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Mas Buenos Aires não é<br />
somente o lugar de livrarias para<br />
gostos hipercaros e refinados. “Quando<br />
eu era adolescente, morava no sul, nos arredores<br />
da capital, e <strong>um</strong>a vez por mês, ou a cada<br />
mês e meio, ia ao centro <strong>com</strong> meus amigos para<br />
<strong>com</strong>prar livros na Avenida Corrientes”, relata o escritor<br />
e revisor Fernando Mazzeo. “Naquela época, a<br />
Corrientes estava coalhada de livrarias; o que existe<br />
hoje não é nem a sombra do que havia antes.” A “sombra”<br />
são as quase 30 lojas que sobrevivem na via, entre<br />
a Cerrito e a Riobamba, e herdaram a glória, mas<br />
não o público, daquele que era o local de maior concentração<br />
de livrarias do mundo hispânico na América<br />
Latina: “Só nessa avenida há mais livrarias do que<br />
em todo o Chile”, cost<strong>um</strong>ava dizer o escritor chileno<br />
Darío Oses ao visitá-la.<br />
A Libros Alberto Casares foi testemunha<br />
do adeus entre Borges e Bioy Casares.<br />
Nela sobrevivem alg<strong>um</strong>as “históricas”, <strong>com</strong>o a Gandhi<br />
ou a Hernández. No porão desta última, Alberto Laiseca<br />
lançou seu Los Soria, o mais longo de todos os romances<br />
argentinos: 1.390 páginas e <strong>um</strong> protagonista<br />
chamado Personagem. Alejandro Seselovsky, autor de<br />
Cristo, Llame Ya! Crónicas de la Avanzada Evangélica en<br />
la Argentina (Editorial Norma, 2005), lembra-se de ter<br />
<strong>com</strong>parecido ao evento, “que foi muito divertido: Rodolfo<br />
Fogwill, <strong>com</strong> seu brilhantismo delirante, estava<br />
entre os palestrantes e, de repente, <strong>com</strong>eçou a atacar<br />
Ricardo Piglia, o romancista mais respeitado dos anos<br />
1980 e 1990, resmungando em seu estilo sarcástico e<br />
incendiário alg<strong>um</strong>as barbaridades terríveis contra ele.<br />
E então, ao fundo, abriu-se <strong>um</strong>a clareira no público, e<br />
lá estava Piglia, muito sorridente. De braços cruzados,<br />
assentindo em voz baixa: ‘Sim, Rodolfo, claro, Rodolfo...’ ”.<br />
Palácios fundados pela tentação<br />
Formada em letras, Patricia Anselmo lembra que abriu<br />
a pequena La Cautiva – situada quase na esquina da<br />
Salguero <strong>com</strong> a El Salvador, na região de Palermo que<br />
não está na moda – em outubro de 2008, “em plena<br />
“Muitos não <strong>com</strong>pram livros,<br />
mas vêm para sentir-se<br />
rodeados por eles.” (Néstor<br />
Pascuozzo, da Crack Up)<br />
crise financeira mundial”, <strong>com</strong> seu <strong>com</strong>panheiro, o<br />
poeta Fernando Molle. Nada indica que seja <strong>um</strong> lugar<br />
apropriado para <strong>um</strong>a livraria: “Agora estamos <strong>com</strong>eçando<br />
a vender pela internet, para não dependermos<br />
das pessoas que passam”, explica.<br />
O fato é que instalar <strong>um</strong>a livraria em Buenos Aires não<br />
é <strong>um</strong> negócio, mas <strong>um</strong>a tentação. Néstor Horacio Pascuozzo,<br />
<strong>com</strong> Diego Singer, da Crack Up, vê a coisa do<br />
seguinte modo: “Em março de 2006, eu e seis amigos,<br />
que vínhamos de empregos em livrarias, pensamos: nós<br />
gostamos disso e, se vamos fracassar, que fracassemos<br />
melhor, <strong>com</strong>o diria Beckett. Então fundamos a loja”.<br />
Situada na Rua Costa Rica, quase esquina <strong>com</strong> a J. L.<br />
Borges, representa, <strong>com</strong>o a Eterna Cadencia ou La Internacional<br />
Argentina, <strong>um</strong> tipo de livraria que faz de<br />
tudo para se manter – edita livros, vende café, sanduíches<br />
ou CDs de tango –, mas recupera <strong>um</strong>a tradição:<br />
tem funcionários à moda antiga, que entendem de livros.<br />
Em seu caso, norte-americanos ou colombianos.<br />
“Todos os livros têm <strong>um</strong>a aura: cada palavra que usamos<br />
já percorreu a civilização inteira. É <strong>um</strong>a dívida<br />
impagável”, diz <strong>com</strong> entusiasmo. “Muitas vezes as<br />
pessoas não <strong>com</strong>pram nossos livros, mas vêm aqui<br />
para sentar e sentir-se rodeadas por eles.”<br />
Tal “abrigo” é particularmente impactante na livraria El<br />
Ateneo Grand Splendid, <strong>um</strong> velho teatro reformado<br />
na Avenida Santa Fe que se tornou <strong>um</strong>a das joias da<br />
cidade. Parece <strong>um</strong> palácio de ópera transformado em<br />
livraria. Seu aspecto grandioso certamente espanta<br />
muitos bibliófilos, mas faz <strong>com</strong> que sintamos fortemente<br />
esse toque da civilização que é a tolerância<br />
para <strong>com</strong> o prazer e a leitura alheios. Sentada no café<br />
construído sobre o que <strong>um</strong> dia foi o palco do teatro,<br />
Florencia Gutman, desenhista gráfica especializada<br />
em capas (fez as de livros de Paulo Coelho editados<br />
em espanhol e na Europa do Leste), <strong>com</strong>e<br />
<strong>um</strong>a minipizza de mussarela, observa a galáxia<br />
livresca repleta de luzes e leitores n<strong>um</strong> domingo<br />
à tarde e exclama: “Não é mesmo<br />
fabuloso estar aqui!?”.<br />
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