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Cada um com a sua língua

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Amolando a <strong>língua</strong> no veludo<br />

A história da Aurélia, a “dicionária” sem preconceitos.<br />

Por Hilton Lacerda | Cartuns Allan Sieber<br />

resenha<br />

Uma das diversões mais tolas que eu experimentava quando era adolescente consistia em abrir o dicionário<br />

em <strong>um</strong>a página aleatória e ler n<strong>um</strong>a roda de amigos – invariavelmente em estado de <strong>um</strong> interessante<br />

transtorno de h<strong>um</strong>or – o significado de alg<strong>um</strong> verbete, e eles tinham que descobrir qual a palavra a que<br />

me referia. Divertimento engraçado e pouco útil, diga-se de passagem. Agora me vejo aqui, <strong>com</strong> o nariz<br />

tocando a tela do <strong>com</strong>putador, desmembrando meu raciocínio para falar sobre a Aurélia – A Dicionária da<br />

Língua Afiada.<br />

Acredito que no ano 2000, n<strong>um</strong> sábado de sol, encontrei-me <strong>com</strong> Fred Libi – codinome de Wanderley Joaquim,<br />

que nem nome é – em torno da Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Ele estava na <strong>com</strong>panhia de<br />

amigos e por essa época ainda não tinha ass<strong>um</strong>ido o pic<strong>um</strong>ã vasto e descolorido que passou a usar alg<strong>um</strong><br />

tempo depois. Ainda morava em São Paulo – o destino e as convicções o empurraram para Ushuaia, no início<br />

do fim do mundo, bem ali na Argentina. Eu estava a<strong>com</strong>panhado de duas mamíferas (Duda e Juliana) e<br />

mais que rapidamente fui chamado de marsupiellen. Como é mais fácil perder amigos que piadas, fiquei feliz<br />

ao saber de onde vinha essa palavra. Até hoje fico em dúvida se eu era o motivo da criação ou <strong>um</strong> exemplo<br />

prático que se aproximava no momento da descoberta. Libi, juntamente <strong>com</strong> Angelo Vip (Victor Ângelo,<br />

jornalista), <strong>um</strong>a espécie de diplomata do xoxo, estava, naquela altura, trabalhando n<strong>um</strong> site gay chamado<br />

Supersite. Ambos, fazia certo tempo, traduziam alg<strong>um</strong>as expressões para tornar o site mais <strong>com</strong>preensível.<br />

Um glossário à Laranja Mecânica (A Clockwork Orange,<br />

de Anthony Burgess, escrito em 1962 e levado às telas<br />

em 1971 por Stanley Kubrick). Muitas outras pessoas,<br />

direta ou indiretamente, participaram dessa brigada.<br />

A questão é que, ao pescar o monge, o hábito veio<br />

junto. O dialeto específico de grupos pesquisados<br />

em alg<strong>um</strong>as capitais brasileiras trazia <strong>um</strong>a quantidade<br />

imensa de termos afinados na <strong>língua</strong> e <strong>com</strong> aspectos<br />

regionais interessantíssimos. Sorte e semente<br />

estavam lançadas. E a máquina da imaginação <strong>com</strong>eçou<br />

a funcionar junto.<br />

Da experiência passageira do Supersite, as expressões<br />

ganharam fôlego e ocuparam <strong>um</strong> degrau de eternidade<br />

<strong>com</strong> a realização da “dicionária” Aurélia. Assim<br />

mesmo, palavra desvirtuada em seu gênero, travestida,<br />

em homenagem que se tornou quase problema,<br />

quando a família do filólogo Aurélio Buarque de Holanda<br />

e a editora do dicionário Aurélio, a Nova Fronteira,<br />

tentaram impedir o lançamento do <strong>com</strong>pêndio.<br />

Aurélio, que já estava adjetivado, agora era sublimado<br />

a outro espaço de convivência dos modos<br />

da fala. Não foi possível o impedimento. Lucrou<br />

a <strong>língua</strong>, que a partir daquele momento <strong>com</strong>eçou<br />

a ser afiada no veludo do bajubá<br />

(ou pajubá), que vinha logo dali, das<br />

esquinas fervidas do Brasil.<br />

O bajubá é a <strong>língua</strong> utilizada nos terreiros de <strong>um</strong>banda<br />

e candomblé, adotada pelas amapoas de canudo,<br />

que a popularizaram, a recriaram e nela enxertaram<br />

<strong>um</strong> tanto de vivências e <strong>língua</strong>s que estão presentes<br />

na dicionária. Uma <strong>com</strong>binação de criação e adequação<br />

da <strong>língua</strong> iorubá (nagô) <strong>com</strong> a velocidade da fala<br />

marginal desenvolvida para defesa e ataque. Essas<br />

expressões tomaram o universo gay e finalmente desaguaram<br />

no mundo <strong>com</strong>o <strong>um</strong>a catarata criativa e<br />

abundante. Logo, o ofidã ficou popular, e o ofofi veio<br />

junto. E a adé acorreu e aquendou na confusão. Pense<br />

n<strong>um</strong>a coisa viva e ativa (e passiva). Pensou? É ela, a<br />

dicionária.<br />

Mundo-satélite<br />

Claro que essa abertura tem seus padrinhos no passado.<br />

Um pequeno <strong>com</strong>pêndio havia sido realizado por José<br />

Fabio Barbosa da Silva em <strong>sua</strong> dissertação de mestrado<br />

Homossexualismo em São Paulo: Estudo de <strong>um</strong> Grupo<br />

Minoritário, escrita em fins dos anos 1950 e publicada<br />

em 2005 pela Editora Unesp, em conjunto <strong>com</strong> outros<br />

textos organizados pelos pesquisadores James Green e<br />

Ronaldo Trindade. N<strong>um</strong>a provinciana São Paulo do meio<br />

do século passado, falar sobre néctar divino, salão de chá,<br />

quebrar a louça e divino ato é algo quase incrível. O orientador<br />

da tese foi o sociólogo Florestan Fernandes e Fernando<br />

Henrique Cardoso fez parte da banca.<br />

42 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 43

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