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Eva Luna - Mr. Campbell Rocks

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umo, convencida de que chegara ao limite do meu destino, certa de que não<br />

encontraria onde esconder-me depois do crime cometido. Deixei para trás as<br />

ruas da vizinhança, passei o sítio do mercado das quintas-feiras, abandonei a<br />

zona residencial das casas fechadas à hora da sesta e continuei a caminhar. A<br />

chuva parou e o sol das quatro horas evaporou a humidade do asfalto,<br />

envolvendo tudo num véu pegajoso. Gente, tráfico, ruído, muito ruído,<br />

construções onde rugiam máquinas amarelas de proporções gigantescas,<br />

pancadas de ferramentas, travagens de veículos, buzinas, pregões de<br />

vendedores ambulantes. Um vago cheiro a pântano e fritos emanava dos cafés e<br />

lembrei-me que era a hora do lanche, deu-me fome mas não levava dinheiro e<br />

na fuga tinha deixado para trás os restos do chupa-chupa semanal. Calculei que<br />

andava às voltas há várias horas. Tudo me parecia assustador.<br />

Nessa época a cidade não era o desastre irremediável que é hoje mas já<br />

crescia disforme, como um tumor maligno, agredida por uma arquitectura<br />

demencial, mescla de todos os estilos, palacetes de mármore italiano, ranchos<br />

texanos, mansões Tudor, arranha-céus em aço, residências em forma de barco,<br />

de mausoléu, de salão de chá japonês, de cabana alpina e de bolo de noiva com<br />

enfeites de gesso. Senti-me atordoada.<br />

Ao entardecer cheguei a uma praça cercada de ceibas, árvores solenes que<br />

vigiam o local desde a Guerra da Independência, coroada por uma estátua<br />

equestre em bronze, do Pai da Pátria, com a bandeira numa mão e as rédeas na<br />

outra, humilhado com tanta caca de pombo e tanto desencanto histórico. Numa<br />

esquina vi um camponês vestido de branco, com chapéu de palha e alpergatas,<br />

rodeado de curiosos. Aproximei-me para o ver. Falava a cantar e por algumas<br />

moedas mudava de tema e continuava a improvisar versos, sem pausa nem<br />

hesitação, de acordo com os pedidos de cada cliente. Comecei a imitá-lo em voz<br />

baixa e descobri que rimando é mais fácil recordar as histórias, porque o conto<br />

vibra com a sua própria música. Fiquei a escutar até que o homem recolheu as<br />

gorjetas e partiu. Durante um bocado entretive-me à procura de palavras que<br />

soassem parecidas: era uma boa maneira de memorizar as ideias e assim<br />

poderia repetir os contos a Elvira. Ao pensar nela veio-me à memória o cheiro a<br />

cebola frita e dei-me conta da minha situação e senti uma coisa fria pelas costas.<br />

Voltei a ver o chinó da minha patroa a flutuar na vala como um cadáver de<br />

sarigueia e as profecias que a minha madrinha me fizera mais do que uma vez,<br />

martelaram-me os ouvidos: má, menina má, vais acabar na cadeia, começa-se<br />

assim, desobedecendo e faltando ao respeito e depois acabas atrás das grades,<br />

digo-te eu, esse vai ser o teu fim. Sentei-me na borda do tanque a olhar os

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