17.09.2019 Views

ASSITEJ Magazine 2019

This is the annual ASSITEJ magazine, launched during the ASSITEJ Artistic Gathering 2019 in Kristiansand (Norway). It contains high-quality articles on theatre for young audiences from all corners of the world!

This is the annual ASSITEJ magazine, launched during the ASSITEJ Artistic Gathering 2019 in Kristiansand (Norway). It contains high-quality articles on theatre for young audiences from all corners of the world!

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Infância Encarnada no Teatro<br />

Contemporâneo:<br />

MELISSA FERRIRA É PESQUISADORA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE<br />

CAMPINAS (UNICAMP), SÃO PAULO – BRAZIL. BOLSISTA DE PÓS-DOUTORADO<br />

DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO (FAPESP),<br />

PROCESSO 2017/11886-0.<br />

Neste artigo eu proponho uma reflexão sobre algumas<br />

das complexas questões em torno da presença de<br />

crianças (como espectadoras e performers) no teatro<br />

contemporâneo e nas artes do corpo. Para isso, eu vou<br />

falar de um acontecimento que, há dois anos, desafiou<br />

concepções conservadoras de infância e de criança no<br />

Brasil.<br />

Em setembro de 2017, o artista brasileiro Wagner<br />

Schwartz apresentou a performance La Bête na abertura<br />

na abertura da 35ª edição do Panorama da Arte Brasileira,<br />

no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Inspirado pelo<br />

trabalho da artista visual brasileira Lygia Clark intitulado<br />

Bicho, em La bête Schwartz deixa o seu corpo nu ser<br />

manipulado como se ele próprio fosse uma das figuras<br />

geométricas da artista. Na ocasião, um vídeo registrado<br />

por um dos espectadores foi postado na internet logo<br />

após a apresentação e rapidamente se tornou viral.<br />

O vídeo expõe o momento em que, acompanhada pela<br />

mãe, uma criança de cinco anos toca rapidamente na<br />

mão e no tornozelo direito do performer. As imagens,<br />

divulgadas fora do contexto e imediatamente<br />

compartilhadas milhares de vezes, causaram comoção<br />

nas redes sociais. Wagner Schwartz e a coreógrafa<br />

Elisabete Finger, mãe da criança e amiga pessoal do<br />

artista, foram duramente atacados com acusações de<br />

pedofilia e negligência por grupos conservadores de<br />

extrema-direita.<br />

Ao refletir sobre os impactos da divulgação do vídeo,<br />

que incluíram linchamentos virtuais, ameaças de morte<br />

ao artista, interrogatórios na polícia e em comissões de<br />

ética, abertura de inquérito pelo Ministério Público e<br />

agressões físicas ao staff do museu, a escritora brasileira<br />

Eliane Brum conclui que “a sociedade atual se esforça<br />

para apagar o fato de que a criança tem corpo” 1 . Para<br />

a autora, tal processo decorre de construções culturais<br />

que deletam o corpo de suas concepções de infância<br />

e veem as crianças como seres que vivem num mundo<br />

separado do mundo dos adultos. As questões levantadas<br />

pela autora em torno desse evento, que gerou ainda<br />

outros desdobramentos como censuras a exibições de<br />

arte em diversos estados brasileiros, são extremamente<br />

provocativos para entender as relações entre arte e<br />

infância na atualidade.<br />

Nos últimos quatro anos eu venho investigando as<br />

implicações éticas, estéticas e políticas da presença<br />

de crianças na cena contemporânea e algumas das<br />

experiências artísticas que encontrei em minhas<br />

pesquisas desafiam os processos de invisibização do<br />

corpo das crianças mencionado por Brum. Devido as<br />

suas peculiares aproximações e parcerias com crianças,<br />

experiências de artistas e grupos como Oficina Uzina<br />

Uzona (Brasil), Rimini Protokoll (Alemanha), Romeo<br />

Castellucci (Itália), Gob Squad (Alemanha) e Milo Rau<br />

(Suíça) estimulam reflexões sobre o corpo das crianças<br />

nas artes da cena e na sociedade ocidental atual.<br />

É importante frisar que muitas vezes as discussões em<br />

torno da presença de crianças na cena contemporânea<br />

suscitadas pelas performances de tais artistas trazem<br />

uma preocupação real sobre o bem-estar e a segurança<br />

da criança (e tais discussões são absolutamente<br />

necessárias), mas a censura e os ataques a tais obras<br />

podem, por outro lado, impedir a manutenção de tempos<br />

e espaços onde as crianças possam exercer o seu direito<br />

fundamental a liberdade de expressão e viver livremente<br />

uma infância encarnada.<br />

Infelizmente, como nos lembra Eliane Brum, alguns<br />

contextos nos mostram que não são todas as crianças<br />

que “merecem” ser protegidas, somente aquelas que<br />

consideramos “nossas”. Ações recentes como a guerra<br />

da Síria, as intervenções militares no Rio de Janeiro e<br />

a prisão de crianças em jaulas na fronteira dos Estados<br />

Unidos reforçam as já conhecidas contradições do<br />

principal argumento, usado por grupos políticos e<br />

religiosos conservadores para atacar artistas e obras,<br />

segundo o qual as crianças precisam ser protegidas dos<br />

“males” do mundo. Tais ações revelam quais crianças<br />

merecem a nossa proteção e de quais delas nós queremos<br />

nos proteger, e, portanto, definem tragicamente quem<br />

é criança e quem não é criança aos olhos da sociedade<br />

contemporânea.<br />

Diante desta brutal realidade, o teatro contemporâneo<br />

e outras manifestações artísticas com crianças (que<br />

lidam com questões como gênero, raça, violência,<br />

sexualidade, imigração e religião) podem ser, e já são,<br />

uma forma de resistência contra o confinamento de<br />

crianças, não apenas nas jaulas literais, mas também<br />

em suas casas, suas igrejas, suas escolas, suas classes<br />

sociais, seus bairros militarmente ocupados e seus países<br />

devastados pela ganância e pela guerra. Experiências<br />

artísticas realizadas em projetos educacionais e sociais,<br />

espetáculos de teatro, performances, exposições, entre<br />

outras manifestações culturais, são espaços e tempos de<br />

resistência contra a invisibilização do corpo das crianças<br />

e dos adolescentes e o silenciamento das suas vozes.<br />

1<br />

No artigo A invenção da infância sem corpo<br />

publicado no jornal El País Brasil em março de 2018.<br />

Assitej Artistic Gathering <strong>2019</strong> 2–7 September Kristiansand<br />

65

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!