Esse era aliás o destino

que todas as meninas desejavam alcançar – casaremse

com um homem que as fizesse felizes. Porém, após

o almejado casamento, surgiam as desilusões conjugais,

com o marido a ignorar e até a reprimir os desejos

sexuais da esposa, acrescidos de maus tratos, traições

e esfriamento dos laços conjugais. Nessa altura,

retornava o desejo do pecado nefando, como alternativa

à satisfação sexual das esposas ignoradas pelos

maridos. As relações da juventude reavivavam-se com

recurso à sedução de outras mulheres, e até mesmo

das escravas e serviçais.

A causadora e principal ré dos processos de safismo, foi

Paula de Siqueira, que era nada mais, nada menos do

que a esposa do Contador da Fazenda em Salvador da

Baía, o que equivale ao principal dirigente do aparelho

fiscal, ou seja, uma das principais entidades da

governação colonial. No seu processo de condenação,

para além do nefando, constavam também a posse de

livro proibido, uso de filtros amorosos, e até de feitiçaria

para fazer com que o marido se interessasse pelas suas

obrigações conjugais

Certamente pela importância e decoro da sua

representação social é que Paula Siqueira foi condenada

a uma pena leve – apenas 6 dias de prisão e pagamento

de 50 cruzados de multa, que era uma quantia

exorbitante, mas certamente ao alcance da esposa do

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n.º 20 2018


Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

«Senhora de algumas posses em seu lar», ilustração Jean-Baptiste

Debret, 1827. Este artista francês que viveu na corte do Brasil até

1831, publicou em 1834, em França, a obra «Viagem Pitoresca e

Histórica ao Brasil», um livro precioso, e uma fonte credível para o

estudo da vivência colonial no sertão brasileiro.

representante das finanças locais. Para além disso,

ficou obrigada a fazer duas aparições públicas como ré,

e a cumprir pequenas penitências espirituais.

Exceptuando a pesada multa, pode dizer-se que teve

uma sentença leve, sobretudo se tivermos em conta o

panorama geral de sofrimento, de aflição e tormento,

que o Tribunal do Santo Ofício infligia nas suas vítimas.

Talvez tenha pesado na decisão final, o facto de se

tratar de um crime mal definido na circunscrição penal

da Igreja e da própria Inquisição, mas também é certo

que em consideração de quem era, mal ficaria ao

Visitador se não usasse da sua clemência.

Apesar da sentença não ter sido lida em público, e do

caso ter sido sonegado ao conhecimento do público, a

decisão condenatória foi altamente vexatória, não

podendo furtar-se à imprecação pública e à chacota

popular.

Felipa de Sousa, mártir da liberdade sexual e da

execração religiosa

A principal vítima deste execrável processo foi a algarvia

Felipa de Sousa, sobre quem recaiu a expiação da culpa

geral. Não admira, porque era de todas a mais

socialmente desprotegida, a mais pobre e insignificante

de todas as mulheres arroladas neste vergonhoso

processo. No dia 26 de Janeiro de 1592, festa de São

Timóteo, foram buscá-la aos calabouços da Casa da

Inquisição, no Terreiro de Jesus, despiram-na e

enfiaram-lhe o sambenito dos heréticos, pondo-lhe nas

mãos um círio (vela) aceso. Levaram-na descalça pelas

ruas, entre os apupos do povo da cidade, até à Sé da

Baía, num cortejo de cruel humilhação. Colocaram-na

frente à Mesa Inquisitorial, enquanto o Ouvidor da

Capitania pronunciava em voz audível a sentença

reprobatória. 62 Esteve sempre de pé, e descalça,

envergando a túnica de pano-cru dos blasfemos.

Segurava nas mãos uma grande vela acesa que lhe

iluminava o rosto, enquanto ouvia as incriminações que

lhe eram imputadas. Por fim, e para exemplo e aviso

aos vindouros, condenaram-na à pena mais severa:

açoite 63 e degredo perpétuo. 64

62 No processo inquisitorial de Felipa de Sousa consta o texto da

publicação da sentença que foi lida na Sé, perante o Bispo, o Visitador

e a comunidade religiosa: «Publicação – Foi pubricada [sic] esta

Sentença e autos a Ree aos Vinte e seis dias do mês de Janro [Janeiro]

de mil e quinhentos e nouenta e dous annos nesta See desta cidade em

prezença da Ree pello padre Cura da dicta See estando prezente o sõr

uisitador e o bispo, e gouernador e grande cõcurso de gente. Manoel

frco [Francisco] Notro [Notário] do sancto offio [Oficio] nesta uisitação

o esvreui».

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo de Felipa

de Sousa, nº 1267.

63 O açoite, executado em público, era a mais vil e humilhante punição

herdada do ancestral direito romano. De entre as penas comummente

pronunciadas pelo Tribunal do Santo Ofício, o açoite era, pode dizer-se,

a mais leve, embora fosse extremamente dolorosa devido à fórmula

canónica da sua aplicação – «citra sanguinis effusionem», isto é, deveria

ser executada por chicote ou chibata até à efusão de sangue. Mas, na

realidade, era mais do que isso, porque a tradição do açoite público

nas antigas sentenças medievais, civis e eclesiásticas, consta que eram

aplicadas entre quarenta até duzentas vergastadas, o que era mais do

que suficiente para deixar o flagelado com irrefragáveis marcas físicas,

e até psicológicas. Portanto a sentença canónica “até que o sangue

jorre” era um eufemismo, visto que o sentenciado logo que sofria as

primeiras agressões do látego, ficava numa sangueira, com as costas

dilaceradas, retalhadas de ínvios e profundos sulcos, de onde efluía

abundantes jorros de sangue. De tal forma que o supliciado demorava

vários dias sob assistência médica até que pudesse recuperar as forças

necessárias para voltar à vida. A Inquisição no Brasil sentenciou ao

flagelo do açoite os homens e mulheres que fossem acusados de bigamia

e sodomia, incluindo-se neste âmbito os chamados “fanchonos”, isto é,

os homossexuais idosos, os pederastas e pedófilos. Isentavam-se do

açoite os nobres, os fidalgos, os prelados e os dignatários da Igreja.

64 O degredo ou desterro era uma sentença destinada a ser

cumprida por tempo determinado ou para sempre, quando perpétuo,

cujo destino era marcado para longe do local onde foi cometido

o crime. Por vezes, o degredo perpétuo comutava penas muito

mais graves, principalmente quando se destinava ao povoamento

da raia espanhola (Castro Marim, Noudar, Elvas, Bragança), das

praças militares (Ceuta, Tanger, Goa), das ilhas atlânticas (Açores e

Madeira) e sobretudo das colónias – Cabo Verde, Guiné, São Tomé,

Angola, Moçambique, Índia e Brasil. Os sentenciados pelo Visitador

da Inquisição ao Brasil, com a pena de desterro, foram os bígamos

reincidentes, e os nefandos, viciosos e incorrigíveis. Felipa de

Sousa, por ser considerada uma sedutora persistente e uma viciosa

incorrigível saiu em auto-de-fé com a pena de morte a que deveria

ter sido sentenciada, comutada por piedade em degredo perpéctuo:

«E posto que comforme o direito civil a pena dos dictos crimes hé de

morte natural, e de confiscação universal de todos os bens. Contudo

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n.º 20 2018

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Largo do Pelourinho, em Salvador da Baía, é hoje o centro cultural

e artístico da cidade, frequentado pelos turistas e pelos amantes da

pintura, do teatro e da gastronomia local.

Terminada a leitura pública da sentença, foi levada e

atada ao Pelourinho 65 , no centro de Salvador, onde o

Ouvidor leu o seguinte pregão: “justiça que o manda

fazer a Mesa da Santa Inquisição: manda açoitar esta

mulher por fazer muitas vezes o pecado nefando de

sodomia com mulheres, useira e costumeira a namorar

mulheres. E que seja degredada para todo o sempre

para fora desta capitania.” 66

Aceitou o flagelo do chicote num deprimente espectáculo

de lágrimas e de sangue. Por fim, recebeu a ordem de

banimento ad eternum da capitania de Salvador da

Baía. Sabemos que recolheu ao calabouço para cuidar

das feridas infligidas pelo chicote. Recebeu assistência

durante quatro dias, após os quais teve de pagar 992

réis respeitantes às custas do processo.

a Sancta Igreja como mãi piedosa não dá morte corporal, mas deixa

a vida aos delinquentes, pera que nella fação obras de penitencia,

com que escapem á morte spiritual…»

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo de

Felipa de Sousa, nº 1267, extracto do «Auto de Sentença» (o itálico

é nosso).

65 O Pelourinho de São Salvador da Baía já não existe, conservandose

hoje apenas o local e a envolvência residencial onde foi

primitivamente erigido, o qual adquiriu essa designação. Hoje o

Pelourinho corresponde a um bairro de grande prestígio cultural e

turístico, onde se concentram os artistas e os músicos, as galerias

de arte, os teatros e restaurantes. Para orgulho dos moradores e

da própria cidade foi classificado pela UNESCO como património da

humanidade, em 5-11-1985.

66 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo

de Felipa de Sousa, nº 1267.

Após tratar as chagas que lhe sulcavam as costas,

infligidas pela acutilância do impiedoso látego, Felipa

de Sousa recebeu autorização para deixar o cárcere e

sair da cidade, ignorando-se o destino que tomou. 67

Desapareceu da esfera do conhecimento público e da

posteridade histórica. Foi como se tivesse morrido.

O procedimento da Mesa Inquisitorial contra Felipa de

Sousa foi muito mais severo do que noutros casos

semelhantes, até porque conforme consta na sentença

lavrada pelo Visitador do Santo Ofício, embora tivesse

cometido safismo com várias e diferentes mulheres, ela

nunca utilizou instrumento penetrante, que imitasse o

membro masculino. Portanto, as suas práticas

homoeróticas não deveriam ter sido penalizadas com a

vil sanção do látego na praça pública, nem poderia ter

sofrido o degredo perpétuo, por ser equivalente a uma

pena capital. Essa decisão caberia apenas ao Inquisidor

Mor em Lisboa, o que prova a prepotência exercida em

Salvador pelo Visitador do Santo Ofício, durante o

período em que decorreu a sua missão, entre 1591 e

1595.

Os vinte e nove processos de sodomia feminina,

conhecidos e julgados pelo Tribunal do Santo Ofício no

Brasil, pertencem exclusivamente à perniciosa visitação

do padre Heitor Furtado de Mendonça, que parecia ter

especial aversão a esse tipo de comportamento sexual.

Enquanto decorreu a sua visitação, entre 1591 e 1595,

teve particular atenção às denúncias de índole

homossexual. No século XVII, e praticamente até à

extinção do Santo Ofício, mais nenhuma mulher haveria

de ser processada no Brasil por tribadismo. Além disso,

o procedimento bissexual das mulheres, quer na Baía

ou noutras cidades do Brasil, embora fosse raro ao

conhecimento público, não era controverso, mas antes

tolerado ou entendido como uma manifestação natural

do erotismo feminino. Apenas a Igreja, e sobretudo a

Inquisição, via neste tipo de comportamento sexual,

entre pessoas do mesmo género, um erro contra-

67 Apesar de ter recebido ordem oficial para sair do cárcere em 28 de

Janeiro de 1592, estou em crer que só deixou o cárcere, no colégio dos

Jesuítas em Salvador, a 30 de Janeiro. No processo inquisitorial consta

a seguinte nota: «Soltura – Oje Vinte e Oito de Janro de mil e quinhetos

e nouenta e dous annos se passou mãdado pera esta Ree ser solta per

mandado do sõr Visitador. Manoel frco [Francisco] Notro [Notário] do

sancto officio nesta uisitação o esvreui».

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo de Felipa

de Sousa, nº 1267.

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

Os “Sambenitos”, eram os condenados pela Inquisição, que vestidos deste modo peculiar, empunhando uma enorme vela acesa, dirigiam-se em

procissão para o suplício em auto-de-fé.

natura, que ofendia a boa moral cristã, equiparável ao

delito da heresia e do sacrilégio mais execrável. É claro

que o grande foco da Igreja era a sodomia masculina,

mal compreendendo o prazer da cópula feminina por

não existir um elemento andrógeno de penetração que

veicule a obtenção do prazer.

Abolição do pecado da “sodomia foeminarium”

pela Inquisição

Após a restauração da nacionalidade, no século XVII, a

Inquisição renegou das suas competências a jurisdição

sobre este tipo de comportamento sexual, considerando

que por razões anatómicas as mulheres eram incapazes

de se sodomizarem, por falta de meio natural de

penetração. Esta decisão era aliás decorrente da praxis

jurídica europeia, onde era tolerada a prática

homoerótica feminina. De facto, o Conselho Geral da

Inquisição, quando foi questionado numa consulta do

Tribunal do Santo Ofício de Goa, teve de dar uma

decisão conclusiva sobre a sodomia foeminarium, que

discutiu cuidadosamente entre 1644 e 1646, optando

por rejeitar a alçada inquisitorial sobre este tipo de

comportamento sexual. As altas dignidades eclesiásticas

decidiram que não havendo penetração nem desperdício

de sémen, não poderia ser considerado sacrilégio,

blasfémia ou heresia, mas tão só uma atitude recreativa

muito peculiar ao espírito infantil das mulheres. Apenas

a sodomia masculina e a cópula heterossexual

perpetrada “no vaso traseiro da mulher com pulsão”,

por ser “suja” e desperdiçar a semente da vida, é que

continuava a ser ponderada como pecado nefando,

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

José Carlos Vilhena Mesquita

odioso e repelente, incompatível com a moral teológica

e os preceitos da Igreja Católica Romana.

A sodomia masculina – o ancestral pecado bíblico de

Sodoma e Gomorra – era muito perseguida e

condenável, sobretudo nos conventos e mosteiros,

sob o estigma de abominável ou contra-natura, por

causa da prática de penetração sexual com pulsão

(ejaculação), e da comprovada obtenção de deleite

comum pela alternância da cópula. Mas esse

procedimento só constituía matéria de acusação

criminal quando urgia provar ou acentuar o(s)

comportamento(s) do(s) réu(s) citado(s) em processo

inquisitorial. No fundo a Igreja sabia que as práticas

homoeróticas eram muito comuns nas casas religiosas,

conventos e mosteiros, pelo que a divulgação da sua

existência só agravaria o problema. Daí que, com o

evoluir do tempo, tivesse preferido ignorar e até

ocultar a sua existência.

Felipa de Sousa, símbolo da liberdade sexual das

mulheres

A humilhação e o aviltamento a que foi sujeita,

especialmente por ser mulher, mas também a coragem

com que encarou o Visitador da Inquisição e assumiu

convictamente o exercício do “pecado nefando”

(sodomia foeminarum), levou a que, em sua

homenagem fosse constituído, em 1994, o principal

prémio internacional de direitos humanos dos

homossexuais, sob a designação «Felipa de Souza

Award», atribuído pela IGLHRC «International Gay

and Lesbian Human Rights Comission» (Comissão

Internacional de Direitos Humanos dos Gays e

Lésbicas), que se encontra sediada em São Francisco,

nos Estados Unidos da América. No seguimento desse

prémio foi instituída em 1998 a ONG «Felipa de

Souza», destinada a desenvolver a compreensão e

tolerância dos diferentes comportamentos sexuais, a

distinguir ativistas individuais e incentivar a fundação

de colectividades, que se evidenciem em todo o mundo

na denúncia e combate à violação dos direitos humanos

das lésbicas, bissexuais, transexuais e portadoras do

vírus HIV/AIDS.

O nome, ainda que a figura seja quase ignorada, de

Felipa de Sousa é hoje mundialmente consagrado

como mártir da luta pela liberdade sexual das

mulheres. Convém acrescentar que o direito à

liberdade e opção sexual tem constituído, desde os

primórdios da civilização, uma persistente batalha

pelo reconhecimento à diferença de comportamento

e de preferência de género. Um dos principais

obstáculos à consecução da liberdade de

comportamento sexual, tem sido a religião. Todos os

credos religiosos que animam a espiritualidade

humana esbarram no reconhecimento do direito à

diferença, na compreensão da pluridiversidade sexual

e na admissão do “terceiro sexo”. É um assunto que

já deixou de ser tabu no seio do mundo ocidental. O

seu debate está hoje nas mãos das universidades,

pela voz dos cientistas e académicos, repartidos

entre sexólogos, sociólogos, psicólogos e

principalmente estadistas políticos, que têm levado

esta discussão aos mais reconhecidos areópagos do

mundo civilizado. Não podemos continuar a virar a

cara para o lado. Temos de enfrentar esta discussão

e após aturado debate colocá-la à aprovação da

sociedade. O sexo não pode ser confundido com

marginalidade, devendo ser definitivamente

entendido como integração.

No Algarve, e na cidade de Tavira, onde Felipa de

Sousa nasceu,, o seu nome e a sua existência em

terras de Vera Cruz permanece envolto num manto de

ignorância e de esquecimento. Considerando que

Felipa de Sousa é hoje uma referência mundial, creio

que se justificaria a singela homenagem de atribuir o

seu nome a um espaço público da sua cidade natal,

possivelmente uma praça, um jardim ou uma das

novas artérias da cidade. Para além disso, merecia

divulgar-se entre os jovens o seu percurso de vida,

realçando muito especialmente o calvário que foi

obrigada a percorrer, por causa da perseguição e

tormento que lhe foi infligido pelo Tribunal do Santo

Ofício. Não ficaria mal à Igreja, representada na

pessoa do cardeal patriarca de Lisboa, que procedesse

à realização de uma cerimónia pública em Tavira,

durante a qual pedisse perdão à memória de Felipa de

Sousa e de todas as mulheres que foram alvo de

injustiças e perseguições perpetradas durante a

tenebrosa vigência da Inquisição. O suplício e a

humilhação pública infligidos a Felipa de Sousa, pelo

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APÊNDICE

[Sentença da Mesa da Santa Inquisição, em Salvador

da Baía, condenando Felipa de Sousa à pena de açoites

e degredo perpéctuo, 4 de Janeiro de 1592]

Sentença

Recreação artística da presença de Filipa de Sousa perante a Mesa da

Inquisição, de peito desnudado sob o estigma da humilhação, ouvindo

a sentença vexatória do açoite e do degredo perpétuo. Ilustração de

Carlos Fonseca, um prestigiado artista-plástico brasileiro.

horrendo Tribunal do Santo Ofício, não podem ser

esquecidos, merecendo ser sempre rememorados

como algo que avilta e indigna a liberdade de género,

que oblitera a opção sexual, que agride a tolerância e

impede a integração social, que, em suma, impossibilita

o direito à diferença. Foi através do sacrifício de muitas

mulheres que, como Felipa de Sousa, sofreram a

opressão sexista e foram ostracizadas ou

estigmatizadas devido às suas opções sexuais, que as

mentalidades avançaram no sentido da tolerância, da

integração e do reformismo no mundo.

Felizmente, na civilização ocidental o processo histórico

avançou no sentido da conquista das liberdades e

direitos individuais – desde a luta do sufragismo e do

feminismo até à igualdade plena de género. Todavia, é

de todos sabido que ainda existem por esse mundo

muitas centenas de milhões de mulheres, que se

sentem privadas da sua liberdade sexual e da sua opção

de género. É para essas mulheres, que nunca puderam

revelar o seu desejo nem expressar livremente a sua

preferência sexual, que escrevi este artigo,

personificando na memória de Felipa de Sousa, uma

homenagem a todas as mulheres dos cinco continentes

que ainda não desfrutam do direito de poderem

expressar livremente as suas afeições, as suas

preferências sexuais e o livre arbítrio no amor.

Acordão o Visitador do Sancto Officio, o Ordinario, e

assessores, que uistos estes autos, proua de test.as

[testemunhas] e comfissão que fez despois de pressa

[presa] a Ree que prezente esta Felipa de Sousa cristãa

uelha custureira natural de Tauira do algarue filha de

Manoel de Sousa e de Sua molher môr Gllz [Maria

Gonçalves] defuntos de idade de trinta e cinquo annos,

casada cõ frco piz [Francisco Pires] pedreiro, moradora

nesta cidade, consta a dicta Ree Felipa de Sousa peccar

O horrendo e nefando crime, de sodomia, peccado

contra natura, cõ muitas molheres assim casadas como

Solteiras per muitas uezes, em diuersos tempos sendo

ella Ree ora agente Incuba, ora paciente Sucuba,

comssumando alguas uezes o ditto pecado nefando

com o comprimento natural de semelhantes actos como

se fossem naturais, ajuntando ella com as outras

molheres compliçes seus uasos dianteiros e tendo

Ssuas deleitaçois abominaueis ella cõ as outras

molheres; E Consta a Ree Ser costumada a namorar

moçheres, requestandoas, com cartas de amores e cõ

recados, e prezentes, e as prouocar ao ditto abominauel

peccado, e dar lhes abraços e beijos contenção torpe, e

desonesta, e abominauel, e gabarse de tam horrendos

peccados que cometia, nomeando as molheres com

quem os cometia, os quais horrendos peccados de

sodomia cometeo ajuntandosse com as outras molheres

Sem auer outro algum Instromento penetrante, o que

tudo fez com pouco temor de deos, esquecida da

Saluação de Sua alma. E Posto que comforme o dereito

Ciuil, a pena dos dictos Crimes he de morte natural, e

de confiscação Uniuersal de todos os bens, Contudo a

Sancta Igreja como mãi piadossa não dá morte corporal,

mas deixa a uida aos delinquentes, pera que nella fação

obras de pinitencia, com que escapem á morte spiritual,

pello que tudo uisto e o mais que destes autos consta

uisto outrossim o breue de Sua Sanctidade e a ordem

que el Rey noso sõr deu pera se proceder contra os

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Felipa de Sousa, algarvia condenada na Inquisição pelo “pecado nefando da sodomia”

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delinquentes neste Crime de Sodomia e contra natura,

nos tribunais do Sancto officio, e a Comissão que fez

aos Inquisidores por elles aceitada; Condenão a Ree

Felipa de Sousa q. Seja açoutada publicamente pellos

Lugares Costumados desta Cidade, E Vá degradada

pera todo Sempre pera fora desta Capitania da bahia de

todos os Sanctos na qual Cometteo tam horrendos

peccados, e nunca mais entre nella en todos os dias de

Sua uida, e mandão que antes de se saber a exsecução

na Ree ella esteja na See hum domingo en quanto se

Selebrar o officio deuino da missa em corpo, em pee,

com sua uella, acesa namão onde lhe sera publicada

esta Sentença, e lhe serão Impostas penitencias

spirituais as quais Serão as seguintes: JeJuará quinze

Sestasfeiras a pam, e agoa: a honra da morte de xpõ

[Cristo] nosso Redemptor: Jejuará mais noue Sabados

a honra da pureza da uirgem nossa Senhora, e rezara

trinta e três uezes o psalmo de miserere meideus, por

quanto sabe ler. E Respeitando a ella Ree cometer os

ditos peccados sem auer mediante outro algum

Instromento, querendo usar com ella de muita

misericordia a excusão das mais penas temporais que

de Rigor merecia, e a amoestão se aparte de

comuersações de que lhe podeuir dano á Sua alma, e

pague as Custas: dada nesta cidade do Saluador, na

mesa da Sancta Inquisiçam aos quatro de Janeiro de

mil e quinhentos e nouenta e dous.

Heitor furtado de mendoça 68

68 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo de

Felipa de Sousa, nº 1267.

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