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Eva Luna - Mr. Campbell Rocks

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Para não me assustar, morreu sem medo. Talvez o pedaço de osso de<br />

frango lhe tivesse arrancado algo essencial e tenha sangrado por dentro, não sei.<br />

Quando compreendeu que estava a morrer, fechou-se comigo no nosso quarto<br />

do pátio para estarmos juntas até ao fim. Lentamente, para não apressar a<br />

morte, lavou-se com água e sabão para tirar o cheiro a almíscar que começava a<br />

incomodá-la, penteou a sua grande trança, vestiu-se com um saiote branco que<br />

tinha cosido nas horas da sesta e deitou-se no mesmo enxergão onde me<br />

concebeu com um índio envenenado. Embora nesse momento não<br />

compreendesse o significado daquela cerimónia, observei-a com tanta atenção<br />

que ainda recordo cada um dos seus gestos.<br />

- A morte não existe, filha. A gente só morre quando nos esquecem<br />

-explicou-me a minha mãe pouco antes de partir - se puderes recorda-me,<br />

estarei sempre contigo.<br />

- Lembrar-me-ei de ti - prometi.<br />

- Agora, vai chamar a tua madrinha.<br />

Fui buscar a cozinheira, aquela mulata grande que me ajudou a nascer e, a<br />

seu tempo, me levou à pia do baptismo.<br />

- Cuide-me da miúda, comadre. Entrego-lha - pediu a minha mãe<br />

limpando discretamente o sangue que lhe corria pelo queixo. Pegou-me então<br />

na mão e com os olhos foi-me dizendo quanto gostava de mim, até que o olhar<br />

se lhe nebulou e a vida se lhe desprendeu sem ruído. Por alguns instantes<br />

pareceu que algo translúcido flutuava no ar imóvel do quarto, iluminando-o<br />

com um resplendor azul e perfumando-o com um sopro de almíscar, mas<br />

depois tudo voltou a ser quotidiano, o ar apenas ar, a luz outra vez amarela, o<br />

cheiro de novo o simples cheiro de todos os dias. Segurei-lhe a cara entre as<br />

minhas mãos e abanei-a chamando-lhe mãe, mãe, assustada com aquele silêncio<br />

novo que se tinha instalado entre as duas.<br />

- Toda a gente morre, não é assim tão importante - disse a minha<br />

madrinha cortando-lhe o cabelo com três tesouradas, pensando vendê-lo mais<br />

tarde numa loja de perucas. - Vamos tirá-la daqui antes que o patrão a descubra<br />

e me obrigue a levá-la para o laboratório.<br />

Peguei naquela grande trança, enrolei-a no pescoço e acocorei-me num<br />

canto com a cabeça entre os joelhos, sem lágrimas, porque não conhecia ainda a<br />

magnitude da minha perda. Estive assim horas, talvez toda a noite, até que<br />

entraram dois homens que lhe envolveram o corpo na única manta da cama e a<br />

levaram sem comentários. Então um vazio inclemente ocupou todo o espaço à<br />

minha volta.

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