Gênero no texto visual: a (re)produção de significados nas imagens ...
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<strong>Gênero</strong> <strong>no</strong> <strong>texto</strong> <strong>visual</strong>: a (<strong>re</strong>)<strong>produção</strong> <strong>de</strong> <strong>significados</strong> <strong>nas</strong> <strong>imagens</strong> técnicas (fotografia, televisão,<br />
cinema) – ST 35<br />
Andréa Bittencourt <strong>de</strong> Souza i<br />
ULBRA/ Ca<strong>no</strong>as – RS<br />
Palavras-chave: Rep<strong>re</strong>sentações – cinema – masculi<strong>no</strong> na dança<br />
Billy Elliot: Rep<strong>re</strong>sentações <strong>de</strong> <strong>Gênero</strong> e Sexualida<strong>de</strong> Ensinando Um Modo <strong>de</strong> Ser Bailari<strong>no</strong><br />
Debbie - Muitos rapazes dançam balé.<br />
Billy - É mesmo? Quem?<br />
Debbie - Aqui ninguém, mas muitos<br />
homens dançam.<br />
Billy - “Viados”!<br />
Debbie - Não necessariamente.<br />
Billy - Então quem?<br />
Debbie - Wayne Sleep não é “viado”.<br />
- É igual a um atleta ... ii<br />
Desenca<strong>de</strong>io a escrita <strong>de</strong>ste artigo ap<strong>re</strong>sentando acima, um diálogo do filme Billy Elliot iii .<br />
O mesmo sintetiza a materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações <strong>de</strong> gênero e sexualida<strong>de</strong> que circulam na<br />
cultura, <strong>no</strong> con<strong>texto</strong> do filme (assim como, em con<strong>texto</strong>s distintos, conforme tenho investigado em<br />
minha dissertação <strong>de</strong> mestrado). Procuro então, analisar <strong>de</strong> que forma estas <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações<br />
associadas à dança produzem efeitos na constituição do masculi<strong>no</strong>, a partir das ce<strong>nas</strong> do filme.<br />
O filme em questão ap<strong>re</strong>senta Billy como o personagem central da trama. A história se passa<br />
em 1984, na pequena cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Durham Coalfield, localizada <strong>no</strong> <strong>no</strong>r<strong>de</strong>ste da Inglaterra. Ele é filho<br />
<strong>de</strong> um lí<strong>de</strong>r sindical dos minerado<strong>re</strong>s <strong>de</strong> carvão e vive numa pequena casa, com a sua avó e o irmão<br />
mais velho, além do pai. Sua mãe, já falecida, se faz p<strong>re</strong>sente em alguns objetos e <strong>nas</strong> lembranças<br />
<strong>de</strong> Billy. Outros personagens centrais que compõem a trama são: a professora <strong>de</strong> balé e sua filha<br />
Debbie, bem como o amigo e vizinho <strong>de</strong> mesma ida<strong>de</strong>.<br />
Billy abandona as luvas <strong>de</strong> boxe (e tudo o que isso <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentava naquele con<strong>texto</strong> violento<br />
<strong>de</strong> g<strong>re</strong>ves e embates ent<strong>re</strong> trabalhado<strong>re</strong>s e patrões britânicos do início da década <strong>de</strong> 1980) para<br />
ap<strong>re</strong>n<strong>de</strong>r sob<strong>re</strong> um outro mundo, o da dança e o do balé clássico. Nesse processo <strong>de</strong> inserção <strong>no</strong><br />
mundo da dança, Billy ap<strong>re</strong>n<strong>de</strong> também sob<strong>re</strong> as do<strong>re</strong>s <strong>de</strong> se distanciar <strong>de</strong> uma <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação <strong>de</strong><br />
masculinida<strong>de</strong> dominante, <strong>de</strong> pa<strong>re</strong>cer um estranho na sua própria família. Vislumbra um universo<br />
dife<strong>re</strong>nte do que vivia, apostando na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se tornar um bailari<strong>no</strong> do Royal Ballet iv .<br />
O filme então, <strong>no</strong>s faz <strong>re</strong>fletir sob<strong>re</strong> distintas <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações culturais que circulam naquele<br />
con<strong>texto</strong>. Comp<strong>re</strong>endo a <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação como um processo <strong>de</strong> significação que se faz socialmente<br />
através do(s) discurso(s) (SILVA, 2001). Ela é também comp<strong>re</strong>endida como inscrição, marca, traço,<br />
significante, e é <strong>re</strong>lativa – isto é, ela aceita um grau <strong>de</strong> variação ent<strong>re</strong> uma cultura e outra. E essas
variações, <strong>no</strong> entanto, po<strong>de</strong>m se dar até numa mesma localida<strong>de</strong> (HALL, 1997b; SILVA, 2001).<br />
A partir <strong>de</strong>stas consi<strong>de</strong>rações po<strong>de</strong>-se perceber que as <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações <strong>de</strong> dança e <strong>de</strong> quem<br />
dança, assim como <strong>de</strong> (uma) masculinida<strong>de</strong> ditada como dominante, não são únicas, particula<strong>re</strong>s<br />
e/ou exclusivas <strong>de</strong>sse filme – estas são constantemente produzidas e postas em circulação <strong>no</strong>s/pelos<br />
mais variados artefatos e instâncias culturais, através dos filmes, da televisão, da mídia imp<strong>re</strong>ssa, do<br />
cotidia<strong>no</strong> (seja ele familiar, escolar, <strong>re</strong>ligioso,...) etc., ensinando modos específicos <strong>de</strong> ser<br />
homem/mulher, o que é dança e quem po<strong>de</strong> (ou não) dançar.<br />
O filme <strong>no</strong>s ap<strong>re</strong>senta um <strong>de</strong>terminado modo <strong>de</strong> ser homem adulto na pequena cida<strong>de</strong><br />
britânica na primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1980 – ou seja, a or<strong>de</strong>m local, a <strong>no</strong>rma, é ser um<br />
minerador. Trata-se <strong>de</strong> um trabalho braçal, <strong>de</strong> classe popular, tipicamente masculi<strong>no</strong>, heterossexual,<br />
tipificado pelas figuras do pai e do irmão <strong>de</strong> Billy (ambos minerado<strong>re</strong>s, engajados numa luta <strong>de</strong><br />
classe, <strong>de</strong>monstrando força, ag<strong>re</strong>ssivida<strong>de</strong>, li<strong>de</strong>rança e que têm <strong>no</strong> boxe uma tradição a ser seguida<br />
pelos homens da casa).<br />
Em qualquer cultura, como é ap<strong>re</strong>sentado por Hall (1997a), há semp<strong>re</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>significados</strong> acerca <strong>de</strong> todo e qualquer tópico. Significados estes que, como <strong>no</strong> caso<br />
da masculinida<strong>de</strong>, não se exp<strong>re</strong>ssam ape<strong>nas</strong> em conceitos e idéias, mas também se <strong>re</strong>fe<strong>re</strong>m a<br />
sentimentos, vínculos e emoções. Existem, então, dife<strong>re</strong>ntes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação da<br />
masculinida<strong>de</strong> e do “tornar-se masculi<strong>no</strong>”, pois, tal como comenta Connell (1995) existem<br />
“masculinida<strong>de</strong>s” e expan<strong>de</strong> tal conceito como sendo “uma configuração <strong>de</strong> prática em tor<strong>no</strong> da<br />
posição dos homens na estrutura das <strong>re</strong>lações <strong>de</strong> gênero” (p.188).<br />
Para melhor enten<strong>de</strong>r as questões <strong>re</strong>fe<strong>re</strong>ntes ao gênero masculi<strong>no</strong> e as masculinida<strong>de</strong>s, é<br />
necessário comp<strong>re</strong>en<strong>de</strong>r como <strong>no</strong>s mostra Meyer (2003), que o termo “gênero” <strong>re</strong>p<strong>re</strong>senta,<br />
os modos pelos quais características femini<strong>nas</strong> e masculi<strong>nas</strong> são <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentadas<br />
como mais ou me<strong>no</strong>s valorizadas, as formas pelas quais se <strong>re</strong>conhece e se distingue<br />
femini<strong>no</strong> <strong>de</strong> masculi<strong>no</strong>, aquilo que se torna possível pensar e dizer sob<strong>re</strong> mulhe<strong>re</strong>s<br />
e homens que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser <strong>de</strong>finido e vivido como<br />
masculinida<strong>de</strong> e feminilida<strong>de</strong>, em uma dada cultura, em um <strong>de</strong>terminado momento<br />
histórico. (MEYER, 2003, p. 14).<br />
Assim, Meyer (op.cit.) <strong>re</strong>ssalta o quanto as dife<strong>re</strong>nças e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s ent<strong>re</strong> homens e<br />
mulhe<strong>re</strong>s são social e culturalmente construídas, e não biologicamente <strong>de</strong>terminadas. O gênero,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa perspectiva pós-estruturalista, é consi<strong>de</strong>rado um constructo social e lingüístico, produto e<br />
efeito das <strong>re</strong>lações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (MEYER, 2003; LOURO, 2001; 2004). Isso implica dizer que é <strong>no</strong><br />
ent<strong>re</strong>cruzamento <strong>de</strong> <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações e p<strong>re</strong>ssupostos (<strong>de</strong> masculi<strong>no</strong> e <strong>de</strong> femini<strong>no</strong>) <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos mundos<br />
sociais, culturais e lingüísticos que os corpos e as subjetivida<strong>de</strong>s vão sendo produzidos,<br />
distinguidos, <strong>re</strong>gulados, controlados e separados em sexo, gênero e sexualida<strong>de</strong>.<br />
Nessa di<strong>re</strong>ção, po<strong>de</strong>-se pensar, seguindo a argumentação <strong>de</strong> Louro (2001), que a inscrição<br />
do gênero masculi<strong>no</strong> <strong>no</strong> corpo <strong>de</strong> Billy é feita <strong>no</strong> con<strong>texto</strong> <strong>de</strong> sua cultura e com as marcas <strong>de</strong>sta –
assim, qualquer tentativa <strong>de</strong> distanciamento <strong>de</strong>stas marcas culturais seria um sinal <strong>de</strong> a<strong>no</strong>rmalida<strong>de</strong>,<br />
algo não natural. Ao <strong>nas</strong>cer do sexo masculi<strong>no</strong>, Billy também “herdou” as diversas expectativas<br />
sociais e familia<strong>re</strong>s do que é ser homem naquele con<strong>texto</strong>, inclusive em termos <strong>de</strong> sua sexualida<strong>de</strong> –<br />
como se tudo estivesse <strong>de</strong>terminado pela natu<strong>re</strong>za.<br />
O mundo do balé clássico se opõe à <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação dominante <strong>de</strong> masculi<strong>no</strong> <strong>no</strong> filme. Este é<br />
mostrado como “essencialmente” femini<strong>no</strong>: as meni<strong>nas</strong> estão dançando balé <strong>nas</strong> ce<strong>nas</strong> iniciais do<br />
filme, assim como também é a professora quem as ensina. Associadas a essa prática, dita feminina v ,<br />
estão modos <strong>de</strong>licados, <strong>re</strong>finados, postura e<strong>re</strong>ta, vestimentas em tons pastéis. Cabe <strong>re</strong>ssaltar aqui<br />
que, nesta <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação <strong>de</strong> dança associada ao femini<strong>no</strong>, existe também uma distinção <strong>de</strong> “classe<br />
social” (a família da professora, proprietária da mina, enquanto a <strong>de</strong> Billy, minerado<strong>re</strong>s).<br />
Penso que o filme se p<strong>re</strong>ocupa, especialmente, em problematizar uma das <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações<br />
atribuídas ao homem que dança o balé clássico, a da homossexualida<strong>de</strong>, mas o filme tensiona esta<br />
questão em momentos distintos. Um <strong>de</strong>les é <strong>no</strong> diálogo que transc<strong>re</strong>vo a seguir, quando o seu pai<br />
<strong>de</strong>scob<strong>re</strong> que ele está fazendo aulas <strong>de</strong> balé às escondidas (e fazendo-o pensar que sai <strong>de</strong> casa para<br />
as aulas <strong>de</strong> boxe):<br />
Pai - Balé?<br />
Billy - Qual é o problema com balé? [...]<br />
Avó - Eu costumava ir ao balé .<br />
Billy - Viu ?<br />
Pai - Para a sua avó, para as meni<strong>nas</strong>.<br />
- Não para os rapazes Billy.<br />
- Rapazes jogam futebol, lutam boxe ou luta liv<strong>re</strong>, não essa droga <strong>de</strong> balé! [...]<br />
Billy - Não vejo o que isso tem <strong>de</strong> errado.<br />
- Balé não é coisa <strong>de</strong> “viado”.<br />
O diálogo travado ent<strong>re</strong> pai e filho ap<strong>re</strong>senta a idéia do bailari<strong>no</strong> como homossexual, assim<br />
como <strong>de</strong>limita as ativida<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas “apropriadas” ao gênero masculi<strong>no</strong>: futebol, boxe e luta<br />
liv<strong>re</strong> (práticas essas executadas com certo grau <strong>de</strong> violência). O balé clássico é apontado como uma<br />
prática <strong>de</strong> meni<strong>nas</strong>, do gênero femini<strong>no</strong>. Um meni<strong>no</strong>, ao <strong>re</strong>alizar algo consi<strong>de</strong>rado femini<strong>no</strong> (o balé)<br />
perturba a apa<strong>re</strong>nte “or<strong>de</strong>m natural das coisas”, explícita <strong>no</strong> diálogo com o seu pai; além disso, Billy<br />
levanta também a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser homossexual, o que significa romper com o p<strong>re</strong>ssuposto<br />
universal <strong>de</strong> que “todo mundo” é heterossexual (BRITZMAN, 1995).<br />
O conceito <strong>de</strong> hetero<strong>no</strong>rmativida<strong>de</strong> é ap<strong>re</strong>sentado por Britzman (1995) como sendo a<br />
obsessão com a sexualida<strong>de</strong> <strong>no</strong>rmalizante, através dos discursos que <strong>de</strong>sc<strong>re</strong>vem a situação<br />
homossexual como <strong>de</strong>sviante. É como se a <strong>re</strong>jeição da homossexualida<strong>de</strong> fosse um sentimento<br />
necessário para a obtenção da sexualida<strong>de</strong> <strong>no</strong>rmativa. Ainda, nesta di<strong>re</strong>ção, trago as palavras <strong>de</strong>
Louro (2001) para ampliar a questão:<br />
A heterossexualida<strong>de</strong> é concebida como “natural” e também como universal e<br />
<strong>no</strong>rmal. Apa<strong>re</strong>ntemente supõe-se que todos os sujeitos tenham uma inclinação inata<br />
para eleger como objeto <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo, como parceiro <strong>de</strong> seus afetos e <strong>de</strong> seus<br />
jogos sexuais alguém do sexo oposto. Conseqüentemente, as outras formas <strong>de</strong><br />
sexualida<strong>de</strong> são constituídas como antinaturais, peculia<strong>re</strong>s e a<strong>no</strong>rmais. É curioso<br />
observar, <strong>no</strong> entanto, o quanto essa inclinação, tida como inata e natural, é alvo da<br />
mais meticulosa, continuada e intensa vigilância, bem como do mais diligente<br />
investimento (p. 17).<br />
Este medo <strong>de</strong> se tornar um homossexual po<strong>de</strong> ser <strong>no</strong>meado <strong>de</strong> homofobia e se exp<strong>re</strong>ssa,<br />
como comenta Louro (2001), “pelo <strong>de</strong>sp<strong>re</strong>zo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo” aos<br />
sujeitos assumidos como tal, como “se a homossexualida<strong>de</strong> fosse ‘contagiosa’”(p. 29). A<br />
homofobia funciona como mais um obstáculo à exp<strong>re</strong>ssão <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> ent<strong>re</strong> homens. A<br />
<strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação do bailari<strong>no</strong> como homossexual não “assombrava”, por assim dizer, ape<strong>nas</strong> seu pai –<br />
ela também incomodava o próprio Billy, como se o fato <strong>de</strong> optar pela dança pu<strong>de</strong>sse torná-lo<br />
homossexual.<br />
Mas o que é ser um homossexual? Que tipo huma<strong>no</strong> é este que <strong>de</strong>sperta, via <strong>de</strong> <strong>re</strong>gra,<br />
tamanha ojeriza <strong>nas</strong> socieda<strong>de</strong>s, e que mobiliza um esforço contínuo e permanente <strong>de</strong><br />
distanciamento – para não chegar a ser um?<br />
Tanto Louro (2004) quanto Weeks (2001) afirmam, que a prática homossexual semp<strong>re</strong><br />
existiu, mas que a atribuição <strong>de</strong> valor e sentido a ela é que tem se modificado ao longo dos tempos e<br />
<strong>nas</strong> distintas culturas. E é na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que a homossexualida<strong>de</strong> foi <strong>no</strong>meada como tal e<br />
classificada como um <strong>de</strong>svio, como uma conduta “pervertida”, como uma versão inferior da sua<br />
“outra” face (a heterossexualida<strong>de</strong>) – e é também nesse momento e nesse <strong>de</strong>terminado con<strong>texto</strong><br />
histórico, segundo Louro (2001), que a homossexualida<strong>de</strong> discursivamente produzida transforma-se<br />
em “questão social <strong>re</strong>levante”.<br />
O filme Billy Elliot pa<strong>re</strong>ce problematizar/contestar esta forma <strong>de</strong> <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação do bailari<strong>no</strong><br />
quando Billy, em dife<strong>re</strong>ntes ce<strong>nas</strong> e diálogos, marca a sua heterossexualida<strong>de</strong>.<br />
Billy e seu amigo e vizinho compartilhavam seg<strong>re</strong>dos que os distanciavam da <strong>no</strong>rma local –<br />
o vizinho se i<strong>de</strong>ntificava com “coisas <strong>de</strong> mulher”, tais como pintar o rosto e vestir as roupas da irmã<br />
às escondidas, além disso, ele <strong>de</strong>monstra ter um afeto especial por Billy, quando o beija <strong>no</strong> rosto.<br />
Billy dança balé ao invés <strong>de</strong> ir para o boxe. Em alguma medida, estavam cientes das <strong>no</strong>rmas <strong>de</strong><br />
gênero e <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> e do “perigo” que o afastamento <strong>de</strong>las <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentava. Apesar disso, Billy –<br />
<strong>re</strong>iteradas vezes, durante todo o filme – pa<strong>re</strong>ce sentir a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> frisar que se escon<strong>de</strong> porque<br />
dança e não porque é homossexual:<br />
-“Eu danço balé, mas não sou viado”.<br />
Além disso, a <strong>re</strong>lação com sua amiga Debbie <strong>de</strong>ixa transpa<strong>re</strong>cer o inte<strong>re</strong>sse <strong>de</strong> Billy por ela
(particularmente quando está na casa <strong>de</strong>la, e ao brinca<strong>re</strong>m com os travesseiros, sobe em cima da<br />
menina, gerando uma espécie <strong>de</strong> transe/“clima” ent<strong>re</strong> eles). Toda a cena pa<strong>re</strong>ce se congelar, por um<br />
momento, e a menina pe<strong>de</strong> um beijo. Quase que simultaneamente, ouvimos a voz da mãe <strong>de</strong> Debbie<br />
os chamando para <strong>de</strong>sce<strong>re</strong>m, interrompendo o que po<strong>de</strong>ria ter acontecido.<br />
A heterossexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Billy é f<strong>re</strong>qüentemente marcada <strong>no</strong> filme (<strong>re</strong>forçando assim a<br />
<strong>no</strong>rma da sexualida<strong>de</strong>) talvez na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstruir as coladas idéias <strong>de</strong> bailari<strong>no</strong> e<br />
homossexualida<strong>de</strong>. Nesta tentativa, mostra o seu amigo da infância, ao final do filme, travestido <strong>de</strong><br />
mulher na ida<strong>de</strong> adulta, mas que, nem por isso dançava.<br />
Diante do exposto até então, como Billy torna-se um bailari<strong>no</strong>?<br />
Woodward (2000), comentando acerca da <strong>re</strong>lação ent<strong>re</strong> <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, diz que<br />
a primeira “inclui as práticas <strong>de</strong> significação e os sistemas simbólicos por meio das quais os<br />
<strong>significados</strong> são produzidos, posicionando-<strong>no</strong>s como sujeitos.” (p.17). O sentido <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa<br />
experiência se dá por meio dos <strong>significados</strong> produzidos pelas <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações.<br />
Para Billy se tornar um homem adulto e bailari<strong>no</strong> terá <strong>de</strong> fazer escolhas – mas é importante<br />
salientar que, na perspectiva teórica assumida nesse trabalho, o sujeito não é “liv<strong>re</strong>” para <strong>de</strong>cidir o<br />
que bem quiser, já que está semp<strong>re</strong> imiscuído numa <strong>re</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong><strong>re</strong>s e sabe<strong>re</strong>s. Assim, as<br />
expectativas do pai (bem como as das outras pessoas ao <strong>re</strong>dor <strong>de</strong> Billy) são <strong>de</strong>positadas <strong>no</strong> meni<strong>no</strong><br />
– na di<strong>re</strong>ção da heterossexualida<strong>de</strong> e do cumprimento dos <strong>de</strong>vidos papéis sociais “<strong>de</strong>stinados” a um<br />
filho <strong>de</strong> minerador. Nesse sentido, Louro (2001) comenta que a socieda<strong>de</strong> busca, intencionalmente,<br />
através <strong>de</strong> um amplo investimento cultural, “fixar” uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> masculina ou feminina “<strong>no</strong>rmal”<br />
e duradoura: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> heterossexual.<br />
Mas Billy não só <strong>re</strong>siste (i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como <strong>re</strong>sistência) como também escolhe (i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
como escolha) uma outra i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para si (WEEKS, 2001), interpelado por uma série <strong>de</strong> outros<br />
fato<strong>re</strong>s, situações e <strong>de</strong>sejos que não os do pai. A <strong>re</strong>speito disso, Louro (2001) diz que<br />
(...) múltiplas e distintas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s constituem os sujeitos, na medida em que<br />
esses são interpelados a partir <strong>de</strong> dife<strong>re</strong>ntes situações, instituições ou agrupamentos<br />
sociais. Reconhecer-se numa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> supõe, pois, <strong>re</strong>spon<strong>de</strong>r afirmativamente a<br />
uma interpelação e estabelecer um sentido <strong>de</strong> pertencimento a um grupo social <strong>de</strong><br />
<strong>re</strong>ferência. Nada há <strong>de</strong> simples ou <strong>de</strong> estável nisso tudo, pois essas múltiplas<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m cobrar, ao mesmo tempo, lealda<strong>de</strong>s distintas, divergentes ou até<br />
contraditórias. (p.11-12).<br />
Billy escolhe ser um bailari<strong>no</strong> (e essa escolha não tem nada <strong>de</strong> “tranqüila”, “liv<strong>re</strong>”,<br />
“autô<strong>no</strong>ma”, “racional”, “consciente”, etc.) e terá <strong>de</strong> conviver com o rótulo da homossexualida<strong>de</strong> ou<br />
ainda superá-lo. A sua suposta e “natural” condição heterossexual terá <strong>de</strong> ser marcada, extensiva e<br />
ostensivamente, para que assuma esta <strong>no</strong>va i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (<strong>de</strong> bailari<strong>no</strong>) sem, <strong>no</strong> entanto, ser<br />
consi<strong>de</strong>rado um homossexual. Neste mesmo sentido, Weeks (2001) mostra que os sentimentos e<br />
<strong>de</strong>sejos po<strong>de</strong>m estar profundamente entranhados na escolha <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e que, muitas vezes,
ela po<strong>de</strong> ser altamente política.<br />
Billy, ao final do filme, torna-se um homem e também bailari<strong>no</strong>, a partir <strong>de</strong> uma <strong>re</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
discursos, pessoas, circunstâncias, instituições sociais, sonhos, <strong>de</strong>sejos e praze<strong>re</strong>s que tornam essa<br />
escolha possível. Para que modifique a sua condição <strong>de</strong> “patinho feio” para “cisne”, como é<br />
apontado por Alva<strong>re</strong>nga e Gouvêa (2003), teve <strong>de</strong> cor<strong>re</strong>r riscos, tomar <strong>de</strong>cisões, expor seus medos e<br />
impor vonta<strong>de</strong>s (a partir do que lhe era possibilitado <strong>no</strong> mundo da cultura).<br />
Momentos <strong>de</strong>cisivos são vividos por Billy em dife<strong>re</strong>ntes partes do filme (GIDDENS, 2002).<br />
Momentos esses, que mantém uma <strong>re</strong>lação particular com o risco. Ele terá <strong>de</strong> medir os riscos e, ao<br />
assumir alguns, sabe que po<strong>de</strong>rá não ter mais volta. Não será mais visto da mesma forma, nem<br />
mesmo ele se <strong>re</strong>conhecerá, pois alguns aspectos da sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (fragmentada em sexo, gênero,<br />
classe, raça...), pouco a pouco, vão também se transformando.<br />
Quando Billy, ainda criança, assume seu inte<strong>re</strong>sse e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser bailari<strong>no</strong>, contrariando e<br />
<strong>de</strong>safiando o próprio pai, assume também uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> perturbadora: não aquela que o pai e o<br />
irmão p<strong>re</strong>sumiam, a <strong>de</strong> homossexual, mas a <strong>de</strong> um meni<strong>no</strong> que dança balé e que é corajoso o<br />
suficiente para <strong>re</strong>sistir à força das <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentações dominantes que o circundavam. A coragem, como<br />
ap<strong>re</strong>senta Gid<strong>de</strong>ns (2002), “é <strong>de</strong>monstrada <strong>no</strong> risco cultivado p<strong>re</strong>cisamente como uma qualida<strong>de</strong><br />
que é posta em julgamento – o indivíduo se submete a um teste <strong>de</strong> integrida<strong>de</strong> mostrando<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber o lado “<strong>de</strong> baixo” dos riscos que cor<strong>re</strong>, e segue em f<strong>re</strong>nte apesar <strong>de</strong> tudo,<br />
mesmo não sendo obrigado a fazê-lo” (p.125). A força e obstinação <strong>de</strong> Billy (talvez por influência<br />
do próprio pai, lí<strong>de</strong>r sindical) faz com que ele passe a ser admirado por todos. Mas esse era o risco<br />
que corria, quando o seu seg<strong>re</strong>do passasse a se tornar público (ele po<strong>de</strong>ria ter, quem sabe, se tornado<br />
uma vergonha para todos).<br />
As ce<strong>nas</strong> finais do filme, com Billy adulto est<strong>re</strong>lando num gran<strong>de</strong> espetáculo <strong>no</strong> Royal<br />
Ballet, apontam para uma transformação do personagem. Transformação esta que o eleva <strong>de</strong> seu<br />
“status” inicial (enquanto criança e ap<strong>re</strong>ndiz <strong>de</strong> balé na sua pequena cida<strong>de</strong>) para um gran<strong>de</strong><br />
bailari<strong>no</strong> do Royal Ballet em Lond<strong>re</strong>s, capital da Inglaterra e gran<strong>de</strong> metrópole do mundo oci<strong>de</strong>ntal<br />
(incorpora os elementos da dita alta cultura <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentada <strong>no</strong> balé clássico). Billy, ao modificar-se,<br />
dribla as po<strong>de</strong>rosas bar<strong>re</strong>iras <strong>de</strong> gênero e sexualida<strong>de</strong> impostas na cultura.<br />
Referências<br />
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Vozes, 2000. p. 07-72.<br />
i<br />
Mestranda em Estudos Culturais em Educação da ULBRA – Ca<strong>no</strong>as, sob orientação do prof. Dr. Luís Henrique Sacchi<br />
dos Santos.<br />
ii<br />
Diálogo transcrito do filme Billy Elliot, on<strong>de</strong> Billy conversa com sua colega Debbie sob<strong>re</strong> os homens dança<strong>re</strong>m balé.<br />
iii<br />
Billy Elliot (2000) – Drama, 1h50min. Origem: Inglaterra. Dirigido por Stephen Daldry.<br />
iv<br />
O Royal Ballet é a companhia estatal <strong>de</strong> balé que conta com o patrocínio da família <strong>re</strong>al <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1956 (PORTINARI,<br />
1989).<br />
v<br />
Cabe comentar que esta <strong>re</strong>p<strong>re</strong>sentação <strong>de</strong> balé clássico <strong>re</strong>mete ao período romântico, os ditos “balés brancos” que, por<br />
quase dois séculos, ditaram o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> dança a ser <strong>re</strong>alizado <strong>no</strong> con<strong>texto</strong> da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> européia e on<strong>de</strong> a figura<br />
feminina ocupa uma posição central.