a texto: Olsa & ilustrações: Cristina Leôncio, o último rei da selva ...
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<strong>Leôncio</strong>, o <strong>último</strong> <strong>rei</strong> <strong>da</strong> <strong>selva</strong><br />
<strong>texto</strong>: <strong>Olsa</strong><br />
&<br />
<strong>ilustrações</strong>: <strong>Cristina</strong><br />
Esta história começa muito antes de começar… Antes dos Primeiros Tempos; esta história<br />
começa quase, quase, quase no Princípio.<br />
E quase, quase, quase no Princípio não havia ordem neste mundo a que muito muitíssimo mais<br />
tarde se veio chamar Terra. Ca<strong>da</strong> animal fazia os ruídos que lhe apetecia, todos lutavam contra todos;<br />
os peixes na<strong>da</strong>vam entre as ervas, as aves voavam no fundo do mar, e o resto an<strong>da</strong>va entre as folhas<br />
<strong>da</strong>s árvores fazendo piruetas e cambalhotas (incluindo até mesmo os dinossáurios). Era uma loucura<br />
completa!<br />
Mas então chegaram os Mensageiros. Eles vinham dum sítio muito longe <strong>da</strong> Terra, e eram muito<br />
sábios. Sábios e bondosos! Viajavam de mundo em mundo ensinando a maneira correcta de fazer as<br />
coisas às criaturas que neles viviam; e também em ca<strong>da</strong> mundo ensinavam uma língua para que todos<br />
se entendessem e convivessem em paz. Assim foi também aqui.<br />
Os Mensageiros vieram e ensinaram os peixes a na<strong>da</strong>r nos mares e rios, as aves a voar pelo ar,<br />
os outros animais a caminharem pelo chão; e todos a falarem a língua que eles haviam escolhido para<br />
nós.<br />
a
Os alunos aprenderam, uns mais rápido do que outros, tudo aquilo; excepto uns mais traquinas,<br />
que preferiram continuar a pular de árvore em árvore… de galho em galho, especialmente uma família<br />
que ficaria a chamar-se Simões.<br />
Mas havia muito mais a ensinar, só que os Mensageiros ain<strong>da</strong> tinham muito mais mundos a visi-<br />
tar e não podiam ficar muito mais tempo. Então de entre os animais escolheram aqueles que mais rápi-<br />
do e melhor aprendiam, e ensinaram-lhe as lições que faltavam incumbindo-os de as transmitirem<br />
depois pelo mundo inteiro.<br />
Os escolhidos foram assim aqueles que mais tarde chamar-se-iam a si mesmos de <strong>rei</strong>s dinossáu-<br />
rios. A sua escolha fora talvez não só pela sua inteligência, mas também por se parecerem com os pró-<br />
prios professores.<br />
Pois os Mensageiros eram seres altos e esguios, que caminhavam em dois pés, os seus longos<br />
cabelos e barbas (ambos encaracolados) cobriam-lhes todo o corpo, em cuja pele branca se reflectia a<br />
luz do Sol; por fim, <strong>da</strong>s suas costas saíam duas gigantescas asas cobertas de pêlo prateado (tal como o<br />
cabelo e a barba).Por sua vez, os futuros <strong>rei</strong>s dinossáurios eram muito mais baixos e até um pouco bar-<br />
rigudos, além de que em vez de pêlos tinham escamas entre o esverdeado e o alaranjado e grandes<br />
cabeças com focinhos bicudos, já no fim <strong>da</strong>s costas surgiam-lhes umas cau<strong>da</strong>s longas e finas cheias de<br />
espinhos aguçados; mas, apesar <strong>da</strong>quelas diferenças, também an<strong>da</strong>vam di<strong>rei</strong>tos em duas patas, e dos<br />
ombros cresciam-lhes fortes asas com as quais podiam voar.<br />
Finalmente os Mensageiros partiram, ficando os seus melhores alunos no seu lugar. Mas depres-<br />
sa aqueles novos professores aperceberam-se que, sabendo eles as coisas que sabiam, podiam fazer<br />
coisas que mais ninguém podia. E em vez de ensinar, passaram a maravilhar todos os outros animais.<br />
Da maravilha ao respeito, e do respeito ao temor foi um passo rápido! Logo, por receio dos seus pode-<br />
res incríveis os restantes bichos elegeram-nos como <strong>rei</strong>s; e foi assim que eles e os seus outros parentes<br />
dinossáurios <strong>rei</strong>naram na Terra por muito e muitíssimos anos (eles pediram aju<strong>da</strong> à sua família, pois<br />
qualquer <strong>rei</strong>, por mais poderoso que seja, precisa sempre dum exército forte para manter a ordem no<br />
seu <strong>rei</strong>no… e naquele tempo não havia ninguém mais forte do que os seus vários tios e primos afasta-<br />
dos)!.<br />
Com o passar do tempo, mais brutos e maus foram ficando; desobedeciam a quase to<strong>da</strong>s as<br />
lições que os Mensageiros lhes haviam ensinado… chegando até (pasme-se de horror) a caçar e comer<br />
outros animais. Bichos piores não haviam de certeza naquela época!<br />
E muito mais tempo passou. Até que os antigos professores dos avós regressaram, para ver se<br />
tudo corria bem. E de facto na<strong>da</strong> corria!<br />
Horrorizaram-se perante o abuso descarado dos dinossáurios para com os outros animais. Eles<br />
eram carnívoros!, não havia crime pior.<br />
Após um longo debate, foi ain<strong>da</strong> com algum pesar que decidiram que tal espécie tão malva<strong>da</strong><br />
não podia continuar a existir, e desceram dos céus até à terra para a eliminar por completo.<br />
c
Mas ao longo de incontáveis anos, os <strong>rei</strong>s dinossáurios haviam estu<strong>da</strong>do e estu<strong>da</strong>do a língua que<br />
os seus avós haviam aprendido, e descobriram novas palavras…palavras mágicas, palavras com pode-<br />
res terríveis (tão assombrosas que ninguém mais ousava pronunciar, mesmo depois de as escutar; e por<br />
isso foram esqueci<strong>da</strong>s, e hoje não há quem as conheça… e ain<strong>da</strong> bem!).<br />
Aquilo surpreendeu os Mensageiros, que impreparados para tão violento contra-ataque, chega-<br />
ram mesmo a perder a primeira batalha.<br />
A guerra arrastou-se. Todos os outros animais decidiram também nela participar, a maioria ao<br />
lado dos antigos professores.<br />
A luta durou até não restarem mais dinossáurios, e alguns dos seus <strong>rei</strong>s fugirem, escondendo-se<br />
(dizem algumas len<strong>da</strong>s antigas) nas grutas mais profun<strong>da</strong>s para ninguém os voltar a ver. E embora<br />
esses poucos tivessem escapado com vi<strong>da</strong>, não foram perseguidos, pois estavam em tal mau estado que<br />
se julgou que jamais sobrevivessem nas desconfortáveis profundezas <strong>da</strong> Terra.<br />
Daquele modo a guerra acabou. E o mundo estava muito mu<strong>da</strong>do! Não havia mais dinossáurios<br />
(pelo menos à superfície), e muitos outros animais haviam também desaparecido durante as violentas<br />
escaramuças. No céu gor<strong>da</strong>s nuvens feitas do pó <strong>da</strong>s grandes lutas tapavam o Sol, fazendo todos tremer<br />
de frio. Poucas plantas restavam, logo a comi<strong>da</strong> escasseava para todos; e sem os <strong>rei</strong>s para imporem a<br />
ordem, houve muitos que tentaram tomar o seu lugar. E mais lutas surgiram.<br />
Entre os que recusavam disputar o trono e preferiam a companhia dos sábios Mensageiros, esta-<br />
va a família dos Leões (composta claro está por leões, mas também outros gatos). Eles haviam provado<br />
ser combatentes valentes durante a guerra e eram admirados por todos, mas agora estavam cansados de<br />
tantas batalhas e queriam apenas aprender aquilo que os antigos <strong>rei</strong>s haviam guar<strong>da</strong>do soberbamente só<br />
para si.<br />
Mas a ca<strong>da</strong> dia havia menos comi<strong>da</strong>, e os pretendentes ao trono aumentavam. As lutas pareciam<br />
não mais querer acabar.<br />
Os Mensageiros viram aquilo, e acharam muito mau!<br />
Voltaram a discutir entre si, até que enfim tomaram uma decisão e foram chamar os leões. Então<br />
pediram-lhes que fossem eles os <strong>rei</strong>s, pois todos os respeitavam e só assim haveria de novo paz na Ter-<br />
ra. Prometeram-lhes também que os aju<strong>da</strong>riam a <strong>rei</strong>nar, servindo-lhes de seus conselheiros.<br />
Embora hesitantes e descontentes, os leões assim como o resto <strong>da</strong> sua família aceitaram aquele<br />
pedido, e com os Mensageiros ao seu lado rapi<strong>da</strong>mente conquistaram o trono e não houve mais lutas<br />
na Terra.<br />
Foi <strong>da</strong>quela forma que Leonardo, o mais velho <strong>da</strong> família, se tornou o primeiro <strong>rei</strong> leão, senhor<br />
de to<strong>da</strong> a <strong>selva</strong>!.<br />
Quando as nuvens de poeira desapareceram do céu, as plantas voltaram a crescer, e os animais<br />
conviviam em paz; a maioria dos Mensageiros decidiu que era altura de tornar a partir para outros<br />
d
mundos. Apenas alguns ficaram para trás tal como prometido, aju<strong>da</strong>ndo os novos <strong>rei</strong>s a governarem<br />
todos com justiça e bon<strong>da</strong>de.<br />
E foi assim que tudo começou!<br />
∴<br />
O velho Hélio Fontes poisou a sua grande tromba no chão, <strong>da</strong>ndo um sopro que fez bailar as<br />
folhas caí<strong>da</strong>s de Outono. À sua frente, naquela cla<strong>rei</strong>ra, os olhos, <strong>da</strong>s várias crias que ouviram maravi-<br />
lha<strong>da</strong>s a sua história sobre a Era antes dos Primeiros Tempos, ain<strong>da</strong> brilhavam de excitação e imagina-<br />
ção. Fora uma longa e cansativa tarde, mas valera o esforço para ver tamanha alegria.<br />
Ao seu lado, fazendo acrobacias, pulos e gestos malucos que seguiam a história conta<strong>da</strong> pelo<br />
velho elefante, estivera como convi<strong>da</strong>do especialíssimo o bobo do <strong>rei</strong> <strong>Leôncio</strong>, o macaco André.<br />
Um bobo era assim uma espécie de palhaço cujo trabalho principal era fazer rir o <strong>rei</strong> e os seus<br />
companheiros mais importantes, ou seja a côrte real. E o bobo real, que pertencia à família dos Simões<br />
(aqueles que continuavam a passar a maior parte dos dias pulando ora entre ramos ora de árvore em<br />
árvore), André era o mais habilidoso de todos e o favorito de <strong>Leôncio</strong>. Por isso era respeitado pelos<br />
restantes animais, e muitas vezes convi<strong>da</strong>do para animar festas. Mas o que ele gostava mais de fazer<br />
era de vez em quando visitar o seu amigo e antigo professor Hélio Fontes, e juntos preparem um<br />
pequeno teatro para as crias que assistiam às suas aulas na grande cla<strong>rei</strong>ra.<br />
Quando o <strong>último</strong> animal foi buscar o seu filho à escola, André despediu-se do elefante, dizendo-<br />
lhe que no dia seguinte o <strong>rei</strong> iria receber visitas muito importantes e queria que ele tivesse presente<br />
logo cedo para os divertir antes que começassem a discutir o assunto muito sério pelo qual foram cha-<br />
mados até à árvore real.<br />
A árvore real era um enorme lou<strong>rei</strong>ro, com muito mais de cem anos, à sombra <strong>da</strong> qual <strong>Leôncio</strong><br />
se sentava para ouvir o que os outros animais tinham para lhe dizer, assim tal como fizera antes o seu<br />
pai, a sua avó, o seu bisavô… e grande parte dos <strong>rei</strong>s <strong>da</strong> <strong>selva</strong> que lhe antecederam. No fundo, era<br />
aquele o trono escolhido pela família dos Leões já havia incontáveis anos.!<br />
A noite já surgira estrela<strong>da</strong> no céu havia muito tempo, mas André ain<strong>da</strong> se baloiçava de rabo<br />
pendurado entre os ramos <strong>da</strong> oliveira, que elegera como sua casa desde que saíra do grande sob<strong>rei</strong>ro<br />
dos seus pais para viver sozinho, olhava lá para cima, admirando as luzinhas que brilhavam na escuri-<br />
dão, e por vezes imaginava que elas desenhavam no céu formas toscas e contavam histórias como num<br />
livro de aventuras aos quadradinhos. E adormeceu assim, sonhando sonhos incríveis!<br />
e
A manhã chegou, e na altura devi<strong>da</strong> estava ele junto ao <strong>rei</strong> aguar<strong>da</strong>ndo a chega<strong>da</strong> dos importan-<br />
tes convi<strong>da</strong>dos.<br />
<strong>Leôncio</strong>, era um jovem leão, com os cabelos encaracolados <strong>da</strong> sua juba acastanha<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> a<br />
crescerem-lhe em torno do pescoço. Pelas costas trazia um manto que lhe caia até ao chão cobrindo-<br />
lhe to<strong>da</strong> a cau<strong>da</strong>, e que fora costurado, a partir <strong>da</strong>s folhas doira<strong>da</strong>s do velho lou<strong>rei</strong>ro, pela mestra<br />
modista Sara Ana e suas aranhas aprendizes aquando <strong>da</strong> sua coroação; e à volta <strong>da</strong> cabeça usava altivo<br />
uma rodela composta pelas mais varia<strong>da</strong>s e colori<strong>da</strong>s flores (ou seja, a sua coroa real).<br />
Ao lado do <strong>rei</strong> estavam também os dois Mensageiros que o serviam como professores e conse-<br />
lheiros. À esquer<strong>da</strong> estava Samael, aquele que <strong>da</strong>lgum modo aparentava ser o mais velho do duo… e<br />
sempre com cara séria e pensativa. À di<strong>rei</strong>ta, conversando e gargalhando com André, estava Micael,<br />
com a sua usual boa-disposição.<br />
Por fim os convi<strong>da</strong>dos chegaram. Uma longa fila de cegonhas, flamingos, cisnes e gaivotas,<br />
encabeça<strong>da</strong> pelo doutor Carlos Uva, parou diante <strong>da</strong> árvore real. O grupo liderado pela sábia coruja,<br />
era composto pelos mais famosos e estimados cientistas <strong>da</strong> época… todos eles aves de renome, a quem<br />
o <strong>rei</strong> havia man<strong>da</strong>do estu<strong>da</strong>r os misteriosos tremores que ultimamente se faziam sentir por to<strong>da</strong> a <strong>selva</strong>,<br />
ca<strong>da</strong> vez mais fortes e assustadores.<br />
Terminado o espectáculo de André que a todos fez sorrir e gargalhar… todos, excepto o carran-<br />
cudo Samael, a reunião teve então início. E o bobo, tal como era seu hábito, empoleirou-se num dos<br />
ramos que ficavam próximos de Micael, assistindo em silêncio a tudo o que se iria passar.<br />
Carlos Uva foi o <strong>último</strong> a discursar, fazendo um resumo de tudo o que fora ali dito durante horas<br />
a fio. O Sol já ia dormir, quando por fim a sábia coruja começou a falar.<br />
No fundo, ninguém sabia ao certo por que motivo o chão tanto tremia, no entanto os tremores<br />
tinham sempre mais força na região <strong>da</strong>s Caves Fun<strong>da</strong>s e por isso o grupo inteiro de cientistas concor-<br />
<strong>da</strong>va que qualquer que fosse a causa era naquele lugar que ela se encontrava.<br />
Aquela notícia fez o <strong>rei</strong> torcer o focinho. <strong>Leôncio</strong>, apesar de muito valente e corajoso, aprendera<br />
desde leãozinho a evitar aquele lugar, que a maioria dos animais dizia ser maldito.<br />
Naquele sítio, que ficava nos confins <strong>da</strong> <strong>selva</strong> e quase junto ao mar, não crescia nem uma erva<br />
verde! Era tudo feito de rochas pretas, com grandes grutas que desciam aparentemente sem fim pelo<br />
solo abaixo, e umas quantas gigantescas montanhas ocas que por vezes cuspiam fogo cá para fora. Para<br />
mais, qualquer animal que se aproximasse muito <strong>da</strong>quele deserto negro jamais era visto de novo. Nem<br />
mesmo os pássaros o sobrevoavam!<br />
E Carlos Uva relembrou isso mesmo ao <strong>rei</strong>, ao ver o seu focinho torcido, como se quisesse justi-<br />
ficar <strong>da</strong>quele modo a falta de mais informações sobre os misteriosos tremores.<br />
Aquilo não agradou muito a <strong>Leôncio</strong>, que fez uma nova careta e com voz de zangado mandou<br />
embora todos os cientistas.<br />
Era já noite.<br />
g
Ficou só ele com os seus dois conselheiros, e André ain<strong>da</strong> pendurado no lou<strong>rei</strong>ro e muito quieti-<br />
nho sem dizer qualquer palavra.<br />
Em baixo, o trio começou a discutir aquela preocupante noticia, e por uma vez os dois Mensa-<br />
geiros concor<strong>da</strong>vam na melhor medi<strong>da</strong> a tomar: era preciso enviar às Caves Fun<strong>da</strong>s quem investigasse<br />
melhor aquele assunto. O problema seria descobrir quem teria tamanha bravura para tal feito!.<br />
- Se o <strong>rei</strong> for, muita gente irá atrás. – disse subitamente André, enquanto fazia uma pirueta trapa-<br />
lhona <strong>da</strong> árvore até ao chão, terminando numa respeitosa vénia.<br />
<strong>Leôncio</strong> a princípio franziu os sobrolhos àquela ideia tão ousa<strong>da</strong>, mas sem ter muito que pensar<br />
logo concluiu que havia sabedoria nas palavras atrevi<strong>da</strong>s do seu bobo, que por sua vez foi logo eleito<br />
pelo leão como o primeiro “voluntário” a seguir o exemplo do <strong>rei</strong>. André, após aquela sua fala impe-<br />
tuosa, não teve mais coragem para recusar o convite do seu senhor, e de imediato concordou com aqui-<br />
lo… embora não disfarçando algum medo ao alistar-se naquela aventura.<br />
Apenas Samael desaprovou aquela ideia, dizendo que seria muito perigoso para o <strong>rei</strong> entrar<br />
naquelas terras estranhas e desconheci<strong>da</strong>s. Mas <strong>Leôncio</strong> já estava decidido, e na<strong>da</strong> mais ouviu!<br />
Ao amanhecer do dia seguinte, bandos de catatuas e de cangurus foram enviados por to<strong>da</strong> a terra<br />
às três <strong>da</strong>s quatro beiras do mar, para espalharem a mensagem do <strong>rei</strong>; e ao chegarem às praias, o seu<br />
testemunho foi então passado às focas, proclamando o intento de <strong>Leôncio</strong> e requisitando a companhia<br />
de outros bravos animais que o quisessem acompanhar na sua visita às Caves Fun<strong>da</strong>s para descobrir a<br />
origem dos misteriosos tremores; para mais, quem participasse naquela aventura no regresso seria<br />
promovido a nobre amigo do <strong>rei</strong> (uma honra tal nunca antes fora <strong>da</strong><strong>da</strong>).<br />
Embora muitos animais desejassem tal promoção, o problema era que nunca nenhum havia<br />
regressado <strong>da</strong>quele lugar maldito, onde as rochas eram negras e o mar fervia.<br />
Por isso, sete meses depois apenas nove animais além de André e dos dois Mensageiros haviam<br />
comparecido ao convite do <strong>rei</strong>, e em nenhum desses se contava um peixe ou outro Ser marinho.<br />
<strong>Leôncio</strong> ficou um pouco desiludido e também algo zangado, mas por fim decidiu que não valeria<br />
de na<strong>da</strong> esperar mais e resolveu partir na companhia <strong>da</strong>queles doze.<br />
O grupo deixou então a árvore real para trás em direcção às Caves Fun<strong>da</strong>s. Embora tivessem<br />
sido poucos a responderem ao convite régio, uma multidão havia-se juntado para assistir à parti<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>queles corajosos heróis, que a maioria duvi<strong>da</strong>va em cochichos baixinhos voltar a ver de novo (inclu-<br />
sive o <strong>rei</strong>). Ouviram-se «vivas» e benções à medi<strong>da</strong> que eles desfilavam <strong>selva</strong> a fora no seu porte alti-<br />
vo, de quem sabe que vai fazer algo incrível e inigualável por todos os restantes.<br />
À frente ia <strong>Leôncio</strong>, ladeado pelos seus dois conselheiros; já André, aproveitando uma oferta<br />
gentil de boleia, ia às cavalitas de Micael; logo atrás do quarteto principal, voava Avelina Truz-Truz (a<br />
única ave do grupo), ao seu lado caminhava pesado o velho e sábio Hélio Fontes; e por respeito ao seu<br />
antigo professor, Sá Vale limitava-se a trotear atrás dele, seguido pelo rastejar de Sílvia Pente; mais<br />
h
atrasados iam os irmãos Li, Zeca Li e João Vaz Li… os dois distraídos javalis divertiam-se chutando<br />
uma meloa entre si; no fim do grupo, tentando não engolir a poeira que os dois Li faziam por todo o<br />
caminho, seguia o emproado trio formando pelos felinos primos do <strong>rei</strong>: Tiago, Rita e Léo Paulo. Assim<br />
estava composto o bando dos treze aventu<strong>rei</strong>ros; todos eles diferentes, mas todos corajosos e valentes.<br />
Caminharam assim os treze heróicos aventu<strong>rei</strong>ros longos dias e noites até que chegaram aos con-<br />
fins <strong>da</strong> <strong>selva</strong> e onde começava a terra maldita.<br />
Os heróis estavam agora no fim <strong>da</strong> <strong>selva</strong>, para a frente apenas havia pedras negras atrás de<br />
pedras negras. Decidiram então pernoitar ali, antes de entrarem na região <strong>da</strong>s Caves Fun<strong>da</strong>s; e aprovei-<br />
taram para jantar bem, pois a partir <strong>da</strong>li não havia mais plantas ou árvores de fruta e muito menos<br />
qualquer tipo de vegetal. A partir <strong>da</strong>li teriam todos que jejuar!<br />
A noite veio com alguns sonhos inquietos, até que o Sol se levantou nas suas costas. O dia esta-<br />
va claro por to<strong>da</strong> a <strong>selva</strong>, mas adiante nuvens negras rebolavam no céu quase criando um segundo<br />
anoitecer.<br />
medo)!.<br />
O deserto <strong>da</strong>s Caves Fun<strong>da</strong>s era realmente um lugar muito mau, nem a luz queria lá ir (cheia de<br />
Ao verem aquilo, todos os animais hesitaram em <strong>da</strong>r o primeiro passo para entrarem naquela<br />
região maldita; até que por fim <strong>Leôncio</strong>, <strong>da</strong>ndo um sonoro suspiro, reencheu-se de coragem e pôs uma<br />
<strong>da</strong>s suas patas sobre aquelas rochas negras e surpreendentemente mornas, e avançou altivo sem nunca<br />
olhar para trás. Os outros seguiram rapi<strong>da</strong>mente o seu bravo exemplo e meteram-se igualmente a<br />
caminho.<br />
Lá entraram <strong>da</strong>quele modo os treze naquele sítio onde ninguém mais quisera entrar.!<br />
Caminharam horas e horas sem encontrarem mais na<strong>da</strong> a não ser aquelas pedras escuras e quen-<br />
tes que custavam ca<strong>da</strong> vez mais a pisar, e uma vez por outra algumas montanhas também pretas cujo<br />
cume parecia brilhar no céu nublado que escurecia mais a ca<strong>da</strong> novo passo que <strong>da</strong>vam.<br />
Quem ia agora à frente do grupo era Avelina Truz-Truz. Voando entre o chão e as nuvens, a<br />
pouca luz, que ali chegava provin<strong>da</strong> dos estranhos e ocasionais montes de topo vermelho, reflectia-se e<br />
ampliava-se nas penas doira<strong>da</strong>s que lhe iam <strong>da</strong> ponta até meio <strong>da</strong>s suas elegantes asas; <strong>da</strong>quele modo<br />
servindo ela de candeia aos restantes doze.<br />
E assim continuaram a an<strong>da</strong>r por mais algum tempo; até que a terra começou a estremecer sob as<br />
suas patas! Primeiro devagarinho, depois com mais força, quase os deitando ao chão. O tremor passou<br />
e passou também algum tempo, então eles retomaram o seu trajecto até que surgiu outro abanão,<br />
<strong>da</strong>quela vez ain<strong>da</strong> mais forte. E depois mais um, e outro… até quase deixar de haver intervalos entre<br />
eles. Tornara-se impossível continuar a caminhar naquele lugar.<br />
Nos céus, segura, a avestruz era o único dos treze aventu<strong>rei</strong>ros que podia ver com alguma cal-<br />
ma aquilo que realmente ali se passava, pois os Mensageiros estavam poisados ao lado de <strong>Leôncio</strong><br />
i
tentando ampará-lo. E para seu grande espanto constatou que o chão à sua frente havia ruído em gran-<br />
des buracos, que todos juntos quase pareciam ter engolido to<strong>da</strong> a terra até onde começava um borbu-<br />
lhante mar de águas a escal<strong>da</strong>r. O pior era que as rochas que sustentavam os seus companheiros pare-<br />
ciam querer também cair para aquele imenso vazio. As rachas no solo que os rodeava aumentavam a<br />
ca<strong>da</strong> novo terramoto, que agora se sucediam ca<strong>da</strong> vez mais rápidos e violentos.<br />
Aflita rodopiou no ar atenta na esperança de encontrar algum caminho por onde todos pudes-<br />
sem fugir. Por sorte reparou então naquilo que parecia ser uma caverna, não muito longe <strong>da</strong>li, mas que<br />
por um motivo qualquer aparentava resistir robusta àqueles ferozes abanões.<br />
- Sigam-me! – gritou ela, para os outros em baixos, que aos trambolhões sem pensar duas vezes<br />
logo seguiram o seu apelo. E foi por um triz; mal o <strong>último</strong> animal entrou naquela misteriosa gruta, o<br />
chão lá fora desabou praticamente por inteiro – CATRAPUM – num imenso barulho que imitava o<br />
trovejar.<br />
Estavam todos a salvo, mas encurralados… excepto claro aqueles que podiam voar. Olhavam<br />
uns para os outros assustados e sem saber o que fazer nem sequer como reagir àquele ver<strong>da</strong>deiro<br />
assombro! Até que Avelina, que continuara esvoaçando por ali adentro, deu novamente um grito entu-<br />
siasmado, e todos correram para ela.<br />
Entre a escuridão <strong>da</strong>quele sítio, achara, num recanto que sem explicação cintilava a vermelho,<br />
uma também insólita esca<strong>da</strong>ria de degraus mal esculpidos que descia às curvas até às inimagináveis<br />
profundezas.<br />
Após uns momentos de hesitação, foi <strong>Leôncio</strong>, retomando o seu papel de <strong>rei</strong> embora não isento<br />
de receios (pois é disso que a coragem é feita), quem deu os primeiros passos naquele lancil abaixo, até<br />
porque não sabia doutro caminho para saírem todos <strong>da</strong>li.<br />
Então em fila, visto que o espaço entre as paredes era est<strong>rei</strong>to, obrigando mesmo o velho ele-<br />
fante a encolher a sua barriga, começaram todos a descer… e uma longa desci<strong>da</strong> era aquela, com o ar a<br />
ficar mais abafado a ca<strong>da</strong> degrau passado.<br />
Se não fosse ca<strong>da</strong> um preocupado com os seus próprios pensamentos, teriam reparado nos oca-<br />
sionais rabiscos gravados na rocha e no aumento do cochichar entre os Mensageiros numa língua que<br />
nenhum antes ouvira: aquele extraordinário som que lembrava o som <strong>da</strong> chuva a cair de mansinho era<br />
muito provavelmente a sua fala nativa.<br />
Talvez tenham passado horas, talvez menos ou talvez mais, mas por fim a esca<strong>da</strong>ria desembo-<br />
cou ao fazer uma última esquina num súbito e amplo salão escavado na pedra, e também ele estranha-<br />
mente iluminado em tons de rubi. Ali o chão era liso, tão polido que quase se assemelhava a um espe-<br />
lho gigantesco, porém tão quente que por pouco não escal<strong>da</strong>va quem o pisava.<br />
Ninguém parecia interessado em sequer imaginar os construtores <strong>da</strong>quele lugar fantástico, tal<br />
era o temor que sussurrava nas mentes <strong>da</strong>quele bando (por tal desventura já heróico).<br />
j
Truz-Truz aproveitando o brilho vermelho que se reflectia no doirado <strong>da</strong> suas asas, imitando de<br />
forma humilde a luz do próprio Sol ao entardecer, seguiu de novo na frente do grupo voando rasteira e<br />
servindo <strong>da</strong> lanterna aos restantes, pois apesar do rubro cintilar aquele sítio estava recheado de miste-<br />
riosas sombras que como riachos aparentavam brotar <strong>da</strong>s paredes engolindo no seu breu todos os quan-<br />
tos que por elas passavam.<br />
Sem outros pontos de referência excepto aquelas ditas assombrosas paredes, limitaram-se a<br />
seguir em frente; ou assim o julgaram, pois era muito difícil discernir qualquer direcção naquele lugar.<br />
An<strong>da</strong>ram e an<strong>da</strong>ram sem nenhum horizonte à vista, até que de repente quase esbarraram num<br />
enorme rochedo também ele avermelhado, que tão bem estava coberto por aquelas estranhas sombras<br />
que como por magia lhes pareceu ter surgido do na<strong>da</strong>. Por tudo quando podiam adivinhar aquele<br />
gigantesco salão terminava ali.<br />
Ao centro havia uma porta; alta, larga, de aspecto pesado, e construí<strong>da</strong> num metal que nenhum<br />
animal vira antes. Era de cor amarela e reluzia como as penas <strong>da</strong> avestruz. Todos ficaram encantados a<br />
mirar tal coisa, até que o <strong>rei</strong> rugiu:<br />
- Temos que abrir esta bela porta, já que aqui chegámos na<strong>da</strong> podemos fazer senão prosseguir.<br />
– e os restantes, uns mais relutantes outros mais entusiasmados, concor<strong>da</strong>ram com o leão.<br />
Pela posição <strong>da</strong>s dobradiças e dos batentes perceberam que a porta abriria para dentro <strong>da</strong>quilo a<br />
que ela <strong>da</strong>va entra<strong>da</strong>, fosse isso o que quer que fosse; então os irmãos Li voluntariaram-se logo para<br />
arrombá-la, pois ninguém sabia outro modo de por ela entrar. <strong>Leôncio</strong> pensativo hesitou um pouco,<br />
mas por fim concordou com aquela única ideia ofereci<strong>da</strong>.<br />
Os dois javalis recuaram para ganhar balanço e em conjunto PUMBA lançaram-se contra a por-<br />
ta doira<strong>da</strong>, que não se moveu nem um bocadinho. Teimosos, embora ain<strong>da</strong> um pouco tontos (mais do<br />
que lhes era habitual) pela panca<strong>da</strong>, repetiram a proeza uma e outras vezes mais. Tantas que até as suas<br />
presas, isto é, os dentes longos e esbeltos que lhes saiam <strong>da</strong> boca como dois chifres, de que eles se<br />
orgulhavam tanto pelo respeito que julgavam impor, começaram a encurvar-se para cima. Facto que os<br />
deixou muito tristes, verem <strong>da</strong>quela maneira amolgados os seus lindos ornamentos dentários, mas<br />
mesmo assim não desistiram, talvez ain<strong>da</strong> até com mais gana continuaram com as suas cabeça<strong>da</strong>s.<br />
Tamanha foi a sua insistência que as dobradiças por fim cederam e a porta finalmente caiu.<br />
Com ela também tombaram, para o inesperado vazio que ela guar<strong>da</strong>va, os dois temerários<br />
irmãos esperneando confusos por tal que<strong>da</strong>.<br />
Avelina e os Mensageiros lançaram-se de imediato em seu socorro, enquanto os outros animais<br />
ficaram a olhar em espanto e inquietação na berma <strong>da</strong>quele precipício imprudentemente recém aberto.<br />
Truz-Truz apanhou rapi<strong>da</strong>mente João, batendo com mais vigor as suas asas quase já sem fôlego<br />
para compensar o peso extra que agora com cui<strong>da</strong>do segurava; Zeca por sua vez foi resgatado com<br />
muito mais elegância por Micael, que o carregava no colo voando de regresso para o resto do grupo.<br />
k
Samael, que também os acompanhara, gritou então que se apressassem a sair <strong>da</strong>li, pois pressen-<br />
tia que não estavam sozinhos naquela escuridão.<br />
E na ver<strong>da</strong>de vultos imensos rodopiavam por aquele lugar, aproximando-se ca<strong>da</strong> vez mais rápi-<br />
dos e ferozes <strong>da</strong>quele trio de voadores. Envoltos na sombra era impossível avaliar a sua forma ou o seu<br />
número, apenas se podia perceber que deviam ser gigantescos pelo ar que deslocavam e o assobio ter-<br />
rível <strong>da</strong>quilo que seria o bater <strong>da</strong>s suas potentes asas.<br />
Micael e Zeca chegaram rápido junto do <strong>rei</strong>, Samael ficara para trás para aju<strong>da</strong>r a avestruz a<br />
transportar o segundo javali em segurança.<br />
Sem aviso, um repuxo de labare<strong>da</strong>s vindo <strong>da</strong>s profundezas <strong>da</strong>quele vazio escuro atingiu de ras-<br />
pão a despreveni<strong>da</strong> ave mesmo assim arremessando-a contra uma <strong>da</strong>s paredes vermelhas do salão, e<br />
fazendo-a pelo choque largar o seu companheiro ain<strong>da</strong> sobre o abismo.<br />
Felizmente o outro conselheiro real consegui num voo demasiado acrobático para ser descrito<br />
apanhar o pobre João Vaz, sem que nenhum outro <strong>da</strong>no lhe sucedesse excepto um grande susto, e poi-<br />
sá-lo junto do seu irmão; enquanto todos os que restavam corriam em socorro de Avelina, de cujas<br />
penas saía um fumo negro e do seu bico alguns «ais» muito combalidos.<br />
Distraídos com aqueles graves assuntos, não se aperceberam que provin<strong>da</strong> <strong>da</strong> escuridão emer-<br />
gia <strong>da</strong>quele buraco agora sem porta uma enormíssima boca feroz e voraz cheia de dentes e todos eles<br />
bem afiados.<br />
Os primos, do <strong>rei</strong> que haviam ficado mais para trás guar<strong>da</strong>ndo as costas do monarca, foram<br />
tragados tão rapi<strong>da</strong>mente que os seus companheiros só deram conta de tal após o nefasto acto já con-<br />
sumado.<br />
Perante aquela visão de terror, todos em pânico fugiram em deban<strong>da</strong><strong>da</strong> por aquele vasto salão;<br />
todos, excepto André que permaneceu junto <strong>da</strong> avestruz caí<strong>da</strong> num (até para ele) inesperado acto de<br />
coragem, que também com surpresa foi acompanhado por Samael.<br />
A bocarra abriu-se de novo, prontinha para os devorar duma só vez. Mesmo assim, desafiando<br />
todo o bom senso, não arre<strong>da</strong>ram pé escu<strong>da</strong>ndo a desprotegi<strong>da</strong> ave com os seus próprios corpos.<br />
E no instante em que os terríveis dentes se iam fechar sobre o trio, algo de espantoso entre eles<br />
e a horren<strong>da</strong> boca aconteceu. Um clarão doirado acompanhado por estranhas palavras roucas conse-<br />
guiu miraculosamente arremessar aquela monstruosi<strong>da</strong>de de volta para o abismo negro donde escapa-<br />
ra.<br />
Quando a súbita luz desvaneceu, o espanto ain<strong>da</strong> foi maior! Segurando um bastão amarelado<br />
cujo topo terminava numa meia esfera cintilante, estava imponente uma figura alta e esguia que num<br />
primeiro relance lembrava a silhueta dos próprios Mensageiros, excepto pelo tom verde quase escuro<br />
<strong>da</strong> sua pele e em lugar de pêlos estar coberto em determinados sítios, inclusive nas grandiosas asas, por<br />
finíssimas escamas colori<strong>da</strong>s por suaves versões <strong>da</strong> mesma tonali<strong>da</strong>de esverdea<strong>da</strong>.<br />
l
O elefante (que mais os seus restantes companheiros de cobarde fuga, se reunia de volta em<br />
torno <strong>da</strong> caí<strong>da</strong> avestruz, dos seus dois corajosos protectores e <strong>da</strong>quela misteriosa aparição) notou em<br />
sonora exclamação que aquele estranho recém chegado muito se parecia com os <strong>rei</strong>s dinossáurios <strong>da</strong><br />
len<strong>da</strong>, tirando a falta de cau<strong>da</strong> e focinho pontiagudo naquele novo sujeito.<br />
Quando todos haviam por fim ali chegado, uns mais receosos e demorados do que outros, a<br />
personagem que todos miravam falou numa vénia, encarando <strong>Leôncio</strong> nos olhos, numa atitude incerta<br />
que tanto podia ser de desafio como de humil<strong>da</strong>de:<br />
- Chamo-me Iblís e sou eu quem guar<strong>da</strong> este palácio de outrora. – a sua voz perdia-se lenta-<br />
mente em ca<strong>da</strong> palavra que dizia, como se não tivesse o hábito de aquelas usar. – Foi um tolice terem<br />
derrubado a porta que nos resguar<strong>da</strong>va dos meus infelizes primos; o feitiço que lancei afastou-os por<br />
agora, mas não sei quanto tempo vou demorar a construir uma nova.<br />
Nesse momento o leão deu um passo em frente apresentando-se e apresentando também as suas<br />
desculpas por tal imprudência.<br />
- Sim eu sei quem és. – respondeu o guardião com alguma indiferença. – Mas será melhor con-<br />
tinuarmos esta conversa num lugar mais confortável e seguro, … - disse apontando para um orifício<br />
que se escondia entre as sombras duma parede lá no alto quase junto ao tecto. – … onde poderão cui-<br />
<strong>da</strong>r melhor <strong>da</strong> vossa companheira. – terminou de falar, <strong>da</strong>quela vez indicando a pobre avestruz.<br />
Todos concor<strong>da</strong>ram em segui-lo, e com a aju<strong>da</strong> dos Mensageiros alcançaram a sombria passa-<br />
gem menciona<strong>da</strong>. Aquela <strong>da</strong>va para novos corredores, mais est<strong>rei</strong>tos e em tons brilhantes de amarelo<br />
que permitiam acesso a pequenas salas ovais de aspecto semelhante. A maioria estava vazia ou com<br />
alguma quinquilharia que aparentava ter perdido o uso e a importância já havia muito tempo.<br />
Num desses quartos encontraram um montículo <strong>da</strong>quilo que pareciam ser fios de aranha, embo-<br />
ra mais macios e azulados. Aí deitaram Avelina, ficando Samael com ela a tratar-lhe <strong>da</strong>s queimaduras.<br />
André queria ficar, mas também queria explorar aquele lugar e saber mais dele; Micael perce-<br />
bendo a indecisão do seu amigo, fez-lhe sinal que o acompanhasse assegurando-o de que a ave estaria<br />
bem entregue nas mãos sábias do seu companheiro. E assim partiram juntando-se aos restantes naquela<br />
visita guia<strong>da</strong>.<br />
As suspeitas do elefante confirmaram-se na explicação que Iblís foi <strong>da</strong>ndo enquanto caminha-<br />
vam. Ele era <strong>da</strong> família dos antigos <strong>rei</strong>s dinossáurios.<br />
Aqueles haviam-se refugiado naquelas cavernas após terem perdido a guerra, para tratarem em<br />
sossego <strong>da</strong>s suas feri<strong>da</strong>s e outras maleitas resultantes de tal escaramuça. Embora a sua sabedoria fosse<br />
grande, apenas muito poucos conseguiram sobreviver e nenhum se restabeleceu por completo. Assim<br />
exilados (isto é, dos outros animais afastados) e adoentados deixaram-se ficar por aquele lugar subter-<br />
râneo, construindo ali o seu novo lar.<br />
m
No entanto os seus ferimentos eram tão graves que mesmo curados as mazelas que deles resta-<br />
vam iam passando dos progenitores para as suas crias, fazendo com que aquelas fossem nascendo ca<strong>da</strong><br />
vez mais diferentes dos seus pais e mais pareci<strong>da</strong>s com o inimigo que os havia derrotado e expulso dos<br />
seus outrora gloriosos tronos de <strong>rei</strong>s <strong>da</strong> Terra. Era como uma maldição, uma doença para a qual não<br />
havia remédio nem melhoras.<br />
Embora o tivessem tentado, com resultados desastrosos. Dando origem a criaturas monstruosas<br />
e com um apetite voraz, que por pouco não destruíram tudo à sua volta, não tivessem os seus pais e<br />
outros familiares conseguido descobrir um modo de encarcerá-los antes que fosse tarde demais. Porém<br />
apesar de deformados de corpo e mente, aqueles continuavam a ser os seus filhos, então foi construído<br />
um enorme e lindo recinto para os abrigar pelo que durasse a sua vi<strong>da</strong>. O que ninguém contou foi que<br />
pela sua natureza ser tão vil nem a própria Morte se atrevia a aproximar-se deles, pelo que <strong>da</strong>quela<br />
forma foram sobrevivendo durante anos sem fim, ca<strong>da</strong> vez mais poderosos e furiosos por não saberem<br />
como escapar <strong>da</strong>quela sua prisão cujo interior foram destruindo ou devorando a pouco e pouco até<br />
na<strong>da</strong> sobrar.<br />
O tempo foi passando, e chegou uma altura em que por fim todos os que viviam naqueles palá-<br />
cios subterrâneos já se pareciam com Iblís, e para se diferenciarem ain<strong>da</strong> mais dos seus desafortunados<br />
antepassados começaram na sua própria língua a chamarem-se a si mesmos de Draquíromprimitis,<br />
«Draquiôs» para abreviar nas conversas do dia-a-dia, e que no idioma então falado por todos os outros<br />
animais significava apenas “lagartos com asas”. Chamando aos seus primos encarcerados, os quais<br />
foram incumbidos de vigiar e cui<strong>da</strong>r pelos bisavós dos avós dos seus pais, de Primitilivos, nome<br />
baseado em len<strong>da</strong>s e profecias do seu folclore muito antigo, meramente significando “noites que<br />
voam”.<br />
Os Draquiôs eram bastante inteligentes tal e qual os seus antecessores, e além disso eram muito<br />
engenhosos. Não só descobrindo palavras novas com as quais podiam realizar mais encantos assom-<br />
brosos e aprender coisas ain<strong>da</strong> mais poderosas que ninguém ain<strong>da</strong> sabia ou depois viera a saber, como<br />
igualmente montavam máquinas complicadíssimas capazes de feitos extraordinários sem par entre<br />
qualquer animal.<br />
Mas eram também um povo triste que raramente saia dos seus palacetes debaixo de terra,<br />
receosos do que aconteceria acaso a sua existência fosse acidentalmente revela<strong>da</strong>.<br />
Foi então que surgiu uma invenção que revolucionou to<strong>da</strong> aquela acabrunha<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de:<br />
máquinas voadoras, tão potentes que, ao serem combina<strong>da</strong>s com igualmente poderosos feitiços, conse-<br />
guiam mesmo atravessar sem <strong>da</strong>no o véu celeste e assim ir até para além dos céus! Finalmente podiam<br />
ser livres sem receios. E, como na<strong>da</strong> os prendia àquelas cavernas fecha<strong>da</strong>s dos seus trisavós, decidiram<br />
todos partir; ansiosos por explorarem novos mundos, e quem sabe até mesmo conquistá-los! Iam pre-<br />
parados com novos feitiços e armas, apostos para se defenderem e ripostarem caso encontrassem pelo<br />
caminho entre as estrelas o velho inimigo que derrotara e humilhara os seus antepassados (Micael<br />
n
franziu o semblante - isto é, a sua cara e feições - ao ouvir aquilo, sem sequer tentar disfarçá-lo; o que<br />
deixou o seu amigo bobo muito espantado, pois nunca o vira a ter semelhante reacção).<br />
E lá partiram. Todos no mesmo dia e na mesma altura. VRUM! O fumo trovejante <strong>da</strong> descola-<br />
gem de tantas máquinas voadoras encheu todo aquele lugar tapando o próprio Sol que desde então<br />
nunca mais se destapou, e queimando todo o chão de tal modo que nenhuma ervinha voltou ali a nas-<br />
cer.<br />
Todos partiram e nunca mais se soube notícias deles. Todos, excepto a família de Iblís, que ali<br />
ficou com a missão de guar<strong>da</strong>r os seus primos enclausurados por detrás <strong>da</strong> porta de metal amarelo. E<br />
assim aconteceu durante gerações, até sozinho de todos os guardiões que o antecederam só ele restar.<br />
Terminou aquela sua história cabisbaixo, numa ampla sala, sentando-se numa cadeira alta feita<br />
a partir <strong>da</strong> rocha <strong>da</strong> própria parede, com todos os outros atentos a escutarem as suas palavras aos seus<br />
pés.<br />
- Os primos – era com aquele diminutivo que os Draquiôs usualmente designavam os Primitili-<br />
vos – an<strong>da</strong>m muitos irrequietos ultimamente! Nunca os vi assim. – suspirou o guardião.<br />
- São eles a causa dos tremores que se sentem por to<strong>da</strong> a <strong>selva</strong>? – arriscou o elefante quase<br />
numa conclusão para o mistério que os levara até ali.<br />
- Temo que sim. – respondeu Iblís. – E sem a porta, não estou seguro que a minha magia os<br />
consiga conter durante muito tempo.<br />
Então, imponente o leão deu um passo em frente, declarando:<br />
- A culpa foi nossa, aju<strong>da</strong>remos no que podermos.<br />
- Oh sim, a vossa aju<strong>da</strong> ser-me-á preciosa! – o anfitrião sorriu ou tentou fazê-lo, mostrando pela<br />
primeira vez a todos os seus convi<strong>da</strong>dos ali presentes o seu longo e aguçado par de dentes caninos.<br />
Daquela maneira, sob a orientação do guardião, os animais acompanhados por Micael dividi-<br />
ram-se em tarefas, umas mais pesa<strong>da</strong>s e outras de maior perícia, que atravessaram vários dias e até<br />
algumas semanas embora lhes parecesse por vezes que haviam passado meses ali enfiados debaixo <strong>da</strong><br />
terra.<br />
Para enganar a fome, durante todo esse período que passava tão lento, comendo apenas alguns<br />
cogumelos que por ali na esquina de certas paredes cresciam e bebendo de fontes mornas que perto<br />
desses jorravam.<br />
E enquanto o tempo passava devagarinho (assim parecia), uns escavam em determina<strong>da</strong>s gru-<br />
tas, que se ligavam por esguios corredores àquele palácio subterrâneo, em busca de mais pedras amare-<br />
las; alguns faziam grandes fogos nos quais as derretiam e depois nelas martelavam <strong>da</strong>ndo àquilo nova<br />
forma; outros escreviam no metal ain<strong>da</strong> quente estranhas palavras que nem sequer compreendiam.<br />
Eis como passaram eles os dias, e as noites nas quais apenas ora uns ora outros umas poucas<br />
horas dormiam.<br />
o
Apenas Sílvia e André na<strong>da</strong> faziam. A serpente por não ter patas, tão necessárias para qualquer<br />
<strong>da</strong>queles trabalhos; o macaco, talvez injustamente, por os outros não verem nele qualquer habili<strong>da</strong>de<br />
excepto para as artes de fazer a todos rir, coisa que o deixou triste por sinal!<br />
O bobo passou então a acompanhar Avelina na sua recuperação sempre vigia<strong>da</strong> por Samael,<br />
que à medi<strong>da</strong> que li<strong>da</strong>va com eles se mostrava ca<strong>da</strong> vez menos carrancudo ain<strong>da</strong> que nunca tivesse o ar<br />
simpático e afável do outro conselheiro.<br />
A saúde <strong>da</strong> avestruz foi motivo de grande alegria e até de incentivo para os seus companheiros;<br />
apesar de ter perdido as suas lin<strong>da</strong>s penas doira<strong>da</strong>s e a habili<strong>da</strong>de de voar (não só para sempre, como<br />
também tal aconteceria com os seus filhos e filhos dos seus filhos ain<strong>da</strong> por chocar), conseguira sobre-<br />
viver e melhorava de dia para dia graças ao cui<strong>da</strong>dos do Mensageiro.<br />
Enquanto isso, sem ter com que se entreter, Sílvia Pente limitava-se a passear por aquele outro-<br />
ra faustoso lugar descobrindo entre escombros novos caminhos e salas que guar<strong>da</strong>va só para si, não<br />
por especial qualquer malícia e sim porque principalmente a maioria dos seus parceiros de aventura<br />
estava demasia<strong>da</strong>mente ocupa<strong>da</strong> para sequer a ouvir e ela não queria empatá-los com tais insignificân-<br />
cias.<br />
Porém durante o <strong>último</strong> desses seus passeios viu-se por mero acaso a ir parar diante duma jane-<br />
la que <strong>da</strong>va para a sala onde estava esculpido o trono no qual Iblís muitas vezes usava repousar. E lá<br />
estava ele, acompanhado por <strong>Leôncio</strong> numa estranha conversa.<br />
Corriam rumores que, talvez aconselhado por Micael, o <strong>rei</strong> havia pedido ao guardião que lhe<br />
ensinasse a sua língua, para que se algum dia fosse necessário pudesse lançar feitiços de protecção<br />
contra os seus terríveis primos, e que o anfitrião havia cedido a tal petição ensinando-lhe num ápice o<br />
seu misterioso idioma através dum miraculoso encantamento.<br />
O que ambos desconheciam (ou simplesmente se esqueceram), para além <strong>da</strong> presença dissimu-<br />
la<strong>da</strong> ali <strong>da</strong> serpente, foi que ela própria descendia dumas <strong>da</strong>s poucas linhagens de dinossáurios que<br />
haviam decidido lutar ao lado dos Mensageiros contra a tirania dos seus <strong>rei</strong>s que também os oprimiam<br />
forçando-os à servidão nos seus imponentes castelos, e que por isso tal como acontecera com os seus<br />
pais e avós aprendera secretamente a tradição de falar aquele dialecto maldito esquecido por todos os<br />
outros animais que viviam à superfície e nos mares. E o que ela ouviu, perturbou-a tanto que logo<br />
apressou-se a confiar nos únicos ouvidos que tinham vagar e até, de certo modo cortesia, suficiente<br />
para a escutar.<br />
- O <strong>rei</strong> só pode estar enfeitiçado para concor<strong>da</strong>r com tão malévolo acordo. – exaltou-se André,<br />
surpreendendo a própria serpente que nele acabara de confiar a conversa secreta que sem querer espia-<br />
ra.<br />
p
- Enfeitiçado ou não, alguém tem que impedir tal tratado. – olhou-o séria. – Eu como vês sem<br />
patas pouco posso fazer, e ninguém mais tem tempo para me ouvir… atarefados que estão com a inau-<br />
guração <strong>da</strong> nova porta para amanhã. Só restas tu!<br />
- Eu?! – André estremeceu, cheio de medo e com boas razões para tal. – Sou um mero bobo, só<br />
sei fazer rir, todos sabem disso; na<strong>da</strong> posso contra um <strong>rei</strong> e um feiticeiro!<br />
- És deles o mais ágil, e vi que apesar <strong>da</strong> tua fraca aparência és também mais corajoso do que a<br />
maioria, quando tentaste proteger Avelina do ataque dum dos vis primos de Iblís. Se algum animal<br />
pode contra um <strong>rei</strong> e um feiticeiro és tu.<br />
- Mas… – ain<strong>da</strong> tentou em vão o pobre macaco hesitar.<br />
- Não há tempo para mais discussões. – repreendeu-o a serpente. – Tenta<strong>rei</strong> ensinar-te o pouco<br />
que sei, e preparar-te-ei o melhor que puder para que amanhã possas impedir que tamanha desgraça se<br />
abata sobre todos nós. – e concluiu entregando-lhe uma espa<strong>da</strong> doira<strong>da</strong> que trazia enrola<strong>da</strong> pela ponta<br />
<strong>da</strong> sua cau<strong>da</strong> e que descobrira por acaso numa <strong>da</strong>s suas explorações solitárias por aquelas catacumbas;<br />
espa<strong>da</strong> essa que relutantemente ele aceitou, assim firmando eles também o seu próprio pacto.<br />
Após tanto trabalho árduo a porta estava finalmente pronta e meti<strong>da</strong> nas suas respectivas<br />
dobradiças, faltando apenas o feitiço final para a poder fechar e de novo aquele tenebroso abismo com<br />
ela se encerrar.<br />
Todos se reuniram à frente dela para a realização <strong>da</strong>quela cerimónia. Embora amedrontados,<br />
foram assegurados por <strong>Leôncio</strong> e por Iblís de que o feitiço que repelia os primos ain<strong>da</strong> vigorava por<br />
enquanto e portanto não haveria razão para temer nenhum ataque.<br />
O guardião com o seu bastão era quem mais à frente estava, por trás dele colocou-se o <strong>rei</strong> e os<br />
seus conselheiros, e numa terceira fila os restantes animais. Todos encarando aquele buraco negro com<br />
respeito e terror nos seus espíritos. Tal era o caso que ninguém, excepto Sílvia que deles era a única<br />
que de facto de tudo de antemão sabia, reparou na ausência do bobo, que entretanto com muitas acro-<br />
bacias e malabarismos conseguira de espa<strong>da</strong> na mão encarrapitar-se numa saliência rochosa que oculta<br />
naquelas misteriosas sombras fazia de varan<strong>da</strong> sobre todos eles, sem que nenhum desse conta de tal<br />
feito.<br />
E sem muitas mais demoras e preceitos, Iblís de braço estendidos para o abismo começou a<br />
entoar o encantamento que encerraria de novo a pesa<strong>da</strong> porta doira<strong>da</strong>, que ao som <strong>da</strong>s suas palavras<br />
canta<strong>da</strong>s iniciou o seu deslizar pelo chão até cumprir a sua função.<br />
A meio de tal cantoria surgiu de súbito uma rodela de vento como um muro mágico envolvendo<br />
na sua protecção o quarteto que se encontrava mais próximo <strong>da</strong>quela abertura tenebrosa, enquanto nela<br />
se amontoavam vários pontinhos que reluziam como labare<strong>da</strong>s olhando vorazes e ferozes para aqueles<br />
que tentavam novamente encarcerá-los.<br />
q
Os Mensageiros desprevenidos olharam com surpresa para o <strong>rei</strong> que na<strong>da</strong> parecia surpreendido<br />
com aquela surpreendente reviravolta. Enquanto isso várias bocarras ameaçavam sair em breve por<br />
aquela abertura indo esfomea<strong>da</strong>s em direcção <strong>da</strong>quela despreveni<strong>da</strong> plateia que prometia incauta tor-<br />
nar-se na sua mais recente refeição.<br />
- O que se passa? O que é que fizeste? – Micael interrogou <strong>Leôncio</strong>, sem tentar disfarçar a sua<br />
acusação nem a sua desilusão.<br />
- Eu sou o <strong>rei</strong>, tenho que velar por to<strong>da</strong> a <strong>selva</strong>. – ripostou o leão. – Iblís explicou-me que os<br />
tremores só cessarão se conseguir alimentar de vez em quando os seus primos.<br />
reprimen<strong>da</strong>.<br />
- Eles são carnívoros! – <strong>da</strong>quela vez foi Samael quem exclamou escan<strong>da</strong>lizado, em jeito de<br />
- Sim, eu sei. – confirmou o monarca. – Mas o que são umas quantas vi<strong>da</strong>s, se isso assegurar o<br />
bem de todos os outros?<br />
- Enlouqueceste! – protestaram ambos os Mensageiros, enquanto tentavam em vão voar para<br />
irem em socorro dos seus restantes companheiros que ali aguar<strong>da</strong>vam confiantes sem noção <strong>da</strong>quele<br />
perigo iminente. Em vão, pois aquele vento mágico que os protegia também lhes tol<strong>da</strong>va as asas e as<br />
pernas impedindo-os que se movessem <strong>da</strong>li.<br />
r
De repente (excepto para a serpente), um vulto caído aparentemente do tecto às cambalhotas<br />
empunhando uma espa<strong>da</strong> brilhante aterrou às cavalitas do feiticeiro desprevenido, e num só golpe<br />
decepando-lhe o topo do bastão que acabou rolando sem cessar pelo soalho até tombar abismo adentro.<br />
Desesperado e desequilibrado pelo novo salto do macaco, <strong>da</strong>quela vez dos seus ombros para o<br />
solo, Iblís já sem a protecção <strong>da</strong> sua muralha mágica correu atrás <strong>da</strong> relíquia rolante acabando também<br />
ele por tropeçar e cair pelo negrume abaixo, num berro aterrado que gelou a alma de quantos o ouvi-<br />
ram e jamais o esqueceriam.<br />
Enquanto isso tudo acontecia, André ain<strong>da</strong> conseguiu gritar em plenos pulmões para que os<br />
outros animais aju<strong>da</strong>ssem a fechar a porta antes que fosse tarde demais.<br />
Sílvia junto aos restantes confirmou-lhes as intenções e a traição do <strong>rei</strong>, implorando-lhes para o<br />
bem de todos que seguissem as instruções do macaco.<br />
Muitos sem compreenderem na<strong>da</strong> do que se passava, ain<strong>da</strong> hesitaram, pois no final de contas<br />
estavam a pedir-lhes que confiassem num bobo em vez dum <strong>rei</strong>.<br />
Essa demora permitiu que uma primeira bocarra esfomea<strong>da</strong> se atrevesse a escapulir do seu cati-<br />
veiro milenar indo veloz em direcção ao primeiro animal com o qual se deparou; que naquele caso por<br />
acaso era André, que com uma rápi<strong>da</strong> pirueta saltitona se desviou do perigo no derradeiro momento,<br />
indo aquela boca acabar por abocanhar o aterrado leão que dum momento para outro se viu diante de<br />
tal terror sem na<strong>da</strong> poder fazer, tendo já sido abandonado pelos seus conselheiros que haviam regres-<br />
sado o mais rápido que puderam para junto dos restantes animais. E foi assim que <strong>Leôncio</strong>, o <strong>último</strong><br />
<strong>rei</strong> <strong>da</strong> <strong>selva</strong>, foi devorado dum só trago!<br />
Incentivados pelos Mensageiros a ouvirem os avisos <strong>da</strong> serpente, todos se precipitaram num<br />
misto de coragem e receio para a porta de forma a fechá-la recorrendo ao uso <strong>da</strong> força.<br />
Apenas o bobo não o fez dessa vez, encarregado que fora antes por Sílvia com a missão de ficar<br />
defronte àquele fosso negro a recitar um feitiço que ela o obrigara a decorar para recambiar os primos<br />
de Iblís de regresso às profundezas <strong>da</strong> sua prisão enquanto tal era finalmente encerra<strong>da</strong>.<br />
Mal ele começou a proferi-las, todos aqueles olhinhos vermelhos cessaram de brilhar ávidos<br />
por entre o vazio escuro que era a sua moradia havia anos sem fim, e ouviram-se uivos lancinantes tão<br />
desesperados e ruins que fizeram estremecer to<strong>da</strong>s as robustas paredes <strong>da</strong>quela caverna. Mesmo a<br />
bocarra que devorara o <strong>rei</strong> foi arremessa<strong>da</strong> de regresso e sem apelo à escuridão donde fugira.<br />
O macaco exausto só concluiu a sua cantilena quando diante de si restava apenas uma pequena<br />
fresta por se fechar. To<strong>da</strong>via logo que se calou algo cheio de fúria se revolveu no abismo rosnando e<br />
embatendo violento contra o metal amarelo que então se encerrava em definitivo sobre si, e ain<strong>da</strong> foi a<br />
tempo de lançar uma bola de fogo que certeira embateu em André, provocando a sua brutal e letal<br />
que<strong>da</strong> ao chão.<br />
Só no fim <strong>da</strong> tarefa concluí<strong>da</strong> e <strong>da</strong> tranca a custo pelos Mensageiros devi<strong>da</strong>mente coloca<strong>da</strong>, é<br />
que todos se aperceberam do corpo do seu inesperado herói caído e correram todos para ele na espes
ança demasiado tardia de o poderem socorrer tal como acontecera com Avelina. Mas <strong>da</strong>quela vez<br />
na<strong>da</strong> havia a fazer, aquele que os salvara a todos jazia já morto!<br />
Embora esgotados os Mensageiros em conjunto conseguiram ain<strong>da</strong> conjurar uma magia que<br />
levou a todos para fora <strong>da</strong>quele lugar de mau agoiro.<br />
Sempre que realizavam determinados actos mágicos mais elaborados os seus corpos enfraque-<br />
ciam bastante, por vezes para jamais se recuperarem.<br />
Portanto o resto do caminho foi feito a pé (já bem longe <strong>da</strong> maldita região <strong>da</strong>s Caves Fun<strong>da</strong>s),<br />
cabendo a Sá Vale a honra de transportar o corpo do pobre e corajoso bobo no seu dorso. Assim ladea-<br />
do por Samael e Micael o cavalo caminhava à frente de todos, o que suscitava cochichos e mexericos<br />
em quem assistia ao regresso <strong>da</strong>queles heróis valentes à <strong>selva</strong>… e para mais sem o <strong>rei</strong>!<br />
Ninguém sabia ao certo o que acontecera, mas o facto era que a terra parara de tremer. (Nem<br />
entre si os aventu<strong>rei</strong>ros regressados conseguiam explicar aquele sortudo desfecho; talvez por enquanto<br />
os primos de Iblís estivessem entretidos demais a atormentar o seu antigo carce<strong>rei</strong>ro para se preocupa-<br />
rem em tentarem de novo se libertar!)<br />
Entretanto por portas e travessas a incrível história do heroísmo <strong>da</strong>quele bobo contra a traição<br />
desprezível do <strong>rei</strong> foi correndo de boca em boca e de bico em bico, e a multidão que os via passar cres-<br />
cia a ca<strong>da</strong> dia passado começando-se já a ouvir cânticos de louvor àquele macaco caído e vozes contra<br />
ao trono ser de novo entregue a qualquer felino.<br />
Quando por fim a procissão chegou ao lou<strong>rei</strong>ro real, já to<strong>da</strong> a Terra se arriscava à beira duma<br />
nova guerra pela coroa agora vaga.<br />
t
- É curioso, mas quem melhor podia evitar mais este conflito que se adivinha jaze aqui. - sus-<br />
surrou Samael para Micael enquanto ambos vigilavam o corpo de André naquela noite de luar à beira<br />
<strong>da</strong> árvore dos <strong>rei</strong>s, junto à qual seria enterrado no dia seguinte com to<strong>da</strong> a pompa que lhe era mereci<strong>da</strong>.<br />
- Irmão nem em tal penses. – alarmou-se Micael com o rumo <strong>da</strong>quela conversa. – Sabes que<br />
mais do que ninguém o quanto eu o estimava, enquanto muitas vezes tu próprio franzias dele o sobro-<br />
lho, mas não podemos interferir assim na natureza. Ressuscitá-lo seria um custo demasiado grande<br />
para nós!<br />
- Quem outro <strong>rei</strong> será então aceite sem guerras que não ele?! – insistiu aquele que dos dois<br />
parecia ser o mais velho e porventura o mais sensato.<br />
- Estamos à tempo demais neste planeta sempre à beira duma nova luta… mais vale desistir e<br />
voltar para casa; além disso tu ouviste Iblís, há um novo inimigo que subiu aos céus, temos que avisar<br />
os nossos irmãos se já não for demasiado tarde. – retorquiu o de aspecto mais jovial.<br />
- Parte então, eu fico. – afirmou Samael para Micael. – Este simples macaco, tantas vezes tão<br />
pateta e tolo, reacendeu de novo a esperança em mim; pois se até um bobo pode elevar-se sobre um <strong>rei</strong><br />
a herói, que grande potenciali<strong>da</strong>de para feitos magníficos há oculta nestes bichos!<br />
- Estás seguro do que dizes? Pois se fizeres aquilo que me propões jamais poder-te-ás juntar a<br />
nós, ficarás para sempre encalhado aqui… até quem sabe pelas Eras definhares.<br />
- Eu sei, e mesmo assim fá-lo-ei.<br />
Foi <strong>da</strong>quele modo que ao nascer do Sol, os animais que vinham assistir ao funeral do herói,<br />
cheios de espanto e assombro o encontraram reanimado e acompanhado apenas por Samael, que<br />
depois muitos notaram ter um semblante mais cansado e encarquilhado do que antes alguma vez tivera<br />
e as suas costas dobrando-se agora numa suave corcun<strong>da</strong>.<br />
Também André regressara diferente. Não só de corpo: sem pêlo nem cau<strong>da</strong>, sem a anterior agi-<br />
li<strong>da</strong>de e muitas dores ao an<strong>da</strong>r, com Sá Vale obtendo a honra de o transportar escanchado nas suas<br />
fortes costas sempre que um trajecto mais longo tal o exigia. Mas também de espírito: tristonho, e cau-<br />
teloso, passou temer dormir ao ar livre preferindo por qualquer estranha razão dormir em cavernas à<br />
luz de fogueiras acesas. Consigo an<strong>da</strong>va sempre a espa<strong>da</strong> doira<strong>da</strong>, a qual nunca mais largara.<br />
Mesmo assim foi eleito <strong>rei</strong>, e durante anos <strong>rei</strong>nou sozinho. Até que um dia conheceu uma<br />
macaca de nome Evelina, que, apesar de to<strong>da</strong>s as deformações, se compadeceu <strong>da</strong>s suas maleitas e ao<br />
aproximar-se dele melhor o conheceu e por si se apaixonou. Ele retribuiu o inesperado afecto, fazendo<br />
dela sua rainha.<br />
Deles nasceram nove filhos e filhas. Todos her<strong>da</strong>ndo os defeitos e feitios do pai, e algum do<br />
cabelo e vigor <strong>da</strong> mãe. O mesmo aconteceu com os seus netos e os bisnetos dos seus trisnetos, que já<br />
não diziam ser descendentes dos Simões e sim <strong>da</strong> muito nobre família dos Andrinos…<br />
∴<br />
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- … que mais tarde com as voltas que a língua dá na boca acabariam por se chamar Homens. –<br />
sorriu o professor António aos seus alunos. – E foi este o advento <strong>da</strong> nossa Era!<br />
- E os dragões, e os dragões!?? – perguntaram algumas <strong>da</strong>s crianças mais afoitas.<br />
- Sim… ! – respondeu-lhes paciente por detrás dos seus óculos, passando a mão pela testa já<br />
calva. – eventualmente os primos de Iblís conseguiram libertar-se <strong>da</strong> sua prisão, e tal foi essa fuga que<br />
a Terra ficou parti<strong>da</strong> em cinco continentes e mais uns quantos oceanos, apartando assim os Nove Rei-<br />
nos do Homem. E muitos mais <strong>da</strong>nos causaram tão vis criaturas antes de serem novamente conti<strong>da</strong>s<br />
noutro lugar. Mas isso é já outro conto para outro dia contar!<br />
Fim<br />
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