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de carvão. O casal Gatti ficou conheci<strong>do</strong> e queri<strong>do</strong> pelos vizinhos, sen<strong>do</strong> sempre muito afável no trato<br />
com to<strong>do</strong>s. Depois de seis meses de trabalho, mesmo com o negócio andan<strong>do</strong> bem, o casal Gatti<br />
decidiu voltar para a Argentina, despediram-se de to<strong>do</strong>s na vizinhança, que lamentaram a partida <strong>do</strong><br />
casal.<br />
Alguns dias depois, o guarda da prisão tem a sensação de que algo estranho se passava no<br />
presídio: Erwin Polke, o preso considera<strong>do</strong> mais perigoso entre to<strong>do</strong>s 82 , cujas orientações aos guardas<br />
eram de atenção total e absoluta, jogava xadrez no centro <strong>do</strong> pátio. Enquanto isso, aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />
desvio de atenção, os outros presos deram início à fuga. Minutos depois, os vizinhos da antiga<br />
carvoaria gritavam assusta<strong>do</strong>s com o surgimento de vários presos de dentro dela. A polícia cercou o<br />
local, alguns presos tentaram voltar pelo túnel e foram pegos pela polícia. Neste momento, a polícia se<br />
deu conta, admirada, <strong>do</strong> que tinha diante de si: um túnel da carvoaria ao presídio, atravessan<strong>do</strong> a rua,<br />
com 50 metros de extensão, mais de 1 metro de altura e 80 centímetros de largura. Os engenheiros da<br />
polícia diriam que “Es una obra tecnicamente perfeita”. Foi construí<strong>do</strong> em forma de abóbada, tinha<br />
iluminação elétrica, canos de ventilação desde fora e uma campainha a cada vinte metros que emitia<br />
sinais na entrada. O detalhe mais impressionante foi o cálculo da saída. O túnel dava num banheiro da<br />
prisão, que ficava num nível inferior ao chão da rua. Gatti man<strong>do</strong>u que algumas pessoas visitassem a<br />
cadeia e contassem o número de degraus que levaria até o pátio e a altura de cada um deles, com estes<br />
da<strong>do</strong>s calculou o ângulo de inclinação <strong>do</strong> túnel perfeitamente. 83<br />
Os construtores <strong>do</strong> túnel deixaram uma camada de 50 centímetros que deveria ser rompida<br />
somente no momento da fuga. Apenas os anarquistas sabiam <strong>do</strong> projeto e nove deles evadiram-se <strong>do</strong><br />
presídio, três carros os aguardavam nos fun<strong>do</strong>s da carvoaria. Outros presos tentaram fugir também, mas<br />
a polícia já havia chega<strong>do</strong>. Alguns <strong>do</strong>s fugitivos foram presos dias depois e mais tarde o próprio Miguel<br />
Arcangel Roscigna e o casal Gatti. 84 Este foi apenas um <strong>do</strong>s muitos episódios relaciona<strong>do</strong>s aos<br />
anarquistas expropria<strong>do</strong>res ou “anarquistas de ação direta” no Rio da Prata, famosos por<br />
protagonizarem assaltos, fugas de presídios, justiçamentos, falsificações, explosões, entre outros atos<br />
<strong>do</strong> gênero.<br />
Esta corrente é pouco comentada, marginalizada até mesmo por setores <strong>do</strong> próprio <strong>anarquismo</strong>,<br />
embora tenha muita importância na história das lutas sociais da região, no <strong>anarquismo</strong> e em especial<br />
para esta pesquisa, como uma das correntes que a partir de 1952 formaria a FAU. Sobre os anarquistas<br />
expropria<strong>do</strong>res, vários rótulos foram coloca<strong>do</strong>s: terroristas, proto-guerrilheiros, individualistas, simples<br />
bandi<strong>do</strong>s, etc. Mas os críticos quase nunca mencionam que muitos centros de cultura, sindicatos e<br />
periódicos sobreviveram graças aos fun<strong>do</strong>s expropria<strong>do</strong>s pelos “anarquistas de ação direta”.<br />
Retomemos um pouco sua origem.<br />
O primeiro assalto com fins políticos que se tem notícia na região <strong>do</strong> Rio da Prata aconteceu em<br />
19 de maio de 1919, em Buenos Aires, um assalto aos <strong>do</strong>nos de uma casa de câmbio organiza<strong>do</strong> pelo<br />
82 Erwin Polke era um anarquista individualista, assumidamente stirneriano. Aficciona<strong>do</strong> pela falsificação de dinheiro, é<br />
lembra<strong>do</strong> até os dias de hoje como responsável pelo maior derrame de notas falsas da história argentina, produzidas por uma<br />
máquina montada dentro <strong>do</strong> presídio.<br />
83 BAYER, op. cit., p. 76-77. Tema também aborda<strong>do</strong> no <strong>do</strong>cumentário Los Ácratas.<br />
84 Anos depois em 1971, os Tupamaros alugaram uma casa na mesma rua da carvoaria e cavaram outro túnel para a prisão<br />
com o mesmo intento. Em certa altura se depararam com algo que os impressionou pela qualidade da construção: o túnel<br />
<strong>do</strong>s anarquistas. A escavação <strong>do</strong>s Tupamaros havia si<strong>do</strong> feita num senti<strong>do</strong> que acabou cruzan<strong>do</strong> o antigo túnel e eles<br />
concluíram admira<strong>do</strong>s que a obra feita em 1930 era tecnicamente muito superior ao túnel que eles construíam mais de<br />
quarenta anos depois. Num certo ponto <strong>do</strong> túnel encontraram uma papeleta pendurada, muito velha, onde era possível ler:<br />
“solidaridad para los ácratas no es palabra escrita solamente”, e aproveitaram para deixar outra frase: “<strong>do</strong>is caminhos, duas<br />
ideologias, que se cruam em busca <strong>do</strong> mesmo destino, a liberdade.”. Foram 106 presos políticos que encontraram a<br />
liberdade, um recorde anota<strong>do</strong> no Guiness Book, como a maior fuga de presos políticos da história. Cf. ÁCRATAS. Direção<br />
de ?. Montevidéu: ?, 2000. 1 fita de vídeo (?? min), VHS, son., color., leg..<br />
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