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Eva Luna - Mr. Campbell Rocks

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frequência, a princípio espreitando da ombreira, depois invadindo a pouco e<br />

pouco o quarto, até acabar a brincar na sua cama. Passava horas junto do velho<br />

tentando comunicar com ele, até que consegui entender os seus murmúrios de<br />

hemiplégico estrangeiro. Quando eu estava a seu lado, o professor parecia<br />

esquecer por alguns momentos a humilhação da sua agonia e os tormentos da<br />

imobilidade. Eu tirava os livros das prateleiras sagradas e segurava-os diante<br />

dele, para que pudesse lê-los. Alguns estavam escritos em latim, mas ele<br />

traduzia-mos aparentemente encantado por me ter como aluna e lamentando<br />

em voz alta nunca se ter apercebido de que eu vivia na sua casa. Talvez nunca<br />

tivesse tocado numa criança e descobriu demasiado tarde que tinha vocação<br />

para avô...<br />

- De onde saiu esta criatura? - perguntava mastigando o ar. - Será minha<br />

filha, minha neta ou uma alucinação do meu cérebro doente? É morena mas tem<br />

os olhos parecidos com os meus... Anda cá pequena, para te ver de perto.<br />

Não conseguia relacionar-me com Consuelo, apesar de recordar bem a<br />

mulher que o serviu com lealdade durante mais de vinte anos e que numa<br />

ocasião inchara como um zepelim, com uma forte indigestão. Falava-me<br />

frequentemente dela, certo de que os seus últimos momentos teriam sido<br />

diferentes se a tivesse tido junto da cama. Ela não o teria atraiçoado, dizia.<br />

Introduzi-lhe tampões de algodão nas orelhas para não enlouquecer com<br />

as canções e as novelas da rádio, lavava-o e punha-lhe toalhas dobradas<br />

debaixo do corpo, para evitar que ensopasse de urina o colchão, e arejava-lhe o<br />

quarto e metia-lhe na boca papa de bebé. Aquele velhote de barba prateada era<br />

o meu boneco. Um dia ouvi-o dizer ao pastor que eu era mais importante para<br />

ele do que todos os êxitos científicos obtidos até então. Disse-lhe algumas<br />

mentiras: que tinha uma família numerosa à sua espera na terra, que era avô de<br />

vários netos e que possuía um jardim cheio de flores. Havia na biblioteca um<br />

puma embalsamado, uma das primeiras experiências do sábio com o líquido<br />

prodigioso. Arrastei-o até ao seu quarto, deitei-o aos pés da cama e disse-lhe<br />

que era o seu cão de estimação, não se lembrava dele? O pobre animal estava<br />

triste.<br />

- Escreva no meu testamento, pastor. Desejo que esta menina seja a minha<br />

herdeira universal. Tudo será dela quando eu morrer - conseguiu balbuciar ao<br />

religioso que o visitava quase todos os dias, arruinando-lhe o gosto da própria<br />

morte com ameaças de eternidade.<br />

A madrinha instalou um catre junto da cama do moribundo. Uma manhã<br />

o doente acordou mais pálido e cansado do que o costume, não aceitou o café

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