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OOOOlsa lsa<br />
A <strong>Morte</strong> <strong>do</strong> <strong>Imortal</strong><br />
1
Documento II<br />
O Messias Negro<br />
2
Introdução<br />
Já muito se escreveu sobre essa tão vital figura da Pós-História;<br />
como é, também, hábito, por várias vezes se fundiu a lenda aos sóli<strong>do</strong>s<br />
factos históricos(uso aqui a palavra «históricos», embora se trate<br />
duma realidade pós-histórica, porque assim foi convenciona<strong>do</strong> na recen-<br />
te “15ª Assembleia de Cronistória<strong>do</strong>res das Quatro Humanidades” reali-<br />
zada em Nephpólis, a capital da Água).<br />
Tentarei portanto, após uma demorada e intensamente exaustiva<br />
pesquisa que atravessou milhares de <strong>do</strong>cumentos(alguns bem raros e não-<br />
escritos), reunir todas as informações obtidas; e, depois de uma fil-<br />
tragem lógica, elaborar, num único corpo escrito, o mais verosimilhan-<br />
te relato sobre esse enigmático homem(que tantas e múltiplas obras<br />
inspirou).<br />
Irei focar este meu <strong>do</strong>cumento nas áreas ainda pouco aprofundadas,<br />
e talvez mesmo negligenciadas, da sua vida. Estudarei as suas raízes,<br />
ou seja, os anos anteriores à sua fama e Poder. Debruçar-me-ei sobre<br />
aquilo que provocou toda a sua forma de ser e pensar. Talvez assim se<br />
ilumine e explique melhor o porquê dessa gigantesca personagem da nos-<br />
sa Pós-História… as razões de agir desse Ser, cujo nome, para alguns,<br />
é sinónimo <strong>do</strong> próprio Mal, e para outros, é objecto de venerável sal-<br />
vação. Jamais surgira uma pessoa histórica tão controversa, e ainda<br />
tão mal estudada!<br />
Espero que esta obra traga, de alguma forma, um maior ganho de<br />
conhecimentos historicamente váli<strong>do</strong>s, e sirva, pelo menos, para cla-<br />
3
ear um pouco da névoa mítica(e muitas vezes errónea e distorcida) que<br />
envolve essa polémica figura.<br />
Mas, que se note bem… eu não preten<strong>do</strong> gerar neste meu trabalho<br />
quaisquer juízos de valor sobre esse homem; não o condenarei, nem o<br />
redimirei, apenas serei um relator de factos(e que eles se expressem<br />
por si!, é o meu único desejo e motivo). Deixo todas essas avaliações<br />
para quem me ler.<br />
Exposto isto, irei agora começar esta narrativa(que espero inte-<br />
ressar a alguém).<br />
Antes porém, criarei um cenário de fun<strong>do</strong> cronistórico, para que<br />
assim haja uma melhor compreensão daquela sociedade onde ele viria a<br />
emergir e moldar à sua vontade.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, iniciarei o conto histórico <strong>do</strong>s primeiros anos daque-<br />
le que hoje é, por to<strong>do</strong>s nós, reconheci<strong>do</strong> pelo nome «Baal»!.<br />
4
Prefixos<br />
5
Idades<br />
O mítico reino de Andrêas(nome, de forte carácter mitológico,<br />
traduzível como o «Filho <strong>do</strong> Homem», sen<strong>do</strong> este «Homem» outra forte re-<br />
ferência mitificada relacionável com os próprios pais daquele adminis-<br />
tra<strong>do</strong>r, que tinham uma curiosa semelhança de nomes, ou seja, chamavam-<br />
se André e Andreia), soma<strong>do</strong> à sua longa descendente dinastia, durou<br />
aproximadamente mil-cento-e-oito anos. Durante aquele longo perío<strong>do</strong> a<br />
Humanidade ignorou todas as suas vocações de exploração <strong>do</strong> Sistema-<br />
Solar, e focou as suas exclusivas atenções na sua reabilitação sobre a<br />
superfície da Terra.<br />
Aquele administra<strong>do</strong>r havia herda<strong>do</strong>, da sua mãe, um planeta total-<br />
mente devasta<strong>do</strong> por uma brutal guerra. A Humanidade sobrevivente<br />
enfrentava agora sérios problemas de subsistência. To<strong>do</strong> o ecossistema<br />
terrestre fora aniquila<strong>do</strong> por poderosas armas.<br />
Era necessário recriar tu<strong>do</strong>!<br />
As leis então criadas visavam, a par <strong>do</strong> problema ecológico, o<br />
restabelecimento <strong>do</strong> antigo mo<strong>do</strong>-de-vida, ou seja, a Utopia, que assen-<br />
tava na única necessidade de satisfazer o Homem(integra<strong>do</strong> obviamente<br />
na Natureza!). Foi, por isso, uma época de unidade e esforça<strong>do</strong> pro-<br />
gresso(talvez, por isso, os antigos historia<strong>do</strong>res denominavam aquele<br />
Tempo, apesar de tu<strong>do</strong>, como a «Idade Doirada»; que, numa vertente mais<br />
6
actualizadamente contemporânea e cronistórica, é reconhecida como «o<br />
perío<strong>do</strong> andrísiano»).<br />
∴<br />
A pouco e pouco, a Terra recuperava das suas feridas, e com ela<br />
florescia uma nova e pacificada Humanidade.<br />
Renovadas cidades cobriram o horizonte. Vidas emergiram <strong>do</strong> já es-<br />
queci<strong>do</strong> caos.<br />
A Utopia renasceu.<br />
Andrêas(embora seja um facto apenas comprova<strong>do</strong> por mitos tradi-<br />
cionais) faleceu com duzentos-e-quarenta-e-três anos; e foi sucedi<strong>do</strong><br />
por um neto dum neto dum filho seu, que usou o nome de «Lúcius»(«o<br />
filho… », ou neste caso «o descendente…», «… de Lúcio», que era o<br />
materno avô a<strong>do</strong>ptivo de Andrêas, e que fora julga<strong>do</strong> morto, em conjunto<br />
com André, antes dele nascer), e que deu prolongamento às leis <strong>do</strong> seu<br />
antecessor. (Claro que aqui nota-se uma escassez de factos, apenas<br />
sen<strong>do</strong> possível preenchê-la com lendas e mitos pouco realistas e que<br />
tendem para a abstracção <strong>do</strong>s acontecimentos históricos.)<br />
O ecossistema terrestre fora finalmente recupera<strong>do</strong>, e a Humanida-<br />
de vivia a sua mais abundante e inspirada Era.!<br />
Aquela Idade Doirada durou até à morte prematura, e sem descen-<br />
dência directa e legítima, de Andromos, que era filho <strong>do</strong> polémico ad-<br />
ministra<strong>do</strong>r Jilucião, e que foi assim o último da sua dinastia.<br />
A vaga aberta na administração-terrestre provocou vários confli-<br />
tos, e criaram-se divisões de lealdade na população da Terra.<br />
Uma curta e rápida batalha impôs Drugíliux como o reconheci<strong>do</strong> su-<br />
cessor, mas o seu reina<strong>do</strong> durou raros anos, e a ele substituíram-se<br />
outros igualmente caducáveis administra<strong>do</strong>res, que serviram somente<br />
para gerar uma ondulante e crescente instabilidade social.<br />
7
Por fim, veio a guerra declarada, que inflamou e infectou to<strong>do</strong> o<br />
planeta durante três gerações.<br />
Quan<strong>do</strong> a paz veio, pelo temor vivo e consciente de uma repetente<br />
catástrofe ecológica, a Terra encontrou-se dividida em desiguais par-<br />
celas de espaço denominadas pelo apeli<strong>do</strong> de «países».<br />
Fora um regresso aos primórdios da História, onde pedaços da Hu-<br />
manidade viviam conti<strong>do</strong>s em irregulares boca<strong>do</strong>s de solo, pelo qual ir-<br />
racionalmente lutavam e morriam. Assim o conceito de «administra<strong>do</strong>r»<br />
esvaiu-se naquela nova época, dan<strong>do</strong> lugar a uma agressiva multidão de<br />
«rula<strong>do</strong>res»(esta palavra deriva claramente dum arcaísmo <strong>do</strong> idioma que<br />
por aquela altura abrangia toda a Terra, e que era um descendente da<br />
antiga Língua Inglesa; e significa «aqueles que produzem regras» ou<br />
«aqueles que governam», haven<strong>do</strong> uma óbvia sobreposição dessas duas<br />
funções administrativas).<br />
Foi daquele mo<strong>do</strong> inaugura<strong>do</strong> um Tempo de ocasionais relativamente<br />
pequenas guerrinhas entre países, que ora se assimilavam uns aos ou-<br />
tros, ora se repartiam internamente forman<strong>do</strong> novos Esta<strong>do</strong>s-Soberanos.<br />
A ciência e as artes viram-se limitadas a aumentar e a aperfei-<br />
çoar o poder bélico que cada rula<strong>do</strong>r dispunha para triunfar sobre o<br />
seu vizinho mais fraco.<br />
Àquela época foi então da<strong>do</strong> o nome de «Idade Neomediéval», pelas<br />
infelizes coincidências que existiam entre as duas épocas históricas.<br />
8
O 2 Fim-<strong>do</strong>-Mun<strong>do</strong><br />
A Idade Neomediéval prolongou-se por <strong>do</strong>is longos milénios, sem<br />
qualquer forma de progresso científico digno de nota, numa sociedade<br />
regressiva.<br />
Fora um perío<strong>do</strong> de perseguições a hereges(pessoas sem vínculos a<br />
nenhuma pátria) que usavam pacificamente a ciência para tentar redes-<br />
cobrir o que a Humanidade esquecera; de guerras em nomes <strong>do</strong>s rula<strong>do</strong>-<br />
res, que cada vez mais se aproximavam <strong>do</strong> estatuto de «divindade»; de<br />
lutas e intrigas internas pela conquista <strong>do</strong> poder régio; de uma litur-<br />
gia <strong>do</strong>gmaticamente nacionalista, que destruía tu<strong>do</strong> o que lhe era dife-<br />
rente. Fora um perío<strong>do</strong> verdadeiramente obscuro e autoritário!.<br />
Na sua última fase, estoirou uma tremenda guerra envolven<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s<br />
os países, como o infeliz culminar de uma agressiva ideologia fundada<br />
no Me<strong>do</strong> e de pólo egocêntrico.<br />
∴<br />
Aquele conflito mundial durava já havia oitenta-e-quatro anos,<br />
quan<strong>do</strong> foi abruptamente termina<strong>do</strong> por algo imprevisto e externo.<br />
Pelas profundezas <strong>do</strong> Sistema-Solar avançara, lentamente através<br />
de milénios de milénios, uma titânica massa rochosa numa casual e se-<br />
creta rota de colisão com a Terra. Já havia passa<strong>do</strong> por Marte, e en-<br />
contrava-se perto das re<strong>do</strong>ndezas da Lua. A sua velocidade ia-se multi-<br />
plican<strong>do</strong> por si própria, à media que se sentia mais próxima da atrac-<br />
tiva força solar.<br />
9
Os Homens na superfície terrestre, entreti<strong>do</strong>s na sua guerra fra-<br />
tricida, notaram demasiadamente tarde aquele celestial corpo mortífe-<br />
ro. Então, na sua ignorante ganância soberba, apenas se mostraram pre-<br />
ocupa<strong>do</strong>s em desviá-lo <strong>do</strong> céu <strong>do</strong>s seus próprios países. Assim, sem co-<br />
nhecerem nem discutirem uma estratégia com os seus vizinhos, dispara-<br />
ram loucamente potentes mísseis contra aquela ameaça<strong>do</strong>ra rocha espa-<br />
cial.<br />
O resulta<strong>do</strong> foi obviamente péssimo!. As intensas e desordenadas<br />
explosões serviram apenas para fragmentar a tremenda rocha, em múlti-<br />
plos pedaços, que devi<strong>do</strong> ao seu reduzi<strong>do</strong> tamanho foram mais fácil e<br />
rapidamente atraí<strong>do</strong>s pela gravidade terrestre.<br />
Algumas das maiores rochas embateram violentamente no solo, arra-<br />
san<strong>do</strong> vários milhares de quilómetros em seu re<strong>do</strong>r; enquanto que a mai-<br />
oria, composta por relativamente pequenos pedaços rochosos, se desfez<br />
ao entrar na atmosfera. Inúmeros países ficaram em completas ruínas;<br />
uma onda de gigantescos terramotos e maremotos varreu to<strong>do</strong> o planeta,<br />
despertan<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>rmecida fúria <strong>do</strong>s vulcões.<br />
Foi o lógico fim da guerra. Com a urgência de sobreviver, o Homem<br />
finalmente aban<strong>do</strong>nou a perversa noção obsoleta de «países».<br />
Mas o pior ainda estaria para vir! Ao se fundirem com os gases<br />
atmosférico, os alienígenas elementos químicos da rocha deram origem a<br />
uma nova substância(mais tarde denominada por «aquapiro», ou seja,<br />
«água-de-fogo») que cobriu, em pesadas e densas nuvens acastanhadas,<br />
to<strong>do</strong> o firmamento; contribuin<strong>do</strong> daquele mo<strong>do</strong> para aumentar o já grave<br />
efeito-de-estufa vulcânico.<br />
Meses depois ocorreu a precipitação. Toda a gente esperava que a<br />
chuva aliviasse a escaldante temperatura, que ameaçava arder toda a<br />
Terra; mas infelizmente o que choveu não serviu as suas intenções!.<br />
10
Não era água, o que caia das nuvens; mas, sim, um estranho fogo,<br />
que tu<strong>do</strong> devorava, comportan<strong>do</strong>-se como algo líqui<strong>do</strong>, inun<strong>do</strong>u toda a<br />
Terra, que se converteu numa verdadeira tocha ardente.<br />
Os Homens nada puderam fazer para evitar a sua extinção; em pâni-<br />
co alguns gritavam ser aquele o prometi<strong>do</strong> «segun<strong>do</strong> fim-<strong>do</strong>-mun<strong>do</strong>», re-<br />
cordan<strong>do</strong> uma muito arcaica lenda religiosa da antiga cultura cristã, o<br />
que não favoreceu em nada qualquer acção para a solução daquela titâ-<br />
nica catástrofe.<br />
O fogo parecia consumir tu<strong>do</strong>, nada lhe era impermeável, não havia<br />
nenhum santuário de refúgio no planeta, e a Humanidade perdera a habi-<br />
lidade de habitar no Espaço… agora era tarde!<br />
Assim toda a Vida na Terra foi completamente eliminada!<br />
11
A Recriação<br />
Durante a «Última Guerra da História», ocorrida no final da Idade<br />
Neomediéval, um restrito número de hereges pacifistas, com iniguala-<br />
velmente altas habilitações tecno-científicas, decidira reunir-se se-<br />
cretamente numa base; e, preven<strong>do</strong> probabilisticamente um fatal desfe-<br />
cho para aquele tão insano Conflito, optara por partir para o exte-<br />
rior, aban<strong>do</strong>nar o violento planeta Terra.<br />
Assim refugiaram-se no, havia muito tempo aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, «Grande De-<br />
serto da Euro-Ásia»(área que no distante Passa<strong>do</strong> servira de solo aos<br />
densamente popula<strong>do</strong>s continentes europeu e asiático), para escaparem à<br />
atenta vigilância <strong>do</strong>s agressivos e brutos rula<strong>do</strong>res nacionalistas.<br />
Basean<strong>do</strong>-se na muitíssimo antiga Ciência Aero-Espacial, construí-<br />
ram uma estação-espacial, baptizada de Arga(é óbvia a fusão <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
arcaicos mitos que deram origem a este nome, o que aponta para uma re-<br />
lativa excepcionalmente alta cultura «policlássica» <strong>do</strong>s seus constru-<br />
tores), que abrangia o <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> tamanho de «Alfânia»(o maior país da<br />
Terra, naquela data), equipan<strong>do</strong>-a com uma auto-biosféra de bases arti-<br />
ficiais que garantia a sobrevivência humana no seu interior; e, utili-<br />
zan<strong>do</strong> os princípios mais básicos da Anti-Física, aplicada ao campo da<br />
gravidade, conseguiram elevá-la para além da gravitacional força ter-<br />
restre. Navegaram pelo «mar-solar»(designação linguística, já utiliza-<br />
da em épocas anteriores àquela, que engloba to<strong>do</strong> o Espaço interno <strong>do</strong><br />
Sistema-Solar), até ancorarem na órbita escaldante de Mercúrio, para<br />
12
daquele mo<strong>do</strong> optimizarem a recepção de energia da «Estrela-Mãe»(nome<br />
neomediévalista para «Sol»), que asseguraria a auto-suficiência de Ar-<br />
ga durante um ilimita<strong>do</strong> tempo.<br />
Antes da partida, os hereges acumularam, na estação-espacial, o<br />
máximo de sementes vegetais e animais(inclusive humanas) em «cronos-<br />
suspensão»(técnica datada <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> andrísiano, que consistia na de-<br />
saceleração radical <strong>do</strong>s sistemas orgânicos em relação à constante<br />
«Tempo», curiosamente esta cronotecno-teoria seria reutilizada na Era<br />
anterior à nossa época, por vontade <strong>do</strong> Cipu; embora alguns «intoleran-<br />
tistas» atribuam, como é seu uso, a culpa da sua invenção a Baal, o<br />
que num plano cronistórico é absolutamente ridículo!), juntamente com<br />
os cronumentos(<strong>do</strong>cumentos sócio-históricos representativos da evolução<br />
humana desde o seu bio-génesis até àquela data) que conseguiram recu-<br />
perar das apertadas mãos <strong>do</strong>s rula<strong>do</strong>res; para que a memória psico-<br />
genética da Terra não se perdesse para sempre nos destroços da Guerra.<br />
(Abro aqui esta pequena nota, para assinalar e reforçar a impor-<br />
tância daqueles cronumentos, sem os quais a Cronistória, a dramatizada<br />
narração explicativa e temporalmente lógica <strong>do</strong>s factos pré-históricos,<br />
históricos e pós-históricos, nunca poderia ter si<strong>do</strong> fundada; pois<br />
tu<strong>do</strong>, o que havia naquela época na esfera terrestre, deixou simples-<br />
mente de existir, toda a «humanosféra», «tu<strong>do</strong> o que continha referên-<br />
cias biológicas e tecno-culturais da presença humana na Terra», tu<strong>do</strong><br />
foi consumi<strong>do</strong> pela precipitação <strong>do</strong> aquapiro.)<br />
Os hereges deixaram, então, o seu planeta-natal; e a estação-<br />
espacial fixou-se na órbita mercúriana.<br />
Mais de meio século passara.<br />
∴<br />
13
As sondas de média-curta distância de Arga registaram o mega in-<br />
cêndio que ardia a crosta terrestre. Então uma nova missão foi insu-<br />
flada nas almas <strong>do</strong>s descendentes <strong>do</strong>s hereges que emigraram para a<br />
«“maré-solar” de Mercúrio»(órbita mercúriana e suas proximidades afec-<br />
tadas pela influência <strong>do</strong> seu campo gravitacional). Eram os únicos re-<br />
presentantes da Humanidade(à época, desconhecia-se a existência das<br />
restantes três Humanidades, que mais tarde, já no nosso Tempo, viriam<br />
a formar as «Quatro», o sistema tetrárquico que compõe o actual Impé-<br />
rio Humano), a eles pertencia agora toda a herança terrestre! Por<br />
aquele facto, decidiram regressar um dia à Terra e restaurar ali de<br />
novo a Vida. Aquilo converteu-se, no lento correr <strong>do</strong>s séculos, na Lei<br />
máxima em Arga. Tu<strong>do</strong> era feito ten<strong>do</strong> aquele ideal objectivo em mente!<br />
O aquapiro ardeu durante aproximadamente quinhentos anos, sobre o<br />
planeta. Por mais oitocentos anos prolongou-se o escaldante efeito-de-<br />
estufa na sua superfície.<br />
Quan<strong>do</strong>, por fim, a temperatura reequilibrou-se em níveis minima-<br />
mente sustentáveis para suportar o início duma humanosféra, os poten-<br />
tes motores de Arga roncaram trovejantes anuncian<strong>do</strong> o arranque da via-<br />
gem de regresso.<br />
∴<br />
Já, na Terra, a primeira tarefa <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s humanos foi a<br />
de reorganizar a atmosfera, de mo<strong>do</strong> a serem produzi<strong>do</strong>s os gases funda-<br />
mentais à biologia. Depois, sobre aquele ári<strong>do</strong> solo plano, onde apenas<br />
a poeira se movia animada por um violento vento, obrigaram a chuva a<br />
cair. Então fizeram implodir várias áreas da superfície, fazen<strong>do</strong> res-<br />
surgir um relevo terrestre; e, naquele momento, as águas, que corriam<br />
incessantemente de pesadas nuvens negras, reuniram-se nas novas zonas<br />
baixas, os novos oceanos, deixan<strong>do</strong> emergir áreas de chão rochoso, os<br />
14
novos continentes. Parou de chover, o Sol brilhou novamente sobre o<br />
planeta desértico, e surgiu um limpo firmamento «castanho-<br />
claríssimo»(uma pequena percentagem <strong>do</strong> aquapiro havia ti<strong>do</strong> os seus<br />
efeitos nocivos anula<strong>do</strong>s, ao ser perfeitamente assimilada pela antiga<br />
camada gasosa terrestre, e era aquilo que dava ao renova<strong>do</strong> céu aquela<br />
nova tonalidade).<br />
A seguir, as sementes a<strong>do</strong>rmecidas nos armazéns da ex-“estação-<br />
espacial” puderam germinar lentamente para a vida na Terra. Primeiro<br />
brotaram os vegetais, e algum tempo depois veio a fauna. A última eta-<br />
pa foi quan<strong>do</strong> um humano saiu finalmente de Arga e pisou aquele renova-<br />
<strong>do</strong> solo.<br />
Aquela época de reconstrução terrestre foi denominada de «Recria-<br />
ção»; e a Recriação quase alcançou a duração de sete séculos.<br />
Foi o penúltimo perío<strong>do</strong> da História.<br />
15
PÓS-HISTÓRIA<br />
Após a saída de Arga, a comunidade humana fixou-se em múltiplas<br />
relativamente pequenas cidades, dispersas pela superfície da Terra.<br />
Naquelas novas comunidades vigorava uma reformulada forma de aristo-<br />
cracia, a «aristegocracia»(algo que se assemelhava a uma Câmara-de-<br />
Sábios, um governo <strong>do</strong>s mentalmente superiores), que garantia a Paz e a<br />
Ordem em to<strong>do</strong> o planeta. Aquele regime durou alguns séculos.<br />
Em algumas cidades, mais afastadas <strong>do</strong> centro urbano-<br />
governamental, cujas populações haviam aumenta<strong>do</strong> quase até ao nível de<br />
saturação-demográfica, começaram a germinar curtas batalhas pela con-<br />
quista <strong>do</strong>s territórios vizinhos. Só muito mais tarde, aquela notícia<br />
deu-se a conhecer na capital <strong>do</strong>s Sábios; então, vozes descontentes com<br />
a eficácia daquele sistema-político fizeram-se ouvir altas, e rapida-<br />
mente to<strong>do</strong> o planeta foi invadi<strong>do</strong> por uma vaga de instabilidade social<br />
que ameaçava um violento motim mundial. Algo tinha que ser feito para<br />
evitar a ressurreição <strong>do</strong> Caos!<br />
Os Sábios reuniram-se durante várias semanas. A sua decisão le-<br />
gislativamente imperativa foi rapidamente comunicada por todas as ci-<br />
dades.<br />
A História acabara. Iniciou-se a Pós-História.<br />
∴<br />
A Lei da Incapacidade Autogovernativa Humana foi a solução para<br />
acalmar os agressivos ânimos. Após milénios de tentativas de aplicação<br />
16
de diversos sistemas-de-governação falha<strong>do</strong>s, era evidente que os huma-<br />
nos possuíam uma inabilidade inata para se autogerirem, e que o resul-<br />
ta<strong>do</strong> daquela mesma autogerência era inevitavelmente a Guerra.<br />
A «ComunArtifíciaLógica»(sede e nome de um grupo de sete hiper-<br />
computa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de inteligência artificialmente lógica) iria<br />
substituir a antiga Câmara-de-Sábios. Os seus programas, cria<strong>do</strong>s por<br />
seres humanos, assentavam apenas num único fundamento: satisfazer sus-<br />
tentavelmente as necessidades da Humanidade.<br />
A «Cal», como era vulgarmente designada, deveria ser uma forma de<br />
pré-governo preparatória, pois havia de transmitir to<strong>do</strong>s os seus da<strong>do</strong>s<br />
e funções administrativas a um Sistema Inteligente de Governo(um<br />
«Sig»), por ela própria construí<strong>do</strong> e programa<strong>do</strong>. Um Sig teria a dura-<br />
bilidade máxima de duzentos-e-cinquenta anos; e, no fim daquele prazo,<br />
transportaria toda a sua informação armazenada para uma nova e aper-<br />
feiçoada versão sua, criada por ele próprio, mas com uma inteligência<br />
independente <strong>do</strong> seu construtor(como uma forma de sucessão monárquica,<br />
uma dinastia de gigacomputa<strong>do</strong>res). Assim, cada novo Sig escolheria uma<br />
designação própria, e melhoraria a forma de gestão <strong>do</strong> seu antecessor,<br />
tentan<strong>do</strong> mais adequadamente servir a Humanidade de uma forma lógica e<br />
justa.<br />
A Cal existiu durante os primeiros trezentos-e-vinte-e-sete anos<br />
da Pós-História terrestre, e cedeu o seu lugar administrativo ao Orga-<br />
nismo Sintético de Administração Global, «Osag», o primeiro duma longa<br />
linha de «Sigues»(plural de «Sig»; ortografia previamente definida<br />
pela Cal); a ele seguiu-se o Iaagt, o Sagil, o Osag2, e o Sial.<br />
Aqueles foram os tempos da aurora <strong>do</strong>irada da Pós-História!<br />
17
A Anormalidade<br />
O «Computa<strong>do</strong>r de Inteligência Própria e Universal»(aqui a palavra<br />
«computa<strong>do</strong>r» deve ser analisada com um especial cuida<strong>do</strong>; no nono milé-<br />
nio <strong>do</strong> idioma terrestre, que se converteu na Língua de to<strong>do</strong> o planeta,<br />
e que data desde a Recriação, este substantivo possuía um significa<strong>do</strong><br />
muito especial, provavelmente devi<strong>do</strong> ao forte impacto que a Cal produ-<br />
zira na vida social humana, por isso este nome era aplica<strong>do</strong> com muita<br />
honra a sujeitos que ultrapassavam as limitações intelectuais <strong>do</strong>s seus<br />
antepassa<strong>do</strong>s, e assim se convertiam em vedetas da sociedade; deste<br />
mo<strong>do</strong>, a recuperação desta antiga designação «computa<strong>do</strong>r» pouco se re-<br />
laciona com as primitivas máquinas-lógicas, sen<strong>do</strong> mais um indicativo<br />
da alta capacidade deste Sig), o «Cipu», era o sucessor <strong>do</strong> Oliap3, que<br />
fora construí<strong>do</strong> pelo Osag7ψ(Organismo Sintético de Administração Glo-<br />
bal, revisão sete, versão psi). Desde a criação <strong>do</strong> primeiro adminis-<br />
tra<strong>do</strong>r-planetário de inteligência artificial, haviam passa<strong>do</strong> vinte-e-<br />
nove sígulos(um sígulo corresponde a duzentos-e-cinquenta anos; o que<br />
seria o prazo de duração de cada Sig, mas isso raramente se verificou<br />
na prática, e normalmente eles viam-se força<strong>do</strong>s a adiantar a sua subs-<br />
tituição, usualmente por motivos de uma qualquer avaria, ou defeito,<br />
de hardware; pertencen<strong>do</strong>, ao Osag7δ, «Osag7, versão delta», o mínimo<br />
histórico de durabilidade, que foram dezoito anos aproximadamente; daí<br />
18
que, naqueles vinte-e-nove sígulos, tenham existi<strong>do</strong> cinquenta-e-oito<br />
Sigues).<br />
(Devo acrescentar mais uma nota de detalhe: na antiga grafia <strong>do</strong><br />
idioma terrestre, datada <strong>do</strong>s séculos de fronteira entre o 28 o e o 29 o<br />
sígulo, «Cipu» era escrito <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: «The|uos/».)<br />
As preocupações <strong>do</strong> Cipu eram muito mais profundas que as <strong>do</strong>s seus<br />
antecessores; para lá <strong>do</strong>s problemas quotidianos da Humanidade, ele<br />
sentia uma necessidade constante de aperfeiçoamento, por isso rodeava-<br />
se <strong>do</strong>s mais aptos Sábios humanos que existiam no seu Tempo, mas não<br />
lhe era suficiente. Queria a elite de to<strong>do</strong>s os grandes pensa<strong>do</strong>res que<br />
já haviam vivi<strong>do</strong>! Para aquele efeito, fun<strong>do</strong>u o «Dept»(Departamento Es-<br />
pecial para Pesquisa Temporal).<br />
As cronotecno-teorias haviam evoluí<strong>do</strong> bastante desde o perío<strong>do</strong><br />
andrísiano, era absolutamente banal a tecnologia que permitia viagens<br />
de retrocesso ao longo da espiral circular <strong>do</strong> Tempo, embora nunca ti-<br />
vesse surgi<strong>do</strong> a necessidade de a utilizar.<br />
Uns anos após a sua fundação, o Dept estava apto a lançar a pri-<br />
meira «Bti»(sonda de «busca-temporal-de-inteligência», com um sistema-<br />
de-camuflagem-virtual, o que lhe dava a ilusionista aparência de um<br />
simples pássaro), programada pelo Cipu para analisar as débeis «emis-<br />
sões psico-genéticas»(«eψg»; dever-se-á ler: epsig) produzidas pelos<br />
humanos, e compará-las com as suas ego-histórias.<br />
Aquela missão inicial demorou seis anos. A Bti trouxera da<strong>do</strong>s<br />
muito estranhos! Ao contrário daquilo que o Cipu previra logicamente,<br />
as mais famosas mentes reconhecidas pela História não coincidiam mui-<br />
tas vezes com o potencial mais alto de eψg; era como se to<strong>do</strong> aquele<br />
Poder se encontrasse a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> em corpos historicamente anónimos que<br />
não o reconheciam.<br />
19
Então outra Bti, mais completa em sistemas-de-análise, foi envia-<br />
da, novamente através <strong>do</strong> Tempo, para recolher mais informações.<br />
Quinze anos se consumiram até aquela regressar(a razão, para o<br />
seu ponto de partida não se aproximar temporalmente mais <strong>do</strong> seu ponto<br />
de chegada, apesar de ser tecnicamente realizável, era a cientifica-<br />
mente conhecida teoria-lei <strong>do</strong> «“Efeito de Daffníum”», que consistia no<br />
perigo provável de um corpo sóli<strong>do</strong> colidir consigo mesmo durante uma<br />
viagem temporal, se o espaço entre a partida e a chegada fosse muito<br />
próximo, devi<strong>do</strong> à «corrente de atracção homatómica» que ocorria duran-<br />
te o acto de viajar no Tempo, e que era proporcional à profundidade<br />
<strong>do</strong>s sucessivos mergulhos na espiral-temporal).<br />
A informação recolhida era muito mais inquietante. Aquela tão<br />
alta quantidade de eψg era originada, na sua maioria, por desequilí-<br />
brios, acidentais ou naturais, nas bio-equações, «psico=físico», de<br />
alguns seres humanos; mas não em to<strong>do</strong>s sujeitos que dispunham daquela<br />
bio-inequação. Parecia haver uma predestinação genética naqueles huma-<br />
nos, que era despertada por uma qualquer irregularidade biológica, mas<br />
permanecen<strong>do</strong> sempre aquele novo Poder em inacção, por não ser reconhe-<br />
ci<strong>do</strong> conscientemente pelo organismo racional.<br />
Aqueles seres foram então reclassifica<strong>do</strong>s como pertencentes a uma<br />
«sub-raça humana»(uma ramificação da Humanidade) que foi apelidada de<br />
«Anormalidade», devi<strong>do</strong> à obrigatoriedade da presença de uma qualquer<br />
forma da bio-inequação.<br />
Sete anos passaram sobre a descoberta <strong>do</strong>s Anormais, que se encon-<br />
travam espalha<strong>do</strong>s ao longo da imensa espiral circular <strong>do</strong> Tempo. Desde<br />
o início que o Cipu compreendera a mais-valia que a Anormalidade re-<br />
presentaria para a própria Humanidade, se ele a conseguisse reunir em<br />
torno de si mesmo.<br />
20
Aquela seria a nova missão <strong>do</strong> Dept.<br />
∴<br />
Estava tu<strong>do</strong> a postos para receber a primeira geração de Anormais.<br />
«Cinco sigões»(um sigão, «1sS ~<br />
»=250 3 unidades, e, por exemplo, 2sS ~ são<br />
(250+250) 3 unidades, assim 5sS ~ seriam (5x250) 3 unidades) de Btis haviam<br />
si<strong>do</strong> enviadas através das Eras, sen<strong>do</strong> novecentos-mil milionésimos, da-<br />
quele astronómico número, apenas dedica<strong>do</strong>s à pesquisa e análise de da-<br />
<strong>do</strong>s, e as restantes Btis procederiam à recolha de alguns especímenes.<br />
O processo seria recolher os corpos exactamente no instante ante-<br />
rior às suas mortes, substituin<strong>do</strong>-os por uns inanima<strong>do</strong>s clones orgâni-<br />
cos e deterioráveis; em seguida, os originais seriam postos em cronos-<br />
suspensão e armazena<strong>do</strong>s em cápsulas, até ao fim daquela missão, quan<strong>do</strong><br />
seriam reacorda<strong>do</strong>s, perante o Cipu, para uma nova vida, onde as suas<br />
memórias anteriores seriam reduzidas a transparentemente vagas recor-<br />
dações efémeras.<br />
A outra fase, já no interior <strong>do</strong> Dept, mas ainda antes <strong>do</strong> «reacor-<br />
damento», seria o rejuvenescimento parcial e a recuperação total <strong>do</strong>s<br />
seus corpos, eliminan<strong>do</strong> assim a bio-inequação, que, uma vez cumpri<strong>do</strong> o<br />
seu papel catalisa<strong>do</strong>r, havia-se torna<strong>do</strong> num apêndice obsoleto; e, tam-<br />
bém, o desenvolvimento máximo <strong>do</strong> seu Poder latente, pelos artificiais<br />
meios da manipulação genética. Calculava-se que o resulta<strong>do</strong> seria o<br />
apuramento óptimo da raça Anormal.<br />
Novamente, as previsões <strong>do</strong> Cipu e <strong>do</strong>s Sábios-técnicos, que orien-<br />
tavam o Dept, não se viram totalmente realizadas na prática.<br />
Aqueles primeiros Anormais haviam ganho uma forma de Poder inima-<br />
ginável e jamais igualável, eles tinham obti<strong>do</strong> o <strong>do</strong>m da «suprema-<br />
clarividência», poden<strong>do</strong> ver através da grande espiral <strong>do</strong> Tempo to<strong>do</strong>s<br />
21
os momentos <strong>do</strong> Universo desde a inicial Criação até à sua penúltima<br />
etapa de existência, que seria uma batalha entre duas forças(que se<br />
encontram para além da mais apurada compreensão humana) num distante<br />
local, muitíssimo afasta<strong>do</strong> da Terra, que foi chama<strong>do</strong> de Armaguedão;<br />
mas em contrapartida, aqueles membros da Anormalidade partilhavam uma<br />
acelerada decadência orgânica, que encurtava rapidamente os seus novos<br />
tempos-de-vida.<br />
Aquela primeira geração estava condenada!<br />
Então, eles decidiram compilar todas as suas visões, análises,<br />
estu<strong>do</strong>s críticos sobre a temporalidade, e «semi-visões»(as semi-visões<br />
eram, obviamente, visões temporais, tal como as outras, mas que se en-<br />
contravam envoltas num transparente nevoeiro, que as multiplicava em<br />
diversas direcções e senti<strong>do</strong>s duplos, ou seja, apenas era possível ob-<br />
servar versões probabilísticas daquilo que realmente era temporalmente<br />
certo e inevitável) num único <strong>do</strong>cumento organiza<strong>do</strong> de forma cronistó-<br />
rica e litúrgica, a que foi da<strong>do</strong> o nome de «Bíblios»(«o Livro»; o que<br />
continha já uma forte conotação de influência «neorreligionista»; e,<br />
talvez, mesmo intolerantista; mas isso obrigar-me-ia a entrar na pro-<br />
funda e cronideológica discussão da Cronistória actual, o que me faria<br />
afastar <strong>do</strong> centro narrativo desta minha obra).<br />
Após a conclusão de Bíblios, alguns optaram por ir morrer aos<br />
seus Tempos-natais, e assim partiram(o que foi uma acção cronistórica<br />
muito importante, pois determina<strong>do</strong>s elementos, daquele grupo de re-<br />
gressa<strong>do</strong>s, desempenhariam um papel religionista muito importante na<br />
evolução da primitiva Humanidade, ao reestruturarem, as suas relativa-<br />
mente minimalistas crenças tradicionais, em sistemas regula<strong>do</strong>s e adap-<br />
ta<strong>do</strong>s à realidade exposta em Bíblios, que converter-se-iam, ao longo<br />
<strong>do</strong> Tempo, nas principais Religiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e que prevaleceriam du-<br />
22
ante vários milénios, com obviamente algumas mutações e conversões de<br />
divindades, até ao perío<strong>do</strong> pré-andrísiano); enquanto outros houve que<br />
ficaram, auxilian<strong>do</strong> o Dept a trazer uma nova geração para a Anormali-<br />
dade.<br />
∴<br />
Trinta-e-sete anos haviam passa<strong>do</strong>. Já quase to<strong>do</strong>s os primeiros<br />
Anormais haviam faleci<strong>do</strong> nas décadas anteriores; e os sobreviventes<br />
haviam deixa<strong>do</strong> a sociedade, exilan<strong>do</strong>-se em lugares incógnitos.<br />
Em seu lugar ficaram alguns seus descendentes, que eram frutos <strong>do</strong><br />
cruzamento entre eles e vulgares humanos. Individualmente os seus Po-<br />
deres eram fracos e irregulares, mas em conjunto, graças a uma ligação<br />
psico-genética que os unia numa consciência paralela denominada por<br />
«Teus»(é apenas curioso reparar na semelhança entre este nome e a an-<br />
tiga grafia da palavra «Cipu»), o Poder atingi<strong>do</strong>, por aqueles que des-<br />
cendiam da fusão entre a inicial Anormalidade e a Humanidade, era ver-<br />
dadeiramente insuperável e, até mesmo, inalcançável. Àquele grupo res-<br />
trito foi dada a designação de «Família», e a cada membro seu era<br />
atribuí<strong>do</strong> o apeli<strong>do</strong> de «Familiar».<br />
A Família servia de guardiã de Bíblios, e tinha a alta função de<br />
Conselheira exclusiva <strong>do</strong> Cipu. O próprio Dept passara, também, a ser<br />
controla<strong>do</strong> por Familiares, que substituíram os Sábios-técnicos.<br />
Havia já <strong>do</strong>ze anos, que começara a chegar a «segunda geração da<br />
Anormalidade»(embora haja um número relativamente pequeno de cronistó-<br />
ria<strong>do</strong>res, que defina aquela como a terceira geração, toman<strong>do</strong> a Família<br />
como a segunda).<br />
O processo de recepção fora profundamente modifica<strong>do</strong>. Os novos<br />
Anormais não viram os seus genes manipula<strong>do</strong>s de forma a alcançarem um<br />
Poder mais eleva<strong>do</strong>, e os seus corpos foram somente submeti<strong>do</strong>s a uma<br />
23
ecuperação parcial; apenas se mantiveram o rejuvenescimento orgânico,<br />
e a redução psicológica das suas memórias sobre os seus anteriores<br />
tempos-de-vida. Após o reacordamento eram conduzi<strong>do</strong>s por «tuto-<br />
res»(Familiares especialmente treina<strong>do</strong>s para aquele efeito) para aque-<br />
la sua nova vida, e para uma elaborada técnica de meditação psico-<br />
genética de vocação quase neorreligionista, denominada por «o Teotao»,<br />
que visava, por «meios-naturais», o despertar de to<strong>do</strong> o Poder ainda<br />
inconsciente em cada novo Anormal(que era variável e diferencia<strong>do</strong> de<br />
indivíduo para indivíduo). Por fim, seriam apresenta<strong>do</strong>s formalmente ao<br />
Cipu, que os rebaptizaria individualmente, e lhes daria uma determina-<br />
da função específica conforme o grau <strong>do</strong> seu Poder totalmente conscien-<br />
te; e eles como obrigatória retribuição executariam, naquele momento,<br />
o ritualiza<strong>do</strong> Juramento de fidelidade ao Cipu e de vassalagem à Huma-<br />
nidade.<br />
Assim se realizou a inicial época histórica da Anormalidade!<br />
(Deste mo<strong>do</strong> termina o cenário cronistórico de fun<strong>do</strong>; agora ini-<br />
ciarei a narrativa que é a causa desta obra.)<br />
24
Raízes<br />
25
I<br />
A Anunciação<br />
Na principal sala-de-reuniões <strong>do</strong> Dept(converti<strong>do</strong> no lar-oficial<br />
da Família) estavam to<strong>do</strong>s os representantes das diversas linhas-de-<br />
sangue da Família; a escassa iluminação, daquele espaço, concentrava-<br />
se maioritariamente no meio daquela divisão. Os Familiares, ali reuni-<br />
<strong>do</strong>s, encontravam-se dispostos num enorme círculo, cujo centro era<br />
Teusfilo, o ancião-chefe daquele grupo, e que tinha o <strong>do</strong>m de servir de<br />
veículo de expressão exterior da vontade de Teus. Ele estava deita<strong>do</strong>,<br />
com uma inclinação de 20º, numa confortável máquina, vagamente pareci-<br />
da com uma meia-cápsula ou um «dispositivo-<strong>do</strong>rmitório», que se auto-<br />
elevava a uns metros <strong>do</strong> solo, e que lhe servia, entre outras diversas<br />
funções, de único meio de locomoção.<br />
- To<strong>do</strong>s sabem porque estamos aqui reuni<strong>do</strong>s. - disse Teusfilo,<br />
através duma voz sintética que saia daquela máquina-cama, soan<strong>do</strong> como<br />
um trovão, mas, ao mesmo tempo, suave e não alta. - Temos de agir!<br />
Um <strong>do</strong>s Familiares ergueu-se numa atitude de revolta; era Daimon,<br />
um indivíduo que muitos anos antes aban<strong>do</strong>nara a Família, cortan<strong>do</strong> <strong>do</strong>-<br />
lorosamente a sua psico-ligação natural a Teus; os outros só consegui-<br />
ram notícias dele apenas naquele dia, quan<strong>do</strong> reapareceu para assistir<br />
àquela reunião.<br />
26
- Nada podem contra o Tempo, nada podem contra Aquele que há-de<br />
vir e que já veio!. - gritou Daimon. - Ele não é uma semi-visão como<br />
deseja crer Teus, Ele é inevitável! Ele… é.<br />
- Cala-te. - ordenou Teusfilo secamente. - Tu aban<strong>do</strong>naste-me, e<br />
hoje pensas que queremos a tua voz entre nós?! Cala-te. - fez uma cur-<br />
ta pausa. - Tinhas, no entanto, razão ao afirmares que “aquele que há-<br />
de vir” já veio; e por isso estamos aqui a discutir a possibilidade da<br />
sua execução imediata. Eu sou o guardião de Bíblios, e li os horrores<br />
<strong>do</strong> seu muito amaldiçoa<strong>do</strong> nome; ele é algo que jamais deverá acontecer.<br />
Devemos eliminá-lo já, enquanto ainda não reacor<strong>do</strong>u para a sua nova e<br />
negra vida. Antes que…<br />
-… Ele destrua a Família! - interrompeu Daimon furioso. - É esse<br />
o verdadeiro me<strong>do</strong> de Teus. Pensem!, pensem bem. Esta devia ser a nossa<br />
maior alegria; assim como o rude símio-humano foi deposto pelo aper-<br />
feiçoa<strong>do</strong> Homem-racional, nós, os Familiares, daremos lugar ao Ser que<br />
está muito além da compreensão de Teus!. Se nós O aceitarmos, Ele por<br />
certo não nos destruirá! Mas se pensam, meus irmãos, oporem-se à Sua<br />
vontade… então é e será inevitável a aniquilação total da Família. -<br />
ao terminar a frase, baixou-se um pouco num gesto de desânimo.<br />
- És louco! - respondeu-lhe Teusfilo. - Ou, mesmo não-reacorda<strong>do</strong>,<br />
terá ele possuí<strong>do</strong> a tua mente? Se assim for, não devemos esperar nem<br />
mais um segun<strong>do</strong>… devemos matá-lo já.<br />
- Não compreendes! És tão limita<strong>do</strong> que, tal como o símio-humano,<br />
não consegues compreender que se aproxima o teu fim!. Ele viverá.<br />
- Devemos decidir… já. - a voz sintética de Teusfilo proferia-se<br />
num tom firme.<br />
-… E que dirá o Cipu? - sarcasticamente interrogou-o, Daimon.<br />
- Tens novamente razão… Alguém terá que informá-lo!<br />
27
Naquele momento, um quadra<strong>do</strong> luminoso surgiu no ar, sobre o anci-<br />
ão-chefe; era um «holofone»(mecanismo com a capacidade de converter<br />
som em luz e transmiti-la através <strong>do</strong> Espaço e <strong>do</strong> Tempo, um muito comum<br />
meio-de-comunicação naquela época).<br />
- Quan<strong>do</strong> era que tencionavas informar-me que ele havia já chega-<br />
<strong>do</strong>!?… Antes ou depois de o matares!!!?! - era o próprio Cipu que fala-<br />
va através <strong>do</strong> holofone, dirigin<strong>do</strong>-se superiormente a Teusfilo.<br />
O velho Familiar hesitou embaraça<strong>do</strong> por uns momentos.<br />
- Posso… saber como… teve conhecimento desta nossa e privada…<br />
reunião? - o tom de Teusfilo fundia-se agora entre o humilde e o auto-<br />
ritário.<br />
- Não dês ainda mais razão aos «Protestantes», não julgues que<br />
podes ser superior a mim; eu sou o Cipu, e tu és apenas um <strong>do</strong>s meus<br />
vários serventes.<br />
(«Os Protestantes», era um grupo misto, forma<strong>do</strong> por humanos e<br />
Anormais, que se opunham à crescente influência da Família no sistema<br />
administrativo <strong>do</strong> Cipu, recordan<strong>do</strong> em manifestações públicas o conteú-<br />
<strong>do</strong>, já praticamente considera<strong>do</strong> divino pelos neorreligionistas, da Lei<br />
da Incapacidade Autogovernativa Humana, a agora muito sagrada «lia-<br />
Hu».)<br />
- Espero uma resposta. - reafirmou o Cipu.<br />
- Bem!, pelas proféticas descrições em Bíblios seria mais pruden-<br />
te eliminá-lo… !! - tentou justificar-se, o ancião-chefe.<br />
-… E dar mais um motivo aos Protestantes?<br />
- Como, meu senhor, … - aquela última palavra soava amargamente<br />
forçada na voz sintética de Teusfilo. -… teriam eles conhecimento…?<br />
- Por vezes és uma verdadeira desilusão! - a voz <strong>do</strong> Cipu parecia<br />
<strong>do</strong>tada de frustração. - Não sabes que aí, entre vós, se encontra um<br />
28
<strong>do</strong>s principais lideres <strong>do</strong>s Protestantes? O mesmo que, mostran<strong>do</strong>-me uma<br />
inesperada fidelidade, informou-me desta vossa reuniãozinha privada!.<br />
- o Cipu deixara de ocultar a sua profunda irritação.<br />
- Daimon!!! - berrou Teusfilo em fúria.<br />
- Cala-te. - ordenou-lhe o Cipu. - Ouve agora a minha decisão<br />
final sobre este assunto. Resolvi fazer um compromisso entre a vontade<br />
da Família e a <strong>do</strong>s Protestantes. - a sua voz tornou-se ainda mais<br />
autoritária. - Ele será reacorda<strong>do</strong>, mas será leva<strong>do</strong> para uma sala iso-<br />
lada; depois, tu escolherás, entre os Familiares, um tutor que lhe<br />
ensinará apenas os fundamentos básicos <strong>do</strong> Teotao, e que vigiará aten-<br />
tamente a sua evolução de forma a impedi-lo de atingir totalmente o<br />
máximo <strong>do</strong> seu Poder latente e inconsciente; to<strong>do</strong> este processo será<br />
acompanha<strong>do</strong> por Daimon, representante <strong>do</strong>s Protestantes, que garantirá<br />
o seu absoluto cumprimento; no fim, ele ser-me-á apresenta<strong>do</strong> oficial-<br />
mente, e eu o encarregarei duma função administrativa menor, onde ja-<br />
mais tenha a oportunidade de fazer evoluir os seus <strong>do</strong>ns. Assim se<br />
fará!.<br />
Após dizer aquilo, o holofone esvaiu-se no ar. A reunião da Famí-<br />
lia terminara.<br />
∴<br />
Nos escuros aposentos priva<strong>do</strong>s de Teusfilo, ele expressava a sua<br />
raiva ao Familiar Anguélaz, o seu Primeiro-Assessor.<br />
- Maldito seja Daimon!! Apesar de se ter desliga<strong>do</strong> de Teus, ainda<br />
consegui perceber partes dispersas <strong>do</strong>s seus pensamentos, quan<strong>do</strong> se en-<br />
contrava próximo de mim. - confessou o ancião-chefe ao fiel Anguélaz.<br />
- Senti nele um plano oculto. Na verdade, Daimon apenas se está a ser-<br />
vir <strong>do</strong>s Protestantes para cumprir os seus encobertos objectivos!. -<br />
29
espirou fun<strong>do</strong>. - Bom Anguélaz!… Observa-o de perto, e descobre aquilo<br />
que o realmente motiva a agir contra nós.<br />
- A tua vontade será cumprida!. - respondeu, Anguélaz, de braços<br />
cruza<strong>do</strong>s com as mãos sobre os ombros, e curva<strong>do</strong> para os seus pés.<br />
30
II<br />
A Aparição<br />
Aquele era um <strong>do</strong>s primeiros anos <strong>do</strong> 30 o sígulo; eram as últimas<br />
décadas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> administrativo <strong>do</strong> Cipu(pelo menos, era o que se<br />
julgava como certo naquela época). Na semana anterior, ele havia orde-<br />
na<strong>do</strong>, à Família, o reacordamento e o isolamento especial de um recém-<br />
chega<strong>do</strong> Anormal. A sua vontade fora correctamente executada.<br />
O solitário homem, de bela pele quase palidamente a<strong>do</strong>entada,<br />
encontrava-se numa sala vazia, que apenas continha um dispositivo-<br />
<strong>do</strong>rmitório e uma pequena zona-higiénica-automatizada.<br />
Ele vestia uma longa túnica clara, tal como os outros recentemen-<br />
te reacorda<strong>do</strong>s, e movia-se num muito antiqua<strong>do</strong> modelo de cadeira-de-<br />
rodas-autossustentável, mas com um aspecto exterior super-sofistica<strong>do</strong>;<br />
comandava-a manualmente por um rudimentar mecanismo coloca<strong>do</strong> no seu<br />
la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>. O seu cabelo castanho-negro era exageradamente curto; o<br />
seu longo e estreito nariz dividia perfeitamente o seu ossudamente<br />
marca<strong>do</strong> rosto magro; e os seus olhos, reforça<strong>do</strong>s por uma ligeiramente<br />
inchada pele roxa, tinham uma estranha profundidade, que lhes era ofe-<br />
recida por cambiantes de suave castanho brilhante, rodean<strong>do</strong> uns poços<br />
negros que flutuavam numa pálida brancura ofuscante.<br />
De repente, uma das paredes começou a diminuir a densidade de al-<br />
gumas das suas moléculas, forman<strong>do</strong> no fim uma pequena semi-esfera qua-<br />
31
se transparente. Uma mulher, de três longas tranças negras que forma-<br />
vam um imaginário triângulo nas sua costas, atravessou aquela súbita<br />
abertura, entran<strong>do</strong> na sala. Logo após a sua entrada, a parede ressoli-<br />
dificou-se por completo, recuperan<strong>do</strong> a sua forma anterior.<br />
Ela usava um vesti<strong>do</strong> aperta<strong>do</strong> às esbeltamente esqueléticas formas<br />
<strong>do</strong> seu corpo. O homem aproximou-se dela.<br />
- Quem… Onde estou? Estou aqui preso! - Ele falava quase sem um<br />
defini<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> lógico, sentia-se estranhamente desloca<strong>do</strong>.<br />
(Um <strong>do</strong>s parâmetros <strong>do</strong> reacordamento era a introdução <strong>do</strong> idioma<br />
terrestre, entre outros conhecimentos sociais, na região sóciopsico-<br />
cerebral <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s Anormais, o que facilitava a rápida inte-<br />
racção linguística entre to<strong>do</strong>s.)<br />
- Calma… vou explicar-te tu<strong>do</strong>! - a voz dela tinha características<br />
excessivamente femininas.<br />
Então, ela contou-lhe vagamente toda a anterior história da Anor-<br />
malidade, dizen<strong>do</strong>-lhe que ele próprio era um Anormal, e que ela seria<br />
a sua tutora que o iniciaria no Teotao. Por último respondeu-lhe que<br />
se chamava Catarina.<br />
(«Catarina», este é um nome que causa muita polémica entre os<br />
cronistória<strong>do</strong>res devi<strong>do</strong> à sua antiga grafia: «ThabTre|h S ~ai ~<br />
h ~ ». Daí que al-<br />
guns o actualizem por «Çaãhâtihñh», isto é, «Sati», e não por «Catari-<br />
na»; embora seja mais usual essa interpretação em autores de vocação<br />
neorreligionista, da última metade <strong>do</strong> 31 o sígulo.)<br />
-… E eu? Qual é o meu nome?! - perguntou-lhe, num tom de quem se<br />
perdera de si mesmo.<br />
- É verdade!! Como tua tutora devo atribuir-te um prénome, que<br />
utilizarás até seres rebaptiza<strong>do</strong> pelo próprio Cipu. Deixa-me pensar…<br />
Sempre detestei esta parte! Um prénome… talvez; não… outro! Um préno-<br />
32
me… - então Catarina olhou para uma «etiqueta de reacordamento» que<br />
estava tingida a laser na parte superior direita da túnica <strong>do</strong> homem;<br />
lá estava inscrito, na muitíssimo arcaica neonumeração greco-romana, o<br />
número 14α(catorze-e-alfa). -… um prénome, um prénome; pois bem!…<br />
Chamar-te-ás «Xiva». Sim… é um bom prénome!.<br />
Passaram ainda mais algum tempo juntos, e depois ela partiu da<br />
mesma forma como entrara, deixan<strong>do</strong>-o novamente só.<br />
Catarina passou o resto <strong>do</strong> dia em reuniões, relatan<strong>do</strong> em detalhe<br />
o que havia ocorri<strong>do</strong> naquele seu primeiro encontro com aquele homem<br />
que agora era Xiva. Primeiro reunira-se com Daimon; depois com Teusfi-<br />
lo, que lhe dissera que tinha si<strong>do</strong> algo infeliz na escolha daquele<br />
prénome, mas agora já não havia nada a fazer.<br />
Quan<strong>do</strong> ela finalmente saiu, o ancião-chefe chamou Anguélaz ao seu<br />
quarto-oficial.<br />
- Temo, meu queri<strong>do</strong> Anguélaz, temo! - segre<strong>do</strong>u-lhe, Teusfilo, num<br />
tom quase ausente de sentimentos. - Se pensares bem, está tu<strong>do</strong> a acon-<br />
tecer como o descrito em Bíblios!. O Dragão aproxima-se cada vez mais<br />
de se tornar uma inevitável realidade. Tu sabes… o que significaria a<br />
sua Ascensão!! - respirou fun<strong>do</strong>, por diversas vezes, e mu<strong>do</strong>u para uma<br />
voz mais autoritária. - Fala-me agora desse renega<strong>do</strong> maldito; fala-me<br />
de Daimon.<br />
∴<br />
Uma sombra masculina, vestin<strong>do</strong> um muito largo e escuro fato-<br />
macaco, atravessava uma passagem aérea entre <strong>do</strong>is «complexos-“urbano-<br />
habitacionais”»(vulgarmente conheci<strong>do</strong>s como «Urbis»). A ponte flutuava<br />
suavemente no ar, talvez aquilo se devesse à avançada idade <strong>do</strong>s moto-<br />
33
es-antigravitacionais que suportavam o seu peso a quase três quilóme-<br />
tros dum estéril solo rochoso, apenas apto à urbanização massiva.<br />
O homem, de cabelo em uma alta crista azulada que lhe caia verde<br />
até ao fim das costas, continuava a sua rápida caminhada a pé entre<br />
aquelas duas Urbis. Era Daimon.<br />
Ao entrar num <strong>do</strong>s complexos, curvou acelera<strong>do</strong> para uma rua secun-<br />
dária. A fraca luz exterior atribuía, a to<strong>do</strong> aquele cenário, um tom<br />
cinzento-negro. Aquela via-pedestre estava quase absolutamente desér-<br />
tica, à excepção de alguns corpos dispersos e a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s nos fumos<br />
soporíferos que se escapavam entre as desgastadas fendas abertas no<br />
liso passeio. Uns sons, mu<strong>do</strong>s de pesadas máquinas, vibravam sob os<br />
seus pés. Daimon afundava-se apressadamente na negativamente famosa<br />
«Zona»(área urbana localizada na 1092ª Urbi, <strong>do</strong> Sector A, da 3ª Regi-<br />
ão-continental <strong>do</strong> Norte, da Terra; e inicialmente reservada para os<br />
«desadapta<strong>do</strong>s-sociais», ou seja, indivíduos que haviam agi<strong>do</strong>, ou cujos<br />
seus antepassa<strong>do</strong>s haviam agi<strong>do</strong>, criminalmente contra a administração-<br />
planetária de algum Sig, e «renega<strong>do</strong> eternamente o seu “Direito Natu-<br />
ral de Reabilitação e Reintegração Social”»). A via-pedestre havia-se<br />
multiplica<strong>do</strong> em várias ramificações, e sub-ramificações, que se esti-<br />
cavam em todas as direcções horizontais e verticais, envolven<strong>do</strong>, num<br />
labiríntico novelo-de-caminhos, toda a Zona.<br />
Daimon continuava o seu rápi<strong>do</strong> trajecto, embora, aquele típico<br />
escaldantemente abafa<strong>do</strong> cheiro a gases e podridão, lhe queimasse as<br />
nuas narinas; apressa<strong>do</strong>, nem havia coloca<strong>do</strong> a sua «máscara-de-<br />
protecção-respiratória»(«Mascp-aR»; as Mascp-aRes eram distribuídas<br />
anualmente por to<strong>do</strong>s os habitantes-oficiais da Zona, o que significava<br />
que uma relativamente grande fatia ilegal da sua população, composta<br />
por migrantes-urbanos que não obtiveram a autorização-legal para o<br />
34
muito deseja<strong>do</strong> «passe-de-transição-urbana», tinha que adquirir a sua<br />
Mascp-aR por meios não-legais, sen<strong>do</strong> aquele o verdadeiramente princi-<br />
pal Comércio naquela específica região da Urbi).<br />
A Zona havia si<strong>do</strong> posteriormente acrescentada àquele complexo-<br />
“urbano-habitacional” no 13 o sígulo, por ordem <strong>do</strong> Osag7(o primeiro Sig<br />
a «evoluir programaticamente», tornan<strong>do</strong>-se apto para julgar e condenar<br />
seres humanos que se opunham contra algumas das suas vontades-<br />
administrativas, designan<strong>do</strong>, aquele acto de oposição, como um “Crime<br />
Anti-Humanidade”), funda<strong>do</strong>r da «Nevinquisição»(«Nova Inquisição») que<br />
duraria <strong>do</strong>is sígulos e meio. Aquela nova região da Urbi havia si<strong>do</strong><br />
construída sobre a área que englobava os «motores-ambientais», que<br />
tornavam o interior <strong>do</strong> complexo humanamente habitável, e o «depósito-<br />
de-“reciclagem-energética”», que era um megaconversor-autónomo que<br />
transformava, to<strong>do</strong>s os milhares de gigatoneladas diárias de lixo-<br />
urbano, em energia-óptimizada que alimentava os vorazmente potentes<br />
motores-ambientais; era aquela a causa <strong>do</strong> sufocantemente intenso calor<br />
fumegante e <strong>do</strong> áci<strong>do</strong> o<strong>do</strong>r, que inundavam toda a Zona, aproximan<strong>do</strong>-a<br />
muitíssimo perigosamente <strong>do</strong> “limite zero-habitável”.<br />
Daimon terminara o seu percurso num beco diagonalmente forma<strong>do</strong><br />
por duas urbanizações. Tocou levemente numa das paredes negras de<br />
fumo, o que fez surgir, ao nível superior <strong>do</strong> seu corpo, um écran acom-<br />
panha<strong>do</strong> por um tecla<strong>do</strong>, cujo modelo mostrava um incrível atraso de<br />
inúmeros milénios. Ele, então, pressionou com a ponta <strong>do</strong>s seus de<strong>do</strong>s<br />
algumas das teclas em relevo, e uma cara, re<strong>do</strong>ndamente anafada e in-<br />
fantil de um homem que já havia supera<strong>do</strong> a meia-idade, e cujas fei-<br />
ções, poderiam dizer os «Antigumanos»(«antigos humanos, ou seja, pes-<br />
soas que viveram na longa Era cronistórica <strong>do</strong> pré-“segun<strong>do</strong>-fim-<strong>do</strong>-<br />
35
mun<strong>do</strong>”), tinham alguns marca<strong>do</strong>s traços de cariz asiático ou meramente<br />
similar, surgiu num pulo de imagem naquele poeirento monitor.<br />
- Abre… rápi<strong>do</strong>! - ordenou Daimon à figura. - Embora tenha corta-<br />
<strong>do</strong>, há já vários anos, a minha ligação bio-psiquíca a Teus, sinto a<br />
presença muito próxima dum Familiar, desde que sai da reunião com<br />
Catarina. - explicou numa voz acelerada.<br />
- Será ela? - perguntou num tom inocente, o homenzinho gor<strong>do</strong>.<br />
-Não. - respondeu Daimon secamente. - Abre; abre já. Depressa!<br />
O tecla<strong>do</strong> e o monitor desapareceram, surgin<strong>do</strong> na parede uma aber-<br />
tura esférica. Ele entrou, e o portão regressou à sua forma sólida.<br />
Umas profundas escadas, escavadas no solo-metálico da Urbi, desciam na<br />
escuridão até uma pequena cavidade vertical fracamente iluminada. Dai-<br />
mon caminhou na sua direcção.<br />
Lá dentro, esperavam-no, em torno de uma elevação circular, qua-<br />
tro pessoas de aparência impaciente. À frente daqueles, em pé, próximo<br />
da entrada, estava o homem super-anafa<strong>do</strong> aguardan<strong>do</strong>-o em ânsia e res-<br />
peito. Aquele grupo era a elite que dirigia administrativamente a «As-<br />
sembleia»(grupo clandestino de vocação neorreligionista e intoleran-<br />
tista, embora numa versão paralelamente inversa ao Movimento-social<br />
original, ou seja, «”retro”»; a Assembleia fora fundada por Daimon, e<br />
era composta por alguns Anormais, num número relativamente importan-<br />
te).<br />
O gordinho curvou-se, desafian<strong>do</strong> a sua massiva anatomia, até ao<br />
chão, quan<strong>do</strong> o seu líder penetrou naquela apertada sala.<br />
- Ergue-te, meu muito ama<strong>do</strong> Incôbuz, pois este é um tempo de ale-<br />
gria! - disse Daimon ao gor<strong>do</strong> homem. - Aquele que há-de vir, já veio;<br />
e vive entre nós!! Quem esperávamos… o Dragão que nos irá guiar pelas<br />
36
Trevas para a Luz, para o nosso devi<strong>do</strong> lugar sobre a Terra e sobre a<br />
Humanidade… Ele veio finalmente!.<br />
- Tu<strong>do</strong> está prepara<strong>do</strong> para a Sua muito esperada «Vinda»! - afir-<br />
mou uma velha mulher cega, que fazia parte daquele grupo.<br />
- Não devemos confiar muito na segurança oferecida por Teusfilo!<br />
Ele tentará algo para O eliminar. - preocupou-se um outro elemento<br />
daquela elite.<br />
- Nada temam, meus «verosirmãos», pois nada é podi<strong>do</strong> contra Ele e<br />
a Sua vontade! A própria Família irá conduzi-lO aos nossos braços;<br />
nada temam, pois eu sei!!. - acalmou-os Daimon.<br />
(«verosirmãos»: termo exclusivamente neorreligionista que se tra-<br />
duz por «verdadeiros irmãos», ou seja, os «membros de um mesmo grupo<br />
de “fé”».)<br />
∴<br />
Catarina agitava-se no seu dispositivo-<strong>do</strong>rmitório; não <strong>do</strong>rmia.<br />
A Noite atingira, já havia várias horas, a 9ª Urbi, <strong>do</strong> Sector C,<br />
da 3ª Região-continental <strong>do</strong> Norte terrestre, onde ela morava.<br />
Os seus pensamentos reviam aquela invulgar situação. Não com-<br />
preendia a razão daquele simples Anormal recém-chega<strong>do</strong> causar tanta<br />
agitação entre a Família e os Protestantes. Já vira outros com um mui-<br />
to maior nível de eψg; aliás, pelo que pudera pressentir nele, o seu<br />
latente Poder máximo era bastante reduzi<strong>do</strong>, não havia nenhum motivo<br />
para temer a sua total evolução! Mas aquelas não eram as suas ordens;<br />
tinha que inicia-lo apenas parcialmente no Teotao, e impedir os seus<br />
progressos. Era absur<strong>do</strong>! Aquele jamais poderia ser o tão temi<strong>do</strong> Dra-<br />
gão, decerto fora uma má interpretação que alguém fizera de Bíblios;<br />
37
ou, se haveria algum Dragão, não seria Xiva. Mas… ela recebera<br />
ordens!.<br />
A<strong>do</strong>rmeceu por fim.<br />
Sonhou. Era uma longa planície desértica que ia além <strong>do</strong> horizon-<br />
te. Um vulto negro, senta<strong>do</strong> numa escura cadeira-a-motor-<br />
autossuficiente, aproximava-se dela num som sibilante. A sombra-viva<br />
convertera-se num magro homem palidamente branco, que se vestia de<br />
preto, com uma luva de cor igual na sua mão direita, sen<strong>do</strong> a outra a<br />
condutora manual daquele seu veículo-pessoal; o seu cabelo castanho-<br />
escuríssimo estendia-se pelas suas costas, e os seus olhos estavam co-<br />
bertos por uns negros óculos, de uma só e longa lente escura e espe-<br />
lhada. Aproximou-se ainda mais dela, até as suas faces se tocarem.<br />
Via-lhe uma lágrima a correr desamparada pelo rosto duro; caiu, aquela<br />
gota de Dor caiu no seco chão. Então ele sussurro-lhe, numa voz bruta<br />
e num tom carinhoso, que jamais a esquecera e que a amaria sempre.<br />
Quan<strong>do</strong> finalmente ela preparava-se para lhe falar, ele fora rapidamen-<br />
te puxa<strong>do</strong> para trás por uma incrível força invisível, até desaparecer<br />
<strong>do</strong> seu campo-de-visão. Ficara novamente só, mas ele havia-a contagia<strong>do</strong><br />
com a sua profunda e densa tristeza.<br />
Acor<strong>do</strong>u.<br />
As luzes artificiais da Urbi significavam que no exterior o Sol<br />
já reinava no céu castanho-claríssimo da Terra.<br />
Levantou-se e preparou-se para sair, enquanto recordava aquele<br />
bizarro sonho nocturno. Jamais conhecera aquele homem, mas, no entan-<br />
to, aquele rosto assemelhava-se a alguém! Alguém… Sim!, já sabia;<br />
achara-o pareci<strong>do</strong> com Xiva.<br />
∴<br />
Anguélaz fora novamente chama<strong>do</strong> à presença <strong>do</strong> ancião-chefe.<br />
38
O Dia ainda mal acordara em Primacentris(a 1ª Urbi, <strong>do</strong> Sector A,<br />
da 1ª Região-continental Central, da Terra; ou seja, a capital admi-<br />
nistrativa terrestre, o único complexo-“urbano-habitacional” <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de<br />
um “nome-próprio”-oficial; haviam cálculos sócio-científicos que pro-<br />
babilisticamente indicavam que era lá, nas subterrâneas profundezas <strong>do</strong><br />
seu subsolo, onde se localizava a tão secretamente oculta «Osiglimpú-<br />
liz», a morada, e também o local de origem e de armazenamento, de to-<br />
<strong>do</strong>s os Sigues que existiram).<br />
- Aqui estou… para te servir! - anunciou, curvan<strong>do</strong>-se, o Primei-<br />
ro-Assessor.<br />
- Ontem à noite, senti um Poder… - confessou-lhe, quase assusta-<br />
<strong>do</strong>, Teusfilo. -… um Poder indescritível, um Poder maior que eu que sou<br />
Teus!… Era algo tão densamente obscuro, que, só espreitar parcialmente<br />
para a negra concha exterior que o envolvia, era-me motivo de puro<br />
terror e de incontrolável pânico!! Não lhe resisti; perdi-me no in-<br />
consciente da Família, e ele escapou-me sem deixar rasto. - parou a<br />
narrativa, e reganhou um fôlego mais duro e autoritário. - Era uma es-<br />
sência que contaminava as psico-ligações que interligam os Familiares<br />
na grande mente colectiva que eu represento! Uma essência negativa…<br />
não; «a essência»!… Aquilo era algo mais primordial, mais absoluto que<br />
o próprio Dragão; aquilo era a sua verdadeira essência, e está a pre-<br />
parar-se… para ganhar vida, e forma humana!. Temos que agir; já.<br />
- Então… aquele que chegou na semana passada não era… ? - ques-<br />
tionou admira<strong>do</strong> e surpreso, Anguélaz.<br />
- Não compreendes, meu queri<strong>do</strong>! Tal como eu não compreendia, até<br />
à noite passada. - a voz <strong>do</strong> ancião-chefe tornou-se mais calma e expli-<br />
cativa. - To<strong>do</strong>s nós vimos o relatório psico-genético sobre o nível de<br />
eψg desse recém-chega<strong>do</strong> Anormal; era ridiculamente baixo, quase com-<br />
39
parável a um vulgar humano… mas ele era o 14 o <strong>do</strong> primeiro lote de cáp-<br />
sulas no sistema-de-reacordamento naquela prevista data, só podia ser<br />
ele o descrito em Bíblios!…<br />
-… E é?<br />
- Não exactamente como nós o havíamos idealiza<strong>do</strong>!. O Dragão não é<br />
um simples Anormal. - o velho Teusfilo respirou fun<strong>do</strong>, e continuou num<br />
tom grave. - Mas, agora sei e compreen<strong>do</strong>… Ele não é aquilo que nós<br />
temíamos, ele não é o Dragão; na verdade, ele faz parte de algo muito<br />
mais complexo, e muito mais temível! É o futuro receptáculo daquilo<br />
que eu senti ontem à noite; e o Dragão emergirá da fusão entre ele e<br />
aquela essência escura e perversa…<br />
- Isso significa que Daimon estava certo; ele não pode ser deti-<br />
<strong>do</strong>!! - quase berrou de frustração, Anguélaz.<br />
- Não. Sem o seu receptáculo, o Dragão jamais poderá existir. É<br />
essa a sua fraqueza, e será essa a nossa vitória.! - alegrou-se o<br />
ancião-chefe.<br />
-… Mas não poderá encontrar um outro corpo para viver? - pergun-<br />
tou, Anguélaz, preocupa<strong>do</strong>.<br />
- Não creio! Inexplicavelmente senti algo bio-genético naquela<br />
coisa negra; talvez uma espécie de incompatibilidade biológica com a<br />
maioria <strong>do</strong>s Seres que existem, uma repulsiva força genética.! … E<br />
será, certamente, essa a razão porque esperou tanto tempo sem se mani-<br />
festar; esperava um corpo único que lhe pudesse servir de receptáculo,<br />
um corpo que não fosse totalmente humano, um Anormal que a recebesse<br />
plenamente, e a desenvolvesse ainda mais através <strong>do</strong> Teotao. - expirou<br />
novamente uma densa onda de ar, Teusfilo. - Agora é imperativo elimi-<br />
nar imediatamente aquele que usa o prénome de Xiva! Meu queri<strong>do</strong> Angué-<br />
laz, ficas encarrega<strong>do</strong> dessa vital tarefa… e tenta, também, ao mesmo<br />
40
tempo, livrar a Humanidade da nefasta presença desse maldito renega<strong>do</strong><br />
Daimon!.<br />
- Seja eu o executor da vontade de Teus. - disse Anguélaz, cur-<br />
van<strong>do</strong>-se ceremonialmente, enquanto aban<strong>do</strong>nava rapidamente aquela divi-<br />
são e se dirigia para uma sala-de-reuniões no Dept.<br />
Horas mais tarde chegava Catarina para se encontrar com Teusfilo.<br />
Sentia-se preocupada e inquieta desde aquele sonho na noite ante-<br />
rior; mas, apesar daquilo, resolvera não informar o ancião-chefe da-<br />
quela bizarra experiência pela qual passara, era-lhe demasiadamente<br />
íntima e privada.<br />
Minutos depois, encaminhava-se até ao exteriormente fecha<strong>do</strong> quar-<br />
to de Xiva, para o finalmente iniciar no Teotao; quan<strong>do</strong> Daimon a puxou<br />
para lhe falar.<br />
Ela conhecia-o bem; na verdade, haviam cresci<strong>do</strong> juntos e existira<br />
entre os <strong>do</strong>is uma profunda amizade, praticamente fraternal, até ele<br />
desaparecer e aban<strong>do</strong>nar a Família, cortan<strong>do</strong> a sua psico-ligação a<br />
Teus.<br />
- Toma; agarra neste «transporta<strong>do</strong>r». - disse Daimon a Catarina,<br />
pon<strong>do</strong>-lhe nas mãos uma pequena pirâmide-triangular metálica e multico-<br />
lorida.<br />
- Para quê? - perguntou surpresa. - Isto vai dar a que sítio?!<br />
- Não há tempo… vai; antes que eles desconfiem. - quase lhe orde-<br />
nou, Daimon, partin<strong>do</strong> apressa<strong>do</strong>.<br />
(Um «transporta<strong>do</strong>r» era um <strong>do</strong>s mais rápi<strong>do</strong>s meios-de-transporte<br />
conheci<strong>do</strong>s naquela época, a sua mecânica baseava-se nas viagens tempo-<br />
rais, embora a deslocação que ele fornecia fosse apenas espacial; um<br />
par de transporta<strong>do</strong>res, coloca<strong>do</strong>s em diferentes e afasta<strong>do</strong>s locais,<br />
podia abrir um túnel que os ligasse entre si. Aquele túnel seria exte-<br />
41
ior à própria realidade espácio-temporal, ou seja, o trajecto de uma<br />
extremidade à outra demoraria apenas aproximadamente zero segun<strong>do</strong>s por<br />
quilometro, anulan<strong>do</strong> assim o factor «Distância», pois <strong>do</strong>is pontos li-<br />
ga<strong>do</strong>s por um par de transporta<strong>do</strong>res distavam o mesmo que outros quais-<br />
quer pontos igualmente liga<strong>do</strong>s por iguais mecanismos.)<br />
Catarina guar<strong>do</strong>u aquele objecto no seu justo e longo vesti<strong>do</strong>, e<br />
seguiu o seu interrompi<strong>do</strong> caminho.<br />
42
III<br />
A Revelação<br />
Xiva viu-a entrar no seu isola<strong>do</strong> quarto. Catarina era a única<br />
pessoa com que ele contactara, desde que fora reacorda<strong>do</strong>. Sentiu-se<br />
feliz por vê-la de novo.<br />
tao.<br />
Ela explicou-lhe que o vinha iniciar na arte meditativa <strong>do</strong> Teo-<br />
Após os próprios preparativos ritualistas, começaram a viagem<br />
conjunta pela consciência psico-genética dele.<br />
(O Teotao era uma descida mental, normalmente acompanhada por um<br />
tutor de <strong>do</strong>ns «telepáticos», até à <strong>do</strong>rmente consciência primordial <strong>do</strong><br />
indivíduo, e aí era liberta<strong>do</strong>, através de várias etapas meditativas<br />
que podiam demorar anos, to<strong>do</strong>, ou parte <strong>do</strong> seu Poder latente. Devi<strong>do</strong> à<br />
sua extrema complexidade bio-psicológica, o Teotao recorria a um pre-<br />
fixa<strong>do</strong> sistema de símbolos, que o tornavam compreensível perante as<br />
mentes-racionais <strong>do</strong> indivíduo e <strong>do</strong> seu tutor; assim, uma evolução em<br />
Poder era o ultrapassar de uma determinada barreira psico-genética,<br />
que usualmente era representada mentalmente pelo simbolismo de abrir e<br />
atravessar uma porta. O número e a dificuldade daquelas passagens de-<br />
pendia directamente <strong>do</strong> grau de Poder inconsciente em cada Anormal.)<br />
O Teotao de Xiva já havia si<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> havia várias horas.<br />
43
As suas duas mentes estavam simbolicamente num amplo espaço aber-<br />
to e esverdea<strong>do</strong>, sob um bizarro céu azul. Ao centro havia uma gigan-<br />
tesca e profunda cratera, que eles haviam escala<strong>do</strong> até ao topo. Den-<br />
tro, daquela grande ferida no solo, havia algo escuro e imenso, que<br />
tanto se assemelhava a um fun<strong>do</strong> buraco como a uma titânica esfera ne-<br />
gra.<br />
Catarina, que já fora tutora de diversos Anormais, jamais vira um<br />
simbólico cenário-mental vagamente semelhante àquele. Não havia nenhu-<br />
ma porta, apenas aquela tremenda coisa densamente obscura, embutida<br />
nas profundezas daquela invulgar cratera. Não conseguia entender o que<br />
mentalmente via!<br />
Xiva confessou-lhe que sentira uma estranhamente atractiva neces-<br />
sidade de saltar para o interior daquilo, mas que ao mesmo tempo havia<br />
uma imensa força que o repelia impedin<strong>do</strong>-o de realizar tal acto.<br />
Quan<strong>do</strong> olhavam fixamente para aquilo, surgiam na sua superfície<br />
rápidas imagens de corpos sangrentos e mutila<strong>do</strong>s que uivavam de uma<br />
horrível forma <strong>do</strong>lorosa gritan<strong>do</strong> um estranho nome. Aquelas cenas ti-<br />
nham o invulgar efeito em Xiva; ele parecia hipnotiza<strong>do</strong> por aqueles<br />
fugazes quadros de violência, era como se ele fizesse parte daquela<br />
brutal realidade, mas igualmente sentia em si um inexplicável senti-<br />
mento de horroriza<strong>do</strong> temor e culpa que o forçava a afastar-se daquela<br />
espécie de encantamento.<br />
- Eu sou… «“isto”»?!? - perguntou ele a Catarina, de repente e<br />
num inocente tom de me<strong>do</strong> e horror.<br />
- Não sei! Não… sei! - foi a única resposta que saiu da boca es-<br />
pantada dela.<br />
- Eu… - o som da voz de Xiva era agora firme, embora infesta<strong>do</strong> de<br />
algumas hesitações. - Eu… não quero… Recuso-me a ser “isto”! - o ar<br />
44
saiu-lhe forte pelas duras narinas. - Se “isto” está em mim, então em<br />
mim ficará encarcera<strong>do</strong> para sempre!. Renego to<strong>do</strong>s os meus <strong>do</strong>ns de<br />
Anormal, viverei como um simples humano até à minha <strong>Morte</strong>… e “isto”<br />
morrerá comigo.!<br />
Catarina aproximou-se dele abraçou-o suavemente, tentan<strong>do</strong> confor-<br />
tá-lo dan<strong>do</strong>-lhe alguma calma. Na verdade, não sabia que outra atitude<br />
tomar perante aquela tão bizarra situação. Ao aproximarem-se os seus<br />
rostos, ela experienciou o mesmo sentimento que pressentira naquele<br />
homem de negro, que ela havia sonha<strong>do</strong> na anterior noite; assustada,<br />
afastou-se bruscamente de Xiva.<br />
Ele olhou-a, surpreendi<strong>do</strong> com a sua bruta reacção. Na face dele<br />
havia uma densa tristeza, e escorria-lhe, pelos secos contornos da sua<br />
magra cara, uma solitária lágrima, que caiu profunda naquela aberta<br />
cratera, calan<strong>do</strong>, por momentos, as <strong>do</strong>lorosas vozes, que berravam por<br />
alguém, naquela escura superfície esférica.<br />
∴<br />
Terminaram aquela sua primeira, e talvez última(assim, pensavam<br />
eles), sessão <strong>do</strong> Teotao.<br />
Catarina preparava-se para aban<strong>do</strong>nar o quarto de Xiva. Iria rapi-<br />
damente informar Teusfilo, que já não necessitava de se preocupar com<br />
aquele Anormal, pois ele próprio havia decidi<strong>do</strong> não prosseguir pelo<br />
meditativo caminho <strong>do</strong> Teotao; contar-lhe-ia, também, o mais detalhada-<br />
mente possível, o que se sucedera naquele estranho cenário-mental.<br />
Um súbito ruí<strong>do</strong> fê-la recuar alguns passos. Alguém disparava fre-<br />
neticamente sobre a encerrada abertura daquele quarto, que fora espe-<br />
cialmente programada para apenas se abrir exclusivamente à sua passa-<br />
gem.<br />
45
Um pedaço de sólida parede evaporou-se perante o espanta<strong>do</strong> olhar<br />
de Catarina. Do outro la<strong>do</strong> surgiu um grupo de arma<strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, lide-<br />
ra<strong>do</strong> por um homem que parecia ser Anguélaz, o Primeiro-Assessor <strong>do</strong> an-<br />
cião-chefe. Eram óbvias as suas intenções!<br />
Xiva, que nada entendia <strong>do</strong> que estava a acontecer, olhou para<br />
ela, como se procurasse a protecção daquela que era a sua tutora, e o<br />
único Ser que ele conhecia em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.<br />
Ela sentiu-se subitamente dividida entre aquele homem, que mal<br />
tivera tempo de conhecer, e a Família, perante a qual lhe era exigida<br />
uma inata fidelidade. Aquele Anormal dependia de si, a sua obrigação<br />
era vigiá-lo e guiá-lo na sua nova vida; devia protegê-lo, e não o<br />
condenar à <strong>Morte</strong>, por algo que ele ainda não fizera, nem tinha a abso-<br />
luta certeza que viria a fazer. Mas era ela uma Familiar, não devia<br />
opor-se… ! Olhou para Xiva, ali estava ignoran<strong>do</strong> que se preparava para<br />
morrer; naquele momento, na sua mente surgiu aquele homem de negro,<br />
que ela sonhara, falan<strong>do</strong>-lhe numa voz dura, mas carinhosamente sibi-<br />
lante.<br />
- Salva-o… ama-me! Salva-me… ama-o! - ao pronunciar aquilo, o ho-<br />
mem esvaiu-se <strong>do</strong>s pensamentos de Catarina.<br />
Ela olhou novamente para Xiva, ele mostrava-se estranhamente pas-<br />
sivo, como se esperasse uma qualquer reacção dela. Tomou, por fim, uma<br />
decisão; talvez, não fosse a correcta, mas a isso só o Tempo responde-<br />
ria; uma coisa era-lhe certa e inegável, após aquela decisão, toda a<br />
sua vida sofreria uma radical e drástica mudança de direcção!. Valeria<br />
a pena? A resposta era-lhe, naquele momento, oculta; mas, agora, ape-<br />
nas sabia que tinha que agir.<br />
46
- Anda para trás! O mais rápi<strong>do</strong> possível. - gritou Catarina para<br />
Xiva; enquanto pressionava e atirava para o chão o transporta<strong>do</strong>r, que<br />
trazia guarda<strong>do</strong> no seu branco vesti<strong>do</strong>.<br />
Surpresos por aquela atitude, os solda<strong>do</strong>s reagiram tarde demais.<br />
A nebulosa extremidade, de um túnel de energia, abriu-se numa<br />
rápida e estron<strong>do</strong>sa ventania.<br />
Xiva, seguin<strong>do</strong> os actos de Catarina, atravessou apressa<strong>do</strong> aquela<br />
súbita e inesperada saída-de-emergência.<br />
Num momento; estavam os <strong>do</strong>is novamente sobre um chão sóli<strong>do</strong>, mas<br />
num local completamente diferente, na outra ponta daquela passagem<br />
não-material.<br />
- Desactivem o transporta<strong>do</strong>r deste la<strong>do</strong>. Depressa… antes que eles<br />
se transportem também pelo túnel! - a voz enervada, que gritava aquela<br />
ordem, fora logo reconhecida por Catarina, era a de Daimon.<br />
Xiva vira que um homem, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> túnel, dera uma ordem<br />
para avançar, aos solda<strong>do</strong>s. Aqueles, a disparar fortemente, encaminha-<br />
ram-se sem hesitações para a abertura energética.<br />
- Fechem o túnel; já. - gritou outra vez, Daimon.<br />
- O nosso transporta<strong>do</strong>r já… já foi desactiva<strong>do</strong>… - aflitíssimo ex-<br />
plicava-lhe um homem gor<strong>do</strong>, e já de alguma idade avançada; que poste-<br />
riormente seria apresenta<strong>do</strong> a Xiva como sen<strong>do</strong> Incôbuz, o Fiel-Servente<br />
de Daimon. - … mas algo exterior impede o túnel de ser extinto!<br />
-Anguélaz!!! - berrou Catarina, recordan<strong>do</strong> o especial <strong>do</strong>m, daque-<br />
le, para controlar as artificias perturbações da realidade espácio-<br />
temporal, vulgarmente reconhecidas como «túneis».<br />
Os solda<strong>do</strong>s continuavam a avançar para a aberta passagem, dispa-<br />
ran<strong>do</strong> potentes raios sobre aqueles que já se encontravam após a extre-<br />
midade final daquela longa abertura.<br />
47
Um tiro-de-energia acertou no peito de Catarina, que pelo violen-<br />
to impacto foi atirada ao duro chão.<br />
- Não! Ela; não!! - uivou furioso Xiva, ao ver aquela, que o<br />
havia salvo, a sua tutora, caída e brutalmente ferida.<br />
Então, como num acto irracional, enfrentou a boca <strong>do</strong> túnel, por<br />
onde iam começar a sair aqueles sanguinários solda<strong>do</strong>s; sentiu um rai-<br />
voso Ódio a crescer no interior da sua mente, e a invadir to<strong>do</strong> o seu<br />
corpo, cobrin<strong>do</strong>-o como um majestosamente sombrio manto negro; naquele<br />
momento, viu aquela passagem energética dentro de si, e erecta no seu<br />
centro havia uma figura que simbolizava a força mental dum homem, que<br />
ele nunca vira, mas que inexplicavelmente reconhecera como sen<strong>do</strong> An-<br />
guélaz, o servi<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s desejos de Teusfilo. Xiva ergueu a mão direita,<br />
num gesto irreflecti<strong>do</strong>, e fechou-a com brutalidade, moven<strong>do</strong> vertical-<br />
mente o seu braço; tornan<strong>do</strong>-se, aquele inespera<strong>do</strong> acto, na expressão<br />
exterior da sua absoluta e imperativa vontade, que emergira daquele<br />
negro Ódio que brotara nele.<br />
As vozes, de Dor e mortal pânico, invadiram violentamente to<strong>do</strong>s<br />
os ouvi<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> o túnel velozmente se abateu sobre os solda<strong>do</strong>s, le-<br />
van<strong>do</strong>-os consigo para o vazio da inexistência.<br />
Xiva virou-se novamente na direcção de Catarina; e, física e men-<br />
talmente esgota<strong>do</strong>, deixou a sua cabeça cair sobre as suas, ainda, tré-<br />
mulas pernas. Ao reerguer-se, viu que to<strong>do</strong>s se haviam curva<strong>do</strong> perante<br />
si.<br />
- Eis a «Vinda» Daquele que era espera<strong>do</strong>! - ouviu alguém dizer,<br />
numa voz excitada. - Assim estava descrito… “… e o Seu primeiro «Acto»<br />
será contra os que O tentaram no Ódio; … e assim a Sua «Vinda» será<br />
proclamada no sangue daqueles que deixarão de existir…” Assim estava<br />
descrito; e assim foi feito… !!!.<br />
48
Anoitecera.<br />
∴<br />
- Foi algo verdadeiramente indescritível… - tentava explicar-se,<br />
Anguélaz perante o profundamente irrita<strong>do</strong> Teusfilo. -… era como se<br />
algo densamente obscuro tivesse penetra<strong>do</strong> na minha mente, sobrepon<strong>do</strong>-<br />
se à minha vontade; vi-me impotente perante ele!! Nada pude; os nossos<br />
guerreiros simplesmente desapareceram no vazio.!<br />
-… Como fora descrito! “… E assim a sua «vinda» será proclamada<br />
no sangue daqueles que deixarão de existir…” Maldito seja; mas eu hei-<br />
de detê-lo… hei-de detê-lo!! - suspirou em fúria, o irrita<strong>do</strong> ancião-<br />
chefe.<br />
- Por favor, dá-me o “Direito de Vingança Honrosa”; peço-te… por<br />
favor!. - implorou Anguélaz.<br />
- Tê-lo-ás, meu queri<strong>do</strong> Anguélaz… tê-lo-ás, e ainda hoje!. -<br />
afirmou, Teusfilo, forçan<strong>do</strong> um pesa<strong>do</strong> sorriso na sua pele seca.<br />
Duas horas se passaram.<br />
O Primeiro-Assessor preparava-se para entrar numa Meganave-<br />
guerreira semi-oval, que fazia parte dum mortífero esquadrão composto<br />
por 1sS ~ /500 de semelhantes unidades. Um som avisou que os potentes mo-<br />
tores-energéticos <strong>do</strong>s «ruptores»(aparelhos de função igual aos simples<br />
transporta<strong>do</strong>res, mas que dispensavam a necessidade de um par para ope-<br />
rarem, bastan<strong>do</strong> inserir nos seus sistemas as coordenadas desejadas; e<br />
cujo túnel possuía um muitíssimo maior diâmetro, o que servia essen-<br />
cialmente para o transporte de grandes veículos, usualmente utiliza<strong>do</strong>s<br />
em casos de «“ataque-rápi<strong>do</strong>”») estavam completamente activa<strong>do</strong>s e pron-<br />
tos.<br />
49
Anguélaz sentou-se na «cadeira-de-coman<strong>do</strong>», e, com um vago gesto<br />
manual, ordenou a partida a to<strong>do</strong> aquele imenso esquadrão. Xiva havia<br />
viola<strong>do</strong> a sua mente; agora seria a sua vingança, iria matá-lo, reduzi-<br />
lo a micro-pó… a ele e àqueles malditos renega<strong>do</strong>s que o seguiam; e<br />
sentiria prazer, verdadeiro prazer naquele acto de absoluta destrui-<br />
ção!.<br />
O tecto metálico, que cobria aquela <strong>do</strong>ca <strong>do</strong> Dept, abriu-se como<br />
uma frágil flor, deixan<strong>do</strong> ver a escura Noite que to<strong>do</strong> cobria no seu<br />
olhar sem estrelas.<br />
Os ruptores rugiram ferozmente, entran<strong>do</strong> em funcionamento; no<br />
largo firmamento negro foram cava<strong>do</strong>s diversos buracos que rodavam em<br />
torno de si próprios, agitan<strong>do</strong> os gases atmosféricos, o que provocou a<br />
aparência de uma pequena trovoada. As Meganaves-guerreiras libertaram<br />
um ligeiro vento escaldante e opaco, enquanto iniciavam a sua suave<br />
ascensão estron<strong>do</strong>sa em direcção àquelas aberturas celestes e trovejan-<br />
tes.<br />
No interior da «navemor»(a Meganave-guerreira que administrava<br />
to<strong>do</strong> o funcionamento daquele esquadrão), Anguélaz havia-se afunda<strong>do</strong><br />
numa multidão de monitores, que lhe transmitiam constantes relatórios<br />
sobre o que acontecia no «campo-exterior».<br />
O esquadrão começou a penetrar nos titânicos túneis flutuantes. A<br />
saída momentânea da realidade espácio-temporal agitou, com alguma bru-<br />
talidade, os solidamente rijos cascos <strong>do</strong>s veículos.<br />
Na cadeira-de-coman<strong>do</strong>, o Primeiro-Assessor sentiu, no seu corpo,<br />
as violentas vibrações que inundavam todas aquelas embarcações!<br />
Pelos monitores, podia constatar que se aproximavam rapidamente<br />
da extremidade-de-chegada; ordenou que todas as armas entrassem em<br />
50
preparação. Os artilheiros correram apressa<strong>do</strong>s para os seus postos,<br />
activan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o armamento daquelas Meganaves-guerreiras.<br />
Anguélaz experienciou uma crescente ansiedade gloriosa de matar;<br />
ficaria célebre, seria o homem que eliminara o Dragão… seria aquele<br />
que vencera o Ser maligno!, e por isso o seu nome seria historicamente<br />
recorda<strong>do</strong> e muitíssimo honra<strong>do</strong>.<br />
Já to<strong>do</strong>s os veículos haviam saí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s túneis, e pairavam, numa<br />
posição atacante, sobre a 123ª Urbi, <strong>do</strong> Sector G, da 7ª Região-<br />
continental <strong>do</strong> Oeste terrestre, onde se localizavam todas as moradas<br />
<strong>do</strong>s Protestantes. Os geossensores <strong>do</strong> Dept haviam mostra<strong>do</strong> que fora<br />
para ali que o transporta<strong>do</strong>r, deixa<strong>do</strong> no ex-quarto de Xiva, abrira a<br />
passagem espácio-temporal.<br />
To<strong>do</strong> o céu nocturno, daquela área urbana, fora subitamente cober-<br />
to por um numeroso enxame de gor<strong>do</strong>s e longos objectos metálicos de ca-<br />
racterísticas totalmente bélicas. Aquela densa sombra guerreira havia<br />
encoberto várias centenas de quilómetros de firmamento; nada se movia<br />
naqueles infesta<strong>do</strong>s ares, era a reconhecida «calmaria-préataque».<br />
Após confirmar o esta<strong>do</strong> operacional de cada embarcação sobre o<br />
seu coman<strong>do</strong>, Anguélaz, respiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong> e senti<strong>do</strong> uma acelerada satis-<br />
fação interior, deu finalmente a tão desejada ordem.<br />
- Destruam… destruam tu<strong>do</strong>!!!<br />
∴<br />
Incôbuz fora informar Daimon <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>-de-saúde de Catarina, dei-<br />
xan<strong>do</strong> assim o pensativo Xiva, no quarto-hospital, sozinho com ela.<br />
A sua ferida havia cicatriza<strong>do</strong> completamente, graças aos rápi<strong>do</strong>s<br />
cuida<strong>do</strong>s médicos a que ela fora sujeitada; mas, apesar disso, ainda<br />
não havia recupera<strong>do</strong> a consciência.<br />
51
Xiva mostrava-se preocupa<strong>do</strong>, e refugiara-se naquela divisão com a<br />
sua inconsciente tutora. Ele ficara impressiona<strong>do</strong> com a reacção que<br />
algumas daquelas pessoas, que ali se encontravam, tiveram quan<strong>do</strong> ele,<br />
sem saber como explicar, destruiu aquele estranho túnel. Trataram-no<br />
quase como algo divino; era-lhe muito desagradável, aquela situação!<br />
Embora ele tivesse decidi<strong>do</strong> não usar o seu Poder de Anormal, aquilo<br />
agira como se fosse um mero reflexo ao Ódio, que naquele momento sen-<br />
tira; temia agora!, temia não poder controlar aquela coisa negra que<br />
existia dentro de si… temia repetir aquele brutal feito! Mas mais te-<br />
mia ainda aqueles que pareciam a<strong>do</strong>rá-lo, temia as suas ocultas inten-<br />
ções. Tinha que aprender a ganhar controlo sobre si próprio, era agora<br />
imperativo.<br />
Duas figuras entraram naquele quarto. Era Incôbuz que acompanha-<br />
va, numa pose de fidelidade, Daimon.<br />
Aquele último aproximou-se da cápsula onde se encontrava encerra-<br />
da Catarina; vários cabos se fundiam naquele quase cilíndrico objecto<br />
de metal sintético, com diversos monitores nele embuti<strong>do</strong>s, que indica-<br />
vam desiguais e inconstantes linhas gráficas a três dimensões. O homem<br />
<strong>do</strong>brou-se sobre aquilo num acto de sincera e <strong>do</strong>lorida preocupação, e<br />
olhou para Xiva, que se encontrava silenciosamente ao seu la<strong>do</strong>. O ou-<br />
tro, que o acompanhara até ali, ficara em respeito, mais atrás, junto<br />
à entrada daquela pequena divisão-hospitalar. Havia uma não proclamada<br />
tensão psicológica naquele quarto, como se fosse espera<strong>do</strong> algo que não<br />
era pronunciável em voz alta.<br />
- Tu… porquê que Te recusas a seres O que és? - quebrou subita-<br />
mente o silêncio, Daimon, interrogan<strong>do</strong> num tom semi-áspero Xiva. - Ela<br />
sacrificou toda a sua vida para Te salvar! Basta um gesto Teu para a<br />
recuperares!. Porquê que hesitas?!<br />
52
- Eu não sei… - respondeu-lhe, Xiva, numa voz de frustração e re-<br />
ceio. -… não sei ser aquele que vocês desejam! Na verdade, temo-o. É<br />
algo demasia<strong>do</strong> negro… ! Tu não podes compreender. Será melhor eu mor-<br />
rer…<br />
- Ofendes a sua gloriosa acção, ao falares assim. - acusou-o,<br />
Daimon. - Ela sacrificou-se por Ti!.<br />
- Será que não compreendes… será que ninguém compreende! - a voz<br />
de Xiva elevou-se de tom. - Eu não quero ser quem tu esperas. Nunca<br />
ouviste as vozes que berram sangrentas dentro de mim, nunca sentiste<br />
as suas inconfessáveis Dores!. Eu via-as, e é um cenário horren<strong>do</strong>. -<br />
respirou por momentos. - Achas que, se eu tivesse o Saber de como a<br />
salvar, eu já não o teria feito?!! Mas… tu, bem viste!… O meu Poder é<br />
da<strong>do</strong>r de <strong>Morte</strong>… e não de Vida! - suspirou profundamente. - É tão<br />
fácil, é quase um acto natural… é-me tão fácil matar… destruir; desco-<br />
bri isso hoje… e não o quero. - parou por uns segun<strong>do</strong>s, e olhou direc-<br />
tamente nos olhos de Daimon. - Quem pagará as vidas que eu hoje tirei…<br />
será que a minha sobrevivência recompensa as suas mortes?!?<br />
- Quem não compreende és Tu! - a voz, de Daimon, era, agora,<br />
serena e dura. - Muitas mais vidas se perderão por Ti; é inevitável.<br />
Mas o Teu Poder está para além desses vulgares conceitos de Vida e<br />
<strong>Morte</strong>! Tu és Aquele que há-de vir… Nada se opõe à Tua vontade. Tu vis-<br />
te; tiveste hoje a primeira prova!<br />
Um som de alarme terminou aquele ligeira discussão.<br />
Incôbuz saiu apressa<strong>do</strong> para descobrir o que se passava, e regres-<br />
sou rapidamente com graves notícias.<br />
- To<strong>do</strong> o céu… está coberto com milhares de Meganaves-<br />
guerreiras.!!! - informou, o Fiel-Servente de Daimon, numa voz acele-<br />
rada.<br />
53
Segun<strong>do</strong>s depois, diversos impactos fizeram tremer toda aquela es-<br />
trutura, onde eles se encontravam. O ataque havia começa<strong>do</strong>!<br />
- Não há tempo para uma evacuação total!! - disse resigna<strong>do</strong>, Dai-<br />
mon. - Temos que sair daqui o mais depressa possível! Meu ama<strong>do</strong> Incô-<br />
buz… trata pessoalmente <strong>do</strong> carregamento de Catarina; nós esperamos no<br />
«veleiro»… Vamos partir para a Zona.!<br />
(O «veleiro» era uma pequena embarcação-aérea munida de geovelas,<br />
que captavam, e convertiam em energia, os humanamente imperceptíveis<br />
ventos-magnéticos da própria Terra, o que lhe dava um constante impul-<br />
so máximo de nove quilómetros por minuto. A razão, para usarem aquele<br />
mais lento meio-de-transporte e não os rápi<strong>do</strong>s transporta<strong>do</strong>res, era o<br />
seu destino, ou seja, a Zona, cuja densa poluição energética impedia a<br />
perfeita e segura estabilidade <strong>do</strong>s túneis.)<br />
Várias e repetidas explosões provocaram o desabamento da cúpula e<br />
de algumas paredes externas da Urbi; as ruas, agora expostas ao ambi-<br />
ente exterior, eram varridas por um insistente fogo de energia, que<br />
jorrava das metálicas nuvens que haviam invadi<strong>do</strong> a sua área celeste.<br />
Pela destruição <strong>do</strong> seu sistema-de-iluminação-artificial, to<strong>do</strong> aquele<br />
complexo-“urbano-habitacional” foi lança<strong>do</strong> para uma profunda e caótica<br />
escuridão. Milhões de vozes rendidas por aquele inespera<strong>do</strong> e inexpli-<br />
cável “ataque-rápi<strong>do</strong>” sucumbiam ao pânico, berran<strong>do</strong> como ferozes ui-<br />
vos, enquanto os seus corpos eram desfeitos em poças negras de sangue<br />
queima<strong>do</strong>.<br />
Um potente disparo acertou nos motores-ambientais. Uma violenta e<br />
escaldante bola-de-fogo megagigante emergiu, explodin<strong>do</strong>, das profunde-<br />
zas <strong>do</strong> subsolo, devastan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que restara ergui<strong>do</strong> ou vivo, num<br />
fervente vento furioso que se espalhou por todas as direcções, consu-<br />
54
min<strong>do</strong> toda a matéria no seu brilhantemente ofuscante clímax de escas-<br />
sos e decadentes segun<strong>do</strong>s.<br />
Nada sobrara daquela Urbi. O ataque terminou!<br />
∴<br />
Daimon e Xiva haviam mergulha<strong>do</strong> nas rochosas caves de metal da-<br />
quele complexo. Apesar da elevada profundidade <strong>do</strong> local onde se encon-<br />
travam, conseguiam ainda sentir, no vibrante ar, a brutal violência<br />
daquele ataque, que começara havia alguns minutos.<br />
Uma forma tosca vagamente semelhante a um esboço de um grande<br />
portal em arco, composto por varia<strong>do</strong>s fios e cabos escuros que se so-<br />
breponham comprimi<strong>do</strong>s, com algumas ramificações sintéticas que se fun-<br />
diam junto ao chão a um par de transporta<strong>do</strong>res. Frente àquilo estava<br />
poisa<strong>do</strong> um relativamente pequeno veículo-aéreo de cor clara; era alon-<br />
ga<strong>do</strong>, e parecia quase um horizontal cone cúbico, com largas e amplas<br />
placas desigualmente dispostas que trespassavam diagonalmente to<strong>do</strong><br />
aquele sóli<strong>do</strong> de metal sintético; aquilo era um veleiro.<br />
respirar.<br />
O ar ali era quente e pesa<strong>do</strong>. Xiva tinha algumas dificuldades em<br />
Incôbuz chegou monta<strong>do</strong> num paralelepípe<strong>do</strong> flutua<strong>do</strong>r, que atrás<br />
carregava a pesada cápsula que continha a inconsciente Catarina.<br />
Daimon fez-lhe um gesto para que entrasse rapidamente no veleiro.<br />
A ordem foi prontamente cumprida.<br />
Após activa<strong>do</strong> aquele arco, que na realidade era um clandestino<br />
«portal-transporta<strong>do</strong>r»(aquilo, cujo fabrico era não-oficial e comple-<br />
tamente desaprova<strong>do</strong> pela legislação da administração-planetária, ope-<br />
rava de mo<strong>do</strong> vagamente semelhante aos potentes ruptores, que eram pro-<br />
priedade exclusiva <strong>do</strong> Dept; mas com um nível de alcance-precisão muito<br />
baixo, para não falar na sua elevada insegurança devi<strong>do</strong> a ocasionais<br />
55
espasmos espácio-temporais sofri<strong>do</strong>s por aquele tipo de túnel, que era<br />
praticamente de rude construção artesanal), a pequena embarcação-<br />
aérea, conten<strong>do</strong> no seu interior já to<strong>do</strong>s os seus passageiros, iniciou<br />
o seu trajecto de fuga-de-emergência daquela quase devastada Urbi, pe-<br />
netran<strong>do</strong> à sua velocidade máxima naquela semi-instável passagem imate-<br />
rial.<br />
Logo que entraram naquele túnel espácio-temporal, sentiram por<br />
momentos uma abrasa<strong>do</strong>ra vibração que agitou como líquidas ondas toda<br />
aquela profunda cave rochosa. Segun<strong>do</strong>s depois de o veleiro ter atra-<br />
vessa<strong>do</strong> a extremidade-de-saída, aquela abertura esvaiu-se no ar con-<br />
verten<strong>do</strong>-se em nada; então, os ocupantes daquele veículo souberam den-<br />
tro de si que aquele fora o fim absoluto daquela Urbi, que continha no<br />
seu interior um pouco menos que dezasseis-milhões de habitantes, que<br />
agora eram apenas uma sangrenta recordação.<br />
Quase três dias após terem inicia<strong>do</strong> aquela forçada viagem, chega-<br />
ram finalmente às proximidades da Zona, onde aban<strong>do</strong>naram o veleiro<br />
numa das várias cavernas que perfuravam aquele lugar de estéreis ro-<br />
chas, e continuaram o resto <strong>do</strong> seu percurso monta<strong>do</strong>s no aéreo parale-<br />
lepípe<strong>do</strong>, que levava a capsula-hospitalar com o inanima<strong>do</strong> corpo de Ca-<br />
tarina. Ao fun<strong>do</strong> daqueles agrestes montes, num ári<strong>do</strong> deserto amarela-<br />
damente plano, viam-se unidas, por um curto e ligeiramente oscilante<br />
cordão umbilical, como verdadeiras gémeas, as únicas duas Urbis gemi-<br />
nadas da Terra, ou seja respectivamente, a 1091ª e a 1092ª Urbi, <strong>do</strong><br />
Sector A, da 3ª Região-continental <strong>do</strong> Norte, da Terra, onde se havia<br />
funda<strong>do</strong>, no 13 o sígulo, a Zona.<br />
Antes de partirem novamente, Xiva pediu-lhes que ocultassem a sua<br />
verdadeira identidade quan<strong>do</strong> chegassem à Zona; Daimon, um pouco con-<br />
traria<strong>do</strong> concor<strong>do</strong>u, mas com a excepção da restante elite que adminis-<br />
56
trava a Assembleia, pois aqueles já haviam si<strong>do</strong> informa<strong>do</strong>s, por ele,<br />
de toda aquela situação.<br />
- Temos então de Te dar um novo prénome… - disse, Daimon, pensa-<br />
tivo e hesitante. - Já sei… dar-Te-ei um basea<strong>do</strong> na grafia de «Catari-<br />
na»… deves achar justo, pois, além de ser a Tua tutora e quem Te deu o<br />
Teu original prénome, ela salvou-Te a vida, sacrifican<strong>do</strong>-se socialmen-<br />
te perante a Família!<br />
seja!.<br />
- Aceito… - respondeu num tom humilde e sincero, Xiva. -… assim<br />
- Chamar-Te-ás «Sahitañ». - anunciou numa pose de respeito e num<br />
tom quase cerimonial, Daimon.<br />
(«O que pertence a Catarina» ou «o que veio de Catarina», ou<br />
seja, «Sahitañ», e dever-se-á ler: «Saítanhe». Embora para alguns ou-<br />
tros cronistória<strong>do</strong>res mais clássicos seja, admito com alguma bem fun-<br />
dada lógica e coerência de simbolismo, «Çétão».<br />
Outro nome que causa grande controvérsia polémica entre os cro-<br />
nistória<strong>do</strong>res da Actualidade, devi<strong>do</strong> às inúmeras possíveis actualiza-<br />
ções gráficas que esta palavra oferece, haven<strong>do</strong> por isso várias e gra-<br />
ves confusões a nível histórico, que derivam deste importante problema<br />
de grafismo.)<br />
- Sahitañ… serei.<br />
∴<br />
Treze semanas se passaram desde que eles haviam chega<strong>do</strong> à Zona,<br />
sen<strong>do</strong> rapidamente assimila<strong>do</strong>s nas ocultas entranhas daquele não-<br />
oficial grupo que se denominava por Assembleia; lá estavam em relativa<br />
segurança.<br />
A Família fizera anunciar em grande propaganda a morte <strong>do</strong> Dragão,<br />
num acidente que danificara os motores-ambientais da 123ª Urbi, <strong>do</strong><br />
57
Sector G, da 7ª Região-continental <strong>do</strong> Oeste, da Terra, provocan<strong>do</strong> a<br />
sua devastação total. Aquilo reforçara a tranquilidade de Sahitañ, que<br />
agora era apenas um elemento de importância anónima naquele aglomera<strong>do</strong><br />
clandestino, que, apesar daquela repetitiva notícia, ainda continuava<br />
insistente na sua secreta “fé”.<br />
Catarina já havia desperta<strong>do</strong>, graças a um intensivo tratamento<br />
médico. Embora Daimon a tivesse aconselha<strong>do</strong> seriamente a fazê-lo, ela<br />
havia recusa<strong>do</strong> a cortar a sua psico-ligação à consciência paralela da<br />
Família, pois isso significaria a perda da maioria <strong>do</strong> seu Poder; e,<br />
para acalmar o renega<strong>do</strong> Familiar, afirmou que, devi<strong>do</strong> aos seus exage-<br />
ra<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ns telepáticos, o próprio Teus havia encerra<strong>do</strong> parcialmente a<br />
sua ligação psico-genética com ela, para evitar ser afoga<strong>do</strong> pelo caos<br />
de pensamentos alheios e sem nexo lógico, que a mente dela captava e<br />
armazenava momentaneamente no sector inconscientemente primário e ir-<br />
racional <strong>do</strong> seu cérebro.<br />
Junto com ela, Sahitañ regressara à prática <strong>do</strong> Teotao; não para<br />
desenvolver o seu invulgar Poder a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, mas sim para aprender a<br />
controlá-lo, conseguin<strong>do</strong> assim melhor evitar a sua utilização semi-<br />
involuntária e inexplicavelmente quase instintiva. Aquelas sessões me-<br />
ditativas haviam evoluí<strong>do</strong> bastante, em relação àquela estranha primei-<br />
ra experiência! Ele adquirira uma progressiva capacidade de <strong>do</strong>mínio<br />
sobre aquela tão poderosa coisa escura que existia dentro de si, fa-<br />
zen<strong>do</strong> parte integrante <strong>do</strong> seu próprio Ser.<br />
Incôbuz, sempre paciente, esperava-os na abertura da sua privati-<br />
va sala-de-meditação; iria acompanhá-los até ao «Assemblódromo», local<br />
de reunião <strong>do</strong>s membros da Assembleia, onde por vezes Daimon celebrava<br />
«Massis»(uma «Massi» ou «M W ai s/ s ai », que pode ser igualmente actualizada<br />
pelo grafismo da palavra «Missa»; é um termo puramente de vocação ne-<br />
58
orreligionista, que se refere a um ritualiza<strong>do</strong> monólogo expositivo e<br />
apelativo de natureza <strong>do</strong>gmática, que é partilha<strong>do</strong> por verosirmãos, e<br />
que é a reafirmação constante das raízes da sua “fé” comum).<br />
Embora o relato da morte <strong>do</strong> Dragão tivesse abala<strong>do</strong> fortemente as<br />
suas convicções, a verdade não pronunciada era que a maioria não cen-<br />
trava realmente as suas crenças naquela figura quase mítica, mas sim<br />
em Daimon, ven<strong>do</strong> nele um líder, um Ser palpável, que os conduziria na<br />
sua prometida revolta contra os seus amos, e que agora podia assumir-<br />
se como um «Alterdragão»(substituto <strong>do</strong> Dragão, «o outro Dragão»), gui-<br />
an<strong>do</strong> a Assembleia para a tão desejada Guerra; assim se explicava a<br />
não-extinção, e a crescente vitalidade daquele clandestino «grupo-de-<br />
“fé”».<br />
Uma sussurrante multidão já se reunira ansiosa naquele auditório,<br />
esperan<strong>do</strong> o seu ora<strong>do</strong>r.<br />
Catarina e Sahitañ foram leva<strong>do</strong>s até à retaguarda duma circular e<br />
alta elevação decorada, no seu topo, por uma muito recortada cerca<br />
<strong>do</strong>irada em tons de azul avermelha<strong>do</strong>; era daquele cume, que Daimon fa-<br />
laria aos seus inúmeros ouvintes reuni<strong>do</strong>s naquela gigantesca e abafada<br />
sala subterrânea.<br />
O ora<strong>do</strong>r surgiu após alguns minutos, e começou o seu habitual<br />
discurso ritualista.<br />
Apesar de ser obriga<strong>do</strong> a assistir àquilo, como «membro-<br />
anónimo»(membro de um grupo-de-“fé” que não faz parte da sua elite ad-<br />
ministrativa) da Assembleia, Sahitañ sentia-se farto de toda aquela<br />
teatralidade, chegan<strong>do</strong> mesmo a optar por a<strong>do</strong>rmecer durante algumas da-<br />
quelas aborrecidas e pesadas Massis.<br />
Um súbito e mais eleva<strong>do</strong> barulho forçou-o a acordar de repente.<br />
Olhou instintivamente para Daimon, que se encontrava vários metros<br />
59
acima da sua cabeça, numa pose quase atrapalhada e falan<strong>do</strong> numa voz<br />
irritada. Em baixo, ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu olhar, algures entre a agitada<br />
multidão, um grupo de pessoas berrava e mexia-se nervoso. Eles exigiam<br />
que aquele ora<strong>do</strong>r se assumisse imediatamente como Alterdragão e decla-<br />
rasse, sem mais esperas, o início da muito prometida Guerra.<br />
- Já disse… disse-o milhares de vezes… disse-o sempre…! - falou<br />
por fim, numa voz de autoridade, Daimon. - Eu não sou Aquele que há-de<br />
vir… eu não sou Quem to<strong>do</strong>s nós esperamos!… Apenas humildemente preparo<br />
e antecipo-vos o Seu caminho, para que to<strong>do</strong>s O reconheçam e estejam<br />
prontos para O receber!<br />
- O Dragão morreu; viva Alterdragão… se não tu, então outro o<br />
será para nós!!. - berraram algumas vozes em agressivo protesto.<br />
- Loucos… se escutam as palavras débeis da Família. - irritou-se<br />
numa fúria, Daimon; a sua voz, agora, soava em trovões de raiva. - Ó<br />
boa gente, mas de pouca fé… duvidam mesmo quan<strong>do</strong> se juram crentes!…<br />
que Ele vos per<strong>do</strong>e, pois asseguro-vos que vos está a escutar neste<br />
exacto momento.! - respirou apressa<strong>do</strong>, e continuou a sua fala, olhan<strong>do</strong><br />
por momentos para o atento e apreensivo Sahitañ. - Jamais algo é podi-<br />
<strong>do</strong> contra a Sua vontade! Melhor seria que fossem sur<strong>do</strong>s, se ouvem Ver-<br />
dade na falsidade da voz da Família. - hesitou por alguns segun<strong>do</strong>s,<br />
enquanto recuperava o fôlego. - Oiçam pois agora a Verdade… saibam<br />
pois aquilo que realmente é… Eu vos anuncio que, Aquele que há-de vir,<br />
já veio, e sobreviveu ao traiçoeiro e sangrento ataque <strong>do</strong>s Familiares;<br />
ele vive agora oculto entre nós…<br />
A multidão olhou-se inquieta, procuran<strong>do</strong> em rostos desconheci<strong>do</strong>s<br />
aquele que poderia ser o tão espera<strong>do</strong> e temi<strong>do</strong> Dragão. Os que haviam<br />
começa<strong>do</strong> aquele protesto, espalharam-se rápi<strong>do</strong>s por aquele mar de gen-<br />
te, temen<strong>do</strong> a sua inesperada fúria.<br />
60
Sahitañ mostrava abertamente o seu desagra<strong>do</strong>, e mantinha uma pose<br />
preocupada, o súbito rumo daquela Massi não lhe trazia nada que o ale-<br />
grasse; temia ser finalmente descoberto, e naquela posição estava in-<br />
defeso perante to<strong>do</strong>s aqueles violentos fanáticos.<br />
-… Creiam em mim… - continuou Daimon. -… assim foi descrito em<br />
Bíblios, “… Então os inimigos <strong>do</strong> Dragão, que deram por segura a Sua<br />
morte, não ouvirão os Seus passos a crescerem na Noite, e será tarde<br />
quan<strong>do</strong> as Suas garras tiverem rasga<strong>do</strong> as gargantas daqueles que O jul-<br />
garam venci<strong>do</strong>…; … Ele habitará oculto nas sombras, e apenas nessas<br />
Trevas será a Sua real natureza revelada…”, assim será! - concluiu da-<br />
quele mo<strong>do</strong> o seu discurso, Daimon, e retirou-se apressa<strong>do</strong> para os apo-<br />
sentos administrativos.<br />
Sahitañ seguiu-o, suspiran<strong>do</strong> de alívio, e já mais calmo; a sua<br />
confiança em Daimon fora reafirmada, a sua verdadeira identidade con-<br />
tinuara reservada apenas para alguns. Catarina e Incôbuz acompanharam-<br />
no um pouco mais atrasa<strong>do</strong>s.<br />
Um pesa<strong>do</strong> silêncio havia caí<strong>do</strong> sobre as mentes daqueles numerosos<br />
ouvintes, que começaram lentamente a dispersar-se para as suas funções<br />
quotidianas.<br />
∴<br />
Alguns mais dias se passaram sobre aquela muitíssimo agitada e<br />
excitada Massi.<br />
Daimon encontrara-se com Catarina, e pedira-lhe algum <strong>do</strong> seu tem-<br />
po para uma séria conversa.<br />
- Diz-me… Ele continua a recusar o Seu Poder? - interrogou-a num<br />
tom de preocupação.<br />
que sim!<br />
- Sim… - respondeu-lhe com alguma hesitação, Catarina. - Sabes<br />
61
- Tens que O fazeres compreender…<br />
- O quê?<br />
-… O que Ele é. Ele não pode negá-lo! Não percebes?, Ele é o Dra-<br />
gão, Ele é Aquele que há-de vir… o nosso Liberta<strong>do</strong>r! Ele foi descrito…<br />
Ele não se pode recusar a ser aquilo que será.<br />
- Isso é puro fanatismo! És igual a Teusfilo.<br />
- Não me ofendas, comparan<strong>do</strong>-me a esse velho decadente que, por<br />
tanto temer a sua morte, não a vê a aproximar-se e insanamente ignora-<br />
a.!<br />
- Vocês não vêem o homem dentro <strong>do</strong> mito!! Ele é um homem; não o<br />
podes forçar a ser algo que ele próprio abomina e teme.<br />
- Tu és a Sua tutora…<br />
-… E como tal devo honrar a sua vontade.<br />
- Não compreendes…!<br />
- Tu é que não compreendes. Eu estive lá… eu estive dentro <strong>do</strong> seu<br />
«psicuniverso»; ele não é como nós! O seu Poder não se assemelha a de<br />
nenhum outro Anormal!<br />
- Eu sei!<br />
- Não. Não é aquilo que tu pensas! Como sua tutora… não te devia<br />
dizer… devia ser confidencial… nem ele o sabe… ! Mas… talvez assim o<br />
entendas melhor!.<br />
- Por favor… diz-me… O que descobriste Nele!?!<br />
- Nenhum Anormal desenvolve totalmente o seu Poder latente, há<br />
sempre uma última barreira psico-genética… uma última porta mental que<br />
nenhum de nós consegue, ou deseja, atravessar. Existe, portanto um<br />
mun<strong>do</strong> oculto em to<strong>do</strong> nós, algo que jamais foi explora<strong>do</strong>; uma porta que<br />
serve de passagem para o la<strong>do</strong> negativo <strong>do</strong> Poder, um portal para o lu-<br />
gar temi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s nós, o «Tegonatos», o sítio da «<strong>Morte</strong> <strong>do</strong> Eu»;<br />
62
atravessar essa última porta significa deixar de existir, morrer… para<br />
sempre!.<br />
- Eu sei muito bem o que significa o Tegonatos; to<strong>do</strong>s os Anormais<br />
o sabem… mas qual é a sua relação com Sahitañ!?<br />
- Deixas-me terminar?!! - soou irritada, Catarina.<br />
- Termina.! - disse ansioso, Daimon.<br />
- Muito bem… To<strong>do</strong>s nós verificámos, quan<strong>do</strong> ele chegou, o relató-<br />
rio <strong>do</strong> Dept sobre o seu nível de eψg… era ridiculamente baixo, quase<br />
como um vulgar humano; até hoje, não conheci outro Anormal com um se-<br />
melhante reduzi<strong>do</strong> número de eψg!<br />
- Isso não é uma novidade… já o sabia!<br />
- Sim… Mas isso poderá ser a explicação para tu<strong>do</strong>… !<br />
- Como? - perguntou, já impaciente, Daimon.<br />
- Penso que devi<strong>do</strong> ao seu baixo nível de eψg… ele apenas possuía<br />
uma única barreira psico-genética, uma única porta mentalmente simbó-<br />
lica; e, quan<strong>do</strong>, pela primeira vez, executou comigo o Teotao… ele…<br />
penso que ele… ele atravessou-a automaticamente!.<br />
- Sim…!, e depois?!? - Daimon não percebera ainda o que Catarina<br />
lhe tentara dizer.<br />
- Bem… penso que aquele bizarro cenário-mental que existe dentro<br />
dele… é simplesmente o… - ela respirou fun<strong>do</strong> antes de completar aquela<br />
hesitante frase. -… é na verdade simplesmente… o Tegonatos!.<br />
nua vivo!<br />
- O Tegonatos… !!! - berrou de surpresa, Daimon. - Mas Ele conti-<br />
- Sim, é verdade.! Ele sobreviveu.! Penso que, a entrada nesse<br />
sítio negro, não significa uma morte imediata… pelo menos não signifi-<br />
63
cou para ele, nem para mim que o segui como sua tutora… mas se ele<br />
evoluir nesse Poder negativo… morrerá.<br />
- Garanto-te que não. Confia em mim! Eu digo-te… Ele sobreviverá…<br />
aconteça o que acontecer! - afirmou-lhe num estranho tom de renovada<br />
certeza, Daimon.<br />
- Será que ainda não compreendeste?! Ele penetrou no Tegonatos…!<br />
Talvez se fosse outro, com um superior nível de eψg e maior experiên-<br />
cia no Teotao… talvez ele tivesse uma ínfima hipótese de sobrevivên-<br />
cia; mas não Xiva… - Catarina assustou-se ao pronunciar aquele préno-<br />
me, e apressou-se a corrigi-lo. -… Sahitañ.! Se ele progredir em Poder<br />
no Tegonatos, decerto que apenas encontrará a sua própria morte.<br />
- Tu é que verdadeiramente não compreendes! - suspirou, Daimon. -<br />
É inevitável!. O que tu agora me disseste, apenas me ofereceu uma<br />
explicação para aquilo que eu sei como certo. - recomeçou a falar numa<br />
voz firme e segura. - Acredita!, Ele há-de evoluir em Poder!. Só te<br />
peço que… estejas lá com Ele, e O acompanhes auxilian<strong>do</strong>-O nessa Sua<br />
difícil e <strong>do</strong>lorosa tarefa!.<br />
- Assusta-me essa tua fanática certeza! Como podes saber?, não<br />
tens o <strong>do</strong>m de ver o Futuro, e apenas é tecnologicamente possível via-<br />
jar para o Passa<strong>do</strong>; isso, sim, eu sei.<br />
- Tens razão. Eu não vi o Futuro, nem viajei até lá… Ele veio ter<br />
comigo!. - ao dizer aquilo, Daimon deixou a pensativa e espantada<br />
Catarina sozinha, num escuro e escaldante corre<strong>do</strong>r aperta<strong>do</strong>.<br />
(Uma pequena nota técnica.!<br />
Primeiro ponto de análise: como é amplamente sabi<strong>do</strong>, a tecnologia<br />
das viagens temporais, apenas <strong>do</strong>mina as incursões ao Passa<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> o<br />
Futuro somente destina<strong>do</strong> ao regresso <strong>do</strong>s viajantes, devi<strong>do</strong> à deturpa-<br />
ção, originada por um sobrecarregamento de energia, intencionalmente<br />
64
provocada no “Efeito de Daffníum” que surte na realidade temporal um<br />
controla<strong>do</strong> «comportamento-“tipo-elástico”», que, aproveitan<strong>do</strong> a cor-<br />
rente de atracção homatómica que surge em todas as deslocações de cor-<br />
pos no Tempo, causa artificialmente uma dilatação excessiva daquela<br />
corrente-atractiva, o que deriva numa supracontracção energética, fa-<br />
zen<strong>do</strong> com que o corpo viajante ultrapasse diagonalmente o seu inicial<br />
ponto-temporal de partida, evitan<strong>do</strong> assim uma fatal colisão consigo<br />
próprio; mas a isso será totalmente desapropria<strong>do</strong> chamar de «viagem no<br />
Futuro», pois, na verdade, é mais exacto apelidar-lhe de «regresso a<br />
um seu Presente alarga<strong>do</strong>».<br />
Segun<strong>do</strong> ponto de análise: a cronossuspensão, que havia sofri<strong>do</strong><br />
enormes e radicais evoluções progressistas desde o perío<strong>do</strong> andrísiano<br />
até àquela época, embora fosse uma técnica paralela de viajar no Tem-<br />
po, era a única que permitia alcançar um determina<strong>do</strong> Futuro menos ou<br />
mais longínquo; mas a sua elevada insegurança, devi<strong>do</strong> ao organismo fi-<br />
car completamente vulnerável à vontade de terceiros, durante o lapso<br />
entre o ponto-temporal de partida e o de chegada, tornava-a muito pou-<br />
co apelativa para as pessoas comuns, excepto quan<strong>do</strong> dispunham da vigi-<br />
lância atenta e ressegura<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Dept, que era o único local oficial<br />
que podia operar tal tecnologia.<br />
Terceiro e último ponto de análise: a dificuldade tecnológica em<br />
viajar por meios-artificiais para o Futuro, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> corriqueiro<br />
que era feito para os vários Passa<strong>do</strong>s, é derivada da irrealizavelmente<br />
enorme quantidade de energia necessária para o fazer, o que advém da<br />
falta total de «cronoordenadas» sobre aquela obviamente tecno-<br />
desconhecida região-temporal, o que implica numerosas tentativas-erro<br />
probabilísticas, durante o decorrer da própria viagem, até se achar o<br />
ponto pretendi<strong>do</strong> e ser verificada a fiabilidade de acostagem, para<br />
65
além daquilo, o “Efeito de Daffníum” é inexplicavelmente eleva<strong>do</strong> à sua<br />
potência máxima, dan<strong>do</strong> origem a uma sua «subteórica-legal» derivação<br />
chamada de «“Daffníuomega”», ou «D ª f f Ω», ou seja, uma barreira repulsiva<br />
resultante da corrente máxima de atracção homatómica, que produzia a<br />
inversão <strong>do</strong> anteriormente referi<strong>do</strong> comportamento-“tipo-elástico”, cuja<br />
difícil passagem torna absolutamente impraticável o regresso <strong>do</strong> via-<br />
jante temporal ao seu Presente-natal; e tu<strong>do</strong> isso exige um consumo im-<br />
possível e impraticável de energia «tetradimensionalizada» que, mesmo<br />
hoje, nenhum tipo de maquinaria consegue suportar por mais <strong>do</strong> que me-<br />
ros instantes.)<br />
Sahitañ vira Daimon junto de Catarina, pareciam discutir algo,<br />
mas, o baixo tom das suas vozes alia<strong>do</strong> à distância, dera-lhe a prová-<br />
vel ilusão de segredarem; moveu a sua cadeira-a-motor-autossustentável<br />
em direcção a eles. O outro homem subitamente afastou-se apressa<strong>do</strong>,<br />
deixan<strong>do</strong>-a só e com um inexprimível ar de pasmo e profun<strong>do</strong> espanto de<br />
incompreensão.<br />
Ela viu que, aquele que fora Xiva e agora era Sahitañ, se aproxi-<br />
mava de si. Ele vestia uma túnica clara e de aspecto novo, com alguns<br />
raros salpicos de madeixas de amarelada cor roxa fugin<strong>do</strong> para o azul<br />
avermelha<strong>do</strong>.<br />
Parou junto dela, sem nada lhe dizer. Admirava apenas o seu ros-<br />
to; existia, naquele momento, na face da sua tutora, um vago temor<br />
<strong>do</strong>ce e estranhamente manso, talvez dirigi<strong>do</strong> a ele.<br />
Catarina ao vê-lo perto de si, pressentira algo crescen<strong>do</strong> dentro<br />
dele… algo, que ele próprio desconhecia existir… era como uma envol-<br />
vente sombra densamente obscura, que ameaçava cobri-lo completamente,<br />
mas que ainda se encontrava num estágio muito embrionário; era uma<br />
66
coisa apenas visível perante o seu mental olhar de <strong>do</strong>ns telepáticos,<br />
somente ela a via. Como sua tutora, devia ajudá-lo a compreender e a<br />
controlar aquilo, mas ela própria ignorava o verdadeiro potencial da-<br />
quilo, pois jamais vira algo semelhante. Além de to<strong>do</strong> o resto, havia<br />
aquele grupo de fanáticos lidera<strong>do</strong>s por Daimon, que, embora o negasse,<br />
era muito pareci<strong>do</strong> com Teusfilo e o seu pensar <strong>do</strong>gmático e absolutis-<br />
ta. O pobre Sahitañ fora força<strong>do</strong> a participar num secreto conflito ad-<br />
ministrativo <strong>do</strong> qual nada sabia ou compreendia, fora vítima de um mito<br />
que desconhecia; e, no fun<strong>do</strong>, apenas desejava viver aquela sua nova<br />
vida, e ela devia apoiá-lo naquela sua decisão, e protegê-lo daquela<br />
incompreensível violência que parecia querer emergir animada por uma<br />
inexplicável vontade própria, em seu re<strong>do</strong>r.!<br />
- Falavam sobre o quê? - rompeu finalmente o silêncio, Sahitañ.<br />
Incôbuz surgiu, de súbito, de uma esquina sombria, apressa<strong>do</strong>;<br />
impedin<strong>do</strong> assim a resposta de Catarina, o que lhe provocou um profun<strong>do</strong><br />
suspiro de alívio, disfarça<strong>do</strong> de repentino susto.<br />
- Venham… Daimon foi chama<strong>do</strong> de urgência à «Prassá»… venham… ele<br />
quer-vos lá.! - respirou ofegante aquela frase, o gor<strong>do</strong> Incôbuz.<br />
(A «Prassá», era um recinto largo e ofuscantemente ilumina<strong>do</strong>,<br />
usualmente localizável nos centros geo-urbanos de todas as Urbis, e<br />
rodea<strong>do</strong> de pequenas praças, onde decorriam várias diversificadas fei-<br />
ras-oficiais de Comércio, de trocas de bens por serviços ou vice-<br />
versa. Era também na Prassá, onde decorriam os «julgamentos-<br />
populares», absolutamente reserva<strong>do</strong>s aos réus Anormais que não tinham<br />
funções na administração <strong>do</strong> Cipu.)<br />
Após alguma apressada insistência quase autoritária, eles, por<br />
fim, seguiram o Fiel-Servente de Daimon.<br />
∴<br />
67
Haviam aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a Zona, e, três meias-horas depois, encontra-<br />
vam-se já no átrio de entrada da Prassá, onde uma barulhenta e raivosa<br />
multidão berrava uivante uma sinfonia de vozes desafinadas.<br />
Daimon, que já ali se encontrava havia vários minutos, ao vê-los<br />
chegar, saiu daquele populoso mar de agitada gente. As suas faces es-<br />
tavam excessivamente sérias, e a sua voz dura como os seus rijos ges-<br />
tos.<br />
- Ainda bem que vieram…! - parou e respirou mais profundamente,<br />
Daimon, e dirigiu a sua fala directamente para Sahitañ. - Vem ver…<br />
mais um <strong>do</strong>s nossos verosirmãos, que irá enfrentar um julgamento-<br />
popular e será condena<strong>do</strong> à morte… apenas por crer em Ti!! Ao negares<br />
Aquele que és, desprezas o sacrifício que ele irá fazer em Teu nome;<br />
Tu negas-Te, mas ele morrerá por se recusar a negar-Te!.<br />
- Que dizes?!? - perguntou-lhe num tom de enjoativa repulsa por<br />
tu<strong>do</strong> aquilo, Sahitañ. - Eu nem sei o que é um julgamento-popular; por-<br />
quê que há-de ser isso culpa minha?<br />
- Deixa-me então explicar… - disse-lhe numa voz um pouco mais se-<br />
rena, Daimon. - Alguns Anormais não são, por determinadas razões,<br />
admiti<strong>do</strong>s em funções administrativas, mas, em vez disso, são envia<strong>do</strong>s<br />
pelo Cipu para o interior da sociedade humana, para servirem de meros<br />
escravos da Humanidade… usualmente são adquiri<strong>do</strong>s, em feiras-oficiais,<br />
por alguns Seres humanos, que se convertem legalmente nos seus amos-<br />
oficiais, em troca de alimentação e habitação; assim ficam obriga<strong>do</strong>s a<br />
uma absoluta fidelidade, que se concretiza no uso exclusivo <strong>do</strong>s seus<br />
Poderes em favor das vontades <strong>do</strong>s seus <strong>do</strong>nos humanos. - expirou um<br />
duro suspiro. - Mas, por vezes, cansa<strong>do</strong> de tanta injusta subjugação,<br />
um, desses escraviza<strong>do</strong>s Anormais, recusa um desejo <strong>do</strong> seu amo… logo é<br />
rejeita<strong>do</strong> pelo seu <strong>do</strong>no, e leva<strong>do</strong> a um Tribunal geri<strong>do</strong> pela maldita<br />
68
Família, onde é condena<strong>do</strong> imediatamente à morte… ou, se for acusa<strong>do</strong> de<br />
ser um «crente-activo» <strong>do</strong> Dragão, ser-lhe-á exigida uma negação públi-<br />
ca da sua “fé”, antes da sua execução… e, caso ele recuse tal acto de<br />
redenção-oficial, é força<strong>do</strong> a comparecer num julgamento-popular, onde<br />
uma anónima multidão de humanos o flagelará, até ele confessar o seu<br />
arrependimento ou mortalmente perder os senti<strong>do</strong>s!. - a voz de Daimon<br />
soava mais amarga e <strong>do</strong>lorida. - É um muito aprecia<strong>do</strong> entretenimento<br />
humano… famílias inteiras participam sadicamente divertidas, nestes<br />
massivamente concorri<strong>do</strong>s julgamentos-populares!!.<br />
- É horrível!! - exclamou em revolta, Sahitañ.<br />
- É… Mas vem, aproxima-Te mais… é verdadeiramente uma experiência<br />
revela<strong>do</strong>ra!. - disse-lhe num duro sarcasmo, Daimon.<br />
Eles mergulharam naquela violenta multidão, e penetraram no inte-<br />
rior da Prassá.<br />
Ao meio, naquele largo recinto, estava uma metálica forma cúbica,<br />
vagamente semelhante a uma muitíssimo arcaica jaula-de-grades; aquilo<br />
estava suspenso no ar, a uns pares de metros <strong>do</strong> liso e uniformemente<br />
claro solo sintético, graças a quatro suavemente ronca<strong>do</strong>res motores-<br />
antigravitacionais de fraca potência. Lá dentro, um homem nu, deita<strong>do</strong><br />
de um mo<strong>do</strong> <strong>do</strong>lorosamente contorci<strong>do</strong>, sangrava; enquanto, que em baixo,<br />
a rui<strong>do</strong>sa gente, disparava intermitentes e dessincroniza<strong>do</strong>s raios la-<br />
ser acinzenta<strong>do</strong>s, provenientes duma pequena caixinha fechada na palma<br />
de uma das suas mãos. Aqueles raios de energia embatiam, como superfi-<br />
nas e afiadas pontas-de-lâmina, na carne <strong>do</strong> enjaula<strong>do</strong> Anormal, abrin-<br />
<strong>do</strong>-lhe pequenas feridas na sua massacrada pele, que se aprofundavam,<br />
no seu débil organismo, a cada novo impacto energético. O sangue caia<br />
em gotas inconstantes, daquela gaiola-flutuante, para supremo riso de<br />
feliz prazer da multidão que executava aquele mortífero espectáculo; a<br />
69
escura e quente poça vermelha, no chão, alargava-se a cada involuntá-<br />
rio espasmo de profunda Dor, a cada novo e insistente disparo de ener-<br />
gia.<br />
Sahitañ ouvia aquelas sonoras gargalhadas, e via horroriza<strong>do</strong><br />
pequenas crianças sobre os ombros <strong>do</strong>s seus progenitores, alegremente<br />
disparan<strong>do</strong> também os seus próprios raios laser contra aquele moribun<strong>do</strong><br />
corpo sangrento. Um profun<strong>do</strong> Ódio crescia nele, tentan<strong>do</strong> escapar ao<br />
seu cerra<strong>do</strong> e difícil controle mental. Uma mão caiu suave e firme so-<br />
bre o seu corpo; era Catarina, que se havia apercebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu conflito<br />
de vontades interior, e lhe transmitia, naquele gesto de quase cari-<br />
nho, o seu total apoio e auxilio. Ele lentamente acalmou aquela furio-<br />
sa raiva interna, que o havia coberto completamente como um negro tra-<br />
je invisível.<br />
Aquele sanguinário julgamento-popular durou por mais sete <strong>do</strong>loro-<br />
sos quartos-de-hora. No fim, após perdida a consciência daquele mor-<br />
talmente condena<strong>do</strong> e tortura<strong>do</strong> Anormal, a jaula afastou-se, oscilan<strong>do</strong><br />
suavemente no ar, daquele lugar, desaparecen<strong>do</strong> devagar no irregular<br />
horizonte urbano.<br />
A multidão demorou ainda algum tempo a dispersar-se nas suas sim-<br />
ples e relativamente aborrecidas vidas quotidianas.<br />
- Para onde vai ele?!? - perguntou numa voz magoada e quase de<br />
choro, Sahitañ.<br />
- Eu levo-Te lá… se assim o desejares!. - Daimon parecia agora<br />
inexplicavelmente mais simpático e humilde, conseguin<strong>do</strong> quase esboçar<br />
um discreto sorriso no seu rosto.<br />
Apesar de contrariada, Catarina seguiu-os. Àquele grupo juntou-se<br />
um número eleva<strong>do</strong> de algumas dezenas de outros Anormais, igualmente<br />
70
pertencentes àquele grupo-de-“fé, que também haviam assisti<strong>do</strong> àquele<br />
horren<strong>do</strong> espectáculo de sangue.<br />
Era hábito consolarem carinhosamente os seus condena<strong>do</strong>s verosir-<br />
mãos nos seus últimos momentos de vida. O perigo, de serem descobertos<br />
como membros da Assembleia, não era grande, pois os corpos inconscien-<br />
tes, das vítimas <strong>do</strong>s julgamentos-populares, eram insensivelmente ati-<br />
ra<strong>do</strong>s para a «lixeira-armazena<strong>do</strong>ra-Central», que iria alimentar poste-<br />
riormente o depósito-de-“reciclagem-energética”, e que era habitada<br />
apenas por rudes máquinas-autónomas, cujos modelos arcaicos não as <strong>do</strong>-<br />
tavam de uma mínima inteligência senso-racional capaz de detectar e<br />
identificar intrusos no seu muito poluí<strong>do</strong> ambiente-de-funcionamento.<br />
Um sujo e fe<strong>do</strong>rento monte irregular de detritos erguia-se alto<br />
cobrin<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o campo-de-visão. Demoraram algumas dezenas de minutos<br />
até acharem aquele moribun<strong>do</strong> corpo; um quase sur<strong>do</strong> gemi<strong>do</strong> de Dor, fê-<br />
los perceber que ele havia recupera<strong>do</strong>, por momentos, parcialmente a<br />
sua consciência. O grupo apressou-se na sua direcção.<br />
Daimon, como era costume, ajoelhou-se junto ao mortalmente feri<strong>do</strong><br />
Anormal, pon<strong>do</strong>-lhe a exausta cabeça ensanguentada no seu colo, e come-<br />
çan<strong>do</strong> a recitar, num baixo tom, uma arrastada lengalenga ritualista,<br />
que servia de anestesia mental, ao já semi-morto homem de aspecto ain-<br />
da muito jovem. O resto <strong>do</strong> grupo formou um esboço dum circulo em torno<br />
daqueles <strong>do</strong>is.<br />
- Apenas… - o moribun<strong>do</strong> esforçava-se por fazer soar aquelas suas<br />
últimas palavras. -… tenho pena… de… não… poder assistir… ao triunfo<br />
<strong>do</strong>… Dragão! - respirou profundamente durante vários longos minutos. -<br />
Infelizmente não… poderei… cumprir o… meu mais… queri<strong>do</strong>… desejo… -<br />
suspirou novamente. -… o meu desejo de… ver pessoalmente… o Dragão!!.<br />
71
Sahitañ sentiu novamente algo incontrolável a brotar <strong>do</strong> seu inte-<br />
rior. Aquele caí<strong>do</strong> homem fizera despertar uma in<strong>do</strong>mável fúria em si,<br />
era um sentimento poderoso e imperativo que se sobrepunha à sua racio-<br />
nalmente controlada vontade. Aquele Ser estava a morrer apenas por<br />
crer em si, por não o negar… sem nunca o ter alguma vez conheci<strong>do</strong>!.<br />
Como poderia, então, ele próprio negar aquilo que ele era; teria di-<br />
reito àquele egoísmo de privacidade e anonimato?!?<br />
Catarina olhou preocupada para ele, compreenden<strong>do</strong> perfeitamente<br />
aquilo que agitava a sua perturbada mente cansada de resistir a tanto<br />
Ódio e Dor psicológica. Tentou aproximar-se dele.<br />
Ele viu-a, aperceben<strong>do</strong>-se das suas intenções tranquilizantes,<br />
fez-lhe um manual sinal para que não continuasse o seu caminho; e mo-<br />
veu a sua cadeira-motorizada em direcção ao ajoelha<strong>do</strong> Daimon.<br />
Um forte sussurro de admiração percorreu os restantes membros da-<br />
quele grupo.<br />
Sahitañ chegou próximo <strong>do</strong> sangrento corpo daquele feri<strong>do</strong> Anormal,<br />
que estava a ser conforta<strong>do</strong> por Daimon, naqueles seus últimos minutos<br />
de vida. Uma vontade havia cresci<strong>do</strong> imperativa na sua mente, ultrapas-<br />
san<strong>do</strong> os seus próprios níveis de racional consciência. Via, de novo,<br />
mentalmente aquela enorme cratera, que era preenchida por aquela mas-<br />
siva e densamente obscura substância negra; ouvia novamente os cânti-<br />
cos <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>s que saiam <strong>do</strong>s massacra<strong>do</strong>s corpos que habitavam aquela<br />
escura superfície esférica. Ele partilhava agora o seu próprio orga-<br />
nismo com aquela pesada essência-de-escuridão, forman<strong>do</strong> somente uma<br />
absoluta e única vontade; sen<strong>do</strong> aquilo o seu próprio reflexo, e vice-<br />
versa.<br />
72
- Sai. - ordenou a Daimon, Sahitañ, numa voz altiva e firmemente<br />
autoritária. - Afastem-se to<strong>do</strong>s. Eu quero ficar a sós com o moribun-<br />
<strong>do</strong>.!<br />
Daimon olhou para ele, e descobriu o seu rosto molda<strong>do</strong> por uma<br />
ténue sombria luz. Então, baixan<strong>do</strong> em respeito a cabeça, levantou-se e<br />
em passos curtos integrou-se no grupo, que em pasmo a tu<strong>do</strong> assistia.<br />
Fez um gesto para que os restantes membros, que rodeavam aquele mui-<br />
tíssimo gravemente feri<strong>do</strong> Anormal, o seguissem, enquanto ele se afas-<br />
tava lentamente daquele lugar. Os outros confusos não compreendiam a<br />
razão que levava o líder administrativo da Assembleia a humilhar-se<br />
perante a vontade de um recente e vulgar membro-anónimo; era uma ati-<br />
tude revoltante e estranha, mas sen<strong>do</strong> força<strong>do</strong>s a seguir Daimon, viram<br />
os seus vãos protestos caírem no desprezo daquele que guiava o seu<br />
grupo-de-“fé”. Catarina, apesar de relutante, viu-se igualmente empur-<br />
rada para longe daquele sítio.<br />
O moribun<strong>do</strong> ficara somente acompanha<strong>do</strong> por Sahitañ.<br />
- Porquê que dás a tua vida em nome dum mito… que até já foi<br />
declara<strong>do</strong> morto pela voz credível da Família!?! - perguntou-lhe quase<br />
num carinhoso murmúrio, Sahitañ.<br />
- O Dragão… é… muito mais… que um simples mito mortal…! - respon-<br />
deu-lhe num tom baixo e <strong>do</strong>loroso, o feri<strong>do</strong> Anormal. - Ele é um sinal<br />
de esperança… - respirou, cortan<strong>do</strong>, por momentos, a sua fala. -… é um<br />
sinal de… triunfo sobre… aqueles… que… injustamente… criaram a nossa…<br />
raça… apenas para… ser a obediente… escrava da… arrogante e fraca<br />
Humanidade!. Ele… é um… símbolo… e os símbolos… são eternos!<br />
- É estranha essa tua “fé”, pela qual te deixaste sacrificar!<br />
- Não! Nós temos… que crer em… algo; nós… temos que… crer… que um<br />
dia seremos… finalmente… livres!. Só assim… se pode viver!!.<br />
73
- Mas tu vais morrer por essa crença!<br />
- Ainda não… compreendeste! - suspirou o moribun<strong>do</strong>. - O meu cor-<br />
po… pode morrer, mas… a minha… “fé” continua… viva, para… que outros…<br />
a… prossigam!. Se eu… negasse Aquele que há-de vir… estaria… a negar-<br />
me a mim próprio… e então, sim… estaria… verdadeiramente… a condenar-<br />
me à morte!!<br />
- E se eu te dizer que… - hesitou por momentos, Sahitañ. - “Aque-<br />
le que há-de vir” já veio; e que, poden<strong>do</strong>, nada fez para te salvar!?!<br />
- Dir-te-ia que… assim foi feita… a Sua vontade; e que… só tenho…<br />
pena… de não ter… ti<strong>do</strong> a… oportunidade… de ver… o Seu glorioso… rosto,<br />
antes de… morrer!. - reganhou novamente um <strong>do</strong>lori<strong>do</strong> fôlego, para ofe-<br />
recer mais força a uma final exclamação quase de mortal delírio. - Ele<br />
é… a “fé”!!!!.<br />
- Terias tu, então “fé” suficiente, em ti mesmo… - hesitou e res-<br />
pirou profundamente, Sahitañ. -… se eu te ordenasse que te levantasses<br />
e vivesses cura<strong>do</strong> de todas essas tuas feridas mortais?!<br />
- Quem és tu… para… me ordenares tal… impossível acto!!?<br />
- Pois bem, eu digo-te e ordeno-te… - a voz de Sahitañ produzia<br />
agora um bizarro eco, que cobria to<strong>do</strong> aquele lugar, num tom bruto e<br />
trovejante. -… ergue-te e vive!!!.<br />
Uma estranha sensação invadiu, como um furioso furacão, to<strong>do</strong> o<br />
sangrento corpo <strong>do</strong> caí<strong>do</strong> Anormal; sentiu-se reanima<strong>do</strong> por uma invulgar<br />
força, que o puxava para cima, obrigan<strong>do</strong>-o a erguer-se de pé, e a con-<br />
trariar a trémula fraqueza <strong>do</strong>s seus esfarrapa<strong>do</strong>s músculos; a pouco e<br />
pouco, um abrasa<strong>do</strong>r formigueiro percorreu-lhe as desfeitas vias-<br />
sanguíneas, anuncian<strong>do</strong>-lhe que um restaura<strong>do</strong>r sangue novo fazia renas-<br />
cer a Vida em to<strong>do</strong> o seu massacra<strong>do</strong> organismo. Passaram alguns demora-<br />
<strong>do</strong>s minutos, até a sua debilitada consciência tomar a posse total e<br />
74
senso-racional daquele seu renova<strong>do</strong> e saudável corpo; então, deu uns<br />
curtos e ainda cambaleantemente <strong>do</strong>lorosos passos, em direcção a Sahi-<br />
tañ.<br />
- Quem és… tu… que a própria <strong>Morte</strong>… nada pode… contra a tua… von-<br />
tade?!! - o som da sua voz ainda reflectia o choque de ter passa<strong>do</strong> por<br />
aquele indescritível processo de renovação orgânica, embora tentasse<br />
já inconscientemente adivinhar a resposta desejada àquela sua pergun-<br />
ta.<br />
- Foi dito que nada será podi<strong>do</strong> contra a minha vontade, pois eu<br />
sou o rosto que tu tanto querias ver. Por ti, pelo teu corajoso sacri-<br />
fício, pela tua inabalável “fé”… eu revelei-me!!!.<br />
- És… - quase chorou de excitação, o ex-moribun<strong>do</strong>, ao mesmo tempo<br />
que tombava de joelhos perante a aparentemente imperturbável pose de<br />
Sahitañ. -…és…!<br />
- Eu sou Sahitañ, que foi Xiva, que será o Dragão!! - anunciou<br />
numa voz despida de emoções.<br />
- Fui salvo pelo Dragão!!. - aquela frase trazia toda a “fé” da-<br />
quele homem. - Servir-Te-ei, com esta nova vida que me deste, em honra<br />
e venera<strong>do</strong> respeito… pois eu sou apenas um objecto da Tua vontade!. -<br />
disse-lhe num tom humilde e sincero.<br />
vas.<br />
-Não. - afirmou numa voz dura, Sahitañ. - Não quero que me sir-<br />
- Mas Tu és…<br />
- Não; já disse. Eu dei-te uma nova vida, num imacula<strong>do</strong> corpo<br />
renova<strong>do</strong> de Anormal… és livre; cumpre o teu maior desejo… vive!<br />
vos?!<br />
- Como posso ser livre se os meus verosirmãos ainda são escra-<br />
75
- Apesar de to<strong>do</strong> o teu sofrimento, ainda serias capaz de tu<strong>do</strong><br />
repetir… somente por uma “fé”!! - deixou emergir, Sahitañ, na sua voz<br />
um forte tom de profunda admiração por aquele homem. - És livre… esco-<br />
lhe tu o teu caminho!.<br />
- Assim farei… - disse numa voz de decidida resignação. -…e esco-<br />
lho… livremente… por Te seguir como Teu servente!. Se me consideras<br />
realmente como um homem livre, terás que respeitar esta minha escolha.<br />
- Seja feita a tua vontade!. - disse-lhe secamente, Sahitañ, num<br />
tom um pouco força<strong>do</strong>.<br />
- Antes de partirmos… e como me deste uma vida nova… - respirou<br />
fun<strong>do</strong>, hesitan<strong>do</strong>, por momentos, fazer aquele importante, mas humilde,<br />
pedi<strong>do</strong>. -… dá-me, também, por favor, um novo nome… para que to<strong>do</strong>s sai-<br />
bam que, pela Tua vontade, eu renasci para a Vida num novo homem!<br />
Sahitañ olhou então para ele, como quem olha uma crédula criança<br />
inocente, e sentiu-se imperativamente responsável por aquele jovem ho-<br />
mem nu e vesti<strong>do</strong> de seco sangue.<br />
- Se assim o desejas… - disse-lhe Sahitañ, num meigo tom.<br />
- Sim! - interrompeu-o, baixan<strong>do</strong> a cabeça até ao colo de Sahitañ,<br />
numa pose de respeito e voluntária servidão.<br />
-… serás conheci<strong>do</strong>, após este dia, pelo nome de «Cét»!. - anun-<br />
ciou-lhe Sahitañ, pon<strong>do</strong> as mãos carinhosamente sobre a sua ensanguen-<br />
tada cabeça.<br />
- Cét… eu serei, pela Tua honra!!.<br />
(«Cét», ou «Çaih -<br />
_t» na versão <strong>do</strong>s escribas biográficos das décadas<br />
finais <strong>do</strong> 31 o sígulo, é obviamente um nome de fortes raízes míticas,<br />
cuja origem parece brotar de várias palavras, de grafia semelhante, <strong>do</strong><br />
arcaico idioma terrestre, sen<strong>do</strong> incompatíveis as versões dadas pela<br />
maioria <strong>do</strong>s meus colegas cronistória<strong>do</strong>res. Num análise puramente grá-<br />
76
fica é clara que se trata duma simples derivação de «Sahitañ», signi-<br />
fican<strong>do</strong> «aquele que nasceu de Çétão»; mas na visão neorreligionista, o<br />
nome «Cét» vem da palavra «Th j u
Após extrair, a custo, a localização de Sahitañ ao Fiel-Servente<br />
de Daimon, ela correu apressada ao seu encontro. Pressentira inexpli-<br />
cavelmente que ele implorava em silêncio pela sua ajuda; era tão in-<br />
tenso aquele sentimento que a afogava por completo, tornan<strong>do</strong>-se vital<br />
cumpri-lo, para a sua própria sobrevivência.<br />
Havia corri<strong>do</strong> alguns quartos-de-hora, a pé, quan<strong>do</strong> finalmente al-<br />
cançou a sala indicada por Incôbuz. Parou junto à sua entrada, para<br />
reganhar o seu, já havia muito tempo, perdi<strong>do</strong> fôlego.<br />
Entrou. Ele, no centro daquela negramente cinzenta divisão vazia<br />
de objectos, estava absolutamente imerso numa pose de atitude medita-<br />
tiva. Apesar <strong>do</strong> imenso perigo de irreparáveis danos bio-psicológicos,<br />
Sahitañ havia executa<strong>do</strong> a entrada no Teotao sem o auxilio da sua tuto-<br />
ra.<br />
Catarina, ignoran<strong>do</strong> deliberadamente, também, algumas rígidas re-<br />
gras anti-riscos, correu para junto dele, e apressou-se a entrar men-<br />
talmente no seu psicuniverso.<br />
Novamente viu-se simbolicamente naquela esverdeada planície sob<br />
um estranho céu azul-claro; subiu a bizarra e íngreme cratera de apa-<br />
rência semi-vulcânica, que ali se encontrava alta e sombria, como uma<br />
cicatriz de memória no relva<strong>do</strong> solo. No seu topo, à beira <strong>do</strong> precipí-<br />
cio de uma larga e irregularmente recortada berma rochosa, Sahitañ,<br />
olhava, contemplan<strong>do</strong> abstraí<strong>do</strong> de todas as confusas emoções que o en-<br />
volviam como uma negra manta de retalhos, aquela obscura essência es-<br />
férica que parecia sedutoramente chamá-lo para o seu escuro seio. O<br />
rosto dele brilhava por uma intensa e invulgar luz-de-sombra, que ain-<br />
da mais realçava os acentua<strong>do</strong>s contornos ossu<strong>do</strong>s das suas faces ma-<br />
gras; enquanto grossas e secas lágrimas escorriam pela sua dura e sua-<br />
vemente rugosa pele pálida, cain<strong>do</strong> profundas sobre aquela negra esfe-<br />
78
a. Catarina aproximou-se dele, num gesto de simples carinho, e quase<br />
amor.<br />
Sahitañ virou o olhar na direcção da sua tutora, não parecia sur-<br />
preso por vê-la ali; na verdade, era como inexplicavelmente a esperas-<br />
se.<br />
- Ajuda-me… - disse a Catarina, numa voz sem qualquer tom ou emo-<br />
tivo som. - Agora sei que não me posso negar… é-me inevitável!… Eu sou<br />
“isto”!!!.<br />
79
IV<br />
A Paixão<br />
Dois anos e alguns meses haviam se consumi<strong>do</strong>, desde a renovação<br />
orgânica daquele, que agora era reconheci<strong>do</strong> como Cét.<br />
A Assembleia havia sofri<strong>do</strong> uma profunda reestruturação adminis-<br />
trativa, para melhor servir a vontade <strong>do</strong> chega<strong>do</strong>, e tão ansiosamente<br />
espera<strong>do</strong> Dragão, que era Sahitañ, que fora Xiva.<br />
Ao contrário daquilo que era deseja<strong>do</strong>, a sua vinda não foi o ime-<br />
diato princípio da querida Guerra aberta e total contra a Humanidade,<br />
que imperativamente se autoproclamava suprema-<strong>do</strong>na da Anormalidade.<br />
Sahitañ optara por uma revolução-silênciosa; ele havia reorganiza<strong>do</strong><br />
aquele clandestino grupo-de-“fé”, tentan<strong>do</strong> retirar-lhe grande parte<br />
daquela irracional atitude fanática de vocação neorreligionista e<br />
retroíntolerantista(parece erra<strong>do</strong>, duma perspectiva cronistórica,<br />
atribuir ortograficamente o prefixo «retro» a um Movimento-“sócio-<br />
ideológico” que é historicamente anterior ao legaliza<strong>do</strong> Movimento-<br />
intolerantista, embora houvesse já claras tendências intolerantistas<br />
não-oficiais desde a própria produção de Bíblios; mas a razão real,<br />
para este apêndice ortográfico, é simplesmente devida ao facto de esta<br />
específica corrente-ideológica ser absolutamente de origem clandesti-<br />
na, e por isso os cronumentos que a identificavam e caracterizavam<br />
apenas foram trazi<strong>do</strong>s para a superfície social <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> cronistórico,<br />
80
ou seja, desencobertos e oficializa<strong>do</strong>s, nos últimos anos <strong>do</strong> terceiro<br />
meio-século <strong>do</strong> 36 o sígulo, mais de setecentos anos após a «Revolução-<br />
Solar»). Ele pretendia criar uma renovada Assembleia, que reunisse a<br />
maioria <strong>do</strong>s Anormais em torno de uma meta comum, e servisse de sua voz<br />
absoluta na obrigatoriamente fundamental reclamação <strong>do</strong> seu inato «“Di-<br />
reito de Igualdade”», sen<strong>do</strong> o seu objectivo último, o convívio pacífi-<br />
co entre a Anormalidade e a Humanidade; e, por isso a final etapa da<br />
renovação daquele ex-«grupo-de-“fé”» seria a sua oficialização-social.<br />
Embora, a maioria, <strong>do</strong>s seus membros-anónimos, e até administrativos,<br />
fosse desfavorável àquela ideia de não-agressividade, viu-se forçada a<br />
aceitar, visto que era aquela a vontade inquestionável e soberana <strong>do</strong><br />
seu novo supremo-líder, Sahitañ.<br />
Durante aquele espaço-de-tempo, ele havia, com o apoio de Catari-<br />
na, progredin<strong>do</strong> bastante, embora de um mo<strong>do</strong> puramente superficial, no<br />
Teotao. Apesar de pouco profunda, a sua, relativamente pequena, evolu-<br />
ção em Poder havia si<strong>do</strong> já suficiente para o tornar mais poderoso em<br />
<strong>do</strong>ns, que muitos <strong>do</strong>s restantes Anormais, embora a natureza especifica<br />
<strong>do</strong> seu Poder fornecesse um difícil e muito discutível grau de compara-<br />
ção com a restante Anormalidade!. Mas apesar de to<strong>do</strong> o seu estranho e<br />
imenso Poder, os seus <strong>do</strong>ns ainda se encontravam muito abaixo <strong>do</strong> incri-<br />
velmente <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> Teus, a colectiva consciência paralela da Família, que<br />
lhe era em absoluto um rival superior; como fazia sempre questão Cata-<br />
rina de o alertar.!<br />
- Estão to<strong>do</strong>s prontos, Senhor. - avisou, Daimon, num humilde e<br />
servil tom firme, enquanto entrava, numa pose respeitosamente curvada,<br />
nos mal-ilumina<strong>do</strong>s aposentos de Sahitañ.<br />
- Obriga<strong>do</strong>! Eu vou já contigo. - respondeu-lhe numa voz simples.<br />
81
Momentos depois, os <strong>do</strong>is homens avançavam la<strong>do</strong>-a-la<strong>do</strong>, por um<br />
abafa<strong>do</strong> e escuro corre<strong>do</strong>r subterrâneo, até a uma larga sala escavada<br />
nas profundezas <strong>do</strong> subsolo metálico. Lá dentro, em fileiras de banca-<br />
das esculpidas nas paredes de aspecto rochoso, aguardava-os uma enorme<br />
audiência barulhenta e agitada composta por membros da Assembleia; e,<br />
numa sólida mesa, ao centro, três figuras vestidas, de luto, os espe-<br />
ravam sérias e alheias àquela rui<strong>do</strong>sa multidão colorida.<br />
Um brutal e pesa<strong>do</strong> silêncio caiu subitamente naquele auditório,<br />
quan<strong>do</strong> entrou, por fim, Sahitañ acompanha<strong>do</strong> por Daimon. Era, na verda-<br />
de, muitíssimo raro o Dragão aparecer em público; para a maioria da-<br />
queles, que se encontravam naquela imensa sala arre<strong>do</strong>ndada, era real-<br />
mente a primeira vez que o viam assim ao vivo, e tão próximo. Existia<br />
algo que o envolvia, distancian<strong>do</strong>-o, mesmo involuntariamente, das ou-<br />
tras pessoas, como um mito coberto por uma escurecida névoa mística!.<br />
Havia um enorme e profun<strong>do</strong> fosso de respeito e admiração, e até de te-<br />
mor, entre eles e o novo supremo-líder da Assembleia.<br />
Uma das figuras de negro dirigiu-se para os <strong>do</strong>is homens que havi-<br />
am ali chega<strong>do</strong>.<br />
-«Xalô»! Agradeço-te, Sahitañ, que nos tenhas aqui recebi<strong>do</strong>, na<br />
tua morada. - disse um homem, <strong>do</strong> trio, vesti<strong>do</strong> com uma afunilada bati-<br />
na preta.<br />
Daimon mostrou facialmente o seu descontentamento por aquela ób-<br />
via falta de respeito. Desde que fora tornada conhecida a presença <strong>do</strong><br />
Dragão entre os membros da Assembleia, os seus <strong>do</strong>is prénomes haviam<br />
adquiri<strong>do</strong> uma forte conotação de sacralidade neorreligionista, e por<br />
isso tornan<strong>do</strong>-se inefáveis, em verdadeiro sinal de respeitosa vassala-<br />
gem e temente obediência, sen<strong>do</strong> usualmente utiliza<strong>do</strong> apenas o termo de<br />
vocação retroíntolerantista «Senhor» para o designar.<br />
82
Embora o próprio Sahitañ se sentisse incomoda<strong>do</strong> por tal fanática<br />
devoção, via que nada lhe servia contrariá-la, mas podia antes usá-la<br />
para facilitar a afirmação a sua reforma<strong>do</strong>ra vontade.<br />
Serenamente ele gesticulou para Daimon, para que aquele ignorasse<br />
aquele descui<strong>do</strong> linguístico.<br />
- Bem-vin<strong>do</strong>s!! Espero que tenham si<strong>do</strong> bem recebi<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s<br />
nós! - disse então o supremo-líder da Assembleia, num tom educa<strong>do</strong> de<br />
cortesia.<br />
Reuniram-se to<strong>do</strong>s em torno da mesa. Aquelas figuras vestidas de<br />
preto eram os representantes de vários grupos-sociais de Anormais, que<br />
vinham firmar um pacto de adesão àquele novo movimento. Começava a dar<br />
frutos, a estratégia planeada por Sahitañ.!<br />
Aquele acto concluiu-se com uma protocolar vénia perante o supre-<br />
mo-líder, que foi alegremente aprovada por to<strong>do</strong> o auditório.<br />
(«Xalô», pacifista saudação amistosa de respeito utilizada num<br />
cenário neorreligionista, que vem da aglutinação gráfica da muito ar-<br />
caica expressão sócio-cerimónial <strong>do</strong> 7 o sígulo:«SZabl ) C)nh f gc s s e|i st!!», «A<br />
“paz” esteja connosco!!» ou «A “paz” seja aqui!!».)<br />
Várias pequenas organizações não-oficiais que reclamavam o “Di-<br />
reito de Igualdade” já se haviam fundi<strong>do</strong> à Assembleia engrossan<strong>do</strong> da-<br />
quele mo<strong>do</strong>, a pouco e pouco, o número <strong>do</strong>s seus membros, que agora se<br />
contavam em mais de um milhão-e-duzentos-e-setenta(é necessário refe-<br />
rir que a Anormalidade, incluin<strong>do</strong> a Família, naquela época, ainda não<br />
ultrapassava os cinco-milhões de indivíduos). Daí que a influência so-<br />
cial de Sahitañ começava a expandir-se gota-a-gota, até a minúscula<br />
poça se converter num pequeno mar profun<strong>do</strong>.<br />
Dez dias se esgotaram.<br />
83
Sahitañ estava somente acompanha<strong>do</strong> por Catarina, numa escura e<br />
quente sala vazia.<br />
Ela era a única que se recusava a tratá-lo por Senhor, e ele sen-<br />
tia-se feliz por aquele facto.<br />
- Diz-me… por favor, satisfaz a minha curiosidade… explica-me<br />
como é Teus! - pediu-lhe ele, no meio de um fútil e disperso diálogo.<br />
tarina.<br />
- Para que queres saber tal coisa?! - perguntou-lhe admirada, Ca-<br />
- Porque… - ele encolheu os ombros, num gesto de quem não sabia a<br />
resposta exacta; sempre tivera, desde que soubera da sua existência, a<br />
curiosidade de saber que forma tinha aquela Entidade absolutamente<br />
psíquica, achava estranho algo poder existir sem um corpo físico, Teus<br />
era um verdadeiro fenómeno; e, além disso, aquele era um Ser cujo ní-<br />
vel de Poder lhe parecia inatingível, aliás como ela constantemente o<br />
fazia recordar!, e aquilo na verdade ampliava-lhe ainda mais a sua<br />
inicial mera curiosidade.<br />
- Bem… creio que posso defini-lo como… - Catarina hesitava, pro-<br />
curan<strong>do</strong> a exactidão das palavras apropriadas. -… como… uma brilhante e<br />
colorida fogueira, que arde no vazio sem se consumir e nem necessitar<br />
de qualquer tipo de combustível… dela partem vários ramos semelhantes<br />
a vias-sanguíneas que se subdividem num complica<strong>do</strong> e confuso novelo de<br />
aparência desorganizada, ligan<strong>do</strong> Teus às mentes vivas de to<strong>do</strong>s os Fa-<br />
miliares. Penso que… será correcta esta descrição!<br />
- Interessante…!! - exclamou pensativo, Sahitañ; retoman<strong>do</strong>, de-<br />
pois, aquela leve conversa num outro assunto de maior futilidade.<br />
Uns quartos-de-hora mais tarde, surgiu na entrada daquela sala,<br />
um jovem homem alto e esguio, de cabelos longos e alaranja<strong>do</strong>s, vestin-<br />
<strong>do</strong> apenas uma curta saia justa cor-de-“cinza-ardente”. O seu esquele-<br />
84
ticamente atrofia<strong>do</strong> braço esquer<strong>do</strong> estava, como sempre estivera, quase<br />
cola<strong>do</strong> ao seu pelu<strong>do</strong> peito nu. Era Cét; ele ocupava agora o importante<br />
posto, de único servente-pessoal de Sahitañ, na hierarquia reestrutu-<br />
rada da Assembleia.<br />
- Senhor… - disse curvan<strong>do</strong>-se, Cét, num tom de cerimónia. -… por<br />
favor, vem comigo… é um assunto muito importante…!<br />
- Lembro-me de ter da<strong>do</strong> ordens específicas para que Daimon se en-<br />
carregasse, por hoje, de to<strong>do</strong>s os problemas administrativos. - resmun-<br />
gou, num tom entre o calmo e o aborreci<strong>do</strong>, Sahitañ.<br />
- Mas Senhor… é algo que deve ter a Tua pessoal assistência. É<br />
sobre aqueles representantes que assinaram, há dias, o trata<strong>do</strong> de ade-<br />
são à Assembleia. - insistiu, numa voz de respeito, Cét.<br />
- O que é que lhes aconteceu??! - preocupou-se, subitamente inte-<br />
ressa<strong>do</strong>, Sahitañ. - Eu dei-lhes um passe-de-“garantia-de-segurança”!!<br />
- Eu sei, Senhor… mas…! É melhor vir comigo!.<br />
- Muito bem!, eu vou. - disse-lhe num tom de súbita irritada<br />
inquietação, Sahitañ.<br />
Os <strong>do</strong>is homens partiram acelera<strong>do</strong>s. Catarina seguiu-os, momentos<br />
depois, ligeiramente atrasada.<br />
A atitude servil e dependente de Cét, inicialmente havia incomo-<br />
da<strong>do</strong> bastante Sahitañ; mas, agora, ele havia ganho uma espécie de ha-<br />
bituação, reconsideran<strong>do</strong> todas as suas opiniões menos positivas sobre<br />
aquele obviamente carente indivíduo, e, até mesmo, desenvolven<strong>do</strong>, para<br />
com o seu servente-pessoal, um profundamente sincero sentimento de pa-<br />
ternal fraternidade.<br />
Chegaram finalmente à sua determinada meta. Era uma das entradas-<br />
secretas para o clandestino mun<strong>do</strong>-social subterrâneo da Assembleia.<br />
85
Junto à fechada porta, estavam encosta<strong>do</strong>s, numa <strong>do</strong>rmente posição<br />
semi-caída, três ofegantes corpos vesti<strong>do</strong>s de negro. Em re<strong>do</strong>r deles,<br />
um circulo de pessoas, onde se incluíam Daimon e Incôbuz, gesticulava<br />
em aflitas vozes de preocupação.<br />
-… Foram encontra<strong>do</strong>s inconscientes, lá fora… - explicou alguém,<br />
numa voz apressada, saída <strong>do</strong> pequeno grupo de pessoas que se agitavam<br />
em torno <strong>do</strong> trio moribun<strong>do</strong>. -… foram encontra<strong>do</strong>s lá fora… sem as suas<br />
Mascp-aRes!!. Ninguém sabe o que aconteceu às suas máscaras-de-<br />
protecção-respiratória… o «registo-de-saída» indica que as usavam,<br />
quan<strong>do</strong> saíram para a superfície da Zona… mas um <strong>do</strong>s nossos verosirmãos<br />
encontrou-os… assim, quase em coma por envenenamento-gasoso!. Não sa-<br />
bemos o que lhes aconteceu… ninguém tem culpa… o registo-de-saída mos-<br />
tra claramente…<br />
- Já chega. - berrou, num tom impaciente de autoridade, Sahitañ,<br />
que mostrava óbvios sinais faciais de descontentamento. - Levem-nos<br />
imediatamente para os meus aposentos. Já!.<br />
A sua imperativa ordem foi rapidamente obedecida.<br />
No seu quarto, após ter fica<strong>do</strong> a sós com os três intoxica<strong>do</strong>s mo-<br />
ribun<strong>do</strong>s, ele colocou-se defronte deles; e, fazen<strong>do</strong> descer a sua men-<br />
te-racional ao seu psicuniverso, jorrou das suas instintivas entranhas<br />
psíquicas, como uma invisível capa negra que o envolveu totalmente, a<br />
sua consentidamente in<strong>do</strong>mável vontade de curar aqueles corpos contami-<br />
na<strong>do</strong>s. Sahitañ sentiu e mentalmente viu, cada átomo de tóxico veneno,<br />
a desaparecer no vazio, enquanto era restaurada cada danificada célu-<br />
la, daquele trio de indivíduos que usavam afunila<strong>do</strong>s e justos vesti<strong>do</strong>s<br />
pretos. Aquele processo curativo demorou escassos minutos.<br />
- Senhor…! - exclamaram quase em côro, num tom de espanto e mara-<br />
vilhada surpresa, os três homens, que lentamente reganhavam o fôlego e<br />
86
a consciência. -… És realmente o Dragão!. Que as nossas salvas vidas<br />
sirvam agora apenas a Tua vontade.!<br />
- Agradeço… - disse numa aborrecida e irritada voz, Sahitañ, que<br />
verdadeiramente detestava o fanático encantamento que o uso, <strong>do</strong>s seus<br />
poderosos <strong>do</strong>ns de Anormal, produzia nas outras pessoas. -… mas inte-<br />
ressa-me mais saber o que vos aconteceu.!.<br />
- Seja feita a Tua vontade!… - um <strong>do</strong>s três homens ergueu-se, com<br />
algum custo, <strong>do</strong> chão e começou a falar de um mo<strong>do</strong> mais lúci<strong>do</strong> e lógi-<br />
co, explican<strong>do</strong>, a Sahitañ, tu<strong>do</strong> o que lhes havia aconteci<strong>do</strong>. -… Nós<br />
temos vários associa<strong>do</strong>s na Zona, e resolvemos visitá-los, por isso<br />
saímos… tu<strong>do</strong> corria normalmente, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada surgiu, mesmo à nossa<br />
frente, uma deturpação espácio-temporal… e, ainda não tínhamos recupe-<br />
ra<strong>do</strong> <strong>do</strong> espanto, um numeroso grupo de solda<strong>do</strong>s fortemente arma<strong>do</strong>s apa-<br />
receu, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> túnel de energia… por último, antes de a<br />
abertura se fechar e desaparecer, veio um homem alto, de longos cabe-<br />
los encaracola<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>ira<strong>do</strong>s, que vestia um justo e transparentemente<br />
branco fato-macaco… fixei-o bem, porque no seu rosto, crava<strong>do</strong> por al-<br />
gumas estranhas rugas profundas, havia uma arrepiante expressão de<br />
mortífera insensibilidade… aparentemente era ele quem comandava aquele<br />
grupo bélico… - o homem, respirou fun<strong>do</strong> e continuou a sua fala. -…<br />
fomos ataca<strong>do</strong>s, deixaram-nos inconscientes e sem as nossas Mascp-aRes…<br />
não sei porque o fizeram, talvez pensassem que morreríamos de envene-<br />
namento tóxico!<br />
- Descansem agora.! - ordenou numa amável voz, Sahitañ. - Eu<br />
tenho que ir falar com Daimon. Fiquem aqui. - disse, enquanto se diri-<br />
gia para fora <strong>do</strong> seu quarto, numa apressada velocidade.<br />
Ele havia reconheci<strong>do</strong> o homem que lhe fora descrito, apesar de<br />
apenas o ter visto por escassos segun<strong>do</strong>s aquan<strong>do</strong> da sua fuga <strong>do</strong> Dept;<br />
87
havia-lhe posteriormente, num acto involuntário e semi-irracional, vi-<br />
ola<strong>do</strong> a sua mente, fican<strong>do</strong> daquele mo<strong>do</strong> a conhecê-lo íntima e detalha-<br />
damente; além daquilo, Catarina afirmara que ele possuía o <strong>do</strong>m de con-<br />
trolar as perturbações da realidade espácio-temporal, e só assim seria<br />
possível abrir uma estavelmente segura passagem imaterial no energeti-<br />
camente muito poluí<strong>do</strong> ambiente da Zona. Era Anguélaz!<br />
Sahitañ embateu, numa curva de um aperta<strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r, em Daimon,<br />
que corria aflito ao seu encontro.<br />
- Senhor… estás aqui… ainda bem! - respirou num profun<strong>do</strong> suspiro,<br />
Daimon. - Chegaram informações de “ataques-rápi<strong>do</strong>s”-pedestres a várias<br />
Urbis… os alvos são os nossos verosirmãos e os seus locais-de-<br />
reunião!!<br />
- Ãh… então foi por isso…! - exclamou numa voz baixa e num tom<br />
sem surpresa, Sahitañ. - Anguélaz está cá, na Zona; foi ele quem ata-<br />
cou os representantes…<br />
- O quê?!! Isso significa que a Família…<br />
-… prepara um ataque final contra a Assembleia. - concluiu, Sahi-<br />
tañ, a nervosa frase de Daimon.<br />
- Temos que nos preparar para os combater!<br />
- Não. - afirmou numa seca voz dura, Sahitañ. - Eu previ que tal-<br />
vez isto viesse a acontecer… com o acelera<strong>do</strong> alargamento expansivo da<br />
Assembleia, era um risco pelo qual eu tinha que optar… mais tarde ou<br />
mais ce<strong>do</strong>, algum, <strong>do</strong>s nossos novos membros não-fanáticos, poderia ce-<br />
der às pressões brutais dum julgamento da Família, e revelar tu<strong>do</strong>… de-<br />
pois seria apenas um efeito-de-<strong>do</strong>minó, até chegarem aqui!.<br />
- Esperavas já esta chacina?!, e nada fizeste!! - admirou-se em<br />
fúria, Daimon.<br />
88
- Como é teu hábito dizer, “é inevitável”!. - disse-lhe num tom<br />
suavemente sarcástico, mas profundamente sério.<br />
- Ao menos, dá ordens para os combatermos.! - suplicou, numa res-<br />
peitosamente contida raiva, Daimon.<br />
- Não. Já disse, que não. - gritou firmemente, embora numa voz<br />
calma, Sahitañ. - Este ataque apenas me fará ultrapassar algumas eta-<br />
pas intermédias <strong>do</strong> meu plano para oficializar legalmente a Assembleia.<br />
- respirou fun<strong>do</strong>. - Disseram-me que tu tinhas a habilidade de comuni-<br />
car com os Sigues; e que, um dia, há já alguns anos, contactaste<br />
directamente com o Cipu…<br />
- Sim é verdade, mas… - inexplicavelmente embaraçou-se, Daimon,<br />
assim perden<strong>do</strong> toda a sua anterior determinação agressiva.<br />
- Preciso que o contactes agora. É urgente e vital, que eu fale<br />
com ele pessoalmente! Contacta-o; só o Cipu poderá travar esta brutal<br />
atitude assassina da Família; tens que contactá-lo.<br />
- Mas…<br />
- Já. - disse numa autoritária voz, Sahitañ. - Chama-me quan<strong>do</strong> o<br />
tiveres feito. - aban<strong>do</strong>nou Daimon, com aquela pesada ordem, e regres-<br />
sou aos seus aposentos.<br />
O trémulo corpo nervoso e preocupa<strong>do</strong> de Daimon correu até ao As-<br />
semblódromo, numa estranha atitude quase irracional. A grande sala<br />
estava vazia e recheada de obliquas sombras deformadas e poeirentas.<br />
Ele, num profun<strong>do</strong> suspiro de demente desespero, caiu ajoelha<strong>do</strong> ao<br />
duro chão, numa pose cabisbaixa.<br />
- Senhor… que hei-de fazer?! - chorou secamente, num tom de cré-<br />
dula e desesperada devoção. - Eu sei que Te prometi, que serviria a<br />
Sahitañ como Te servisse a Ti mesmo, mas… Senhor!, Tu bem sabes, que o<br />
que Ele me pede é impossível, e será o fim da Assembleia! Milhares<br />
89
morrerão, por eu não poder cumprir a Sua vontade!. - respirou, rega-<br />
nhan<strong>do</strong> fôlego. - Eu jurei que manteria a Tua identidade oculta, neste<br />
Tempo, mas ao fazê-lo… não posso confessar que não fui eu quem real-<br />
mente abriu o «sinal-de-contacto» para o Cipu; foste Tu.!<br />
Naquele momento, pelo subterrâneo corre<strong>do</strong>r exterior àquela larga<br />
divisão, passava a aflita e preocupada Catarina em direcção ao quarto<br />
de Sahitañ. Surpresa de profun<strong>do</strong> e absoluto espanto e admiração, pa-<br />
rou, ao ver Daimon executar aquele estranho espectáculo solitário, num<br />
devotadamente sentimental monólogo; e, silenciosamente moveu-se para<br />
ele, ocultan<strong>do</strong>-se, por fim, encostada a uma sombria e áspera parede,<br />
para assistir curiosa ao desfecho daquela intimamente privada e bizar-<br />
ra cena.<br />
-… Foste Tu; foste sempre Tu!! - continuou o seu discurso aparen-<br />
temente singular, Daimon, sem se aperceber da dissimuladamente furtiva<br />
presença de Catarina, naquela escura sala, aban<strong>do</strong>nada havia quase três<br />
anos. - Eu sou apenas o fantoche da Tua vontade; por favor, Senhor!,<br />
ajuda-me.<br />
Então defronte ao ajoelha<strong>do</strong> homem, algo provocou um movimento nas<br />
sombras, como se subitamente elas ganhassem vida, numa ainda impercep-<br />
tível forma. Daimon calou-se, em alarme e assusta<strong>do</strong> pânico.<br />
O vulto, deforma<strong>do</strong> pela sombria iluminação, aproximou-se lenta-<br />
mente dele, como se não caminhasse pelo chão. À medida, que ele ia<br />
avançan<strong>do</strong>, as suas formas tornavam-se mais definidas.<br />
Catarina dificilmente conteve um assusta<strong>do</strong> grito de espanto,<br />
quan<strong>do</strong> viu surgir, diante de Daimon, vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> sombrio vazio, o homem<br />
que ela sonhara, anos antes, e que lhe já havia apareci<strong>do</strong> numa visão<br />
diurna; mas, daquela vez, era diferente, a figura vestida de negro di-<br />
rigia-se para Daimon, e não para ela. Aquilo não podia ser uma ilusão!<br />
90
O ajoelha<strong>do</strong> homem ergueu, um pouco, a sua cabeça, para encarar<br />
aquele masculino vulto.<br />
- Senhor… vieste!!!! - disse admira<strong>do</strong>, Daimon, num tom excita<strong>do</strong> e<br />
surpreendi<strong>do</strong>.<br />
- Esqueceste-te quem eu sou!?! - perguntou-lhe o homem de negro,<br />
com uma voz funda e rija, e num altivo tom de sonora superioridade.<br />
- Não…! Sei perfeitamente Quem és… Senhor!. - respondeu-lhe num<br />
tom temente e humilde.<br />
- Então não te surpreendas com a minha vinda aqui… que tu próprio<br />
imploravas, há poucos segun<strong>do</strong>s atrás!… Sabes bem, que nada é podi<strong>do</strong><br />
contra a minha vontade!!!. - o sombrio homem respirou, pausan<strong>do</strong>, por<br />
momentos, a sua fala. - Vai. Chama Sahitañ a este lugar.<br />
- Mas Senhor… - hesitou, um pouco trémulo, Daimon.<br />
- Vai. Já. - cortou-lhe a frase, o vulto, numa imperativa ordem<br />
seca de sentimentos.<br />
Daimon levantou-se, então, até à posição erecta, e correu apres-<br />
sa<strong>do</strong> para os aposentos <strong>do</strong> supremo-líder da Assembleia; ignoran<strong>do</strong>, uma<br />
vez mais, a oculta presença de Catarina, naquela escura divisão.<br />
Após a acelerada partida daquele homem, ela viu pasmada o mascu-<br />
lino vulto erguer a sua mão direita, na qual trazia, como das outras<br />
vezes, uma sintética luva preta; e, naquele momento, uma fraca luz<br />
inun<strong>do</strong>u a escuridão daquela sala, poden<strong>do</strong> ela assim ver que uma das<br />
rochosas paredes começava a desaparecer para o nada, dan<strong>do</strong> lugar a um<br />
curto corre<strong>do</strong>r, que dava acesso a uma enorme e ampla abertura subter-<br />
rânea, como uma gigantesca clareira num muito antigo bosque.<br />
Aquilo não se podia localizar ali! Naquele sitio, atrás daquela<br />
parede, era a «Cantina-geral», onde diariamente comiam centenas e cen-<br />
tenas de membros-anónimos da Assembleia; jamais podia existir ali<br />
91
aquela titânica cavidade rochosa. Catarina estava confusa, os seus<br />
pensamentos divagavam em milhares de direcções diferentes; no seu es-<br />
ta<strong>do</strong> de espanto, ela esquecera momentaneamente aquele misterioso homem<br />
sombrio. Ouviu passos, era Daimon, que supostamente viria acompanha<strong>do</strong><br />
por Sahitañ, na sua, mais silenciosa, cadeira-a-motor; lembrou-se no-<br />
vamente <strong>do</strong> homem-vulto, olhou na sua direcção, mas ele havia já desa-<br />
pareci<strong>do</strong>, como uma efémera e fugaz miragem de ar ou de sombras.<br />
Os <strong>do</strong>is homens chegaram rapidamente ao aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> Assemblódromo,<br />
e em espanto viram aquela inexplicável abertura numa das paredes.<br />
- Que coisa é aquela? O que é que tu fizeste??! - perguntou numa<br />
voz entre o pasmo e a autoridade, Sahitañ a Daimon.<br />
- Bem… - hesitou, tentan<strong>do</strong> disfarçar a sua ignorância, o interro-<br />
ga<strong>do</strong> homem. - … é uma passagem!.<br />
- Isso é óbvio!, mas eu ordenei que contactasses o Cipu… e em vez<br />
disso vejo apenas um buraco. - a voz de Sahitañ começava a mostrar al-<br />
guns princípios de irritação.<br />
- É isso…! - pensou adivinhar, Daimon. - É uma passagem directa<br />
para o Cipu… como um túnel espácio-temporal, mas mais sofistica<strong>do</strong>!.<br />
Tens que atravessá-la… depressa, antes que o ataque comece.<br />
Após alguma hesitação, Sahitañ decidiu por avançar, sozinho, por<br />
aquele misterioso buraco até à subterrânea caverna rochosa.<br />
Logo depois de ter entra<strong>do</strong> naquela imensa cavidade, olhou para<br />
trás e apenas viu rochas, a passagem havia desapareci<strong>do</strong>. Só havia,<br />
agora, uma coisa a fazer: seguir em frente até encontrar o Cipu!.<br />
No centro daquele gigantesco recinto, havia uma titânica estrutu-<br />
ra com o formato de uma pirâmide-rectangular amarela-<strong>do</strong>irada, e deco-<br />
rada com invulgares caractéres negros em baixo-relevo que por vezes<br />
emitiam em dessincronia um ténue brilho avermelha<strong>do</strong>; nas arestas, da-<br />
92
quele enorme sóli<strong>do</strong>-geométrico, corriam algo semelhantes a altas lâmi-<br />
nas afiadas, que se prolongavam, durante alguns metros, pelo solo, em<br />
véus de meia-lua; vários tubos e cabos saiam das suas entranhas, li-<br />
gan<strong>do</strong>-a a diversos organismos de metal, que se encontravam espalha<strong>do</strong>s<br />
por toda aquela clareira subterrânea; e numa das suas paredes-faciais<br />
existia um re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> e grande orifício, por onde era expelida, pelo ar,<br />
em direcção a uma apertada abertura dum alto túnel horizontal escava<strong>do</strong><br />
numa placa-de-rocha, uma massiva bola de pesa<strong>do</strong> aspecto metálico, num<br />
constante vai-e-vem. No tecto, flutuan<strong>do</strong> sobre o vértice da gigantesca<br />
pirâmide, brilhava, iluminan<strong>do</strong> toda aquela área, uma rui<strong>do</strong>sa esfera<br />
compacta de energia, que se encontrava envolta numa semi-transparente<br />
concha coroada de opacos raios ofuscantes. To<strong>do</strong> aquele cenário era, em<br />
tamanho, relativo a Sahitañ, pela mesma razão entre um verme e um ser<br />
humano.<br />
À velocidade máxima concedida pela sua cadeira-motorizada, ele<br />
dirigiu-se para aquela imensa pirâmide, quase por um racionaliza<strong>do</strong><br />
instinto. Demorou vários quartos-de-hora para a alcançar, paran<strong>do</strong> em<br />
frente à sua base. An<strong>do</strong>u em seu re<strong>do</strong>r, por menos de duas horas … não<br />
havia nela nenhuma forma de acessível entrada; estagnou, frustra<strong>do</strong>, o<br />
seu movimento, ele sentia-se desesperadamente impotente. O ataque da<br />
Família, já deveria ter começa<strong>do</strong> havia algum longo tempo; temia ser<br />
tarde demais, e mais entardecia enquanto em vão procurava um meio de<br />
penetrar naquela pirâmide. Gritava em fúria e sem esperança contra si<br />
próprio.<br />
Então, uma vez mais, sentiu algo a brotar dentro <strong>do</strong> seu mental<br />
psicuniverso, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>-o, ao mesmo tempo que servia a sua emergente<br />
vontade; aquilo aderia ao seu corpo, asfixian<strong>do</strong>-o numa cobertura negra<br />
que o abraçava. Numa atitude racionalmente semi-irreflectida, ele er-<br />
93
gueu tensamente os braços, deixan<strong>do</strong>-os depois cair numa pose flácida,<br />
e voltou a respirar num profun<strong>do</strong> suspiro que se fundiu num berro. Por<br />
momentos a sua visão esvaiu-se, e ele lutou em vão para não perder o<br />
<strong>do</strong>mínio racional sobre a sua consciência; mas aquele eleva<strong>do</strong> esforço<br />
mental de Sahitañ esgotava cada vez mais o seu corpo, não lhe poden<strong>do</strong><br />
resistir durante muito tempo, sen<strong>do</strong> conquista<strong>do</strong> por um maciço e impe-<br />
rativo sono, que o invadiu por inteiro, deixan<strong>do</strong> num suspenso esta<strong>do</strong><br />
involuntário de quase inconsciência.<br />
Um estranho sonho violou, então, a sua mente. Durante várias se-<br />
manas ele havia ti<strong>do</strong> agita<strong>do</strong>s pesadelos; inexplicavelmente sonhava com<br />
Teus, mas, como desconhecia a sua forma, eram sonhos abstractos de co-<br />
res obscuras, que o deixavam densamente perturba<strong>do</strong>. Havia si<strong>do</strong> aquele<br />
o mais verdadeiro, e inconfessável, motivo da inesperada pergunta que<br />
fizera a Catarina, sobre o formato da consciência paralela da Família.<br />
Aquele sonho, agora, era mais completo e perceptível.<br />
Um circulo de ardentes chamas rodeava o seu estático corpo, mas,<br />
a pouco e pouco, um compacto e géli<strong>do</strong> fumo escuro ia extinguin<strong>do</strong> as<br />
escaldantes labaredas, substituin<strong>do</strong>-se no seu lugar e forman<strong>do</strong> uma mu-<br />
ralha cónica sobre si. No topo da gasosa torre, ganhou forma uma som-<br />
bra, que se converteu num homem, que bizarramente se assemelhava a<br />
Sahitañ, ao mesmo tempo que era como o seu oposto, como um simétrico<br />
negativo de si próprio. Pele pálida, cabelos longos, óculos escuros,<br />
um traje negro, e uma luva preta formavam aquela sombria figura senta-<br />
da numa cadeira-a-motor de aspecto mais aerodinâmico e estiliza<strong>do</strong>.<br />
O negro homem, falou então, numa voz funda, uma repetida frase,<br />
que ecoou, aparentemente sem senti<strong>do</strong>, nos seus ouvi<strong>do</strong>s, até se esvair<br />
em nada.<br />
94
- Eu és Baal!!!! - afirmou numa exclamação, a Sahitañ, o homem de<br />
escuridão vesti<strong>do</strong>.<br />
(«Baal», aqui está um nome de longínquas origens gráficas bastan-<br />
te complexas! É inegável a sua associação ao homem que é sem dúvida,<br />
controvérsias sobre a qualidade da sua natureza à parte, a figura-<br />
chave da Pós-História; mas vale a pena uma curta análise <strong>do</strong> grafismo<br />
<strong>do</strong> seu nome: «Baal», tem várias prováveis géneses gráficas, assentes<br />
nos primeiros séculos <strong>do</strong> muitíssimo arcaico idioma terrestre; apesar<br />
disso, penso que posso distinguir entre três delas mais fundamentais:<br />
uma delas é «Bq a l) », ou seja, «Mal», mas não num senti<strong>do</strong> simplesmente<br />
corriqueiro, pois esse grafismo seria «jmie|v +a l)+», e sim numa conotação<br />
cerimonial, e até possivelmente pré-proto-neorreligionista; a segunda<br />
origem gráfica, a mais popularmente reconhecida de todas, de origem<br />
relativamente mais recente e claramente de vocação neorreligionista, e<br />
que para algumas interpretações intolerantistas pode surgir como sinó-<br />
nimo da primeira, é «Bqabu
lhe que aquilo era o tão deseja<strong>do</strong> interior da titânica pirâmide; ele<br />
havia consegui<strong>do</strong> finalmente entrar.<br />
Era um lugar claro, quase ofuscante, altíssimo, estan<strong>do</strong> mesmo<br />
para além <strong>do</strong> horizonte vertical, mas não muito largo. As paredes en-<br />
contravam-se incrustadas de diversos mecanismos que se agitavam em<br />
aparente dessincronia, e, ao centro, rodava uma enorme coluna disforme<br />
e irregular, que se afundava para lá <strong>do</strong> solo, e cuja extremidade supe-<br />
rior erguia-se para fora da humana visão. Aquela coluna estava ligada,<br />
através de múltiplos colori<strong>do</strong>s feixes de luz, a diversos pontos das<br />
paredes. Mais próximo <strong>do</strong> chão, o deforma<strong>do</strong> cilindro ro<strong>do</strong>piante tomava<br />
um formato oval e preenchi<strong>do</strong> por luminosas piscadelas.<br />
- Quem ousa penetrar onde eu sou?!? - soou gigante e trovejante<br />
uma voz sintética, que inundava to<strong>do</strong> aquele lugar. - Quem és? O teu<br />
bio-código não se encontra nos meus registos!<br />
- Sahitañ… mas talvez me conheças por Xiva!!. - respondeu num tom<br />
de calculada, e necessária, não-submissão.<br />
- Muito ousas… jamais alguém me tratou por “tu”! - a voz pausou<br />
por momentos. - Nem… ninguém alguma vez entrou aqui, onde eu existo! -<br />
terminou a frase, com aquilo que aparentou ser uma tentativa de simu-<br />
lação sintética de uma curta gargalhada, de carácter assusta<strong>do</strong>ramente<br />
imperial. - Eu sou o Cipu!! E tu afirmas ser um mito morto já há<br />
vários anos!… És louco, pois bravo duvi<strong>do</strong> que sejas… como ousas desa-<br />
fiar-me com essa tua insolência?!!<br />
- … E tu confias demais na boca da Família! - reafirmou, assim<br />
Sahitañ, a sua planeada pose altiva. Naquela situação teria que jogar<br />
tu<strong>do</strong> até ao fim, hesitar seria perder, e isso custar-lhe-ia, para além<br />
da sua, milhares de vidas, que arderiam na sua consciência.<br />
96
tes. <br />
tañ.<br />
- Não julgues demasia<strong>do</strong>!!! Os Familiares são apenas meus serven-<br />
- Então o ataque às Urbis foi ordena<strong>do</strong> por ti! - ironizou Sahi-<br />
- Que ataque!!? Os meus sensores não registam nenhum distúrbio. -<br />
a voz <strong>do</strong> Cipu parecia agora algo inquieta. - … E insistes na insolên-<br />
cia de me tratares por “tu”; nem Teusfilo o ousa!.<br />
- A Família está massacran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os membros da Assembleia…<br />
- Assembleia!? - a voz sintética <strong>do</strong> Sig parecia cada mais e mais<br />
confusa. - Como poderia eu ordenar a destruição de algo que desconhe-<br />
cia existir!?<br />
- Pois bem, o tempo é escasso, só há uma forma… - Sahitañ parou a<br />
sua frase, e inspirou profundamente; e a sua voz tornou-se proposita-<br />
damente mais humilde, embora num tom ainda relativamente altivo. - …<br />
mas eu posso provar o que te digo, e comprovar as minhas intenções pe-<br />
rante ti… o Sig de to<strong>do</strong> o Sistema-Solar, o Sig que é o Cipu!; se me<br />
quiseres ouvir… ?!?<br />
∴<br />
Catarina e um trio, forma<strong>do</strong> por Daimon, Incôbuz e Cét, haviam sa-<br />
í<strong>do</strong> para o exterior, para avaliarem eles próprios a situação na Zona.<br />
A tutora de Sahitañ ainda trazia a mente inquietamente perturbada<br />
por aquilo que vira no Assemblódromo, mas resolvera confrontar Daimon,<br />
numa outra ocasião, mais favorável a profun<strong>do</strong>s e sérios debates de<br />
fidelidade, e quan<strong>do</strong> possuísse provas mais sólidas e esclarece<strong>do</strong>ras<br />
<strong>do</strong>s seus reais motivos a respeito a Sahitañ e da sua misteriosa liga-<br />
ção com aquele fantasmagórico homem-sombra.<br />
Os quatro garantiam, apesar de tu<strong>do</strong>, um eleva<strong>do</strong> grau de anonimato<br />
graças ao uso das Mascp-aRes, que lhes cobriam os rostos. Assim podiam<br />
97
movimentar-se com algum maior nível de calcula<strong>do</strong> descui<strong>do</strong>, pelas ruas<br />
abertas.<br />
- Devias ter fica<strong>do</strong> lá em baixo, em maior segurança… se o Senhor<br />
souber… - disse preocupa<strong>do</strong> Incôbuz a Catarina. - … se algo te aconte-<br />
cer… que a Sua raiva não se abata sobre mim!!.<br />
- Eu conheço Anguélaz, posso ser mais útil aqui <strong>do</strong> que lá em bai-<br />
xo escondida. Eu sei como ele pensa e age; além disso os meus <strong>do</strong>ns<br />
poderão permitir-nos uma vantagem sobre ele! Eu pressinto a proximida-<br />
de <strong>do</strong>s seus pensamentos. - respondeu-lhe quase altiva.<br />
Enquanto discutiam, por entre eles passou apressada uma desarti-<br />
culada cadeira-a-motor de aspecto velho e parti<strong>do</strong>, desaparecen<strong>do</strong> veloz<br />
sobre as sombras duma esquina. Atrás, num crescen<strong>do</strong>, um som de pesa<strong>do</strong>s<br />
passos de armaduras, alertou-os para o perigo de pararem naquela rua<br />
descoberta. Aceleraram a corrida em direcção àquela curva.<br />
Um corpo projecta<strong>do</strong> contra uma parede lateral, fê-los, de súbito,<br />
travar o andamento. Corpo e cadeira separam-se no embate. Um fumo ne-<br />
gro anunciou o cheiro a carne queimada.<br />
Da esquina saiu um outro grupo de solda<strong>do</strong>s.<br />
O quarteto encostou-se, ofegante de Me<strong>do</strong>, a um muro banha<strong>do</strong> pelas<br />
sombras de alguma recém quebrada luz artificial. O ar, apesar das<br />
sofisticadas Mascp-aRes, ardia-lhes nas suadas narinas. Os <strong>do</strong>is grupos<br />
bélicos aproximavam-se, encurralan<strong>do</strong>-os numa muito provável prensa.<br />
Matraqueavam o solo com os seus duros passos, cada vez mais próximos.<br />
Um grito anunciou que tinham si<strong>do</strong> descobertos. Os guerreiro cor-<br />
reram rapidamente ao seu encontro. Em menos de um minuto viram-se com-<br />
pletamente cerca<strong>do</strong>s por armas apontadas.<br />
- O Senhor… não vai ficar nada, nada contente! - murmurou, quase<br />
para si próprio, Incôbuz.<br />
98
Um <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s destacou-se da matilha e fez-lhes um movimento<br />
duro, para que os quatro os seguissem, caminhan<strong>do</strong> em frente das suas<br />
armas. Eles, sem opção melhor, obedeceram-lhe, responden<strong>do</strong>-lhe com um<br />
forçosamente contraria<strong>do</strong> gesto pacífico.<br />
Andaram em trote, até um largo recinto. Ali o cenário era, no<br />
mínimo, horren<strong>do</strong>!!. Pilhas de pessoas desmanteladas cobriam, num tape-<br />
te vermelho-líqui<strong>do</strong>, o soalho, queima<strong>do</strong> por pequenas fogueiras que<br />
deflagravam em corpos caí<strong>do</strong>s. O cheiro a carne era absoluto naquele<br />
lugar, e afundava-se num bizarro silêncio! Ao fun<strong>do</strong>, junto a um ensan-<br />
guenta<strong>do</strong> muro, já quase desfeito em cascalho, filas de indivíduos dis-<br />
postas la<strong>do</strong>-a-la<strong>do</strong> aguardavam por algo; ao centro, numa barraca impro-<br />
visada, <strong>do</strong>is solda<strong>do</strong>s montavam guarda àquilo que muito provavelmente<br />
seria o seu centro-de-coman<strong>do</strong>. Os quatro prisioneiros foram conduzi<strong>do</strong>s<br />
até à sua entrada.<br />
- Pressinto a presença de Anguélaz. - anunciou, quase numa voz<br />
muda, mas audível, Catarina ao restante grupo.<br />
O quarteto foi empurra<strong>do</strong> com brutalidade para o interior da bar-<br />
raca, mas antes foram-lhes arrancadas as Mascp-aRes, permitin<strong>do</strong> assim<br />
uma mais fácil identificação.<br />
Alguns solda<strong>do</strong>s acompanharam-nos, permanecen<strong>do</strong>, como estátuas em<br />
alerta, nas suas costas.<br />
Lá dentro, uma mesa flutuante ia quase em toda a largura da pe-<br />
quena sala; e estava totalmente coberta por monitores e outros apare-<br />
lhos, empilha<strong>do</strong>s, numa aparente desordem, uns sobre os outros. Por de-<br />
trás daquela caótica maquinaria, surgiu um homem, com um sádico sorri-<br />
so que lhe afectava os lábios e as rugas faciais.<br />
homem.<br />
- Ora, ora! Quem me veio visitar!! - deu uma funda gargalhada, o<br />
99
- Anguélaz!!! - berraram, mas sem qualquer surpresa, Catarina e<br />
Daimon, reconhecen<strong>do</strong> o homem que, com sarcasmo, os cumprimentava.<br />
ria. <br />
rina.<br />
- Sim, sim… sou eu. - a voz dele ia cada vez se tornan<strong>do</strong> mais sé-<br />
- Porquê… que mal esta gente fez à Família? - interrogou-o, Cata-<br />
- Cala-te!!. - gritou-lhe Anguélaz. - Trai<strong>do</strong>ra! Tu<strong>do</strong> isto é, em<br />
certa parte culpa tua…<br />
- O quê!!! - protestou a mulher.<br />
- Sim! Nada disto seria necessário, se não tivesses acciona<strong>do</strong><br />
aquele transporta<strong>do</strong>r… permitin<strong>do</strong> que Xiva escapasse. - Anguélaz respi-<br />
rou fun<strong>do</strong>. - Toda esta <strong>Morte</strong> teria si<strong>do</strong> evitada!… Xiva tem que ser<br />
elimina<strong>do</strong>.<br />
- Mas há anos que a Família anunciou, com pompa, a Sua morte. -<br />
daquela vez, era Daimon o autor <strong>do</strong>s sarcasmos, num inexplicável tom de<br />
ainda orgulho e falsa inocência. - Tanto esforço apenas para perseguir<br />
um fantasma!!?!<br />
- Cala-te!! - bateu duramente na mesa, Anguélaz. - Nós sabemos<br />
que ele vive. - expirou uma pesada onda de ar. - É aqui o seu covil, é<br />
daqui que ele espalha a sua maldita influência… e aqui será o seu<br />
definitivo túmulo.! - terminou numa pequena gargalhada.<br />
- A Assembleia viverá!, mesmo sem o Senhor. - gritou, num tom de<br />
fanatismo, Cét.<br />
- Achas que a Família se interessa por um ban<strong>do</strong> louco de fanáti-<br />
cos?!? - gozou o Primeiro-Assessor de Teusfilo. - Fica saben<strong>do</strong>, que há<br />
anos, que os nossos espiões e sensores seguem to<strong>do</strong>s os movimentos de<br />
Daimon; já há muito tempo, que sabemos que é algures no subsolo da<br />
Zona a sua base-secreta; mas pouco interesse tinha para a Família, até<br />
100
descobrirmos lá, o sobrevivi<strong>do</strong> Xiva, cuja influência social crescia<br />
num ritmo totalmente indeseja<strong>do</strong>!. - respirou, numa pausa. - Ele é um<br />
vírus-genético… uma aberração na Anormalidade!, tem que ser suprimi<strong>do</strong>.<br />
- O Cipu… sabe disso tu<strong>do</strong>? - provocou, irrita<strong>do</strong>, Daimon.<br />
- Não… e quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> terminar ser-lhe-á dito que tivemos que<br />
exterminar um fanático grupo-de-“fé” que preparava uma conspiração-<br />
ataque contra Primacentris, e o próprio Cipu.! … E não sobreviverá ne-<br />
nhuma voz para desmentir a Família!!. - sorriu Anguélaz, mas estranha-<br />
mente viu o seu sorriso ser correspondi<strong>do</strong> por Daimon. - … Já agora!,<br />
neste momento onde está o vosso tão estima<strong>do</strong> senhor? - voltou a gozar,<br />
uma vez mais, numa sonora gargalhada. - Lá em baixo, decerto… cheio de<br />
Me<strong>do</strong>!, e man<strong>do</strong>u os seus fiéis vassalos espiarem a superfície. - nova-<br />
mente um som de riso. - … Mas não se preocupem!, em breve os meus sol-<br />
da<strong>do</strong>s acharão e romperão as entradas para o vosso mun<strong>do</strong>-social subter-<br />
râneo… e tu<strong>do</strong> estará, por fim, termina<strong>do</strong>. - o homem expirou profunda-<br />
mente. - É curioso!!, mas a poluição energética da Zona, que distorce<br />
parcialmente os registos <strong>do</strong>s nossos sensores, dan<strong>do</strong>-vos uma quase per-<br />
feita camuflagem, também será a causa<strong>do</strong>ra da queda <strong>do</strong> vosso queri<strong>do</strong><br />
Dragão, impedin<strong>do</strong>-o de usar um qualquer transporta<strong>do</strong>r; finalmente está<br />
encurrala<strong>do</strong>… xeque-mate!!!. - riu descontroladamente, Anguélaz; e em<br />
seguida, sinalizou algo aos guardas.<br />
Os solda<strong>do</strong>s empurraram, de novo, o prisioneiro quarteto para o<br />
exterior. Ao saírem, sentiram as narinas, e depois os próprios pul-<br />
mões, sen<strong>do</strong> arranha<strong>do</strong>s por aquele ar escaldante e pesadamente áspero e<br />
rijo da Zona. A custo, caminharam força<strong>do</strong>s, em direcção ao destroça<strong>do</strong><br />
muro frontal.<br />
101
As filas paralelas de pessoas haviam deixa<strong>do</strong> de existir em tão<br />
grande número, em compensação, mais corpos despedaça<strong>do</strong>s fumegavam san-<br />
grentos no chão.<br />
Era difícil andar naquele solo escorregadio de vermelho-escuro; e<br />
tropeçante de pedaços queima<strong>do</strong>s de carne rubra, por vezes ainda vesti-<br />
da por alguns trapos esturrica<strong>do</strong>s e ensopa<strong>do</strong>s por um liqui<strong>do</strong> escuro e<br />
grosso.<br />
Pararam frente ao muro, e foi-lhes ordena<strong>do</strong> que se voltassem para<br />
encararem os solda<strong>do</strong>s. Obedeceram.<br />
Era-lhes óbvio o que lhes fora destina<strong>do</strong>, por Anguélaz.! Ali, iam<br />
ser executa<strong>do</strong>s, sem qualquer demora.<br />
- O Senhor não vai mesmo nada gostar disto!!. - murmurou novamen-<br />
te para si próprio, Incôbuz, numa exclamação aparentemente sem senti<strong>do</strong><br />
racional.<br />
Os solda<strong>do</strong>s, num movimento automaticamente coordena<strong>do</strong>, apontaram<br />
as suas armas para o quarteto. Ouviram, então, o zumbi<strong>do</strong> vibrante pro-<br />
duzi<strong>do</strong> pela activação das armas, que, pesadas, os carrascos empunhavam<br />
com as duas mãos.<br />
Escorreram alguns minutos, em nervoso suor, que lhes pareceram<br />
insuportáveis horas!. Os seus futuros assassinos esperavam certamente<br />
por algo, alguma ordem.<br />
Por fim, surgiu, envergan<strong>do</strong> uma ultra-sofisticada Mascp-aR de cor<br />
transparente, Anguélaz, que supostamente não quereria perder tal mór-<br />
bi<strong>do</strong> espectáculo; e, numa pose quase teatral, gesticulou a ordem para<br />
dispararem.<br />
Naquele momento, um rui<strong>do</strong>so raio de luz espalhou-se no ar sobre<br />
toda a Zona, ofuscan<strong>do</strong>, por momentos, to<strong>do</strong>s os que se encontravam no<br />
seu exterior; o que impediu o imediato cumprimento da ordem de Angué-<br />
102
laz. A claridade diminui, e pôde-se ver, no artificial céu da Zona, um<br />
ligeiramente ondulante holofone.<br />
Daimon ao ver aquilo, e tentan<strong>do</strong> crer adivinhar o seu significa-<br />
<strong>do</strong>, esforçou-se por esboçar um custoso sorriso de vitória perante An-<br />
guélaz, que, juntamente com os seus solda<strong>do</strong>s, continuava num esta<strong>do</strong> de<br />
pasmo.<br />
- Anguélaz… ! - soou muitíssimo irritada, proveniente daquele me-<br />
canismo luminoso, a reconhecível voz <strong>do</strong> Cipu. - … Explica-te.<br />
- Bem… é, meu senhor… é… foi Teusfilo… quer dizer, a Família…<br />
foi… teve que… eliminar uma conspiração-ataque contra… ti… foi… ! -<br />
apanha<strong>do</strong> despreveni<strong>do</strong>, e sem a astúcia <strong>do</strong> seu ancião-chefe, Anguélaz<br />
afundava-se em balbuciantes embaraços.<br />
- Anguélaz!!!! - berrou, agora troveja<strong>do</strong> de fúria, o Cipu. -<br />
Cala-te!. Reúne to<strong>do</strong>s os teus solda<strong>do</strong>s… em todas as Urbis; e regressa<br />
ao Dept, onde terei to<strong>do</strong> o tempo para ouvir as tuas explicações… e de<br />
toda a Família. Já!!.<br />
Dito aquilo, o holofone esvaiu-se no ar.<br />
Anguélaz olhou então para o esforça<strong>do</strong> sorriso de Daimon, e a sua<br />
expressão mol<strong>do</strong>u-se numa momentânea ausência de racionalidade e auto-<br />
<strong>do</strong>mínio.<br />
- Tu… !!! - espumou furioso, apontan<strong>do</strong> para Daimon, Anguélaz.<br />
- Eu não, mas o Dragão… ! - sorriu sarcástico, num tom de fingida<br />
inocência, o que fora acusa<strong>do</strong> pelo Primeiro-Assessor de Teusfilo.<br />
- Pois bem!, se eu estou perdi<strong>do</strong> perante o Cipu… que me perca,<br />
então, completamente!! Venceram-me, mas não viverão para ver a vossa<br />
vitória. - disse Anguélaz, numa voz de louca fúria e frustração. -<br />
Disparem, disparem!!!!. - uivou para os seus assusta<strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, que,<br />
embora confusos, apressaram-se a obedecer-lhe.<br />
103
Os disparos saíram, certeiramente velozes, das suas armas.<br />
A mente de Catarina ocupou-se invulgar e exclusivamente, naquele<br />
aparentemente definitivo momento, com a imagem <strong>do</strong> rosto de Sahitañ;<br />
havia nele um estranho brilho invisível, que modificara a aparência<br />
das suas feições, era como se o visse pela primeira vez, e um indes-<br />
critível sentimento percorreu-a imaginariamente estremecen<strong>do</strong> toda a<br />
sua racional personalidade, sentiu-se a esvair-se das fronteira da sua<br />
tiranicamente delimitada razão; era curioso, jamais se sentira assim.<br />
Finalmente, ela percebeu que, a ideia de ir morrer, a libertou <strong>do</strong>s<br />
seus próprios <strong>do</strong>gmas e fabrica<strong>do</strong>s preconceitos, que a mantinham em<br />
aperta<strong>do</strong> controlo de si mesma; o que via, compreendeu ela, era o seu<br />
próprio rosto, a reflexão <strong>do</strong>s seus ocultos e inadmissíveis sentimen-<br />
tos. Por fim estava livre, podia agora confessar a si mesma o que tão<br />
ansiosamente auto-negara: ela havia aprendi<strong>do</strong> a amá-lo… era absur<strong>do</strong>,<br />
mas ela amava aquele de quem era tutora… aquele que a Família jurava<br />
ser a própria essência <strong>do</strong> Mal!! Ela amava Sahitañ!!!. Agora que ia<br />
morrer, podia admiti-lo.<br />
Os raios laser, dispara<strong>do</strong>s pelas armas <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, embateram,<br />
de súbito, a alguns milímetros <strong>do</strong>s corpos daquele quarteto condena<strong>do</strong><br />
por Anguélaz, numa fina e transparentemente vítrea concha escura, que<br />
os envolveu totalmente num abraço protector.<br />
Eles estavam vivos, salvos por aquela capa negra!.<br />
Aquilo, então, contorceu-se contrain<strong>do</strong>-se em espasmos, até adqui-<br />
rir um formato de aparência humana, como a sólida sombra dum vulto de<br />
homem.<br />
Os solda<strong>do</strong>s, já nervosamente baralha<strong>do</strong>s, em pânico por aquele bi-<br />
zarro sortilégio, correram para longe dali, ignoran<strong>do</strong> as ordens berra-<br />
das hierarquicamente pelo Familiar em fúria.<br />
104
A forma negra, foi lentamente apuran<strong>do</strong>-se, até que perdeu aquela<br />
tonalidade obscura e se tornou realmente num homem de cabelo curtíssi-<br />
mo senta<strong>do</strong> numa sofisticada cadeira-a-motor-autossustentável, vesti<strong>do</strong><br />
com um traje de cores claras.<br />
mon.<br />
- Senhor!!! - exclamou, cain<strong>do</strong> de joelhos, Cét.<br />
- O Dragão!?! - admirou-se, ainda incrédulo por estar vivo, Dai-<br />
- Sahitañ!. - suspirou, num inconfessável desejo, Catarina.<br />
O rosto de Anguélaz mostrava visivelmente o seu terror por aquela<br />
visão. De repente, sentiu uma força esmagar a sua coluna, forçan<strong>do</strong>-o a<br />
repetir involuntariamente o gesto crente de Cét. O homem recém apare-<br />
ci<strong>do</strong>, aproximou-se lentamente <strong>do</strong> ajoelha<strong>do</strong> Familiar, paran<strong>do</strong> mesmo<br />
frente à sua face contorcida, definitivamente numa mistura de Dor e<br />
raiva.<br />
- Eu sabia que Ele ia ficar muito, muito, muito zanga<strong>do</strong>.! - mur-<br />
murou, pensan<strong>do</strong> em voz alta, Incôbuz.<br />
Sahitañ mostrava-se enigmaticamente sereno, o que ainda enchia<br />
mais de pavor, o forçosamente prostra<strong>do</strong> homem.<br />
- Xiva!!! - gritou em raiva e frustrada humilhação, Anguélaz.<br />
- Devias ter parti<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o Cipu te ordenou. - falou-lhe num<br />
tom paternalista, com uma enervante voz excessivamente sibilante e<br />
calma… desumanamente calma. - Vê… to<strong>do</strong>s estes corpos clamam o meu<br />
oculto nome, graças a ti… eles morreram por minha culpa, mas foi a tua<br />
mão que os matou! - respirou em profundidade. - Diz-me… que devo eu<br />
fazer!?! Não!, já sei. Ficaras tu com as suas Dores; irei partilhar<br />
contigo a minha essência… a essência que a Família tanto teme, ficará<br />
agora também em ti… nos sonhos das tuas noites!. - de novo, expirou o<br />
escaldante e áci<strong>do</strong> ar. - Um dia, a minha tutora explicou-me que o meu<br />
105
Poder provinha dum lugar existente no psicuniverso de to<strong>do</strong>s Anormais,<br />
um lugar a que vocês chamam de Tegonatos… é isso o que agora vou par-<br />
tilhar contigo!!!. - ao dizer aquilo, Sahitañ, impôs a fria palma da<br />
sua mão direita sobre a suada e morna testa de Anguélaz, ao mesmo tem-<br />
po que levou os seus lábios a um <strong>do</strong>s ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ajoelha<strong>do</strong>, sussurran-<br />
<strong>do</strong>-lhe algo imperceptível para os restantes ouvintes, que a tu<strong>do</strong><br />
assistiam em individual espanto.<br />
- Não!!!, por favor, não!! - implorou, numa voz aterrorizadamente<br />
quase muda, Anguélaz a Sahitañ, que sereno simplesmente ignorou as su-<br />
as súplicas, continuan<strong>do</strong> apenas concentra<strong>do</strong> naquele bizarro rito. -<br />
Não!! O Tegonatos… não!!!!<br />
Quan<strong>do</strong> aquele invulgar ritual se finalizou, o Primeiro-Assessor<br />
de Teusfilo, sentiu como se um frio e duro objecto metálico lhe pene-<br />
trasse violentamente na sua mente, violan<strong>do</strong> a sua vontade, e esforçan-<br />
<strong>do</strong>-a, até ao esgotamento, a abrir um túnel na realidade espácio-<br />
temporal. Aquilo era um <strong>do</strong>m que ele nunca possuíra!; podia controlar<br />
aquelas deturpações, mas não criá-las. No entanto, <strong>do</strong>lorosamente para<br />
além <strong>do</strong>s níveis humanamente suportáveis, viu o seu próprio Poder inex-<br />
plicavelmente sen<strong>do</strong> agonizantemente esforça<strong>do</strong> muito para além <strong>do</strong>s seus<br />
psico-genéticos limites naturais, obedecen<strong>do</strong> àquele intruso desejo ti-<br />
rânico; e, próximo de si, uma passagem de energia surgiu <strong>do</strong> nada.<br />
Os olhos <strong>do</strong> quarteto, que a tu<strong>do</strong> assistiam, ainda se pasmaram<br />
mais, quan<strong>do</strong> viram nascer aquele túnel ao som <strong>do</strong>s <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>s berros en-<br />
surdece<strong>do</strong>res <strong>do</strong> invisivelmente aprisiona<strong>do</strong> Familiar.<br />
Naquele momento, então, uma inexprimível força atirou o encurva<strong>do</strong><br />
corpo de Anguélaz para o interior daquela imaterial ponte energética,<br />
que logo se esvaiu em inexistência, mal o projecta<strong>do</strong> homem atingiu a<br />
extremidade-de-chegada.<br />
106
Um súbito vento géli<strong>do</strong> invadiu Sahitañ, que se envolveu nos pró-<br />
prios braços, tentan<strong>do</strong> controlar o tremor que escorria dentro de si,<br />
as pálpebras fechavam-se como atraídas por uma misteriosa gravidade, a<br />
sua razão aproximava-se aceleradamente das fronteiras <strong>do</strong> seu incons-<br />
ciente. A sua cabeça pendeu desanimada sobre o seu tronco, até se<br />
apoiar nas suas pernas; desmaiou, e naquele exactamente preciso momen-<br />
to, sentiu algo a sumir-se para dentro de si… como um obscuro fantas-<br />
ma, uma amorfa sombra material… regressan<strong>do</strong> ao seu natural asilo<br />
naquela negra esfera encerrada no interior <strong>do</strong> seu psicuniverso.!<br />
Catarina ao vê-lo perder os senti<strong>do</strong>s, correu aflita para ele.<br />
Segurou na sua cabeça descaída, olhan<strong>do</strong>-lhe os olhos encerra<strong>do</strong>s, num<br />
sentimento nunca antes, por ela própria, consenti<strong>do</strong>. Já não podia vol-<br />
tar atrás, aquela emotiva sensação fazia parte dela interiormente;<br />
mais valia, agora, admiti-lo também exteriormente!.<br />
Ao sentir o seu toque na sua face, ele em esforça<strong>do</strong> custo semi-<br />
abriu os olhos, fixan<strong>do</strong>-a no seu olhar, numa desfocada névoa, entre a<br />
realidade e o sonho, envolven<strong>do</strong> e diluin<strong>do</strong> o rosto dela numa prateada<br />
aura de inumana beleza.<br />
- Amo-te!. - disse-lhe ela, sem som, apenas moven<strong>do</strong> lentamente os<br />
lábios, em direcção a ele.<br />
∴<br />
A escuridão invadia to<strong>do</strong> aquele quarto, afunda<strong>do</strong> em silêncio. Ha-<br />
via <strong>do</strong>is dias que ele ali estava recolhi<strong>do</strong>, afasta<strong>do</strong> de toda a Famí-<br />
lia; o próprio Teus bloqueara a sua inata psico-ligação entre si e<br />
ele.<br />
Um súbito movimento de ar, alertou-o que alguém entrara ali. Vol-<br />
tou-se para encarar tal pessoa. Era Teusfilo, quem o vinha ver; mas<br />
decerto não seria uma mera visita de cortesia.! Temia, temia pelo seu<br />
107
destino. Anguélaz temia ser o bode da expiação da Família perante o<br />
Cipu, embora mais temesse, ainda, o que agora tinha dentro de si, a<br />
maldita oferta de Xiva; sentia-se impuro, contamina<strong>do</strong>!.<br />
O ancião-chefe mirou-o cala<strong>do</strong>, por alguns momentos, enquanto len-<br />
tamente se aproximava dele.<br />
- O Cipu marcou para amanhã a audiência da Família. - disse seca-<br />
mente Teusfilo. - To<strong>do</strong>s os nossos «Segura<strong>do</strong>res» foram coloca<strong>do</strong>s em<br />
cronossuspensão preventiva, por ordem imediata <strong>do</strong> Cipu, e guarda<strong>do</strong>s em<br />
local desconheci<strong>do</strong> da Família. Maldição!!!!.<br />
- Perdão… perdão; eu falhei!!. Sou o culpa<strong>do</strong> da desgraça que se<br />
abateu sobre a Família; perdão… !!!. - subjugou-se Anguélaz defronte<br />
ao velho Familiar, numa incontida onda de emoção. - Apenas a ti implo-<br />
ro misericórdia!.<br />
- Não. Eu sei… - a voz sintética de Teusfilo soava agora com mais<br />
simpatia. - Eu sei!, a culpa de tu<strong>do</strong> isto é daquele amaldiçoa<strong>do</strong> que<br />
usa o prénome de Xiva. Maldito ele e aquela negra essência, de quem<br />
será o receptáculo.! Malditos!!<br />
- Não, ama<strong>do</strong> Teusfilo; estás erra<strong>do</strong>… ó estás tão erra<strong>do</strong>! - inter-<br />
rompeu-o Anguélaz, para seu grande espanto.<br />
- O que dizes?!? - surpreendeu-se, o ancião-chefe.<br />
- Xiva e a essência, que tu um dia sentiste, são um só Ser… sem-<br />
pre o foram!. Ele é o Dragão!!. - disse Anguélaz, num incomum tom cal-<br />
mo de certeza <strong>do</strong>lorida. - Eu posso afirmá-lo… eu partilho essa “coisa<br />
obscura” com ele… sou força<strong>do</strong> a partilhá-la!. Está entranhada em mim,<br />
na minha mente… contaminan<strong>do</strong>-me; atormenta os meus pesadelos, faz-me<br />
companhia na solidão; corrói-me e, ao mesmo tempo, alimenta-me… numa<br />
eterna promessa de tormenta!!. - a sua voz aproximou-se, então, <strong>do</strong><br />
choro. - Eu… eu não durmo há duas noites… “isto”, esta “coisa negra”<br />
108
não me deixa!, afogo-me nos seus pesadelos de indescritível Dor… Dor<br />
de milhões de infinitos corpos mutila<strong>do</strong>s, gritan<strong>do</strong> um estranho nome. Ó<br />
ama<strong>do</strong> e queri<strong>do</strong> Teusfilo… Xiva deu-me a pior maldição de todas: conde-<br />
nou-me a ser… ele!!!… E é horrível!!!.<br />
- Sabes, pois, a origem dessa essência maldita?, se afirmas segu-<br />
ro que ela faz parte dele! - a curiosidade envolvera a mente <strong>do</strong> velho<br />
Familiar, ignoran<strong>do</strong> a manifestada Dor que percorria Anguélaz.<br />
- Ó sim, sei-o bem… infelizmente! - respondeu, numa voz cansada,<br />
Anguélaz. - É o seu Poder… a sua fonte, cujas raízes se cravam profun-<br />
das no Tegonatos!.<br />
- … No Tegonatos!!!!, impossível.<br />
- Não. É bem verdade! O Poder de Xiva advém-lhe <strong>do</strong> Tegonatos. É<br />
isso que o torna no Dragão… é isso o que lhe confere os malditos <strong>do</strong>ns,<br />
que são incomparáveis em toda a Anormalidade. - parou a fala, e respi-<br />
rou profundamente. - Xiva é a essência negra.! Eu vi o seu Poder… é<br />
tremen<strong>do</strong>!!!!<br />
- Tens a certeza daquilo que dizes? - admirou-se em espanto, o<br />
ancião-chefe. - Já muitos, nos primeiros Tempos da segunda Anormalida-<br />
de, tentaram abrir a última porta <strong>do</strong> seu psicuniverso… os que conse-<br />
guiram, morreram literalmente de susto; e to<strong>do</strong>s eles possuíam um muito<br />
mais eleva<strong>do</strong> nível eψg que Xiva… desde aí, que nenhum Anormal penetra<br />
nessa última porta, nessa porta para a <strong>Morte</strong>, para o Tegonatos… nem o<br />
próprio Teus a atravessou!!! - a sua voz tinha um tom incrédulo e es-<br />
panta<strong>do</strong>. - Como pôde Xiva sobreviver à entrada no Tegonatos, e alimen-<br />
tar-se <strong>do</strong> seu obscuro e in<strong>do</strong>mavelmente mortífero Poder!?!!… Tens mesmo<br />
a absoluta certeza <strong>do</strong> que afirmas?!<br />
- Como posso não ter?!? Eu conheço, agora, Xiva; conheço-o melhor<br />
que ninguém… talvez até melhor que ele próprio!. Eu tenho-o dentro de<br />
109
mim!!!! - berrou, Anguélaz, aquela última frase, num absoluto descon-<br />
trolo de emoções, que decresceu novamente para o tom quase calmo. -<br />
Ele é no Tegonatos, daí o seu Poder… daí ele ser o Dragão!!!.<br />
- Agora enten<strong>do</strong>… - suspirou pensativo, Teusfilo. - … aquele enig-<br />
mático texto descrito em Bíblios: “O Dragão virá, e <strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong> lago<br />
da <strong>Morte</strong> beberá o sangue que lhe dará Vida; <strong>do</strong> lago proibi<strong>do</strong>, ele se<br />
nutrirá, até estender a sombra das suas negras asas sobre toda a Ter-<br />
ra, apagan<strong>do</strong> a luminosa Fogueira que arde.”<br />
- O «“lago”»… o “lago” é o Tegonatos!!!. - completou a conclusão<br />
<strong>do</strong> ancião-chefe, num susto de descoberta que confirmava aquilo que ele<br />
já sabia certo, Anguélaz.<br />
- Maldição!!!! Está tu<strong>do</strong> acontecer… As negras garras <strong>do</strong> Dragão<br />
aproximam-se rapidamente da Família!. - alarmou-se, numa exclamação de<br />
raiva e quase desesperada frustração, Teusfilo. - É cada vez mais ur-<br />
gente a sua morte!! Jamais aquilo que foi descrito em Bíblios terá lu-<br />
gar para acontecer; juro-o!. Eu próprio eliminarei Xiva!!!<br />
bleia.<br />
∴<br />
Quase <strong>do</strong>is anos passaram sobre o massacre sofri<strong>do</strong> pela Assem-<br />
Uma onda de protesto contra a aparente inacção <strong>do</strong> Dragão, a prin-<br />
cipio, havia percorri<strong>do</strong> toda aquela organização, acusan<strong>do</strong>-o da morte<br />
fútil de um relativamente eleva<strong>do</strong> número <strong>do</strong>s seus membros. Embora vis-<br />
se em perigo a sua administração, por aquele desejo insano de vingan-<br />
ça, o supremo-líder insistia no seu projecto de pacífica revolução; e<br />
colhia agora, apesar de ainda pouco evidentes, inespera<strong>do</strong>s frutos mui-<br />
to além <strong>do</strong> seu inicial plano. Vários Alterdragões haviam surgi<strong>do</strong>, no<br />
entanto, em aberta oposição à forma administrativa de Sahitañ, prome-<br />
ten<strong>do</strong> a tão esperada Guerra, o que ameaçou convulsões no teci<strong>do</strong> social<br />
110
daquele grupo-de-“fé”. Mas a instabilidade na “fé” no Dragão durou<br />
pouco; Daimon encontrara a solução para acalmar os ira<strong>do</strong>s e protestan-<br />
tes ânimos, e Sahitañ, apesar de um pouco contraria<strong>do</strong>, aceitou a sua<br />
implementação, compreenden<strong>do</strong> que o fanatismo, que o irritava tanto,<br />
era a base da sua real influência social, sem ele tu<strong>do</strong> ruiria em areia<br />
e violência.! Assim foram retomadas as Massis, mas com uma ladainha<br />
diferente; no recupera<strong>do</strong> Assemblódromo, era agora contada a sua glo-<br />
riosa vitória sobre Anguélaz, para espanto e temor de to<strong>do</strong>s os ouvin-<br />
tes. Daquele mo<strong>do</strong>, a “fé”, imposta pelo Me<strong>do</strong>, foi reganhan<strong>do</strong> campo, e<br />
até crescen<strong>do</strong>, em contrapartida pela progressiva perda de posição<br />
sócio-administrativa da Família. As vozes de protesto, mês a mês,<br />
foram fican<strong>do</strong> mudas, e com elas desapareceram os tumultuoso Alterdra-<br />
gões; corren<strong>do</strong> o boato, nunca abertamente admiti<strong>do</strong>, que tinham encon-<br />
tra<strong>do</strong> a perdição às mãos <strong>do</strong> próprio Sahitañ. Uma vez mais, ele detinha<br />
o absoluto controlo da Assembleia, sen<strong>do</strong> o seu <strong>do</strong>gmaticamente incon-<br />
testa<strong>do</strong> líder; mesmo aqueles que haviam si<strong>do</strong> membros não-crentes,<br />
prostravam-se agora, como autênticos verosirmãos, em veneração <strong>do</strong><br />
mítico Poder de “Aquele que havia de vir, e que já viera”. Daquele<br />
mo<strong>do</strong>, para os que o seguiam, de novo e agora mais que nunca, a sua<br />
expressa vontade era a única e verdadeira “fé”.!<br />
Assim a Assembleia havia renasci<strong>do</strong> novamente como um exclusivo,<br />
mas expansivo, e com intenções e ambições claramente sócio-políticas,<br />
grupo-de-“fé”.<br />
Aquele não era um dia comum, e por isso Sahitañ e Catarina assis-<br />
tiam no Assemblódromo à Massi executada ritualisticamente por Daimon,<br />
numa elaborada túnica de gala. A presença, tão pouco usual, ali daque-<br />
les <strong>do</strong>is, era motivo de grande emotiva agitação na assistência, mas<br />
também de um certo reverencia<strong>do</strong> respeito, e até temor. Era raro um<br />
111
qualquer membro-anónimo estar assim tão próximo <strong>do</strong> Dragão e da sua,<br />
muitíssimo venerada, tutora.<br />
Daimon subiu, em gestos protocolares de pré-fabricada cerimónia,<br />
ao festivamente decora<strong>do</strong> palanque. A Massi iniciou-se, com a sua voz<br />
alta e firme, numa já insuportavelmente decorada lengalenga de cariz<br />
exclusivamente neorreligionista.<br />
- … E, insistentemente, o Senhor(muitas glórias ao Seu Poder!!)<br />
convenceu o Cipu(que a sua vontade seja a <strong>do</strong> Senhor!!) a abrir um tú-<br />
nel na realidade espácio-temporal, por onde os seus sensores-móveis<br />
pudessem registar os horren<strong>do</strong>s actos da Família(que a sua maldita fo-<br />
gueira se apague na gloriosa sombra <strong>do</strong> Senhor!!), que esta em traição<br />
lhe havia oculta<strong>do</strong>; e garantiu a sua estabilidade na Zona unicamente<br />
pela expressão da Sua vontade.!(Honras ao Senhor!!)… - a voz de Daimon<br />
soava num tom de canto, continuan<strong>do</strong> naquele monólogo litúrgico. - … Em<br />
arrogância Anguélaz(em tormenta esteja o seu toca<strong>do</strong> nome, pelo Se-<br />
nhor!!) desobedeceu à voz <strong>do</strong> Cipu(que a sua vontade seja a <strong>do</strong> Se-<br />
nhor!!), e atentou contra a vida Daquela que é muito abençoada entre<br />
nós; então, o Senhor(muitas glórias ao Seu Poder!!), que se encontrava<br />
ao la<strong>do</strong> direito <strong>do</strong> Sig, viu as imagens transmitidas pelos envia<strong>do</strong>s<br />
sensores, e em fúria sentiu aquela má acção de Anguélaz(em tormenta<br />
esteja o seu toca<strong>do</strong> nome, pelo Senhor!!) sobre o Seu povo e sobre<br />
Aquela que é muito abençoada entre nós!. Num furacão, o Ódio <strong>do</strong>minou a<br />
vontade <strong>do</strong> Senhor(muitas glórias ao Seu Poder!!), envolven<strong>do</strong>-O no seu<br />
divino manto de obscuridade, que mol<strong>do</strong>u o Seu corpo e transportou-O<br />
para junto daqueles que sofriam sobre a maldita mão da Família(que a<br />
sua maldita fogueira se apague na gloriosa sombra <strong>do</strong> Senhor!!), fazen-<br />
<strong>do</strong> de Si próprio um escu<strong>do</strong>, que assim protegeu, da má acção de Angué-<br />
laz(em tormenta esteja o seu toca<strong>do</strong> nome, pelo Senhor!!), os Seus ser-<br />
112
ventes e Aquela que é muito abençoada entre nós!.(Glórias pelo Seu Po-<br />
der!!)… - aquela parte <strong>do</strong> seu discurso, apesar de já muitas vezes de-<br />
corada, causava sempre espanto à audiência que o escutava praticamente<br />
em temor. Jamais um Anormal, mesmo um com eleva<strong>do</strong> Poder, possuíra o<br />
<strong>do</strong>m de moldar, metamorfosear tão radicalmente o seu corpo, apenas por<br />
sua vontade; somente Sahitañ dispunha de tal capacidade, o que o rea-<br />
firmava, aos olhos daqueles que o veneravam, em certeza, como sen<strong>do</strong> o<br />
Dragão, só o Dragão poderia conseguir tal inalcançável feito, pois<br />
“nada era podi<strong>do</strong> contra a Sua vontade!”. - … Assim Anguélaz(em tormen-<br />
ta esteja o seu toca<strong>do</strong> nome, pelo Senhor!!) foi força<strong>do</strong> a sucumbir<br />
perante o Senhor(muitas glórias ao Seu Poder!!), e a receber o Seu to-<br />
que!.(Sejamos nós apenas os objectos da Sua vontade!!)… - ouviram-se<br />
mais algumas demoradas frases elaboradas, cantadas em cerimónia, por<br />
Daimon, antes da Massi chegar ao seu fim, tão deseja<strong>do</strong> pelo sonolenta-<br />
mente aborreci<strong>do</strong> Sahitañ. - … E assim foi feito, assim será lembra-<br />
<strong>do</strong>!!!!.(Glórias e honras ao Poder que é o Senhor!!)<br />
Terminou aquela cerimónia; mas outra, de muito maior emoção, iria<br />
começar.! Sen<strong>do</strong> aquela a verdadeira razão daquele dia tão festivo,<br />
para toda a Assembleia.<br />
Em cortejo partiram.<br />
Dirigiram-se para uma ampla sala, escavada numa profunda abóbada<br />
titânica, cujas as paredes enformavam assentos em toda a sua largura e<br />
comprimento, como um inverti<strong>do</strong> anfiteatro. Do tecto, longos e gor<strong>do</strong>s<br />
tubos de luz pendiam, eliminan<strong>do</strong> todas as sombras naquele local. Ao<br />
centro, numa flutuante placa, suportada por motores-<br />
antigravitacionais, esperava, os membros administrativos da Assem-<br />
bleia, um pequeno casulo metálico lateralmente envidraça<strong>do</strong> e descober-<br />
to no topo.<br />
113
A populaça seguiu alegre para as inúmeras bancadas. Então, uma<br />
faixa de energia sólida abriu uma momentânea ponte para o isola<strong>do</strong> pon-<br />
to central daquela gigantesca e arre<strong>do</strong>ndada divisão, permitin<strong>do</strong> o seu<br />
acesso a Sahitañ e à sua côrte. To<strong>do</strong>s tomaram, assim, os seus devi<strong>do</strong>s<br />
e apropria<strong>do</strong>s lugares. A ponte energética desligou-se.<br />
No ar, surgiu, em surpresa para alguns, um pequeno holofone, que<br />
anunciou a comparência <strong>do</strong> Cipu naquela festa supostamente exclusiva<br />
daquele grupo-de-“fé”.<br />
Ao longo daquele perío<strong>do</strong> de quase vinte-e-quatro meses, a relação<br />
entre Sahitañ e o Sig evoluíra bastante. O Cipu ficara surpreendi<strong>do</strong><br />
com o estranho Poder daquele Anormal desde que aquele invadira pela<br />
primeira vez os seus sacramente secretos aposentos, compreenden<strong>do</strong><br />
logo, que muito mais útil seria usá-lo em seu favor, <strong>do</strong> que, em des-<br />
vantagem, opor-se a ele, como ilogicamente a Família o fazia; de fac-<br />
to, Sahitañ fora o único ser biológico a pisar os lendários <strong>do</strong>mínios<br />
conheci<strong>do</strong>s como Osiglimpúliz, e a comunicar cara-a-cara com o «Grande-<br />
Computa<strong>do</strong>r»(termo cerimonial de possível vocação neorreligionista,<br />
largamente difundi<strong>do</strong> entre as primeiras décadas <strong>do</strong> 30 o e a quinta par-<br />
te final <strong>do</strong> 33 o sígulo, e exclusivamente aplicável em referência ao<br />
Sig com a designação de “o Cipu”), passan<strong>do</strong> a visitá-lo com alguma re-<br />
gularidade, após de melhor controla<strong>do</strong> e aperfeiçoa<strong>do</strong> o seu <strong>do</strong>m de<br />
«auto-teletransporte». Por outro la<strong>do</strong>, a Família perdera grande parte<br />
da sua competência administrativa, sen<strong>do</strong> expulsa <strong>do</strong> seu próprio lar-<br />
oficial, o Dept, e ocupan<strong>do</strong> funções hierarquicamente inferiores. Pois,<br />
o Cipu havia feito sorrateiramente um inquérito relâmpago, secretamen-<br />
te dirigi<strong>do</strong> por Sahitañ, o inesperadamente novo servente preferi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Sig, procuran<strong>do</strong> irregularidades nos registos oficiais que escondessem<br />
suspeitas actividades <strong>do</strong>s Familiares, e descobrin<strong>do</strong>, para grande es-<br />
114
cândalo, que alguns <strong>do</strong>s seus membros, denomina<strong>do</strong>s por Segura<strong>do</strong>res,<br />
eram especialmente treina<strong>do</strong>s para telepaticamente cegarem e deturparem<br />
os sensores <strong>do</strong> Grande-Computa<strong>do</strong>r, permitin<strong>do</strong> assim grande liberdade de<br />
movimentos à Família. Fora necessário, por isso, reorganizar toda a<br />
estrutura social, mas sem causar demasiadas ondas de instabilidade;<br />
daquele mo<strong>do</strong>, foi cria<strong>do</strong> o «Concílio», órgão administrativo de topo,<br />
composto por três partes representativas desiguais: a menor era obvia-<br />
mente a Familiar, com meras obrigações consultivas; a segunda, era a<br />
mais interessada nas decisões administrativas, ou seja, aquela, cujos<br />
representantes eram meros humanos vulgares; e por último, a mais pode-<br />
rosa de todas, a <strong>do</strong> Cipu, que era composta quer por máquinas-<br />
racionais, quer por Anormais independentes da Família, e liderada,<br />
apesar de inúmeros protestos <strong>do</strong> terço mais inferior, e espanto de to-<br />
<strong>do</strong>s os restantes, por Sahitañ, que assim tornava visível a sua cada<br />
vez maior proximidade ao Sig.<br />
O único espinho na sua relação era a Assembleia, não tanto pelo<br />
seu fanatismo, mas pela sua advogação <strong>do</strong> “Direito de Igualdade” entre<br />
a Humanidade e a Anormalidade, abolin<strong>do</strong>, daquele mo<strong>do</strong>, a sua condição<br />
vigente de escravatura. Mas, a pouco e pouco, o Cipu via-se a perder<br />
terreno defronte aos insistentes argumentos de Sahitañ. A própria or-<br />
ganização, por ele liderada, havia já sofri<strong>do</strong> algumas evoluções e bên-<br />
ções sociais, e, apesar de ainda não oficializada, a sua existência<br />
fora tolerada por decreto <strong>do</strong> Sig, perden<strong>do</strong> assim grande parte da sua<br />
natureza clandestina, embora a sua administração continuasse a resi-<br />
dir, por precaução de segurança, no subsolo da Zona. Em consequência<br />
daquela decretada tolerância, ocorreu uma outra conquista sócio-<br />
política de Sahitañ, e aquela com um enorme impacto na sociedade, mo-<br />
tivan<strong>do</strong> mesmo alguns protestos, que foi o fim e a rigorosa e vigorosa<br />
115
total proibição <strong>do</strong>s cruéis julgamentos-populares, a que por vezes eram<br />
sujeita<strong>do</strong>s alguns Anormais.<br />
Por tu<strong>do</strong> aquilo, embora invulgar, não era despropositada a pre-<br />
sença <strong>do</strong> Cipu naquela festiva ocasião daquele grupo-de-“fé”.<br />
Um enorme silêncio ouvia-se agora naquela gigantesca sala, reche-<br />
ada de gente. Daimon, com lentos movimentos, caminhou até ao decorati-<br />
vo casulo, que ocupava o ponto central quer daquela escavada divisão,<br />
quer da atenção de to<strong>do</strong> aquele público.<br />
Pairan<strong>do</strong> no ar, diversos emissores transmitiam aquele aconteci-<br />
mento para diversas Urbis, onde se encontravam fixadas comunidades de<br />
verosirmãos; mas aquela emissão só era possível, graças a um relativa-<br />
mente pequeno esforço de Poder de Sahitañ, que conseguia fazer com que<br />
as imagens transmitidas ultrapassassem em condições óptimas a poluição<br />
energética característica da Zona.<br />
To<strong>do</strong>s, naquele flutuante palco, mostravam uma feliz expressão fa-<br />
cial; excepto Cét que, devidamente coloca<strong>do</strong> erecto atrás de Sahitañ,<br />
mostrava um rosto afunda<strong>do</strong> em priva<strong>do</strong>s pensamentos de séria preocupa-<br />
ção, era como uma pesada estátua absorvida em si mesma e imune ao fes-<br />
tejos de alegria que a rodeavam.<br />
Catarina, alta ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> supremo-líder da Assembleia, olhava<br />
aquilo tu<strong>do</strong> com uma muito pessoal atenção, observan<strong>do</strong>, numa apropriada<br />
ânsia, to<strong>do</strong>s os movimentos de Daimon. Então, de um trovão, o seu olhar<br />
bateu numa das caudas daquela côrte que a rodeava, em entrelaçadas<br />
meias-luas; e ela viu-o, era de novo aquele homem-sombra, que a visi-<br />
tara em visões, e que vira em possível conspiração a falar com Daimon.<br />
Aquele enigmático homem de negro estava ali!, para seu quase incontí-<br />
vel espanto; mas ela não podia correr para ele e interrogá-lo, inter-<br />
rompen<strong>do</strong> aquele cerimonial festival. Não, tinha que conservar a sua<br />
116
calma e razão, afinal tinha que imperativamente manter a ritual pose,<br />
aquele era um momento muitíssimo importante!<br />
Olhou de novo, lá estava ele.! O seu rosto, molda<strong>do</strong> por inexpli-<br />
cáveis sombras, exibia uma densa tristeza, que transparecia mesmo so-<br />
bre os seus vela<strong>do</strong>s olhos, pelos negros óculos que sempre usava. Cata-<br />
rina podia pressentir nele um profun<strong>do</strong> sentimento que lhe dava forma e<br />
Vida, e que era muito mais que Dor, fúria, ou raiva, estan<strong>do</strong> além de<br />
quaisquer definições de Ódio e amor, era algo diferente e sufocante…<br />
era quase como se, naquela altura exacta, ele tivesse si<strong>do</strong> completa-<br />
mente preenchi<strong>do</strong> por uma claustrofóbica saudade, uma saudade daquele<br />
preciso momento que ele estava agora a viver; uma magoada inveja de<br />
toda aquela felicidade, por algum motivo, já perdida! Era algo dema-<br />
siadamente <strong>do</strong>loroso para se exprimir!.<br />
Lágrimas escorregavam em câmera-lenta pelas faces <strong>do</strong> misterioso<br />
homem obscuro, cain<strong>do</strong> numa sonora mudez no soalho de sintético metal.<br />
A atenção de Catarina foi atraída por um qualquer ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong> públi-<br />
co, e, quan<strong>do</strong> retornou o olhar, o homem vesti<strong>do</strong> de noite havia nova-<br />
mente desapareci<strong>do</strong>; aparentemente ninguém mais notara a sua presença<br />
ali.<br />
Daimon continuava a dirigir-se para o pequeno casulo.<br />
Era como se o Tempo tivesse si<strong>do</strong> interrompi<strong>do</strong> e agora retoma<strong>do</strong> no<br />
mesmo momento!, como se tu<strong>do</strong> o que Catarina vira… aquele reencontra<strong>do</strong><br />
homem de escuro… fosse apenas uma recorrente fugaz ilusão de uma repe-<br />
tida momentânea miragem; mas ela sentia em si mesma, por uma razão que<br />
não podia ser logicamente explicada, que fora tu<strong>do</strong> demasiadamente<br />
real!!.<br />
Esporádicos barulhos faziam notar algum grau de crescente impa-<br />
ciência por parte <strong>do</strong> sussurrante e nervoso público.<br />
117
Agora, que se encontrava frente àquele central objecto, o próprio<br />
Daimon sentia um nervosismo a percorrer-lhe o corpo, sobre o peso de<br />
tanta cerimonial responsabilidade, que aquela ocasião continha em si<br />
mesma. Dobrou-se gentilmente sobre aquele ornamenta<strong>do</strong> receptáculo, e<br />
com os braços uni<strong>do</strong>s em concha pegou no seu conteú<strong>do</strong>, e trouxe-o à al-<br />
tura <strong>do</strong> seu peito.<br />
Um comentário correu por toda aquela audiência.<br />
Ele, reposicionan<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>samente os braços, elevou, o que havia<br />
retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> casulo, até ultrapassar a sua cabeça, para que to<strong>do</strong>s pu-<br />
dessem ver.<br />
Sahitañ sentia-se alegremente feliz. No seu conturba<strong>do</strong> psicuni-<br />
verso, vibrava, agora, ondulante uma se<strong>do</strong>sa luz, como um celeste véu<br />
de geada que tu<strong>do</strong> cobria, parecen<strong>do</strong> estranhamente apascentar, num apa-<br />
zigua<strong>do</strong> sono tranquilo, as gritantes vozes de Dor vindas daquela bi-<br />
zarra esfera densamente negra. Aquele era o melhor dia que ele jamais<br />
vivera!<br />
A voz de Daimon surgiu, então, em emoção, alta e funda; e to<strong>do</strong>s<br />
os que o viam, senta<strong>do</strong>s nas múltiplas bancadas, soltaram um inconti<strong>do</strong><br />
grito de manifesta<strong>do</strong> júbilo.<br />
- Eis o fruto Daquela que é muito abençoada entre nós, eis o fru-<br />
to de Catarina!… - expirou profundamente, Daimon, suportan<strong>do</strong> carinho-<br />
samente, nas palmas das mãos <strong>do</strong>s seus muito verticalmente estica<strong>do</strong>s<br />
braços, um saudavelmente robusto e rosa<strong>do</strong> bebé, envolto apenas por um<br />
fino e fragilmente quase translúci<strong>do</strong> teci<strong>do</strong>-térmico, de suave toque<br />
como tépida água, e num brilhante tom de castanho-celeste. - Eis o fi-<br />
lho <strong>do</strong> Senhor!!!.<br />
(Infelizmente não existem muitos da<strong>do</strong>s sobre o malogra<strong>do</strong> primogé-<br />
nito de Sahitañ, nem se sabe, com algum qualquer grau de certeza cro-<br />
118
nistórica, qual fora o seu nome, embora se saiba <strong>do</strong> seu baptismo ofi-<br />
cial, ainda em tenra idade, por parte <strong>do</strong> Cipu. Apesar de ser somente<br />
certa a sua morte ainda em criança; é curioso referir, que, quase qua-<br />
tro sígulos após o seu falecimento, vários mitos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> da Revolu-<br />
ção-Solar, o associam à lendária figura dum fabuloso heróico revolu-<br />
cionário, em confronto directo com o seu pai.)<br />
∴<br />
A Noite acabara com as festividades.<br />
A grande sala, que durante o dia estivera recheada de alegre gen-<br />
te, estava agora vazia, e banhava-se em obscuridade por uma ténue luz<br />
tímida, vinda de alguns pendura<strong>do</strong>s tubos luminosos regula<strong>do</strong>s para a<br />
potência mínima.<br />
O seu vesti<strong>do</strong> moven<strong>do</strong>-se longo e esbranquiça<strong>do</strong>, naquela flutuante<br />
placa sobre o vazio crepuscular, daria a quem a visse, a ilusão duma<br />
<strong>do</strong>cemente macia aparição espectral!<br />
Catarina sentira um in<strong>do</strong>mável impulso, para regressar ali, onde<br />
vira aquele inquietante fantasma de escuridão, que usava uma negra<br />
luva na sua mão direita, e que para<strong>do</strong>xalmente tanto se assemelhava a<br />
Sahitañ.<br />
Parou junto ao local, que ela havia memoriza<strong>do</strong> onde ter visto o<br />
inexplicável homem-sombra. Baixou-se, como guiada por um instinto; to-<br />
cou no solo, estava gasto, marca<strong>do</strong> por pequeninas poças escavadas; o<br />
que seria aquilo? As lágrimas!!, recor<strong>do</strong>u ela, num rompante de segura<br />
e intimamente inquestionável claridade racional. As lágrimas!; mas que<br />
Ser podia verter algo tão acidamente corrosivo, que ferira aquele duro<br />
soalho sintético!?!, que tremenda e ordinariamente incompreensível Dor<br />
o justificaria!!?!<br />
119
- Catarina! - aquela exausta voz assustara-a, interrompen<strong>do</strong> os<br />
seus emersos pensamento, mas no fim ela reconheceu Daimon, como o por-<br />
ta<strong>do</strong>r daquele som ofegantemente cansa<strong>do</strong>. - Procurei-te por toda a par-<br />
te; o Senhor chama-te.<br />
- Sim, sim… já vou! - respondeu-lhe, quase distraída, pensan<strong>do</strong> em<br />
algo diferente. - Mas antes… !, vem cá. - o seu tom de voz ia num<br />
crescen<strong>do</strong> autoritário.<br />
Ao aproximar-se, Daimon ouviu em espanto Catarina relatar-lhe to-<br />
<strong>do</strong>s os seus encontros onde vira, passiva ou activamente, o homem-<br />
sombra, incluin<strong>do</strong> aquele no Assemblódromo.<br />
- Diz-me, Daimon, de onde o conheces e porque conspiras com ele<br />
sobre Sahitañ? - a sua voz tinha uma persuasão quase sólida, subjugan-<br />
<strong>do</strong>, a uma resposta sem esquiva, o embaraça<strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>.<br />
- Tu viste-O!!!! - pasmou, incrédulo de inesperada surpresa, Dai-<br />
mon. - Ele é…<br />
- Sim, conta-me tu<strong>do</strong>, ou terei de confessar a tua traição a Sahi-<br />
tañ; e acredita, ele não pedirá provas para crer nas minhas pala-<br />
vras!!.<br />
- Eu sei, mas… eu jamais conspirei contra Sahitañ, é ridícula a<br />
tua acusação. Tu não compreendes!.<br />
- Explica-me… tu<strong>do</strong>; já.<br />
- Não sei… não sei se deva! - hesitou, Daimon.<br />
- Já. - ordenou-lhe, num irrecusável tom de império, que vibrou<br />
violentamente na mente <strong>do</strong> hesitante homem.<br />
- Se insistes, assim seja!. - resignou-se, mas contraria<strong>do</strong>. - Eu<br />
nunca traí Sahitañ, porque… Aquele que tu viste é Sahitañ!!!.<br />
- O quê!!!!?! - chocou-se, não se recuperan<strong>do</strong> facilmente daquelas<br />
palavras, Catarina.<br />
120
- Sim! Poder-se-á dizer que o “homem-sombra”, como lhe chamas, é<br />
Sahitañ; assim como se poderá chamar, de girino, uma rã!.<br />
será.<br />
- O que dizes?!<br />
- Ainda não compreendeste?! Ele é o futuro, Ele é o que Sahitañ<br />
- Mas como, porquê… ??!<br />
- Pronto… está bem! Vou-te contar tu<strong>do</strong> o que sei, talvez assim<br />
entendas! - disse-lhe, expiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong> e reganhan<strong>do</strong> novo fôlego, Dai-<br />
mon, num tom um pouco mais favorável. - Ele veio <strong>do</strong> Futuro, e anun-<br />
ciou-se perante mim, dizen<strong>do</strong> que me havia escolhi<strong>do</strong>, para lhe preparar<br />
o Seu caminho. Provan<strong>do</strong> o Seu Poder, Ele cortou… sim foi Ele, essa é a<br />
verdade, que ninguém mais sabe… Ele cortou a minha psico-ligação, a<br />
minha inata psico-ligação a Teus, libertan<strong>do</strong>-me… fazen<strong>do</strong>-me ver em<br />
toda a glória o Seu Poder!! Não há palavras para descreverem, foi um<br />
momento único! Então, após Se ter revela<strong>do</strong>, e me cura<strong>do</strong> da cegueira da<br />
Família; ele ordenou-me que fundasse a Assembleia, e que, quan<strong>do</strong> vies-<br />
se, eu servisse, o Anormal que seria Sahitañ, como se O estivesse ser-<br />
vin<strong>do</strong>, pois Aquele era realmente Ele!!. E depois… tu<strong>do</strong> aconteceu, como<br />
tu tão bem sabes.<br />
- Foi tu<strong>do</strong> planea<strong>do</strong>; tu já sabias de tu<strong>do</strong>??! - exclamou quase em<br />
escândalo, Catarina. - Por isso me entregaste aquele transporta<strong>do</strong>r… tu<br />
já sabias… !!!<br />
- Sim… daí as minhas certezas, que tu tanto contestavas!. Eu<br />
conheço o Futuro! bem, quer dizer, em parte; eu não conheço to<strong>do</strong> o Seu<br />
plano, apenas sei que Ele acontecerá e será inevitável, tal como foi<br />
descrito em Bíblios!.<br />
121
- E eu, qual é o meu futuro; porquê que ele aparece em visões pe-<br />
rante mim!? Qual o motivo daquela profunda tristeza asfixiante que o<br />
invade?!!!<br />
- Não sei; sinceramente, não sei!!! A única coisa que sei certa,<br />
é que Ele é uma profecia que age para se cumprir a si própria!. - res-<br />
pirou num som mentalmente estafa<strong>do</strong>, Daimon. - … Mas, por favor, prome-<br />
te-me que nada disto dizes a Sahitañ! - implorou-lhe, num invulgar te-<br />
mor.<br />
- … !! - Catarina hesitou, por alguns momentos. - Prometo; mas<br />
apenas, para não o perturbar; não sei como ele iria reagir a isso<br />
tu<strong>do</strong>, a essa obscura trama que tecem invisível em seu re<strong>do</strong>r!!… Que, em<br />
meu silêncio, se cumpra tu<strong>do</strong> o que haja para se cumprir!!!. Prometo.<br />
122
V<br />
A Traição<br />
Sete anos se esvaíram da circular espiral <strong>do</strong> Tempo.<br />
Sahitañ assistia, naquele momento, no Concílio, ao clímax <strong>do</strong>s<br />
seus objectivos sociais. Iria ser ali aprovada a oficialização da As-<br />
sembleia, conjuntamente com a emissão <strong>do</strong> seu tão queri<strong>do</strong> decreto <strong>do</strong><br />
“Direito de Igualdade”; aquele seria um dia histórico!, seria o fim da<br />
escravatura para to<strong>do</strong>s os Anormais. (De facto, o 85832 o dia da admi-<br />
nistração <strong>do</strong> Cipu foi a data da abolição <strong>do</strong> sistema esclavagista, mas<br />
não seria por aquela efeméride que ficaria marca<strong>do</strong> para sempre em le-<br />
tras de brasa na memória da Pós-História!.)<br />
A presença de Sahitañ no Concílio, desde o início, provocara gra-<br />
ves protestos por parte da Família; a sua justificação refugiara-se no<br />
facto legal de ele não ter presta<strong>do</strong> o, habitualmente obrigatório a to-<br />
<strong>do</strong>s os Anormais, Juramento ao Cipu, e por isso não poderia exercer<br />
funções administrativas. Mas aquela sua estratégia de impedimento fa-<br />
lhara re<strong>do</strong>ndamente, quan<strong>do</strong>, para grande escândalo, o Grande-Computa<strong>do</strong>r<br />
anunciou publicamente que ele já lhe havia presta<strong>do</strong> tal requisito le-<br />
gal, numa sessão privada entre ambos, embora apenas o tivesse feito<br />
parcialmente, recusan<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> às suas convicções de Igualdade, a<br />
vassalagem perante a Humanidade, o que não o afligia muito, pois o que<br />
lhe realmente interessava era o voto de fidelidade a si, que era o<br />
123
Sig, e, por inerência, o representante máximo de to<strong>do</strong>s os ideais huma-<br />
nos, logo da própria Humanidade.! Soaram iras por to<strong>do</strong> o Concílio, <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is inferiores terços representativos, que desde aquele momento esbo-<br />
çaram entre si uma não-declarada aliança de posições, mas os seus ber-<br />
ros de nada serviram, pois, não só se manteve Sahitañ no Concílio,<br />
como também, lentamente, fazen<strong>do</strong> evoluir a própria estrutura daquele<br />
ainda mutável órgão administrativo, graças à sua crescente influência<br />
junto ao Cipu, se tornou ele no seu oficial presidente, com únicos po-<br />
deres de veto.<br />
Num <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is cantos inferiores daquela mesa triangular, que en-<br />
formava o Concílio, encontrava-se, lideran<strong>do</strong> o seu respectivo grupo,<br />
Teusfilo, acompanha<strong>do</strong> atrás por Anguélaz. A fisionomia <strong>do</strong> Primeiro-<br />
Assessor <strong>do</strong> ancião-chefe mudara radicalmente naqueles poucos anos pas-<br />
sa<strong>do</strong>s; emagrecera até à ilusão de um andante cadáver, o seu enfraque-<br />
ci<strong>do</strong> cabelo caíra parcialmente e grisalhara para o tom de pesada ida-<br />
de, o rosto enrugara-se ainda mais e tomara uma assombrada palidez, e<br />
cercan<strong>do</strong> os seus olhos secos e <strong>do</strong>loridamente avermelha<strong>do</strong>s estava agora<br />
uma inchadamente pesada pele arroxeada que anunciava noites mal-<br />
<strong>do</strong>rmidas; era como se uma sombria <strong>do</strong>ença o tivesse engoli<strong>do</strong>, e o con-<br />
sumisse por dentro, mas esforçan<strong>do</strong>-se por o conservar vivo, prolongan-<br />
<strong>do</strong>-o assim em sofrimento.<br />
O anuncio <strong>do</strong> decreto sobre o “Direito de Igualdade” levantara uns<br />
quantos uivares de oposição, mas substancialmente menos <strong>do</strong> que Sahitañ<br />
esperara ouvir. Pôde até, talvez pela sua imaginação, ver um escasso<br />
sorriso na boca, recheada de tubos e fios, de Teusfilo.<br />
Para o supremo-líder da Assembleia, aquele era um dia de absoluta<br />
realização pessoal. Embora ainda muito mais houvesse a fazer, o seu<br />
principal objectivo fora alcança<strong>do</strong>. Conseguira cumprir o que os seus,<br />
124
agora numerosos, crentes haviam queri<strong>do</strong> dele, sem recorrer à sua re-<br />
clamada Guerra; a pacífica revolução-silênciosa, que ele planeara, re-<br />
sultara na perfeição, superan<strong>do</strong> até as suas expectativas; e mesmo que<br />
tenha havi<strong>do</strong> algumas manchas de sangue no seu percurso, aquilo fora<br />
sempre provoca<strong>do</strong> por outros, e as baixas menores <strong>do</strong> que as teriam<br />
existi<strong>do</strong> no tão espera<strong>do</strong> conflito, pelos fanáticos de ambas as fac-<br />
ções!. A sua vontade vencera a temerosa descrição de Bíblios; ele pró-<br />
prio, ampara<strong>do</strong> pela felicidade que lhe era oferecida por Catarina e<br />
pelo seu, cada vez mais belo, filho, encontrara a “paz” dentro de si,<br />
<strong>do</strong>man<strong>do</strong> aquela obscura essência para o esquecimento nas inconscientes<br />
prisões <strong>do</strong> seu singular psicuniverso. O Dragão que viera, contrarian<strong>do</strong><br />
todas as profecias, era, afinal e apesar de tu<strong>do</strong>, um símbolo de Luz,<br />
não de Trevas!!<br />
- Xalô!!! - despediu-se de Sahitañ, no final daquela sessão admi-<br />
nistrativa, Teusfilo, numa voz baixa e forçada, mas num tom quase cre-<br />
dível de sinceridade. O presidente <strong>do</strong> Concílio caiu em espanto, e uma<br />
estranha inquietude invadiu a sua mente; apesar de terem si<strong>do</strong> oficial-<br />
mente pacificadas as suas relações com a Família, não era natural<br />
aquele gesto de cortesia no seu ancião-chefe, era como, sentiu ele, um<br />
presságio de calmaria antes de algum qualquer caos.<br />
Apresa<strong>do</strong>, e em companhia de Catarina e Daimon, encaminhou-se para<br />
o regresso ao seu, já declara<strong>do</strong>, mais ainda oculto da geral população,<br />
inclusive da Família, lar-oficial no subsolo da Zona.<br />
Também os Familiares partiram ce<strong>do</strong> de Primacentris, onde se loca-<br />
lizava o Concílio, para a sua nova morada na 17895ª Urbi, <strong>do</strong> Sector<br />
ZΩ, da 59ª Região-continental <strong>do</strong> Sul, da Terra, que era praticamente<br />
uma propositadamente criada Urbi-de-exílio para toda a Família, que<br />
caíra irremediavelmente em desgraça social perante o Cipu, em contra-<br />
125
alanço da meteórica ascensão administrativa de Sahitañ; pois o Sig,<br />
reconsiderara que lhe era mais fácil dar as funções de topo da sua ad-<br />
ministração-geral a um único indivíduo, porque poderia muito melhor<br />
supervisionar e controlar as acções de um só homem, que supervisionar<br />
a totalidade das actividades de um extenso grupo, cujos membros tinham<br />
uma forte endógena noção de fidelidade e interligação entre si mesmos.<br />
Na partida, Teusfilo continuava a mostrar em enigma um suave sor-<br />
riso. A sua mente recordava, com insistência, a ironia dum clandestino<br />
encontro que ele tivera, na muito maldita Zona!, na anterior noite.<br />
∴<br />
A Noite apagara as luzes artificiais naquele abriga<strong>do</strong> recanto.<br />
Ali os fumos soporíferos, verti<strong>do</strong>s pelas fendas <strong>do</strong> soalho para contro-<br />
larem os vagabun<strong>do</strong>s que erravam por aquele lugar e assegurarem um bom<br />
sono em segurança aos habitantes que possuíam lá moradia, eram densos<br />
e opacos, não sen<strong>do</strong> filtra<strong>do</strong>s pela maioria das Mascp-aRes disponíveis<br />
naquele sitio, por Comércio ilegal.<br />
Dois vultos, envergan<strong>do</strong> sofisticadas máscaras-de-protecção-<br />
respiratória de modelo personaliza<strong>do</strong>, caminhavam, naquele lugar deser-<br />
to da Zona, em círculos, como se esperassem alguém, num furtivo encon-<br />
tro. Num silêncio de passos, o esboço duma silhueta surgiu defronte<br />
daqueles <strong>do</strong>is; era uma sombra envolta na escuridão, e coberta em sigi-<br />
lo por um largo manto de teci<strong>do</strong> preto que culminava num profun<strong>do</strong> ca-<br />
puz, engolfan<strong>do</strong> toda aquela figura recém emergida <strong>do</strong> próprio seio pro-<br />
fano das nocturnas trevas. Num curto gesto, as três sombras cumprimen-<br />
taram-se em ríspida cortesia e assinalada cumplicidade.<br />
Teusfilo agitou-se numa incontida ânsia, ao ver aquela personagem<br />
sombria, em cala<strong>do</strong>s movimentos, vin<strong>do</strong> ao seu encontro. Silencioso, ao<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> ancião-chefe, estava Anguélaz, que, apesar de ter si<strong>do</strong> força<strong>do</strong><br />
126
a cortar passivamente a sua psico-ligação a Teus, por ter si<strong>do</strong> conta-<br />
mina<strong>do</strong>, sem cura possível, pela obscura essência de Sahitañ, perden<strong>do</strong><br />
assim a maioria <strong>do</strong> seu Poder, mantivera, no entanto, a sua fiel posi-<br />
ção de Primeiro-Assessor <strong>do</strong> velho Familiar. Os <strong>do</strong>is Familiares acolhe-<br />
ram, embora num cumprimento frio, em sofreguidão aquela esperada figu-<br />
ra vestida de vulto.<br />
- Bem-vin<strong>do</strong>!! Recebemos curiosos o teu inespera<strong>do</strong> reca<strong>do</strong>. - disse<br />
a voz sintética de Teusfilo, à sombra recentemente chegada. - Mesmo<br />
pensan<strong>do</strong> ser um embuste <strong>do</strong> «Maldito»… decidi arriscar, e vim pessoal-<br />
mente!, seria tolice perder uma ocasião… num altura como esta, ou se<br />
correm riscos, ou nos submetemos cordeiros à vontade <strong>do</strong> Maldito, que<br />
hoje se ouve em império por toda a Terra!!… E amanhã… maldição!… ama-<br />
nhã será o dia da sua maior glória!.<br />
- Pois, eu vos digo… amanhã poderá ser igualmente o dia da sua<br />
maior perdição!. - respondeu-lhe a sombria personagem, numa indefiní-<br />
vel voz, ocultada pela ultra-sofisticada Mascp-aR. - Se confiarem em<br />
mim e fizerem exactamente o que vos contar, amanhã triunfarão mesmo<br />
sobre o tão glorioso dia da Assembleia.<br />
- Mas antes de confiarmos nas tuas palavras… diz-me porquê que<br />
trais tu os teus verosirmãos!!? Porquê… logo tu, que entre to<strong>do</strong>s tens<br />
tantas honras… explica-me; porque trais tu o Maldito?!?<br />
- Porque… ! - hesitou a sombria voz, tentan<strong>do</strong> disfarçar um con-<br />
flituoso sentimento entre o amor e a raiva. - Ele destruiu os nossos<br />
símbolos!! - a sua fala parou, cortada, por instantes, numa profunda<br />
respiração. - Eu traio-O porque… porque Ele traiu o Senhor, traiu o<br />
seu próprio mito, matou o mito <strong>do</strong> Dragão com promessas de Paz… porque<br />
Ele matou a “fé”!!!.<br />
∴<br />
127
Sahitañ saíra <strong>do</strong> Concílio, naquele pessoalmente glorioso dia, e<br />
chegara relativamente rápi<strong>do</strong> à Zona, na companhia de Catarina e Dai-<br />
mon.<br />
Algo acontecia por ali!, via pessoas agitadas a correrem trope-<br />
çan<strong>do</strong>, sem uma aparente meta definida. Um estranho aperta<strong>do</strong> sentimento<br />
esmagou-lhe a mente, num mau agoiro pressenti<strong>do</strong>; e quis ir acelera<strong>do</strong><br />
para o seu lar-oficial.<br />
Ainda não haviam avista<strong>do</strong> o local onde se escondia a principal<br />
das suas várias secretas entradas, quan<strong>do</strong> esbarraram com o descontro-<br />
ladamente ofegante e nervoso Incôbuz, que se prostrou em choro aos pés<br />
<strong>do</strong> seu supremo-líder.<br />
O Fiel-Servente de Daimon havia si<strong>do</strong> alvo, nos últimos anos, de<br />
uma especial atenção por parte de Sahitañ. Aquele e Catarina haviam<br />
desenvolvi<strong>do</strong>, com base na sua inigualável experiência em conjunto, uma<br />
nova versão da técnica de meditação psico-genética, que permitia a um<br />
qualquer Anormal desenvolver o seu Poder muito para além <strong>do</strong>s seus ori-<br />
ginais limites, alimentan<strong>do</strong>-o na titanicamente selvagem força revolto-<br />
sa, agora aparentemente <strong>do</strong>mável, <strong>do</strong> Tegonatos. Incôbuz fora a voluntá-<br />
ria cobaia escolhida, para eles testarem, com o directo apoio <strong>do</strong> Cipu,<br />
e com muitos positivos resulta<strong>do</strong>s, aquele novo caminho meditativo que<br />
eles haviam denomina<strong>do</strong> por «Neoteotao».<br />
O gor<strong>do</strong> homem soluçava incessante, sobre os joelhos <strong>do</strong>, em cres-<br />
cen<strong>do</strong> afligi<strong>do</strong>, Sahitañ.<br />
- Eles entraram de surpresa… eu não… ! - balbuciou, quase em mu-<br />
dez, entre lágrimas. - Eu não pude… já foi tarde quan<strong>do</strong> reagi… ó Se-<br />
nhor, eu não pude fazer nada mais… !!.<br />
Ao ouvir aquilo o grupo apressou-se ainda mais para chegar ao seu<br />
lar-oficial.<br />
128
Em choque, quan<strong>do</strong> lá chegaram depararam com a secreta porta de-<br />
sencoberta e escancaradamente aberta. No caminho, <strong>do</strong>rmiam, ao acaso,<br />
alguns corpos de vulgares humanos envergan<strong>do</strong> o ex-uniforme militar da<br />
Família.<br />
- Eu… eu… quan<strong>do</strong> me refiz <strong>do</strong> susto… eu tentei… tentei fazer como<br />
me ensinaste… mas demorei muito tempo… não me conseguia concentrar… e<br />
quan<strong>do</strong> finalmente usei o meu <strong>do</strong>m… já era tarde!! Mas… mas Senhor… mas,<br />
mesmo assim, salvei… consegui salvar muitos <strong>do</strong>s nossos verosirmãos!.<br />
Eles também se sabiam defender bem, mas… foi a surpresa… apanhou-nos<br />
to<strong>do</strong>s despreveni<strong>do</strong>s!!!. Mas eu consegui… o meu Poder, como Tu me ensi-<br />
naste… eles começaram to<strong>do</strong>s… um por um… a cair em sono; os outros ven-<br />
<strong>do</strong> os seus companheiros… os outros fugiram… correram em retirada. Eu<br />
tentei… eu tentei, ó Senhor per<strong>do</strong>a-me!; eu tentei… !. - explicou, o<br />
que ali sucedera, em soluços, Incôbuz a Sahitañ.<br />
- O meu filho… e o meu filho!?? - berrou-lhe Catarina, numa súbi-<br />
ta histeria. O Fiel-Servente de Daimon, soluçan<strong>do</strong> cabisbaixo, chora-<br />
mingou apenas, em resposta àquela pergunta.<br />
Então, ela e Sahitañ, esmaga<strong>do</strong>s por um sentimento de Dor anun-<br />
ciada, correram numa louca aceleração, pelo interior <strong>do</strong> subsolo da<br />
Zona!<br />
Mutila<strong>do</strong>s corpos ensanguentavam to<strong>do</strong> aquele cenário ardente em<br />
fumos negros e escaldantes, enquanto alguns feri<strong>do</strong>s moribun<strong>do</strong>s se ar-<br />
rastavam gotejan<strong>do</strong>, por ali, num <strong>do</strong>lorosamente esta<strong>do</strong> de anestesiada<br />
inconsciência, como decadentes mortos-vivos desfazen<strong>do</strong>-se em pedaços<br />
de sangrenta carne, e vomitan<strong>do</strong> as próprias liquefeitas entranhas.<br />
Incôbuz seguiu-os apressadamente, colocan<strong>do</strong>-se, numa fisicamente<br />
desafiante, corrida ofegante à sua frente, in<strong>do</strong> indicar-lhes o respec-<br />
tivo caminho, onde no fim, entre escombros, se encontrava a tão deses-<br />
129
peradamente procurada criança. Daimon, numa maior lentidão, contem-<br />
plan<strong>do</strong>, num olhar ainda incrédulo, to<strong>do</strong> aquele horror, foi atrás <strong>do</strong><br />
apressa<strong>do</strong> trio.<br />
Pararam to<strong>do</strong>s, num involuntário altar de destroços, onde estava<br />
disposto, numa inatural pose de repouso, um parcialmente desfeito, mas<br />
ainda reconhecível, sangrento e queima<strong>do</strong> cadáver de menino.<br />
Sahitañ aproximou-se. Aquilo, que permanecera a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> no seu<br />
psicuniverso durante tantos anos, fora, por aquela visão, acorda<strong>do</strong> com<br />
violência; e envolvera-o num denso e asfixiante manto obscuramente in-<br />
visível, tornan<strong>do</strong>-se na sua sólida vontade.<br />
Um duro silêncio invadiu to<strong>do</strong>s os que o viam.<br />
Catarina, pressentin<strong>do</strong> o que ele se preparava para fazer, correu<br />
para o pai <strong>do</strong> infantil defunto, num brusco gesto de impedimento.<br />
- Não. Não!!, não o faças.! - gritou Catarina, enquanto empurrava<br />
Sahitañ com brutalidade, quebran<strong>do</strong> o seu esta<strong>do</strong> de absoluta e instin-<br />
tiva meditação. - Não. Não o ressuscites, por favor! Se o amas verda-<br />
deiramente, não o ressuscites!! Não vês… ?!! Apenas o condenarias a<br />
uma outra, e outra… e outra morte. Por favor… ! - a sua voz foi rapi-<br />
damente converten<strong>do</strong>-se em pranto. - A sua eterna sentença… a sua única<br />
culpa foi nascer teu filho!!. Não compreendes!?!!<br />
Interrompi<strong>do</strong>, Sahitañ foi incapaz de retomar o seu perdi<strong>do</strong> ponto<br />
de interior concentração e mental focagem. Frustração!!!; o seu filho<br />
jazia à sua frente, e ele, o mítico Dragão, nada podia fazer para re-<br />
encaminhá-lo de novo para a Vida. O Ódio cresceu como uma hera dentro<br />
de si, assimilan<strong>do</strong> cada célula <strong>do</strong> seu organismo, abraçan<strong>do</strong>-o numa su-<br />
focante sombra que realterava as suas feições. Olhou, então, para a<br />
mulher, que apesar de ser a mãe <strong>do</strong> seu filho, o impedira de ressusci-<br />
tá-lo; e, num simples gesto irracional pleno de fúria e raiva, projec-<br />
130
tou, com brutal violência proveniente duma imaginária mão, o corpo<br />
dela contra uma das intactas paredes.<br />
Catarina desmaiou no duro impacto quase mortal. Sahitañ não de-<br />
monstrou qualquer reacção de arrependimento, nem fez algum movimento<br />
para a socorrer; enquanto se retirava para os seus provavelmente des-<br />
troça<strong>do</strong>s aposentos.<br />
- Cuida de tu<strong>do</strong>, Daimon. Desfaz-te, como melhor quiseres, <strong>do</strong> cor-<br />
po <strong>do</strong> meu filho!!!… - disse, numa estranha nova voz, isenta de qual-<br />
quer tom e ausente de visíveis sentimentos; enquanto lentamente partia<br />
dali, o supremo-líder da chacinada Assembleia. - E avisa-a, que jamais<br />
quero ver o seu rosto perante mim.!<br />
Logo que Sahitañ aban<strong>do</strong>nou aquele local, Daimon correu para o de-<br />
caí<strong>do</strong> corpo de Catarina, auxilian<strong>do</strong>-a a reganhar os senti<strong>do</strong>s momenta-<br />
neamente perdi<strong>do</strong>s. Ela, em pequenos esforços <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>s, semi-abriu os<br />
olhos num sinal de reacordada consciência.<br />
- Agora, infelizmente… - sussurrou, num desconexo firme tom de<br />
carinho, Daimon a Catarina, recordan<strong>do</strong>-lhe uma conversa tida, mas nun-<br />
ca esquecida, havia vários anos. - … pelo menos, já conhecemos um <strong>do</strong>s<br />
motivos das Suas tão ácidas lágrimas!!!.<br />
Momentos depois, ajuda<strong>do</strong> por Incôbuz, ele carregou-a, em braços,<br />
para a Enfermaria, que supostamente estaria, naquele momento, super-<br />
lotada.<br />
A Noite veio lenta naquele ambíguo dia, como se acanhada por tan-<br />
ta sangrada Dor.<br />
Daimon fora convoca<strong>do</strong> aos, agora solitários, aposentos <strong>do</strong> supre-<br />
mo-líder da Assembleia. Ia com o passo pesa<strong>do</strong>, e a mente inquieta; as<br />
notícias que levava a Sahitañ não podiam ser piores. Temia a sua fú-<br />
131
ia, temia ser o seu disponível alvo e ter a mesma Sorte que Catari-<br />
na.!<br />
Chegou, por fim. O quarto estava mergulha<strong>do</strong> em sombras, que se<br />
entrecortavam em raros pedaços de luz. Ele estava de costas para o re-<br />
cém chega<strong>do</strong>, contemplan<strong>do</strong> aparentemente uma parede; vestia um destoan-<br />
te fato-macaco ofuscantemente branco, que culminava, aos seus ombros,<br />
numa larga capa que lhe caia cobrin<strong>do</strong>-o em totalidade, ocultan<strong>do</strong> a sua<br />
cadeira-a-motor. Ao ouvir, entrar Daimon, alguns demasiadamente longos<br />
momentos depois, voltou-se para o encarar.<br />
Um susto assolou, em forçada contenção, o visitante homem, ao ver<br />
o rosto de Sahitañ; uma luz obscura moldara, numa diferente configura-<br />
ção, as suas feições, dan<strong>do</strong>-lhe um irreal sopro de inumanidade, como<br />
algo vazio de Vida, anima<strong>do</strong> apenas por algum obscuro sortilégio.<br />
- Senhor!!! - curvou-se exageradamente, tenta<strong>do</strong> disfarçar o seu<br />
momentâneo assusta<strong>do</strong> espanto, Daimon.<br />
- Diz-me, quais foram os resulta<strong>do</strong>s da tua pesquisa aos registos<br />
<strong>do</strong> dia? O que te revelaram os sensores internos da Assembleia? Como<br />
conseguiu a milícia Familiar entrar aqui, num “ataque-rápi<strong>do</strong>”-pedestre<br />
de surpresa? - perguntou-lhe numa voz insensível.<br />
- Senhor… - hesitou, Daimon, procuran<strong>do</strong> as palavras mais adequa-<br />
das, num eufemismo condena<strong>do</strong> ao fracasso. - Os registos… eu verifi-<br />
quei-os várias vezes, inúmeras vezes, para reconfirmar!… Os registos<br />
indicam que… as portas foram abertas… e os alarmes desactiva<strong>do</strong>s… por<br />
dentro.! Meu Senhor!!! - temeu alguma súbita reacção de Sahitañ, Dai-<br />
mon; mas, para novo espanto, nada <strong>do</strong> espera<strong>do</strong> aconteceu.<br />
- Meu bom Daimon, quem…? Quem as abriu?<br />
- O código-pessoal de abertura e desactivação, confirmam os re-<br />
gistos visuais de acesso restrito… além de não se encontrar a sua pre-<br />
132
sença em la<strong>do</strong> nenhum, possivelmente fugiu aquan<strong>do</strong> da retirada Fami-<br />
liar!. - tentou rodear, o máximo tempo, uma resposta directa, justifi-<br />
can<strong>do</strong> primeiro a sua ainda não feita acusação.<br />
- Quem foi!!?! - berrou-lhe num trovão, num óbvio breve momento<br />
de impacientemente furioso descontrolo emocional.<br />
- Senhor, per<strong>do</strong>a-me esta notícia, que me é tão difícil de anun-<br />
ciar, pois sei a Dor que ela Te dará!! - disse, num ligeiramente ame-<br />
dronta<strong>do</strong> tom de pesar, Daimon. - Senhor… foi… Cét!.<br />
Um desumanamente trovejante uivo ensurdece<strong>do</strong>r de pura <strong>do</strong>lorosa<br />
raiva, invadiu, então, to<strong>do</strong> o subsolo da Zona, estremecen<strong>do</strong> todas as<br />
mentes que em pânico, o ouviram, e abalan<strong>do</strong> as próprias escaldantes<br />
entranhas da Terra.<br />
∴<br />
Anguélaz agitava-se, como habitualmente, em mal-<strong>do</strong>rmi<strong>do</strong>s sonos,<br />
no seu dispositivo-<strong>do</strong>rmitório.<br />
Aquele, apesar da inesperada debandada das suas tropas humanas, e<br />
de outros factos de insucesso, fora um dia importantíssimo para a Fa-<br />
mília. A Assembleia vira a sua cabeça administrativa destroçada, pro-<br />
ferin<strong>do</strong> um duro golpe no Dragão, que impotentemente viu assim o seu<br />
maldito ninho viola<strong>do</strong> e desfeito em queimadas cinzas. Decerto que ine-<br />
vitavelmente os membros da Família seriam chama<strong>do</strong>s perante o Cipu para<br />
responderem às acusações de Xiva, ou seja, Sahitañ!; mas ninguém pode-<br />
ria provar nada, nenhum daqueles guerreiros era Familiar, apenas os<br />
seus uniformes tinham as oficiais cores da Família, e aquilo seria<br />
apenas mais uma prova para a sua inocência!, afirman<strong>do</strong> ser ela apenas<br />
um bode expiatório de toda uma trama contra a sua pacífica posição no<br />
Concílio. Não haven<strong>do</strong> provas directas em contrário, nada daquilo podia<br />
ser ou não prova<strong>do</strong>, permanecen<strong>do</strong> Teus impune.<br />
133
Num pulo, Anguélaz acor<strong>do</strong>u, em alarme. Algo se revolvia nas som-<br />
bras <strong>do</strong> seu quarto, num ruí<strong>do</strong> de agitadas vestes em movimento. Uma fi-<br />
gura trajada de branco emergiu da escuridão, mesmo defronte <strong>do</strong>s seus<br />
a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>s olhos ainda sonolentos. Era, para seu grande temor, Sahi-<br />
tañ, quem profanava a quietude nocturna daquela solitária divisão.<br />
- Eu vim por Cét; dá-mo, e eu deixo-te viver… por hoje, ah, ah,<br />
ah!!. - aquela finalizante gargalhada de Sahitañ, soou muito para além<br />
de bizarra aos ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Familiar, era um riso <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de uma indefi-<br />
nível loucura, e duma sádica vibração que deixara de ser emocionalmen-<br />
te humana; inexplicavelmente sentiu, naquela altura, um presságio de<br />
uma inevitável profecia que se cumpria a si mesma, imperativa na longa<br />
espiral circular <strong>do</strong> Tempo; e um géli<strong>do</strong> arrepio correu-lhe pela mente.<br />
- Eu… eu nada sei desse infiel! - dissimulou, num mal consegui<strong>do</strong><br />
tom inocente, Anguélaz. O Familiar sabia que apenas o testemunho de<br />
Cét condenaria, perante o Sig, o envolvimento da Família naquele últi-<br />
mo massacre. Aquele era o único ponto frágil da sua conspiração, de-<br />
nunciá-lo seria acusar os próprios Familiares, por tu<strong>do</strong> havia que pro-<br />
teger a sua morada… ou, melhor, eliminá-lo antes que fosse descoberto<br />
por Sahitañ!.<br />
- Não queiras desafiar a minha fúria; não queiras desafiar a fú-<br />
ria <strong>do</strong> Dragão… a fúria que, vocês Familiares, alia<strong>do</strong>s a esses miserá-<br />
veis Seres vulgares que se auto-intitulam de “humanos”, despertaram em<br />
mim!!!!. - a voz de Sahitañ soou altiva, num tom quase ceremonialmente<br />
arrogante. Após a sua fala terminar, aproximou-se de Anguélaz, impon-<br />
<strong>do</strong>-lhe a sua cortantemente fria mão sobre a transpirada testa <strong>do</strong> as-<br />
susta<strong>do</strong> homem, cujo corpo se imobilizara involuntariamente, responden-<br />
<strong>do</strong> a uma exógena obscura vontade bizarramente solidificada no interior<br />
134
<strong>do</strong> seu devasta<strong>do</strong> psicuniverso. - Não me forces a retirar com violência<br />
da tua mente aquilo que a tua boca me nega!!.<br />
- Não, por favor, não invadas a minha vontade de novo!!! - implo-<br />
rou-lhe, num súbito choro de memória ardente em carne-viva.<br />
- A decisão é tua. - parou a voz num tom suspenso. - Dou-te mais<br />
<strong>do</strong> que aquilo que deram ao meu filho; <strong>do</strong>u-te a oportunidade de esco-<br />
lheres entre ti e Cét… a tua vida ou a tua morte; escolhe!, já. -<br />
finalizou a aquela frase, num som imperativo.<br />
- Nós não queríamos… não fomos nós que matámos… o teu filho. -<br />
disse Anguélaz, apanha<strong>do</strong> em surpresa, pela anterior fala de Sahitañ. -<br />
O nosso plano era resgatá-lo no meio da destruição da Assembleia; nun-<br />
ca foi nossa intenção matá-lo. Queríamos educá-lo e treiná-lo contra<br />
ti… pois foi descrito em Bíblios: “O Dragão gerará, de si mesmo, uma<br />
cria. … Então, a cria tomará para si a égide da Luz, e confrontará o<br />
seu progenitor em Armaguedão.”- o Familiar tentou, em vão, respirar<br />
fun<strong>do</strong>. - Vês!, de muito mais, nos serviria o teu filho vivo que mor-<br />
to.!<br />
- Que dizes??!? - irritou-se, em fúria, Sahitañ.<br />
- Nós ordenámos o rapto <strong>do</strong> teu muito bendito filho, não a sua<br />
morte! Mas quem te traiu, traiu-nos também; toman<strong>do</strong> nas suas mãos a<br />
vida da criança. Foi Cét… !!!. Não te minto, os nossos sensores-<br />
móveis, que acompanharam o ataque, registaram tu<strong>do</strong>!. - ao dizer aqui-<br />
lo, compreendeu, que para se salvar da Dor paternal de Sahitañ, acaba-<br />
ra de condenar, com as suas irreflectidas palavras, toda a Família. Do<br />
fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu quarto, surgiu a inequívoca claridade dum holofone.<br />
- Vejo que cheguei exactamente a tempo, para ouvir a tua confis-<br />
são, Anguélaz!. - soou asperamente solene a, infelizmente para o Fami-<br />
liar, reconhecida voz <strong>do</strong> Cipu.<br />
135
- Continua. - ordenou secamente Sahitañ a Anguélaz, aparentemente<br />
desprezan<strong>do</strong> a aparecida presença <strong>do</strong> Sig. - Diz-me onde a Família<br />
escondeu esse, como tu o chamaste!, infiel. - ao proferir aquilo, fez<br />
uma suavemente ligeira pressão, com a sua mão, sobre a testa <strong>do</strong> emba-<br />
raça<strong>do</strong> homem assusta<strong>do</strong>. Aquele sentiu como se uma insensível faca dura<br />
lhe rompesse bruta a mente, era uma Dor insuportável; mas a mesma for-<br />
ça, que o mentalmente violava com sádica brutalidade, impedia-o, por<br />
um qualquer sortilégio de Poder, de desmaiar. - Fala; ou, o que te<br />
esperará, será apenas isto: Dor, muito para além que o organismo de<br />
qualquer Ser consegue suportar consciente.! Ah, ah, ah, ah!!!!<br />
- Não, por favor; mais não!!! - berrou, em assumi<strong>do</strong> choro, o im-<br />
plorante Anguélaz.<br />
- Dá-me Cét; e eu irei… por agora!. Ah, ah!! - insistiu Sahitañ,<br />
num falso tom cari<strong>do</strong>so, denuncia<strong>do</strong> toda a sua superioridade.<br />
- Cét… deve estar… neste momento… à espera de embarcar no «espa-<br />
çoporto»… a Família reservou-lhe um lugar… para as «novas-colónias». -<br />
anunciou, por fim, o rendi<strong>do</strong> Familiar. Naquele momento, como numa bên-<br />
ção, toda a Dor cessou, e sentin<strong>do</strong> o seu corpo livre daquelas invisí-<br />
veis correntes, Anguélaz, num gesto automático de reencontra<strong>do</strong> con-<br />
fronto, fechou os olhos; quan<strong>do</strong> de novo os abriu, já nenhum traço viu<br />
de Sahitañ, apenas, boian<strong>do</strong> na escuridão à sua frente, o holofone <strong>do</strong><br />
irrita<strong>do</strong> Cipu, lhe garantia com infortúnio que aquilo não fora mais um<br />
<strong>do</strong>s seus insistentemente recorrentes pesadelos.<br />
- Anguélaz… vai chamar Teusfilo; quero-o aqui, já.!!! - gritou-<br />
lhe em coman<strong>do</strong> a voz furiosa <strong>do</strong> Cipu.<br />
∴<br />
O complexo <strong>do</strong> espaçoporto estendia-se por cem quilómetros no Sec-<br />
tor D, da 1ª Região-continental <strong>do</strong> Norte-polar, da Terra. Era uma<br />
136
construção relativamente recente, e de pouco uso; operan<strong>do</strong> apenas es-<br />
poradicamente. A recolonização <strong>do</strong>s «planetas-Solares»(planetas incluí-<br />
<strong>do</strong>s no mar-solar), aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s desde o princípio <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> andrísia-<br />
no, fora iniciada já no tardio reina<strong>do</strong> administrativo <strong>do</strong> Oliap3, ante-<br />
cessor <strong>do</strong> Cipu, e depois algo negligenciada por aquele, em favor da<br />
criação da Anormalidade.<br />
Oliap3 havia opta<strong>do</strong> pela não execução da demorada técnica de<br />
«terraformação»(milenar arte, muitíssimo arcaica, de transformação de<br />
estrangeiros ambientes em atmosferas tipo-terrestre, capazes de suste-<br />
rem uma biosfera), em vez daquilo, decidira exportar para aqueles mun-<br />
<strong>do</strong>s máquinas-inteligentes de construção, para que erigissem hermetica-<br />
mente fecha<strong>do</strong>s «complexos-“urbanos-biosféricos”, as «biUrbis», que<br />
serviriam de habitat para os futuros colonos. Assim se fundaram as no-<br />
vas-colónias.!<br />
Quase passara um sígulo, e os únicos humanos a se exportarem,<br />
para o exterior da Terra, eram somente o pessoal de manutenção e as<br />
suas respectivas famílias, envia<strong>do</strong>s para garantir a conservação da ha-<br />
bitabilidade das biUrbis, e também alguns mais aventureiros explora<strong>do</strong>-<br />
res; para além, claro, <strong>do</strong>s graves criminosos, que haviam falha<strong>do</strong> a re-<br />
modelação psico-genética e cometi<strong>do</strong> um qualquer crime pela segunda<br />
vez, sen<strong>do</strong> por isso envia<strong>do</strong>s para forçosamente trabalharem, até sucum-<br />
birem à <strong>Morte</strong>, nas ainda mal aproveitadas minas extraterrestres loca-<br />
lizadas separadamente das vulgares biUrbis. A única excepção fora a<br />
colonização lunar, onde, para lá <strong>do</strong>s já cria<strong>do</strong>s complexos-“urbanos-<br />
biosféricos”», o Cipu decidira operar ali um pouco de, rápida e não<br />
muito sofisticada, terraformação; em menos de três-quintos de sígulo,<br />
a Lua, muito provavelmente devi<strong>do</strong> à sua extrema proximidade com a Ter-<br />
ra, estan<strong>do</strong> mesmo no limite <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong>s «mais potentes transporta-<br />
137
<strong>do</strong>res e ruptores»(os «geoutos», que eram especial e exclusivamente ca-<br />
libra<strong>do</strong>s para ultrapassarem as interferências destabiliza<strong>do</strong>ras da<br />
«maré-solar terrestre», e cuja adquisição necessitava duma prévia, mas<br />
rápida, aprovação-legal <strong>do</strong> Dept) o que lhe facilitava o acesso quoti-<br />
diano e inutilizava o uso <strong>do</strong> espaçoporto, tornara-se numa importante<br />
metrópole densamente populada, considerada já mesmo, naquele perío<strong>do</strong>,<br />
como sen<strong>do</strong> os subúrbios <strong>do</strong> próprio planeta terrestre.<br />
ca.<br />
Assim se explicava o reduzi<strong>do</strong> trafego <strong>do</strong> espaçoporto naquela épo-<br />
Àquela hora nocturna, um irritante apito contínuo soava por to<strong>do</strong><br />
aquele amplo e fumegante espaço, ilumina<strong>do</strong> azuladamente por rui<strong>do</strong>sas<br />
luzes artificias dispostas longas no tecto e em algumas paredes. Era<br />
um aviso de partida. Pessoas e máquinas, de formas variadas, corriam<br />
apressadas em diversas direcções, por vezes pulan<strong>do</strong> sobre grossos ca-<br />
bos, que como a<strong>do</strong>rmecidas jibóias, se estendiam no reflexível soalho<br />
brilhante.<br />
Não era comum tanta agitação ali! Dois navios «Transplanetá-<br />
rios»(resistentes, mas relativamente demoradas, naves que cumpriam o<br />
trajecto entre planetas, no interior <strong>do</strong> mar-solar; as suas formas lem-<br />
brariam aos Antigumanos meros aviões de papel, que, em cor algo esver-<br />
deada, se estendiam em especial metal sintético, cada um, por um qui-<br />
lometro de comprimento e vinte-e-cinco metros de altura, mas pesan<strong>do</strong><br />
apenas sete toneladas) iriam partir, embora com destinos diferentes,<br />
ao mesmo tempo; o que era um acontecimento bastante raro.<br />
Caminhan<strong>do</strong>, diluí<strong>do</strong> na pequena multidão que subia a porta de em-<br />
barque de um <strong>do</strong>s Transplanetários que se preparavam para partir, ia o<br />
encarapuça<strong>do</strong> Anormal de nome Cét. Ia apressa<strong>do</strong>, furan<strong>do</strong> os seus passos<br />
entre a fila de passageiros.<br />
138
Então de súbito, algumas mãos o apertaram sobre os ombros, impe-<br />
din<strong>do</strong>-o de continuar o seu percurso, e empurran<strong>do</strong>-o com alguma bruta-<br />
lidade para fora da corrente de gente. Ele, num susto, voltou-se, para<br />
encarar quem o segurava; eram três homens vesti<strong>do</strong>s com o relativamente<br />
novo uniforme da «polícia-tropa» <strong>do</strong> Cipu e <strong>do</strong> Concílio, um brilhante e<br />
justo fato-macaco negro com o capuz caí<strong>do</strong> pelas costas.<br />
(Raramente vista nas acções de segurança <strong>do</strong> dia-a-dia, apenas<br />
surgin<strong>do</strong> para resolver situações pontualmente específicas de grave<br />
grau, a nova polícia-tropa, era administrativamente independente das<br />
restantes organizações militares <strong>do</strong> Sig, e era composta por uma elite<br />
exclusiva de Anormais, cujo treino meditativo, processo especial de<br />
regeneração biológica que lhes fornecia uma aparência não-Anormal, e a<br />
própria morada <strong>do</strong> seu lar-oficial eram manti<strong>do</strong>s em profun<strong>do</strong> segre<strong>do</strong>;<br />
as más-línguas juravam que eles eram os guerreiros priva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> novo<br />
presidente <strong>do</strong> Concílio, e que moravam mesmo junto <strong>do</strong> Cipu, em Osiglim-<br />
púliz, sen<strong>do</strong> directamente envia<strong>do</strong>s para lá depois <strong>do</strong> seu recrutamento,<br />
ou até, logo após o seu reacordamento).<br />
Cét sabia bem que era inútil tentar confrontá-los, com o seu Po-<br />
der, pois o deles superava o da maioria <strong>do</strong>s Anormais, e por isso cami-<br />
nhou pacífico para onde eles o guiavam.<br />
Pararam num recanto, entre duas pilhas de encaixota<strong>do</strong>s mantimen-<br />
tos. Ali <strong>do</strong>is outros homens ladeavam um vulto encoberto por sombras.<br />
No chão, os azuis estilhaços anunciavam um tubo de luz recentemente<br />
parti<strong>do</strong>.<br />
- Ajoelha-te, perante «o Mestre». - disseram a Cét, forçan<strong>do</strong>-o a<br />
prostrar-se, os homens em uniforme.<br />
Ele havia reconheci<strong>do</strong> os outros <strong>do</strong>is, que agora se erguiam em<br />
rostos e poses estáticas e com uma séria imponência rígida. Um, o gor-<br />
139
<strong>do</strong>, era Incôbuz; o outro, magro e de longo cabelo colori<strong>do</strong> em crista,<br />
era Daimon.<br />
(Apenas uma pequena nota, de algum interesse cronistórico: «o<br />
Mestre», no princípio <strong>do</strong> 30 o sígulo, tinha praticamente a mesma sono-<br />
rização, embora graficamente fosse ligeiramente diferente, que «o Se-<br />
nhor».)<br />
Então sain<strong>do</strong> da obscuridade, o vulto converteu-se numa sentada<br />
figura esbranquiçada, aproximou-se de Cét. Era Sahitañ.<br />
- Cét!!! Julgavas poder fugir de mim?! - a voz <strong>do</strong> supremo-líder<br />
da Assembleia era oca em sentimentos, o que ainda afligiu mais o homem<br />
em joelhos.<br />
- Senhor… !!! - exclamou, implorante, Cét.<br />
- Cala-te. - gritou-lhe seco, Sahitañ. - De ti só quero que me<br />
expliques… porquê?? - perguntou-lhe num tom mais sereno; e suspirou<br />
prolongadamente, em <strong>do</strong>lorosa recordação. - Logo tu… talvez esperasse<br />
que outro qualquer me traísse… mas não tu; a quem eu aprendi a querer<br />
como pai e irmão, a quem tanto dei… eu dei-te a Vida, mais que isso eu<br />
dei-me àqueles fanáticos por ti, sacrifiquei o meu sossega<strong>do</strong> anonima-<br />
to… a minha “paz”!, eu revelei-me para te salvar!!!. - parou novamente<br />
a fala, e expirou pesadamente. - Traíste-me!. Como pudeste… ??!<br />
- Nunca Te pedi nada. Estava feliz por morrer por uma “fé”, um<br />
símbolo em que eu acreditava!!<br />
- Cala-te. Ingrato, és mais desprezível que aquele maldito velho<br />
e decadente Teusfilo! Trai<strong>do</strong>r!.<br />
- Eu nunca Te traí… - interrompeu, numa insensata fúria de pala-<br />
vras, Cét. - Tu traíste-Te… traíste-nos a to<strong>do</strong>s que acreditávamos em<br />
Ti, ao negar-nos a tão esperada Guerra, ao matares o mito <strong>do</strong> Dragão<br />
com palavras de Paz e Igualdade.!<br />
140
- O que dizes é pura loucura!! Como posso eu matar o Dragão, se<br />
eu! sou o Dragão.!!!<br />
- Não. Lembras-Te… ?, eu uma vez disse-Te… o Dragão é mais que um<br />
mero homem, é uma “fé”, um símbolo; não vês!?, Ele vive para além de<br />
Ti, é eterno, é a nossa esperança, o nosso Ódio!!!… Tu és apenas uma<br />
Sua momentânea representação carnal, um fugaz grafismo Daquilo que re-<br />
presentas e que Te excede, Te transborda completamente tornan<strong>do</strong>-se<br />
inexprimível em abstracção da própria realidade que és… não vês, Tu<br />
não és em Ti o Dragão, mas sim, o Dragão é em Ti!!!!.<br />
- Fanatismo!!! - berrou-lhe em trovão, irrita<strong>do</strong>, Sahitañ. - Ape-<br />
nas fanatismo!. Eu, e apenas eu, sou o Dragão!, ele é uma consequência<br />
de mim e não vice-versa. Tu é que não vês nada, cego pela tua própria<br />
imagem arrogante de “fé”! - respirou fun<strong>do</strong>, em desesperante raiva. -<br />
Devia ter-te deixa<strong>do</strong> morrer moribun<strong>do</strong>, naquele dia; nisso tens razão,<br />
eu sou a culpa da Dor que sinto, fui o carrasco <strong>do</strong> meu ama<strong>do</strong> filho!, e<br />
isso jamais te poderei per<strong>do</strong>ar… nem per<strong>do</strong>ar a mim!. - parou por segun-<br />
<strong>do</strong>s a fala. - Não me importam todas as mortes daqueles miseráveis que<br />
me seguiam e adulavam como cães, nem a destruição daquele teatro de<br />
fantochadas a que chamavam Assembleia, aquilo tu<strong>do</strong> era apenas um meio<br />
de realizar aquilo que planeei, nada mais!, na verdade a sua existên-<br />
cia enjoava-me, as Massis aborreciam-me de sono!!<br />
- O quê!!!! - exclamou, num súbito escândalo, Cét. - O que dizes<br />
são absolutas heresias!.<br />
- Cala-te. - coman<strong>do</strong>u-lhe, Sahitañ. - É a verdade que te digo.<br />
Posso desculpar-te as suas inúteis mortes, mas, não, teres tira<strong>do</strong> a<br />
Vida ao meu filho!!<br />
- Mas Senhor… essa foi a maior prova de que, apesar de tu<strong>do</strong>, ain-<br />
da quero crer em Ti, e que, contrarian<strong>do</strong> a minha própria razão, ainda<br />
141
Te amo!. - disse, num tom repentinamente mais submisso e humilde, o<br />
ajoelha<strong>do</strong> Anormal.<br />
- Que falas?!!! - raivou, Sahitañ. - Apenas oiço demência na tua<br />
maldita voz.!<br />
- Eu… ousei, tal como tu, desafiar Bíblios!, e matei o teu oposi-<br />
tor; por minhas mãos, triunfarás e to<strong>do</strong> o Universo será Teu, meu Se-<br />
nhor!!. Foi descrito que, no penúltimo momento da grande circular es-<br />
piral-temporal, a cria <strong>do</strong> Dragão defrontaria o seu Progenitor em Arma-<br />
guedão, pela instauração de um novo Génesis universal. Eu derrotei a<br />
profecia, matan<strong>do</strong> o Teu filho; eu venci a imutável predestinação… <strong>do</strong><br />
próprio Tempo!!! - congratulou-se, agora em assumi<strong>do</strong> delírio fanático,<br />
Cét.<br />
- Maldito seja Bíblios, que me persegue desde que eu cheguei à<br />
estação-de-reacordamento; e tu com ele!!! - uivou, o supremo-líder da<br />
Assembleia, em indescritível Dor de um homem subjuga<strong>do</strong> por uma profe-<br />
cia em que queria não acreditar e que optara por defrontar, pagan<strong>do</strong><br />
agora, em inevitabilidade, as caríssimas consequências <strong>do</strong> seu involun-<br />
tário e inescapável cumprimento.<br />
Um novo apito invadiu o azula<strong>do</strong> ar <strong>do</strong> espaçoporto. Aquilo surtiu<br />
um estranho efeito em Sahitañ, fazen<strong>do</strong>-o pausar e realteran<strong>do</strong> o seu<br />
aparente humor, como num incompreensível encantamento.<br />
- Bem!, está na hora de partires. - disse, num renova<strong>do</strong> som<br />
insensível e envolto por um olhar seco e sem Vida, Sahitañ a Cét. - Eu<br />
remarquei a tua viagem, num Transplanetário só para ti; ah, ah, ah! Já<br />
não partes para Vénus, mas sim para as minas de água de Marte; ah,<br />
ah!!! - reganhou fôlego após aquela sonora gargalhada. - Mas antes que<br />
partas, dar-te-ei a dádiva que tu retiraste ao meu filho, uma oferenda<br />
que nem eu possuo, mas que está <strong>do</strong>rmente em ti; ela será a tua recom-<br />
142
pensa e o teu castigo!!! - dizen<strong>do</strong> aquilo, colocou a mão direita sobre<br />
a testa nua de Cét.<br />
O outro homem guinchou, então, num incalculável escasso momento<br />
de total Dor, sentin<strong>do</strong>-a a atravessar esmaga<strong>do</strong>ramente e triturante to-<br />
<strong>do</strong>s os átomos <strong>do</strong> seu paralisa<strong>do</strong> corpo. Demora<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s depois,<br />
aquele ritual estava finaliza<strong>do</strong>, e Cét caiu esgota<strong>do</strong> no duro chão, fe-<br />
rin<strong>do</strong>-se nos estilhaços agu<strong>do</strong>s que ali repousavam. Na sua fronte, ain-<br />
da vibrante de brasa colorida, estava agora uma bizarra marca.<br />
- Eis o símbolo da Vida!!! Por essa marca, ninguém, nem a própria<br />
<strong>Morte</strong>, se atreverá a atentar mortalmente contra ti; ah, ah, ah, ah!!<br />
Levem-no, agora, daqui; embarquem-no no Transplanetário. Já. - disse<br />
tirano, Sahitañ, enquanto aban<strong>do</strong>nava, ladea<strong>do</strong> por Daimon e Incôbuz,<br />
aquele local, reafundan<strong>do</strong>-se nas sombras.<br />
- Não!!!! - em vão, berrou choramingante de pânico, recuperan<strong>do</strong><br />
ligeiramente o controlo sobre a sua consciência, Cét; enquanto o seu<br />
ensanguenta<strong>do</strong> corpo era insensivelmente arrasta<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> rijo so-<br />
alho, pelos elementos da polícia-tropa, até à sua destinada nave. -<br />
Não!! Senhor, não me condenes à vida eterna nas minas marcianas; por<br />
favor… isso não!!!. Não!!!!!<br />
Era próximo o fim daquele dia.<br />
∴<br />
Os aposentos <strong>do</strong> supremo-líder da Assembleia estavam num mergulho<br />
de escuridão, apenas quebrada por <strong>do</strong>is pequenos verticais tubos de<br />
luz, de fraca emissão, dispostos em paredes opostas.<br />
Sahitañ encontrava-se solitário no seu quarto, quan<strong>do</strong> entrou Dai-<br />
mon, segui<strong>do</strong> pelo anafa<strong>do</strong> Incôbuz, trazen<strong>do</strong>-lhe notícias sobre os<br />
aprisiona<strong>do</strong>s humanos que haviam sucumbi<strong>do</strong> ao sono, enquanto atacavam a<br />
sede da Assembleia.<br />
143
- Senhor, já to<strong>do</strong>s acordaram. - disse-lhe Daimon, em tom de res-<br />
peito. - O que fazemos com os prisioneiros?<br />
- Os prisioneiros… to<strong>do</strong>s eles humanos… os prisioneiro… !! - mos-<br />
trou-se pensativo, num calmo tom sem sentimentos, Sahitañ. - Degolem-<br />
nos, publicamente na Prassá.<br />
- Senhor… ?!!!. - exclamou, numa surpresa voz chocada, Daimon.<br />
- Não ouviste? Degolem-nos. - repetiu seco, Sahitañ. - Vai tu<br />
Incôbuz e faz cumprir a minha vontade.<br />
- Sim… sim, Senhor… !!. - apressou-se a obedecer, o espanta<strong>do</strong> In-<br />
côbuz, retiran<strong>do</strong>-se em cerimónia daqueles aposentos.<br />
Daimon ficou a sós com Sahitañ, que se aproximou dele.<br />
- Meu ama<strong>do</strong> Daimon… porquê???! - falou-lhe quase num surpreenden-<br />
te tom de criança desamparada afligida por <strong>do</strong>lorosas dúvidas de si<br />
própria. - Eu tentei; juro-te que me esforcei para escapar ao que des-<br />
creveram sobre mim. - inspirou fun<strong>do</strong>. - Tanto sangue derrama<strong>do</strong>!. Vê,<br />
agora… achas que valeu a pena? Seria isto tu<strong>do</strong> evita<strong>do</strong>… estaria o meu<br />
filho vivo… se eu não tivesse fugi<strong>do</strong> à minha violenta sina, com loucas<br />
ideias de Paz e Igualdade? Terá Cét, apesar de tu<strong>do</strong>, alguma distorcida<br />
razão?!<br />
- Senhor!, confesso que ao principio… eu pensei como Cét; mas de-<br />
pois… depois comecei realmente a acreditar, contamina<strong>do</strong> pelas Tuas<br />
entusiásticas ideias, que seria possível uma convivência fraterna<br />
entre a Anormalidade e a Humanidade; por favor, não faças perder o<br />
esforço de tantos anos, num só dia!. Eu já não acredito no descrito<br />
Dragão, eu agora creio em Ti!! - respondeu-lhe, num inespera<strong>do</strong> senti-<br />
mento de sinceridade, Daimon.<br />
- Estou tão cansa<strong>do</strong>!!!… E o meu filho??! Devo eu per<strong>do</strong>ar, conti-<br />
nuar a dar a outra face àqueles que insistem em atentar contra mim; ou<br />
144
se não, devo eu vingar-me contra eles, mas então quantas vidas poderão<br />
pagar a morte <strong>do</strong> meu tão ama<strong>do</strong> filho!!? Diz-me queri<strong>do</strong> Daimon!.<br />
- Não sei… Senhor!. - embaraçou-se, Daimon.<br />
- Pois fica saben<strong>do</strong> que eu acabei de falar com o Cipu… - disse<br />
firme, num tom triste, Sahitañ, interrompen<strong>do</strong> as suas lamúrias. - …<br />
pedi-lhe o “Direito de Vingança Honrosa”; ele aceitou. - suspirou uma<br />
longa massa de ar. - Tu sabes que eu tentei… mas já não posso mais!! Ó<br />
como eu não queria isto!!!, mas esses miseráveis humanos mesquinhos<br />
alia<strong>do</strong>s à maldita Família… foram eles que me forçaram às Trevas; tu<br />
sabes Daimon, eu nunca quis… !.<br />
- Senhor… !!! - baixou a cabeça, em silencioso sinal de respeito<br />
e aceitação, o outro Anormal. Em curtos passos, Daimon aproximou-se de<br />
Sahitañ, firman<strong>do</strong> carinhosamente as suas mãos sobre os ombros <strong>do</strong> seu<br />
supremo-líder, assinalan<strong>do</strong> que independentemente <strong>do</strong> que fizesse, esta-<br />
ria sempre, em suporte, ao seu la<strong>do</strong>.<br />
- Daimon, quero que comuniques a to<strong>do</strong>s os nossos verosirmãos que<br />
ainda hoje começará a sua tão esperada Guerra!!!; que, por fim, seja<br />
tu<strong>do</strong> arrasa<strong>do</strong> em nome <strong>do</strong> Dragão!!! - parou a sua dura e <strong>do</strong>lorida fala,<br />
e respirou em profundidade, o supremo-líder da Assembleia, senti<strong>do</strong>-se<br />
momentaneamente aconchega<strong>do</strong> pelo toque <strong>do</strong> outro homem. - Anuncia tam-<br />
bém, que a partir deste dia, jamais alguém usará em mim o prénome de<br />
Sahitañ, pois esse homem, que era pai, morreu juntamente com o filho e<br />
a mãe… agora serei somente reconheci<strong>do</strong> em temor e Ódio nos escombros<br />
de toda a advinda destruição, por Xiva!!!! Assim seja feito, por minha<br />
vontade.!<br />
(Desta forma, termina a parte desta minha obra dedicada às face-<br />
tas mais antigas e desconhecidas deste homem, que foi uma tão vital<br />
figura da nossa Pós-História; espero ter aclara<strong>do</strong>, a quem me leu, um<br />
145
pouco <strong>do</strong> seu nubla<strong>do</strong> Passa<strong>do</strong>. Apesar de ter tenta<strong>do</strong> afastar-me o máxi-<br />
mo <strong>do</strong> mito que o rodeia, foi-me impossível ficar completamente indife-<br />
rente a ele, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> força<strong>do</strong> a recorrer ao seu popular folclore<br />
lendário para articular partes menos <strong>do</strong>cumentadas e mais equívocas da<br />
sua vida; mas, mesmo assim, penso ter consegui<strong>do</strong> um resulta<strong>do</strong> positi-<br />
vo!.<br />
Poderia encerrar perfeitamente aqui este meu trabalho, mas penso,<br />
apesar de já ser <strong>do</strong> conhecimento de to<strong>do</strong>s, que será mais interessante<br />
e coerente prolongar um pouco mais, embora duma forma resumida e sem<br />
grandes pretensões de novidade cronistórica, o desfecho desta obra.)<br />
146
Sufixos<br />
147
A Guerra<br />
De certo, que já haviam existi<strong>do</strong> diversos tumultos e convulsões<br />
sociais, alguns mesmo com grande derrame de sangue, ao longo das vári-<br />
as décadas de sígulos da Pós-História; mas jamais algum havia adquiri-<br />
<strong>do</strong> os formais contornos de larga escala de uma guerra!; sen<strong>do</strong> mais ou<br />
menos rapidamente resolvi<strong>do</strong>s pela administração <strong>do</strong>s Sigues.<br />
Assim, o prolonga<strong>do</strong> 85832 o dia <strong>do</strong> reino <strong>do</strong> Cipu, marcaria a géne-<br />
se da primeira Guerra pós-histórica.<br />
Xiva havia envia<strong>do</strong> um batalhão da sua polícia-tropa à 17895ª Ur-<br />
bi, <strong>do</strong> Sector ZΩ, da 59ª Região-continental <strong>do</strong> Sul, da Terra, com a<br />
finalidade legal de capturarem e executarem a Família, em cumprimento<br />
<strong>do</strong> “Direito de Vingança Honrosa” requisita<strong>do</strong> por Xiva, motiva<strong>do</strong> pelo<br />
traiçoeiro ataque que resultara na morte <strong>do</strong> seu muito queri<strong>do</strong> filho e<br />
consequente afastamento da sua amada ex-tutora. Sem surpresa, os envi-<br />
a<strong>do</strong>s arma<strong>do</strong>s ao chegarem ao seu destino depararam com a ausência de um<br />
importante número de Familiares, removi<strong>do</strong>s para lugar incógnito, e em<br />
o seu lugar esperava-os uma fortemente bélica armada composta em gran-<br />
díssima maioria por vulgares humanos. Daquele mo<strong>do</strong>, iniciou-se a tão,<br />
em agoiro, profetizada e esperada Guerra.<br />
O Cipu tomou perante ela uma curiosa, mas perfeitamente explicá-<br />
vel, posição de passividade. Ele reconhecia agora a oculta consequên-<br />
cia de ter apadrinha<strong>do</strong> a criação da Anormalidade, entendia a irrever-<br />
sibilidade de tal decisão e acto e as suas ecoantes reflexões no teci-<br />
148
<strong>do</strong> da sociedade, que seria mutada para sempre. Ele gerara, compreendia<br />
naquele momento, algo que excedia, apesar <strong>do</strong> obrigatoriamente fiel Ju-<br />
ramento, o seu próprio controlo; ele fabricara, podia constatá-lo ago-<br />
ra impotente, uma verdadeiramente nova Espécie… uma autentica raça de<br />
verdadeiros deuses carnais!!. Daquela forma, se queria manter o seu<br />
reina<strong>do</strong>, teria que ganhar o apoio <strong>do</strong> mais forte <strong>do</strong>s Anormais, para as-<br />
sim conseguir mantê-los submissos sobre o seu jugo administrativo,<br />
qualquer outra opção mais repressiva estaria votada ao fracasso, sa-<br />
bia-o bem; por isso, consentiu egoisticamente no prosseguimento daque-<br />
la Guerra, não intervin<strong>do</strong> directamente, pois aquela serviria os seus<br />
planos, realizan<strong>do</strong> um género de selecção natural onde se estabelece-<br />
riam hierarquias na própria estrutura social interna da Anormalidade,<br />
e os mais fortes, no fim, surgiriam vence<strong>do</strong>res e plenamente justifica-<br />
<strong>do</strong>s líderes sem contestação opositora.<br />
A Guerra assim continuou. A Anormalidade, que inicialmente não se<br />
via representada quer na Família quer na Assembleia, viu-se forçada,<br />
para sobreviver, a fragmentar-se, embora desigualmente, pelos <strong>do</strong>is la-<br />
<strong>do</strong>s beligerantes, recain<strong>do</strong> a sua maioria na respectiva ultima égide, a<br />
liderada por Xiva.<br />
Apesar de a Família conter um grande número de humanos nas suas<br />
fileiras de solda<strong>do</strong>s operacionais(«”carne para abater”»!, como referiu<br />
uma vez o próprio Teusfilo num discurso priva<strong>do</strong>), a realidade era que<br />
a generalidade da Humanidade se vira perdida no meio duma luta de<br />
gigantes, que a ultrapassava completamente e a esmagava ameaçan<strong>do</strong>-a<br />
com uma involuntária súbita extinção. O Cipu viu ali a possível reso-<br />
lução daquele problema como uma inesperada motivação para dar inicio à<br />
tão adiada recolonização global <strong>do</strong> Sistema-Solar, assim decretou a<br />
massiva emigração extra-planetária humana, e construiu um acréscimo<br />
149
infraestrutural de 1000% no então microscópico espaçoporto, que, após<br />
quatro demora<strong>do</strong>s meses, passou a se esticar por to<strong>do</strong> o Pólo Norte ter-<br />
restre. A Humanidade, preferin<strong>do</strong> o desconforto nas novas-colónias, à<br />
provável morte num conflito que aparentemente não era seu, aderiu<br />
entusiasticamente àquele projecto de emergência <strong>do</strong> Sig; e, em menos de<br />
um ano desde o seu arranque, toda a Terra se viu despovoada, à excep-<br />
ção daqueles que guerreavam com insana violência, alheios àquele san-<br />
gramento terrestre; pois o Cipu proibiu, para to<strong>do</strong>s os membros da<br />
Anormalidade, e restantes combatentes humanos, as viagens para fora da<br />
Terra, confinan<strong>do</strong>-se assim a titanicamente devasta<strong>do</strong>ra Guerra ao solo<br />
<strong>do</strong> planeta-natal.<br />
∴<br />
Três anos se haviam destroça<strong>do</strong> desde a emigração de quase toda a<br />
Humanidade para os restantes planetas-Solares.<br />
A antiga polícia-tropa de Xiva, cumprin<strong>do</strong> os boatos sobre ela,<br />
reconverteu-se na sua elite militar, lideran<strong>do</strong> com astúcia e força as<br />
suas hordas de Anormais em batalha.<br />
Apenas escombros de Urbis, num cemitério de corpos e veículos bé-<br />
licos, permaneciam após assentar a poeira das suas trovejantes passa-<br />
gens pelo terreno. Milhares de cicatrizes na crosta terrestre testemu-<br />
nhavam a violência arrasa<strong>do</strong>ramente aniquila<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s seus brutais ata-<br />
ques aos possíveis esconderijos de Familiares.<br />
Enquanto aquilo, a Família mantinha a sua eficaz estratégia de<br />
“carne para abater” e fuga, e, embora as suas linhas guerreiras dimi-<br />
nuíssem pesadamente a cada combate, o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> conflito era ainda<br />
um relativo empate de forças, e até de Poderes, visto que as suas<br />
principais baixas eram humanas e não Familiares.<br />
150
O quartel principal da Assembleia deixara a, agora devastada,<br />
Zona, e refugiara-se em Primacentris, que fora especialmente remodela-<br />
da para tal efeito. (Dizia-se que, apesar <strong>do</strong> Cipu não apoiar publica-<br />
mente nenhum <strong>do</strong>s opositores em conflito, ele próprio dava secretamente<br />
guarida a Xiva junto de si em Osiglimpúliz, por crer prever que, devi-<br />
<strong>do</strong> ao seu tão invulgar Poder tremen<strong>do</strong>, seria ele o mais provável vic-<br />
tor daquela Guerra, e convinha-lhe ter, como planeara, os seus favores<br />
e obediência.! Este cochicho seria confirma<strong>do</strong> posteriormente por al-<br />
guns raros, mas hoje bastante divulga<strong>do</strong>s, cronumentos relativos à épo-<br />
ca.) Um potente escu<strong>do</strong>, de fabricação única, passara a cobrir obscura-<br />
mente em tons quase arroxea<strong>do</strong>s aquela belicosamente reestruturada Ur-<br />
bi, dan<strong>do</strong>-lhe a exterior aparência de um deforma<strong>do</strong> ovo.<br />
No interior das entranhas <strong>do</strong> seu subsolo, Xiva via, numa aparên-<br />
cia altiva e insensível, em múltiplos ecrãs tridimensionais, to<strong>do</strong>s os<br />
campos de aberta batalha.<br />
- Senhor!!! - chamou-o um homem de engalana<strong>do</strong> negro fato-macaco<br />
brilhantemente justo e com a cabeça coberta por um largo e pontiagu<strong>do</strong><br />
capuz, aquele era o segun<strong>do</strong> na hierarquia da Assembleia e o mais alto<br />
militarmente gradua<strong>do</strong>, o seu nome era Daimon.<br />
Um longo e amplo manto de cores brancas arrastou-se num movimen-<br />
to sibilante, lentamente ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong> no chão, enquanto acompanhava a<br />
rotação da cadeira-a-motor de Xiva, que se voltava para encarar o che-<br />
ga<strong>do</strong> homem.<br />
O rosto ossu<strong>do</strong> e cavo, molda<strong>do</strong> por bizarras sombras que lhe seca-<br />
vam o olhar, enquadra<strong>do</strong> por fartos cabelos castanhos-escuríssimos em<br />
franja e que lhe decaiam em tumulto pelas costas, fixou num olhar sé-<br />
rio, mas cala<strong>do</strong>, as feições preocupadas de Daimon.<br />
151
- Senhor!!! - retornou o outro homem, ganhan<strong>do</strong> tempo para procu-<br />
rar palavras mais adequadas para lhe dar aquela perturbante notícia. -<br />
É… é sobre… Catarina… !!<br />
O Anormal, vesti<strong>do</strong> de claro, moveu levemente no ar a mão direita,<br />
numa atitude de quase indiferença. O corpo de Daimon foi, de súbito,<br />
arremessa<strong>do</strong> contra uma rochosa parede amarelamente iluminada, sen<strong>do</strong><br />
ligeiramente esmaga<strong>do</strong> imóvel contra os seus próprios ossos.<br />
- Há mais de cinco anos atrás eu bani esse amaldiçoa<strong>do</strong> nome de<br />
toda a Assembleia… e de mim próprio!!… - repreendeu-o austero, num<br />
confuso tom que mal disfarçava uma funda e <strong>do</strong>lorosamente magoada sau-<br />
dade inconfessável a si mesmo, Xiva. - Como ousas, logo tu, proferi-<br />
lo?? Não conheces tu a Dor que ele me dá!!?<br />
- Senhor, perdão… - sufocou Daimon, comprimi<strong>do</strong> contra a vertical<br />
rocha. - … mas é importante!! A Família… fez hoje anunciar a sua… cap-<br />
tura.! - após arduamente proferir aquilo, o seu corpo, liberto, caiu<br />
bruto ao chão.<br />
- O quê!?! Catarina nas mãos da Família!!!. - trovejou, num rugi-<br />
<strong>do</strong> sísmico, Xiva, deixan<strong>do</strong> esquecer toda a sua fingida compostura<br />
insensível.<br />
- Sim, Senhor!! - respondeu-lhe Daimon, enquanto <strong>do</strong>lori<strong>do</strong> se re-<br />
compunha em pé. - Eles prometem emitir a sua execução para to<strong>do</strong>s os<br />
campos de batalha!!<br />
- Malditos!! Não sabem já que ela não pertence à Assembleia!? -<br />
raivou Xiva, não conten<strong>do</strong> em si a fúria que o envolvera invisível numa<br />
dura concha negra asfixiante. Um ligeiro abalo fez estremecer aquela<br />
divisão, pequenos pedaços de pedra caíram rolan<strong>do</strong> em poeira desfeitos<br />
no solo rijo.<br />
152
- Condenaram-na por trai<strong>do</strong>ra heresia. Dizem-na a «”Concubina <strong>do</strong><br />
Dragão”»!… O próprio Teusfilo será o seu carrasco!!!. Senhor… !!? -<br />
indirectamente, e num tom de relativo Me<strong>do</strong>, questionou, Daimon a Xiva,<br />
a devida atitude a tomar sobre tão delica<strong>do</strong> assunto de nível intima-<br />
mente pessoal.<br />
- Vai; deixa-me só!! - respondeu-lhe, meditativo, mas não mais<br />
calmo, aquele que um dia, já muito passa<strong>do</strong>, usava feliz chamar-se<br />
Sahitañ.<br />
Daimon apressou-se, em cerimoniais movimentos de respeito, a obe-<br />
decer-lhe, e saiu rápi<strong>do</strong>, mas preocupadamente apreensivo, dali.<br />
(Uma pequena nota de alguma cronistórica importância interpreta-<br />
tiva: a antiga grafia de a “Concubina <strong>do</strong> Dragão” era «Bqabu
desde o seu reacordamento, a oferenda <strong>do</strong>s Homens às Trevas, nada da-<br />
quilo que fizesse podia recusar a sina que lhe fora imposta… ele esta-<br />
va proibi<strong>do</strong> ao amor, ele era o próprio símbolo <strong>do</strong> Ódio… era a absoluta<br />
essência <strong>do</strong> Mal feita em carne, ele era o Dragão!!; mas, embora, para<br />
sua suprema infeliz maldição, ele fosse aquilo tu<strong>do</strong> que dele era espe-<br />
ra<strong>do</strong> em temor, blasfémia: ele amava! Ele amava Catarina!!!<br />
Não a podia deixar à <strong>Morte</strong>; ela própria arriscara uma vez a sua<br />
própria vida para o salvar.<br />
A sua razão anunciava-lhe que era certo que a Família apenas que-<br />
ria Catarina como irresistível engo<strong>do</strong> para o apanhar, mas deveria ele<br />
ceder aos malditos planos Familiares? Seria justo sacrificar as vidas<br />
e os ideais, embora fanáticos, de to<strong>do</strong>s os que o seguiam e em seu nome<br />
combatiam a sua Guerra vingativa, apenas para salvar aquela que ama-<br />
va?! De novo aquela pergunta, que parecia persegui-lo eternamente por<br />
toda a sua atormentada existência!; por um indivíduo quantos haveriam<br />
de morrer??!<br />
Sentia-se incapaz de <strong>do</strong>mar a sua mente que furiosa o corroía em<br />
Dor e dúvida; e, deixan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>minar por ela, penetrou em mortalmente<br />
perigoso turbilhão no seu singularmente bizarro psicuniverso, ignoran-<br />
<strong>do</strong> todas as imperativas regras de segurança <strong>do</strong> Neoteotao, por ele mes-<br />
mo ditadas. Lá estava, num relâmpago, novamente, no cume montanhoso<br />
daquela cratera firmada num verde solo e sob um nunca visto azula<strong>do</strong><br />
céu, olhan<strong>do</strong> para aquela obscura cavidade composta por uma negra es-<br />
sência esférica, onde se manifestavam vozes de sangrentos corpos muti-<br />
la<strong>do</strong>s que gritavam <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>s em dessincronia um mesmo nome.<br />
De repente, um fumo escuro saí<strong>do</strong> daquela esfera escura, elevou-se<br />
numa disforme coluna que envolveu Xiva num aperta<strong>do</strong> abraço. Uma sensa-<br />
ção imperativa, que ele se esforçou ao máximo da sua resistência para<br />
154
se lhe opor, impelia-o a saltar para o interior daquela obscura cavi-<br />
dade. Ao resistir a, nunca antes, tão forte apelo, que crescia e cres-<br />
cera desde a primeira vez que entrara naquele seu cenário-mental acom-<br />
panha<strong>do</strong> por Catarina, ele manifestou em fúria o seu Poder, combaten<strong>do</strong><br />
aquela garra de fumo, que o tentava puxar para baixo.<br />
Ergueu os braços em expressão da sua contrária vontade de não<br />
descer àquela essência negra, esforçan<strong>do</strong>-se por libertar-se <strong>do</strong> seu<br />
aperto sufocante. Jamais um outro Anormal usara o seu Poder no inte-<br />
rior <strong>do</strong> seu próprio psicuniverso; mesmo Teus, que era uma entidade<br />
puramente psíquica, exprimia unicamente o seu imenso Poder através <strong>do</strong><br />
seu escolhi<strong>do</strong> veículo biológico, que era naquele momento o especial-<br />
mente vocaciona<strong>do</strong> velho Familiar chama<strong>do</strong> de Teusfilo.!<br />
Um forte e inespera<strong>do</strong> terramoto avassala<strong>do</strong>r invadiu toda aquela<br />
paisagem-mental, o azul firmamento nublou-se de pesada escuridão su-<br />
min<strong>do</strong> a luz daquele local, em sonora tempestade.<br />
A garra, então desvaneceu-se em nada; Xiva ganhara aquela bata-<br />
lha, mas não estava seguro de vencer uma próxima e mais atractivamente<br />
potente tentação de vertiginosa queda.<br />
Para seu profun<strong>do</strong> espanto, regressou o seu olhar para o interior<br />
daquela cratera, onde existia aquela escura essência, e viu-a fendida,<br />
luminosamente rasgada na obscuridade, que continuava emitin<strong>do</strong>, e in-<br />
crivelmente ainda mais acelerada, berrantes corpos estropia<strong>do</strong>s, que<br />
acusavam com insistência um oculto, em simbolismo, desconheci<strong>do</strong> nome,<br />
mas já outrora ouvi<strong>do</strong> por Xiva num seu delírio relativo a um estranho<br />
e inquietante homem-noite.<br />
No interior, daquela recém involuntariamente provocada ruptura,<br />
havia algo quase liqui<strong>do</strong> e de escaldante aparência magmática, que se<br />
revolvia num revoltoso mar irreal. Aquelas ondas quebraram-se e reer-<br />
155
gueram-se com violenta força sobre si mesmas, até que aquela semi-<br />
sólida substância se começou a enformar-se num rosto, que cada vez<br />
mais se tornou reconhecível. Era a imagem da sua ex-tutora, ali enig-<br />
maticamente representada. Então ela proferiu em alto som apelativo o<br />
mesmo nome, rugi<strong>do</strong> por aquelas sangrentas vozes, como se em socorro o<br />
chamasse.<br />
Xiva foi penetra<strong>do</strong> em angustia e ansiedade por aquela sonora voz,<br />
que se hegemonizou em totalidade na sua razão, moldan<strong>do</strong> imperativa em<br />
si a sua vontade; e, por fim, em surpreso desespero horroriza<strong>do</strong>, ele<br />
inexplicavelmente, por inconsciente instinto racional, decifrou o sig-<br />
nifica<strong>do</strong> daquele tão <strong>do</strong>loroso nome e compreendeu o inevitável destino<br />
que aquilo encerrava no seu âmago.<br />
Uma lágrima obscurecida por uma fatalmente inumana Dor, lenta es-<br />
correu-lhe fria pela áspera face, cain<strong>do</strong> profunda e in<strong>do</strong> saciar aquele<br />
reflexo semi-líqui<strong>do</strong> de mulher. O mal-queri<strong>do</strong> fa<strong>do</strong> de Xiva auto-<br />
revelara-se em indescritível pavoroso império perante si próprio.! To-<br />
das as suas próximas acções, sabia-o ele agora num profun<strong>do</strong> uivo <strong>do</strong>lo-<br />
ridamente exausto de resistir a uma imutável predestinação, seriam por<br />
tu<strong>do</strong> inevitáveis!!!<br />
- Que, por mim e em mim, venha Aquele que já veio!, seja eu aqui-<br />
lo que sou em fúria e raiva… pois eu sou o Dragão!!!!.<br />
156
Dialéctica<br />
Numa escura e húmida gruta, asilo secreto da alta hierarquia Fa-<br />
miliar, vários mecanismos emissores, encaixa<strong>do</strong>s em paredes escorrentes<br />
de gotejante água, preparavam-se para transmitir a execução duma pros-<br />
crita às mãos <strong>do</strong> próprio ancião-chefe, para to<strong>do</strong>s os campos de confli-<br />
to.<br />
A prisioneira encontrava-se no fun<strong>do</strong> de um largo poço de aparên-<br />
cia natural, e no topo sobre uma ligeira saliência pairava Teusfilo<br />
ladea<strong>do</strong> pelo seu sempre ama<strong>do</strong>, apesar de agora mentalmente perturba<strong>do</strong><br />
e inconfiável, fantasmagórico Anguélaz.<br />
- Vês agora o resulta<strong>do</strong> da tua traição? - falou, altivo e fria-<br />
mente paternalista, Teusfilo à mulher, fazen<strong>do</strong> prolongar a sua sinté-<br />
tica voz por to<strong>do</strong> aquele rochoso lugar. - Quantas vidas se perderam<br />
apenas por tu teres salvo o Dragão?!, terá vali<strong>do</strong> o preço!?? Agora tu<br />
própria o pagarás!. - pausou, e respirou fun<strong>do</strong>. - Logo tu… aquela que<br />
era a mais promissora entre to<strong>do</strong>s nós; a primeira candidata à honra de<br />
me suceder, e receber como receptáculo a vontade suprema de Teus… logo<br />
tu Catarina!, a mais <strong>do</strong>tada e firme Familiar, e por isso a por mim<br />
especialmente escolhida para vigilante tutora <strong>do</strong> Maldito!, jamais<br />
esperei a traição que me ofereceste; pelo sangue de to<strong>do</strong>s os que caí-<br />
ram na perversidade de Xiva, amaldiçoada sejas!!!.<br />
Então um intermitente fraco holofone Familiar surgiu no ar, anun-<br />
cian<strong>do</strong> ao ancião-chefe a inesperadamente repentina novidade da rendi-<br />
157
ção total da Assembleia em todas as frentes de batalha, e cujos bata-<br />
lhões estavam a ser toma<strong>do</strong>s e rapidamente desarma<strong>do</strong>s pela Família.<br />
Catarina espantou-se confusa e incrédula ao ouvir aquilo.<br />
Assim que o holofone se esvaiu, uma outra voz materializou-se ali<br />
para susto de to<strong>do</strong>s.<br />
- Como podes ousar dar-me a culpa <strong>do</strong> sangue que tu mesmo derra-<br />
maste??! - rugiu a voz, que se converteu num solidifica<strong>do</strong> homem de<br />
branco numa cadeira-de-rodas-a-motor, junto da mulher.<br />
- Xiva!!!!!! - berrou, em surpresa, Teusfilo. - Que fazes… como<br />
me achaste… aqui?!<br />
- Apesar de me creres o descrito Dragão, julgas-me fraco demais,<br />
meu ama<strong>do</strong> Teusfilo.! - respondeu-lhe, numa calmamente superior voz<br />
claramente cínica, Xiva, que ecoou em alto som. - Eu sempre soube onde<br />
estavas; podia ter vin<strong>do</strong> perante ti desde o primeiro dia desta Guerra,<br />
mas isso seria o fim de tal conflito!, e não teria resulta<strong>do</strong> nesta tão<br />
bela destruição que hoje dá forma a toda a Terra, ah, ah, ah!!!.<br />
- Queres dizer que poderias ter evita<strong>do</strong> toda esta matança??? -<br />
interrogou-o Catarina horrorizada, dirigin<strong>do</strong>-se a ele pela primeira<br />
vez desde a sua súbita aparição ali.<br />
Foi naquele momento que olhou mais atenta para Xiva. Em choque,<br />
por trás da sua ligeiramente mutada fisionomia, apercebeu-se daquela<br />
sua invisível essência negra, já madura e plenamente desenvolvida num<br />
denso manto sufocante, que o cobria em totalidade e tornada mesmo per-<br />
ceptível a um vulgar olho nu. Ele estava encerra<strong>do</strong> naquela obscura<br />
concha, como lavra num casulo repulsivo a to<strong>do</strong>s os restantes Seres bi-<br />
ológicos, que governava a sua vontade como se fora um mero veículo de<br />
carne; no entanto, podia pressentir, aquilo não era uma independente<br />
entidade usurpa<strong>do</strong>ra, era algo interno que fazia parte, de alguma for-<br />
158
ma, daquele homem. Ele era aquilo!! Por fim, compreendeu a razão da<br />
sua natureza: o Tegonatos!!, a <strong>Morte</strong> <strong>do</strong> Eu, era aquele o seu verdadei-<br />
ro significa<strong>do</strong> e expressão, a aniquilação da racionalmente individual<br />
personalidade perante a instintiva vontade <strong>do</strong> seu absoluto Poder ocul-<br />
to. Agora, Xiva era o Tegonatos!!!.<br />
Aquela era a origem <strong>do</strong> tão temi<strong>do</strong> Dragão(concluiu ela); temi<strong>do</strong><br />
não pelas suas acções, tal como quiseram tentar disfarçar os autores<br />
de Bíblios, mas sim por ser o próximo estágio evolutivo da própria<br />
Humanidade, o espécimen óptimo da Anormalidade, que afinal não era uma<br />
raça artificial, e sim representava o esforço de evolução da Natureza<br />
sempre nega<strong>do</strong> e contraria<strong>do</strong> pelos obsoletos humanos receosos da sua<br />
inevitável extinção, e agora exposto à superfície acidentalmente pelo<br />
Cipu!. Daí o Ódio de Teus, aquele sim uma aberração inatural em compa-<br />
ração com Xiva; assim se explicava a sua luta contra o Dragão, era um<br />
desespera<strong>do</strong> combate pela sua condenada sobrevivência.<br />
Ao entender aquilo, pela sua telepática racionalidade, Catarina<br />
comoveu-se por Xiva, e to<strong>do</strong>s os antigos rancores, que encobriam mal o<br />
seu real amor, desvaneceram-se. Ali em orgulho erecto estava um Ser<br />
finalmente submeti<strong>do</strong> a um destino, que sempre tentara recusar, e ao<br />
qual fora sempre por to<strong>do</strong>s força<strong>do</strong> a cumprir, desde que chegara à es-<br />
tação-de-reacordamento; aquele era um homem perdi<strong>do</strong>, em para<strong>do</strong>xo vic-<br />
tor na sua derrota.<br />
- Cala-te. - disse, numa bruta voz <strong>do</strong>lorida, Xiva à mulher. - Tu,<br />
mais que qualquer um, sabes que nunca quis ser “isto”, sempre tentei<br />
negar a sina que me impuseram… mas quantas inocentes vidas se perderam<br />
por me recusar, por tentar ser em Paz… resistir à tentação duma Guerra<br />
prometida na minha vinda; tentei vencer o meu destrutivo fa<strong>do</strong> cren<strong>do</strong><br />
159
numa pacífica revolução, e, no dia em que a consegui, paguei-a com a<br />
vida <strong>do</strong> meu filho!!.<br />
- Nosso filho!!! - corrigiu-o, em mágoa, Catarina.<br />
- … E achas que valeu tu<strong>do</strong> a pena?!? - continuou, aparentemente<br />
indiferente à correcção, o homem de branco vesti<strong>do</strong>. - Quantos sangues<br />
não teriam si<strong>do</strong> derrama<strong>do</strong>s em vão, se eu não tivesse tantas vezes ofe-<br />
reci<strong>do</strong> a outra face, e me tivesse cumpri<strong>do</strong>?!! - suspirou em profundi-<br />
dade. - Acusas-me de prolongar esta Guerra, mas eu apenas cumpro a<br />
vontade de outros anteriores a mim, eu apenas sou o que me forçaram a<br />
ser.! A própria Família desejava isto; eu somente fiz cumprir o seu<br />
desejo! Eu sou a vossa querida destruição!!!<br />
- É heresia o que dizes, Maldito!!!. - protestou Teusfilo.<br />
- Cala-te, velho decadente. - berrou Xiva, e a sua voz fez-se<br />
inexplicavelmente vibrar em terramoto na mente <strong>do</strong> debilita<strong>do</strong> e silen-<br />
cioso Anguélaz. - Foram vocês… sempre a maldita Família… ! Vocês<br />
empurraram-me para às Trevas!!!. Agora sintam a minha fúria.<br />
Dizen<strong>do</strong> aquilo, embateu no vazio com a sua mão direita, e uma vi-<br />
olenta onda de força partiu-se em pasmo, sem o deseja<strong>do</strong> efeito, sobre<br />
o corpo flutuante <strong>do</strong> ancião-chefe.<br />
- Verme!!!, julgas, arrogante, poderes contra mim que sou a<br />
expressão da voz de Teus!?!!! - irou, Teusfilo, berran<strong>do</strong> para Xiva. -<br />
Em to<strong>do</strong> o teu Poder nada és compara<strong>do</strong> comigo; eu sou Teus, aquele que<br />
não viven<strong>do</strong> é imortal!, sou a inconsumível omni<strong>do</strong>tada Fogueira que<br />
arde em toda a Família, eu sou o eterno!!. Sente tu agora a minha von-<br />
tade.<br />
Então, não moven<strong>do</strong> um único músculo, uma imensa força de titã,<br />
vinda dele, empurrou violenta Xiva contra uma das rochas <strong>do</strong> poço, es-<br />
magan<strong>do</strong>-o enquanto o imobilizava impotente.<br />
160
Em frustração, Xiva deparou-se com algo que o excedia completa-<br />
mente, deixan<strong>do</strong>-o insignificante à sua mercê.<br />
- Agora verás, sem interferir, a morte daquela que tu infectaste<br />
e tomaste como tua maldita concubina. - declarou seco, o ancião-chefe<br />
a Xiva.<br />
- Não!!!!. - uivou o homem na cadeira-a-motor. - É a mim que ver-<br />
dadeiramente queres; aqui me tens, deixa-a!.<br />
Teusfilo em absoluto superior desprezo ignorou-o sem resposta.<br />
Naquele momento, o corpo de Catarina elevou-se no ar como segura por<br />
uma garra invisível, e num violento ro<strong>do</strong>pio crescente foi sucessiva-<br />
mente arremessa<strong>do</strong> contra as rijas paredes rochosas <strong>do</strong> poço, em encur-<br />
ta<strong>do</strong>s queixares por espirros de sangue que jorravam por to<strong>do</strong> o sitio,<br />
até ser larga<strong>do</strong> sem ânimo no duro solo, enforman<strong>do</strong> uma avermelhada<br />
poça em seu re<strong>do</strong>r.<br />
Uma incontrolável Dor de fúria possuiu Xiva, que em pleno descon-<br />
trolo racional fê-lo contrariar o seu <strong>do</strong>loroso comprimi<strong>do</strong> corpo e<br />
atravessar a transparente prisão que o continha, para assusta<strong>do</strong> espan-<br />
to <strong>do</strong> ancião-chefe, que se viu ineficaz para o retornar a <strong>do</strong>mar imó-<br />
vel.<br />
Correu acelera<strong>do</strong> para onde jazia inerte a sua ex-tutora. Lá, em<br />
esforço, carregou a sua pendida cabeça ensanguentada para o seu colo,<br />
e acariciou o macula<strong>do</strong> rosto dela, senti<strong>do</strong> ainda uma frágil brisa nos<br />
seus entreabertos lábios, <strong>do</strong>nde escorria um suave repuxo de sangue<br />
morno.<br />
- Juro-te que serás vingada!!; se o sangue <strong>do</strong> nosso filho foi<br />
pago mil vezes, o teu sê-lo-á um milhão!!! - segre<strong>do</strong>u, em carinho e<br />
raiva, aquela sentida irracionalizada promessa de amor e Dor, Xiva ao<br />
caí<strong>do</strong> corpo de mulher. - Eu hei-de realmente tornar-me naquilo descri-<br />
161
to para mim em Bíblios… serei o mais poderoso <strong>do</strong>s Anormais e to<strong>do</strong>s os<br />
viventes se curvarão em temor ao ouvirem o meu novo nome, que será<br />
sinónimo <strong>do</strong> meu Poder!!!, jamais alguém se oporá à minha vontade: eu<br />
serei a Vida para aqueles que me servirem, e a <strong>Morte</strong> para os meus ini-<br />
migos!!!!. - suspirou, enquanto uma lágrima escorregou-lhe até aos<br />
vermelhamente empasta<strong>do</strong>s cabelos de Catarina. - Erguer-te-ei um altar<br />
junto ao meu trono, para que to<strong>do</strong>s te saibam sua rainha, pois só a ti<br />
amei e amarei em verdade!. Esta é a minha promessa, e assim se fará!!!<br />
Terminan<strong>do</strong> aquela sua fala, Xiva deixou-se invadir por um furacão<br />
de violentos sentimentos, que, toman<strong>do</strong> as rédeas da sua vontade, o<br />
transportaram para o interior <strong>do</strong> seu, agora, tempestuosamente destro-<br />
ça<strong>do</strong> psicuniverso. Uma outra vez mais, viu-se naquele cenário-mental,<br />
no qual se continuava a manifestar um agressivo temporal.<br />
Ali estava ele sobre aquela montanhosa cratera, mas para sua ini-<br />
maginável surpresa apercebeu-se que não estava só!.<br />
Embora inanimada em consciência, num último moribun<strong>do</strong> esforço de<br />
puro instinto, Catarina conseguira, graças aos seus eleva<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ns te-<br />
lepáticos, seguir mentalmente Xiva até àquele lugar psíquico.<br />
Ao ver que ele se preparava para lhe falar, fez-lhe rapidamente<br />
um gesto digital junto à sua boca, para que permanecesse em silêncio,<br />
pois naquele momento as palavras não eram mais que vazios signos sem<br />
qualquer utilidade, incapazes de expressarem com um mínimo de exacta<br />
descrição aquilo que tomava forma para acontecer; e em lentos passos<br />
aproximou-se dele, dan<strong>do</strong>-lhe no fim a mão, num inarrável carinhoso<br />
acto simples de declara<strong>do</strong> amor. Ela agora compreendia também aquela<br />
coisa obscurecida que existia nele, e escutava o seu já decifra<strong>do</strong> cha-<br />
mamento.<br />
162
Os <strong>do</strong>is ficaram assim cala<strong>do</strong>s e uni<strong>do</strong>s, observan<strong>do</strong> lá em baixo<br />
aquela negra essência, que agora violentamente imperiosa exigia o ver-<br />
tiginoso salto a Xiva.<br />
Num mu<strong>do</strong> sinal de entendimento, o par decidiu deixar de resistir<br />
àquela apelativa tentação. Assim acompanha<strong>do</strong> em amoroso conforto pela<br />
sua muitíssimo amada ex-tutora, Xiva cedeu, por fim, à queda.<br />
Saltaram.<br />
Finalmente as vozes mutiladas calaram-se sumin<strong>do</strong>-se no nocturno<br />
vazio esférico, à medida que o casal mergulhava naquela obscura essên-<br />
cia negra.<br />
∴<br />
O ancião-chefe revoltava-se em assumida fúria, incapaz de fazer<br />
regressar Xiva ao seu aprisiona<strong>do</strong> controle. Via-o correr rápi<strong>do</strong> para o<br />
corpo mortalmente caí<strong>do</strong> de Catarina.<br />
Então, momentos depois <strong>do</strong> seu encontro, uma densamente ofuscante<br />
luz pulsante envolveu os seus <strong>do</strong>is corpos numa esfera radiosa, que os<br />
encobriu em opacidade.<br />
Teusfilo surpreso em inacção, não compreendia pasma<strong>do</strong> o que via.<br />
Uma escura sombra, projectada por aquela bizarra luminosidade,<br />
foi lentamente ganhan<strong>do</strong> uma forma algo humanóide, que inexplicavelmen-<br />
te em enigma se convertia em substância, enquanto perdia potência a<br />
curiosa luz esférica que a alimentava.<br />
Numa súbita convulsão inesperada, Anguélaz, agarran<strong>do</strong> em pressão<br />
a sua cabeça, atirou-se violento ao chão; o que ainda assustou mais o<br />
seu velho companheiro. Espuman<strong>do</strong> balbuciou uma ladainha inicialmente<br />
incompreensível.<br />
- Não; isso não!!! - rosnou em Dor, Anguélaz, contorcen<strong>do</strong>-se<br />
fetal no áspero solo, perigosamente próximo da berma da boca <strong>do</strong> poço.<br />
163
- Não, não!!! A minha mente… não, não aguento mais; sinto-a a estoirar<br />
dentro <strong>do</strong> meu crânio… não!!. - a pouco e pouco, o homem parecia habi-<br />
tuar-se àquela tremendíssima Dor que repentina o invadira, recuperan<strong>do</strong><br />
o seu <strong>do</strong>mínio racionalmente vocal.<br />
- O que fazes?; que dizes!?? - preocupou-se Teusfilo.<br />
- Ó!, o que insanos nós… tu fizeste!!! - respondeu-lhe, em misté-<br />
rio, o desanimadamente derrota<strong>do</strong> Anguélaz. - O Tegonatos!!!, é hor-<br />
ren<strong>do</strong>… Ó como estávamos to<strong>do</strong>s erra<strong>do</strong>s, cegos, ignorantes na nossa pró-<br />
pria sabe<strong>do</strong>ria… O Tegonatos!!!!<br />
- Que dizes afinal? O que tem o Tegonatos, esse amaldiçoa<strong>do</strong> lugar<br />
para to<strong>do</strong>s os Anormais, excepto para aquele que é muito Maldito entre<br />
nós?? - questionou, já irrita<strong>do</strong>, o ancião-chefe.<br />
- Aí está a nossa ilusão!! Eu agora vejo-o, sinto-o na minha men-<br />
te, através da minha profana ligação forçada a Xiva. Aquilo que nele<br />
existia, aquela negra essência era apenas um mero portal para aquilo<br />
que é em verdade o Tegonatos. - respirou ofegante, Anguélaz. - Fomos<br />
demasia<strong>do</strong> mesquinhos ao reduzi-lo apenas à Anormalidade; ele existe em<br />
tu<strong>do</strong>!. É tão amplo que se torna incompreensível para a razão… Ó sinto<br />
a minha mente quase a explodir, saturada por tanta incontrolável in-<br />
formação em bruto, é tão imensa… nem o Cipu a suportaria processar na<br />
sua plena capacidade; ó dói-me… !!<br />
- Não te compreen<strong>do</strong>, meu ama<strong>do</strong> Anguélaz.!<br />
- Pressinto em mim todas as mentes… todas as coisas, tu<strong>do</strong> o que<br />
existe em to<strong>do</strong>s os planetas-Solares… ó não!, está a avançar… não!!!…<br />
mais e mais Sistemas-Estrelares; não!!!, saiu da galáxia… tantos pen-<br />
samentos que me gritam em cacofonia, não os enten<strong>do</strong>, alguns nem falam<br />
por sons!!! Não, não, não!!!! Ó, não!, está a extravasar os próprios<br />
limites <strong>do</strong> Universo; dói, dói-me tanto!. Dói-me!!. Aiiiiiiiii, dói!!!!<br />
164
- quase perdeu, por um momento, a <strong>do</strong>lorida consciência que inexplica-<br />
velmente se mantinha acordada, aumentan<strong>do</strong> o seu insuportável sofrimen-<br />
to. - Ai!, é tanta Dor!!. Ninguém pode suportar isto!. Tu<strong>do</strong> está na<br />
minha mente; rebento. Aiiiiiiiii!!!, tu<strong>do</strong>… não, tu<strong>do</strong> não; ó!, apenas o<br />
seu la<strong>do</strong> negro, a sua parte negativa… o Tegonatos!!. É em tu<strong>do</strong>… o<br />
Tegonatos é o perdi<strong>do</strong> anti-protão original, dissolvi<strong>do</strong> numa oculta<br />
realidade embutida em toda a existência universal, como se fosse o seu<br />
reflexo simetricamente inverti<strong>do</strong>… uma transversal quinta dimensão<br />
igualmente tetradimensional, o verdadeiro Anti-Universo!!!… é a obscu-<br />
ridade da mente, da matéria, da energia… <strong>do</strong> Poder!.<br />
- Como!!!?, e o Dragão… ?, é lá que ele se alimenta em Poder!<br />
- Ó… enganei-me tanto, ao tentar em vão, na minha ignorância,<br />
decifrá-lo!. O seu bizarro Poder não lhe advém <strong>do</strong> Tegonatos… ele é a<br />
sua incarnação.!<br />
- Falas possesso; explica-te ou sente a minha ira em ti… meu que-<br />
ri<strong>do</strong> Anguélaz!.<br />
- Ó meu queri<strong>do</strong> Teusfilo, nós errámos; ele não é uma semi-visão…<br />
ele é.!!! O seu Poder é-nos incompreensível; ele está além da Anorma-<br />
lidade; ele é em tu<strong>do</strong>!!.<br />
Teusfilo.<br />
- Heresia; como te atreves?! - interrompeu-o, em irritada ira,<br />
- O Tegonatos existe há eons de eternidades, desde o próprio<br />
principio <strong>do</strong> Universo… ! - continuou o seu invulgar discurso, Angué-<br />
laz, indiferente à zanga <strong>do</strong> ancião-chefe. - No seu génesis, era sim-<br />
plesmente uma natural força bruta sem razão, sem psique própria, até<br />
que… por um incompreensível mistério se extraverteu da sua constante<br />
existência temporal, crian<strong>do</strong> uma brecha, agora finalmente sarada, no<br />
seu seio… e tornou-se carne!… a carne evoluiu por biliões de anos e<br />
165
converteu-se em uma inconsciente mente, vaguean<strong>do</strong> por milhares de<br />
milénios, até encontrar o corpo que a interpretasse diluin<strong>do</strong> a artifi-<br />
cial dicotomia… mente e corpo então enformaram-se num único Ser, que<br />
por fim se reuniu à original essência, tornan<strong>do</strong>-se na sua racional<br />
vontade, e assim aquilo a que chamávamos Tegonatos ganhou Vida.<br />
- É pura loucura!!; enlouqueceste.<br />
- Não… eu, agora, sei; pois, infelizmente, eu também sou ele.<br />
- Cala-te, cala essa maldita heresia; por favor, cala-te!, não me<br />
forces, meu ama<strong>do</strong> Anguélaz, a abater a minha fúria sobre ti!.<br />
- Não vês, queri<strong>do</strong> Teusfilo, ainda não entendeste?… O Dragão é o<br />
Tegonatos!!!!.<br />
- O quê??!! És louco!. - horrorizou-se pasma<strong>do</strong>, em incrédulo es-<br />
panto, Teusfilo.<br />
Absorvi<strong>do</strong>s num insano diálogo, os <strong>do</strong>is homens ignoraram a lumino-<br />
sa esfera abaixo deles, que se reduzira até à inexistência levan<strong>do</strong><br />
consigo, na sua dissolução para o nada, os amantes corpos, uni<strong>do</strong>s em<br />
queda, de Catarina e Xiva, dan<strong>do</strong>, em contrapartida, material substân-<br />
cia a uma enigmática sombra humana que se moldara num senta<strong>do</strong> vulto. A<br />
figura aproximou-se <strong>do</strong> centro <strong>do</strong> poço, abrin<strong>do</strong> a sua visibilidade; en-<br />
tão os <strong>do</strong>is Familiares pararam as suas falas, num susto.<br />
As suas sombrias feições lembravam Xiva, mas certos traços ligei-<br />
ros continham uma certa feminilidade; os cabelos longos caíam-lhe em<br />
desordem pelas costas, ultrapassan<strong>do</strong> em muito o nível <strong>do</strong>s seus ombros;<br />
e, nas suas ossudas mãos nuas de alonga<strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s, medravam-lhe bri-<br />
lhantes garras de tons negros, que reflectiam os seus profun<strong>do</strong>s e san-<br />
guíneos olhos duros e ferozes. Movia-se numa robusta e aerodinâmica<br />
cadeira-de-rodas-a-motor de cor obscura, e vestia um preto traje, de<br />
duas não muito justas peças.<br />
166
Teusfilo sentiu, ainda não recupera<strong>do</strong> da surpresa, a sua mente,<br />
que era Teus, sen<strong>do</strong> violada em duas inesperadas frentes. A psico-<br />
ligação cortada de Anguélaz, fora inexplicavelmente recuperada, mas<br />
mais bizarro era que o elo psíquico a Catarina continuava activo, como<br />
se ela persistisse em Vida, e, novamente em mistério, fora desbloquea-<br />
<strong>do</strong> por uma vontade exterior.! Uma densa sombra penetrou, vinda daque-<br />
las duas direcções diferentes, mas sincronizadas, no seu amplo psicu-<br />
niverso, cobrin<strong>do</strong>-o à sua passagem em total escuridão. Era horrível,<br />
para além de descrição!!, aquilo emitia uma inumanamente suportável<br />
Dor, cuja uma ínfima parte bastaria, em normais circunstâncias, para<br />
provocar a <strong>Morte</strong> em qualquer Ser vivente!. Ao seu mero toque com a<br />
rede de psico-ligações, que o ligavam a toda a Família, aquelas em<br />
instantâneo momento murchavam toman<strong>do</strong> uma forma decadentemente atro-<br />
fiada. Infelizmente para seu infortúnio, Teusfilo conhecia, agora em<br />
si mesmo, as palavras insanamente anunciadas por Anguélaz!!!<br />
Os aparelhos que haviam emiti<strong>do</strong>, para to<strong>do</strong>s os campos de batalha,<br />
a bruta morte de Catarina, transmitiram também o horror metamorfosea<strong>do</strong><br />
na aterrorizada face <strong>do</strong> ancião-chefe, perante aquele escuro novo homem<br />
recém surgi<strong>do</strong> em lugar daquele que fora o supremo-líder da Assembleia.<br />
Um pequeno holofone fugaz, em rui<strong>do</strong>sos soluços alertou, para<br />
agravamento <strong>do</strong> seu pavor, o velho Familiar para uma súbita reviravolta<br />
nas frentes <strong>do</strong> conflito. Num imprevisível acto, a Assembleia, encabe-<br />
çada inequivocamente por Daimon que era secunda<strong>do</strong> por um Anormal de<br />
nome Incôbuz que por sua vez comandava aqueles que haviam pertenci<strong>do</strong> à<br />
recrutada elite que enformara a polícia-tropa, havia, após se ter to-<br />
talmente desarma<strong>do</strong> em rendição, ataca<strong>do</strong> em mãos despidas as despreve-<br />
nidas tropas Familiares, num fanático combina<strong>do</strong> acto de cariz suicida,<br />
mas que incompreensivelmente resultara na massiva queda das fileiras<br />
167
da Família, <strong>do</strong> baixo ao topo hierárquico, visto que, em profun<strong>do</strong> enig-<br />
ma, to<strong>do</strong>s os seus membros terem entra<strong>do</strong> num esta<strong>do</strong> catatónico, incapa-<br />
zes de liderarem, e causan<strong>do</strong> o incontrolável pânico nas suas hordas<br />
humanas assustadas por tão potente sortilégio; a vitória era a partir<br />
daquele momento praticamente inegável para os segui<strong>do</strong>res de Xiva, a<br />
Família acabara de perder a Guerra.!<br />
- Foi tu<strong>do</strong> uma trapaça!, planeada pelo Maldito!!!. - berrou, num<br />
desespera<strong>do</strong> chôro, tentan<strong>do</strong> a eleva<strong>do</strong> custo manter <strong>do</strong>lorosamente acor-<br />
dada a sua consciência, o ancião-chefe. - O que é que eu fiz!!!?<br />
- Ó ama<strong>do</strong> Teusfilo!, tu limitaste-te a cumprir aquilo que havia<br />
de ser cumpri<strong>do</strong>… ao desafiá-lo, apenas fizeste realizar-se o já des-<br />
crito inevitável Destino!! - disse-lhe arrogantemente paternal, numa<br />
voz possessa, que, para seu mu<strong>do</strong> terror, lhe soava independentemente<br />
da sua própria vontade, Anguélaz. - Eis Aquele que nos há-de des-<br />
truir!!! Louva<strong>do</strong> seja o carrasco da Família!… Eis o nosso Senhor!!.<br />
- Cala-te, cala-te, cala-te, cala-te… !!!! - rosnou-lhe, numa fú-<br />
ria de pranto e frustração, Teusfilo, que sentia aquela sombria essên-<br />
cia, invasora da sua mente, cada vez mais próxima da ardente de Vida<br />
fogueira, psiquicamente simbólica, que era Teus. - O que é que eu fiz…<br />
ó!, o que eu fui fazer!?!!… Insano ao ousar contra a fatalista predes-<br />
tinação <strong>do</strong> próprio Tempo, ao tentar evitar as horrendas descrições de<br />
Bíblios sobre o Maldito, eu… eu, sem querer… em verdade, eu criei-o; ó<br />
que todas as maldições, de to<strong>do</strong>s os Tempos e de to<strong>do</strong>s os futuramente<br />
fustiga<strong>do</strong>s Mun<strong>do</strong>s, recaiam sobre o meu nome!!!!, pois … eu fiz gerar o<br />
Dragão!!!!!.<br />
Naquele momento, no seu psicuniverso, a repulsiva sombra negra<br />
engoliu o abrasa<strong>do</strong>r Teus, lançan<strong>do</strong> na escuridão psíquica, numa momen-<br />
tânea inexprimivelmente <strong>do</strong>lorosa cegueira cortantemente gélida, to<strong>do</strong>s<br />
168
os Familiares, incluin<strong>do</strong> o seu ancião-chefe, cujo débil corpo, já es-<br />
força<strong>do</strong> até ao limite, não resistiu ao violento choque, e viu-se su-<br />
cumbi<strong>do</strong> a brutais convulsões de dilacerantes espasmos; o que lhe fez<br />
perder o controlo sobre o flutuante mecanismo que o sustinha, que ro-<br />
<strong>do</strong>u num giro agita<strong>do</strong> embaten<strong>do</strong> em sanguíneos esguichos contra as pare-<br />
des daquela rochosa divisão, até, em despedaços destruí<strong>do</strong>, cair pro-<br />
fun<strong>do</strong> no poço, junto ao bizarramente impávi<strong>do</strong> homem vesti<strong>do</strong> de Noite,<br />
conduzin<strong>do</strong> assim com incalculável brutalidade Teusfilo à sua fatal<br />
comparência frente à <strong>Morte</strong>.!!<br />
Anguélaz assistira a tu<strong>do</strong> aquilo, num absorto mentalmente cego<br />
estágio de loucura, como se existisse exteriormente a si, como um es-<br />
pecta<strong>do</strong>r num distante balcão que observava a peça indiferente a toda a<br />
narração.<br />
Viu então, lá em baixo, o homem traja<strong>do</strong> de escuridão erguer altos<br />
os seus braços, que depois se colocaram em formato de crucifixo. Na-<br />
quele momento, o solo sobre a sua obscura cadeira-a-motor enfuriou-se,<br />
rasgan<strong>do</strong>-se numa ilha que se elevou em lentidão sob uma subitamente<br />
repentina coluna de escaldante lava em repuxo, que se erguia rui<strong>do</strong>sa<br />
das entranhas <strong>do</strong> Terra, enquanto o espesso tecto se desabava numa cir-<br />
cular cascata nas suas fronteiras de magmático fogo. O homem, daquele<br />
mo<strong>do</strong>, subia calmo, numa estática pose de braços abertos, até ao alto<br />
firmamento, que inexplicavelmente num ápice se encobrira, por to<strong>do</strong> o<br />
planeta, numa nocturnamente nebulosa densa tempestade coroada por uma<br />
frenética trovoada.<br />
Ao chegar a um topo ainda respirável no massacra<strong>do</strong> céu agora obs-<br />
cureci<strong>do</strong> em constantes relâmpagos, a coluna de vulcânico fogo cessou<br />
de crescer, manten<strong>do</strong>-se assim parada e intacta, suportan<strong>do</strong> uma rodela<br />
169
de rocha cujo cume era um senta<strong>do</strong> homem, exposto ali como se estivesse<br />
erecto num régio altar.<br />
A sua voz por fim fez-se soar, e, num bizarro irrepetível efeito<br />
de propagação ecoante, foi escutada em temor por to<strong>do</strong>s os Seres ter-<br />
restres, num altivo som bruto e profun<strong>do</strong> que se sobreponha numa imper-<br />
feita fundição aos zurros <strong>do</strong>s próprios trovões.<br />
- Eu, que fui Sahitañ sen<strong>do</strong> Xiva… eu que fui Catarina!, sou a mi-<br />
nha vontade e nada é podi<strong>do</strong> contra ela,! Submetam-se agora a mim ou<br />
morram meus inimigos… pois eu sou o <strong>do</strong>no da <strong>Morte</strong>, o destrui<strong>do</strong>r da<br />
Vida; eu vivo no Ódio que habita nas mentes de to<strong>do</strong>s os viventes, sou<br />
os seus pesadelos, as suas Trevas!!!… temam o novo nome <strong>do</strong> Dragão que<br />
é o de Aquele que há-de vir, e que já veio finalmente… em minha car-<br />
ne!!!; prostrem-se em terror perante o Poder que advém de mim e é meu<br />
absoluto significa<strong>do</strong>!!!… pois eu sou a incarnação <strong>do</strong> Tegonatos, das<br />
sombras universais!!!, sou o total Senhor de to<strong>do</strong> o Anti-Universo!… eu<br />
sou a voz da essência daquilo a que chamam Mal… eu sou Baal!!!!.<br />
170
α Ω z<br />
«(SZabl ) C)nh f Pde|Trh ~ Bq a l j gc s s e|i st)»<br />
Ano LXX <strong>do</strong> «(Império Humano) 4 »<br />
por Bonlocr Jectux , VIº grão-cronistória<strong>do</strong>r de Eclésia(na Terra)<br />
171