II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial
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<strong>II</strong> <strong>Seminário</strong> <strong>Brasileiro</strong> <strong>Livro</strong> e <strong>História</strong> <strong>Editorial</strong><br />
Operação de caça furtiva: Candide, obra construída a partir da leitura de livros escritos<br />
sobre o Brasil do século XVI e seus indígenas.<br />
José Maurício Saldanha Álvarez<br />
Professor no Departamento de Estudos Culturais<br />
e Mídia da Universidade Federal Fluminense. 1<br />
Resumo<br />
Debateremos a visão que o festejado autor europeu das Luzes, Voltaire, teve da América na<br />
escritura de sua obra Candide ou l’optimisme. Empregando a noção da leitura como operação de<br />
caça furtiva de Certeau, sugerimos que as três fontes prováveis para a configuração da América e<br />
dos ameríndios brasileiros provem de livros redigidos no século XVI sobre o Brasil, sendo o<br />
primeiro da autoria de Jean de Lery e de Andre Thevet. A terceira fonte é da autoria de Anthony<br />
Knivet, aventureiro britânico que denunciou a violência do processo colonial e da reificação dos<br />
sujeitos ultramarinos, ressaltando o caráter maravilhoso e aterrador da natureza americana. Em<br />
segundo lugar, debateremos como essas obras serviram de base para a escritura do Candide, aonde<br />
Voltaire elaborou atos de imaginação ativa e reflexiva para a fruição do leitor dos círculos das<br />
Luzes. Finalmente, desde essa possível inseminação americana, veremos como desde as fronteiras<br />
entre o literário e o político, entre o político e o cultural, articuladas num processo reflexivo e<br />
dialético quando a obra adquire o estatuto de instrumento discursivo e intelectual de conhecimento<br />
da realidade e de auto-reconhecimento no contexto anunciador da dupla revolução.<br />
Palavras-chave:<br />
Maravilhoso; alteridade; viajante; Iluminismo; autoria; leitura<br />
1 José Maurício Saldanha Álvarez, é Professor no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da<br />
Universidade Federal Fluminense. É Doutor em <strong>História</strong>, artista plástico e escritor, chefiou o Departamento<br />
de Artes da UFF de 1988 até 1991. Publicou quase duas dezenas de artigos e Romance D. Fuas Moniz, o<br />
Donatário. Rio de Janeiro: Editora Nórdica, 1981. Obra premiada com o Prêmio Afonso Arinos para<br />
Romance da Academia Brasileira de Letras em 1983. Filho teu não foge à Luta. Rio de Janeiro: Ed. Cátedra,<br />
1986. Sangue de sanguessuga. Niterói, Ed. Cromos, 1995. Ensaio: Arquitetura monumental e vontade de<br />
potência. Rio de Janeiro, Ed. Cadernos de Poesia, 1991. Este sólido e imponente edifício. Niterói: Editores<br />
Cromos. 1992. Casa Brasileira. Com os Profs. Francisco Veríssimo e Willian Bittar. Rio: Ediouro, 1999, 120<br />
p. Vida Urbana. A evolução do cotidiano da cidade brasileira. Rio: EDIOURO, 2001. O pênis bifurcado de<br />
Satã. Arte, imagem e cinema. Um ensaio sobre o 11 de setembro. Rio de Janeiro: Booklink Editora, 2003.
Introdução<br />
Os filósofos franceses do Iluminismo preparam com suas obras a eclosão da revolução<br />
política que varreu a França em 1789 e, em seguida a Europa, marcando indelevelmente o<br />
mundo moderno. Essas gentes de letras integravam uma comunidade intelectual européia<br />
formada desde o Renascimento. 2 O torvelinho por elas criado resultou num intenso debate<br />
político e gerou novos horizontes de direitos inclusivos e novas alteridades. No entanto,<br />
analisando-se as matrizes literárias das Luzes francesas, percebemos a influência exercida por<br />
autores do século XVI, que relataram o modo de vida dos ameríndios habitantes da América<br />
espanhola como dos ameríndios brasileiros. Um dos mais importantes dos filósofos, Jean<br />
Marie-Arouet, o Voltaire, redigiu um romance denominado Candide ou l’optimisme. A<br />
produção desse texto, fundado sobre saberes obtidos na escritura dos relatos assinalados nesse<br />
caput, mostrou-se operacional como um fármaco. Fármaco como Derrida o define na leitura de<br />
Phédra: “le pharmakón serait une substance avec tout ce que ce mot pourra connoter”. 3 Nossa<br />
apropriação fala de um remédio capaz de mediar a reforma do Antigo Regime e de propugnar<br />
pelo progresso do gênero humano. Parte desse medicamento nasceu fora do Velho Mundo e,<br />
como tantos gêneros americanos, fez melhor a vida dos europeus.<br />
Tudo começou no ano de 1492, quando a Europa viu com perplexidade o surgimento de<br />
um continente inteiro no oceano, achado pelo genovês Cristóvão Colombo. 4 Empregando os<br />
saberes disponíveis, batizaram equivocadamente essa terra como Índia. 5 No contexto do<br />
achado e invenção da América, ocorreu um breve choque de alteridade, conforme relata em<br />
carta o cronista português Pero Vaz de Caminha. Ele descreveu o encanto proporcionado pela<br />
beleza original da terra do Brasil e aos ameríndios descreve como asseados e de boa saúde. Ele<br />
os apresenta como expectantes pela chegada alvissareira da religião católica pela mão dos<br />
portugueses. O contexto quinhentista testemunhou o embate entre os vitoriosos mecanismos<br />
mercantis da nascente economia-mundo européia, integrante do sistema mundial moderno e os<br />
2 Didier Masseau, L’invention de l’intellectuel dans l’Europe du XV<strong>II</strong>Ie siècle. Paris, PUF, 1994,p. 17-18.<br />
3 Jacques Derrida, La dissemination, Paris, Éditions du Seuil, 1972.<br />
4 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Brasília, EdUnb., 1992, p. 23<br />
5 Edmundo Ó’Gorman,. A invenção da América. São Paulo, Unesp, 1992,27.<br />
2
do derrotado humanismo. 6 Finalmente, trabalharemos com três relatos redigidos a partir das<br />
vivencias de seus autores na baía da Guanabara e na cidade do Rio de Janeiro. Dois foram da<br />
lavra de franceses do contexto das Guerras de Religião, André Thevet e Jean de Lery e o<br />
terceiro é o relato de viagem de Anthony Knivet, aventureiro britânico da época elisabetana.<br />
Não se pode descartar a possibilidade de que vivendo algum tempo na Grã-Bretanha, Voltaire<br />
tivesse acesso a esse último trabalho. Parece-nos que as semelhanças entre as cenas da<br />
paisagem americana do Candido e as do texto do inglês resultaram de uma leitura atenta. É por<br />
isso que empregaremos a noção de Michel de Certeau 7 da leitura como uma operação de<br />
“caça furtiva” configurada como a “prática criadora” de Roger Chartier. 8<br />
Viajantes inventam um continente: a América<br />
A América e os americanos foram inventados e apropriados pela expansão européia no<br />
curso de uma viagem imaginária retirando daí sua força, como escreveu Céline, impondo uma<br />
sintaxe de dominação fundada em três categorias históricas: América inicialmente e, em<br />
seguida, a América Latina, depois o capitalismo e a modernidade. 9 Essa derradeira categoria<br />
foi descrita por Hardt e Negri como signo da crise e do descarte, da superação e da<br />
obsolescência. O surgimento de uma economia-mundo permitiu aos elementos integrantes se<br />
ajustarem numa relação imposta e assimétrica, o que pré-configura um quadro de direito,<br />
deveres, expropriações, re-configurações e hibridismos. A invenção da América implicou na<br />
sua mitificação, e na posse por direito de conquista e seus habitantes nativos, estigmatizados<br />
como usurpadores. Todorov esclarece que desde Colombo, se construía o senso (e que se<br />
tornaria consenso) de que os índios eram, na verdade, pouco mais do que gado. 10<br />
Para Fernando Novaes, a colonização representou a “solução através da qual se tornou<br />
possível valorizar economicamente as terras descobertas e dessa forma garantir-lhe a posse.”<br />
6<br />
Immanuel Wallerstein, O sistema mundial moderno. Vol. I A agricultura capitalista e as origens da economiamundo<br />
européia no século XVI. Porto, Edições Afrontamento, 1990, p.73.<br />
7<br />
Michel de Certeau, A escrita da <strong>História</strong>. Rio de Janeiro: forense – Universitária.1982, p. 123.<br />
8<br />
Roger Chartier, A história cultural. Entre práticas e representações,Lisboa, Difel, 1990,, p. 16.<br />
9<br />
Aníbal Quijano, A América Latina sobreviverá? In Carta, Revista Informe do Senador Darci Ribeiro, Brasília,<br />
p. 1993, p.99.<br />
10<br />
Tezvetan Todorov, A conquista da América. A questão do outro, 3ª edição, São Paulo, Martins Fontes,<br />
1991,p.47.<br />
3
11 Bosi nos alerta por outro lado, que “Colo é a matriz de colônia enquanto espaço que se está<br />
ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar”. 12 As redes do capitalismo 13<br />
organizaram na América, segundo Caio Prado, “um novo sistema de colonização, envolvendo a<br />
ocupação de territórios quase desertos e primitivos”. Nem desertos nem primitivos e sim eram<br />
territórios habitados por proprietários, detentores de estratégias de sobrevivência tão efetivas,<br />
que os colonos europeus delas se valeram. Essa troca assimétrica porém, constituiu para<br />
Arrighi “um círculo vicioso, vicioso para suas vítimas, virtuoso para seus beneficiários”. 14<br />
Escrita francesa que não cessa de se reescrever.<br />
Em 1554, o súdito do rei francês Henrique <strong>II</strong>I, o Cavaleiro da ordem militar de Malta,<br />
Nicolau Durand de Villegagnon, se estabeleceu na baía da Guanabara. Iniciava um<br />
empreendimento destinado a receber refugiados religiosos e a ser uma cabeça de ponte para o<br />
ouro peruano e a rota das Índias. 15 A colônia malograda, denominada de França Antártica e a<br />
cidade nunca construída denominada de Henriville, demonstram o apoio que Villegagnon<br />
dispunha na corte francesa, 16 tendo recebido em 1557 missionários calvinistas. 17 A experiência<br />
desapareceu com o retorno de Villegagnon para uma França mergulhada na guerra civil<br />
religiosa, e a subseqüente expulsão dos colonos por Mem de Sá em 1560. O texto que<br />
empregaremos foi escrito por um desses enviados, o protestante Jean de Lery, e publicado em<br />
1578. Esse foi o recorte de tempo quando as narrativas concernentes a América encantavam o<br />
público leitor que, numa viagem imaginária operada pela magia do impresso, encontrava a<br />
terra nova e o novíssimo habitante do mundo: o selvagem brasileiro. Léry era sapateiro,<br />
profissional cujo papel de leitor foi destacado na primeira modernidade, acusados pelos<br />
11 Fernando Antônio Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo sistema colonial. 1777-1808. São Paulo:<br />
Hucitec, 1986.p.48.<br />
12 Alfredo Bosi,Dialética da colonização, 2ª edição, São Paulo, Companhia das letras,1994,p.11.<br />
13 Giovanni Arrighi e Beverly J. Silver, Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro:<br />
Contraponto Editora da UFRJ, 2001, p.281.<br />
14 Giovanni Arrighi e Beverly J. Silver, Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro:<br />
Contraponto Editora da UFRJ, 2001,p. 41<br />
15 Antônio José Saraiva, A Cultura Em Portugal, Lisboa: Bertrand, 1982, p.83.<br />
16 Renato Pereira Brandão, A Cruz de Cristo na Terra de Santa Cruz: a Geopolítica dos Descobrimentos e o Domínio<br />
Estratégico do Atlântico Sul.Tese de Doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação em <strong>História</strong> da<br />
Universidade Federal Fluminense em 2000, orientado pela Profa. Dra. Lana Lage da Gama Lima, p.30.<br />
17 Paulo Knauss de Mendonça, O Rio de Janeiro da Pacificação. Franceses e portugueses na disputa<br />
colonial, Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 1991, p. 13.<br />
4
aparatos inquisitoriais de fazerem leituras excêntricas dos textos sagrados. 18 As copiosas<br />
informações etnográficas colhidas por ele, foram enviadas ao reformador Calvino, em<br />
Genebra. No seu relato, admite não inventar, mas narrar com fidelidade para um público alvo<br />
letrado. Trata-se de uma escritura mediada por uma dupla alteridade, a européia na fronteira do<br />
calvinismo e da fixação dos seus valores mediante a observação e descrição de novos. É<br />
provavelmente, a primeira manifestação do mito do bom selvagem e trabalho etnológico. 19<br />
Lery impressionou-se com a beleza dos corpos e a longevidade dos ameríndios atribuída ao<br />
“bom clima da terra sem geadas nem frios excessivos que perturbem o verdejar permanente<br />
dos campos e da vegetação mais ainda que pouco se preocupem com as coisas deste mundo.<br />
Parecem que haurem, todos eles na fonte da juventude.” 20 Diferente do escrivão Caminha,<br />
para quem o ameríndio assemelha-se a um animal “montesino”, Lery sugere que para os<br />
franceses conhecerem o ameríndio:“bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e<br />
proporcionado de membros.”<br />
Ao analisar o texto de Lery, Michel de Certeau afirma que ele se torna uma matriz<br />
perene na produção de sentidos, que a cada releitura, se torna uma “ palavra” ou matriz de<br />
sentidos que “encanta o discurso ocidental.” 21 Tudo indica que do ponto de vista da produção<br />
efetiva, quantitativa , mensurável de saberes, a perspectiva reveladora hermenêutica de Lery<br />
residiu, conforme observou Jeanneret, num olhar “typiquement eclairée et utopique.” 22 O<br />
ameríndio se torna um signo e “palavra poética”, pois o nome das “práticas”, falta de cobiça,<br />
nudez libertadora, banho, adereços, figuração natural, beleza corporal seriam semas? Ou,<br />
ainda, imagens? 23 Por outro lado, há um processo de hermenêutica alegórica nessa<br />
interpretação do novo – antigo, como assinala Compagnon, que significa mais ou menos:<br />
descrever, revelar,ensinar, pois “L’anacronisme est um acte herméneutique d’appropriation,une<br />
espèce de prophétie au l’envers”. 24<br />
A leitura de caça empreendida por Voltaire nos faz pensar num pensador-escritor cujo<br />
ethos é diferente de um contemporâneo pois para Masseau, ser um intelectual do XV<strong>II</strong>I, era ser<br />
18 Carlo Guinzburg, O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição,<br />
São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p.39.<br />
19 Friedrich Wolfzetell, Le discours du Voyageur. Le récit de voyage en France, du Moyen Age, au XV<strong>II</strong>Ie siècle.<br />
Paris, PUX, Perspectives literaires,1996, 95.<br />
20 Jean de Lery, Viagem à terra do Brasil, São Paulo e Belho Horizonte, Itatiaia-Edusp, 1980, p. 74.<br />
21 Michel de Certeau,, A escrita da <strong>História</strong>, Rio de Janeiro, Forense – Universitária,1982, p.235.<br />
22 Friedrich Wolfzetell, op. cit. p. 93..<br />
23 Roland Barthes, O grau zero da escrita. São Paulo, Martins Fontes, 2000,p.156-157.<br />
24 Antoine Compagnon, Chat en poche. Montagne et l’allégorie, Paris, Éditions du Seuil,1993,p.46.<br />
5
um pouco curioso, um tanto alquimista, procurando os milagres ocultos nesses objetos<br />
literários. Os intelectuais eram atraídos pelo maravilhoso desejosos de descortinar esse mundo<br />
raro para preencher os vazios do seu próprio. 25 Voltaire portanto, não é um professor que dá<br />
conferencias numa Université sitiado pelas rotinas acadêmicas e administrativas, ele é um<br />
aventureiro, um desbravador, um caçador, um philosophe, um médicin-astrologue e, talvez, um<br />
psychologue.<br />
O impaciente inglês.<br />
O britânico Antônio Knivet viveu no Rio de Janeiro entre 1592 e 1610. Sua narrativa<br />
colorida e aventurosa retratou o período em que a colonização portuguesa se consolidava no<br />
modo dos caranguejos. Suspeitamos embora sem a comprovação devida, que seu relato figure<br />
entre as fontes de A Tempestade, de William Shakespeare( 1564 - 1616), peça foi escrita no<br />
final da vida do bardo, exatamente quando o aventureiro inglês regressou à Inglaterra.<br />
Vindo à América portuguesa com a esquadra de Tomas Cavendish em 1592, participou<br />
do saqueou à vila de Santos, fracassando em seu intento de se dirigir ao Oceano Pacífico via<br />
Estreito de Magalhães. Ao retornarem ao litoral brasílico, aportam na Ilha Grande, onde foram<br />
atacados elos colonos saídos da cidade do Rio de Janeiro. Capturado e escravizado, Knivet foi<br />
incumbido pelo seu proprietário “de andar acima e abaixo em um batel, a transportar canas e<br />
madeira para o engenho,” até que o filho do governador (e mais tarde, ele próprio governador<br />
), Martim de Sá, encarregou-o de capturar índios ao longo da calha do rio Paraíba do sul. Seu<br />
relacionamento com os ameríndios foi ambivalente. Os escravizou em grande número, apesar<br />
de ele próprio ter sido escravo, muito embora não demonstre ter perdido a dimensão humana<br />
do outro, de cuja humanidade e sentimentos grandiosos não duvidou. Reportou a resistência<br />
oposta pelos ameríndios aos colonos quando, numa de suas fugas das mãos dos portugueses,<br />
atingiu a segurança precária de uma aldeia indígena cujos habitantes já cativara. “Comecei a<br />
discorrer, fazendo-lhes ver que os portugueses procediam cruelmente com os de sua nação tão<br />
desapiedadamente como se não fossem de carne e osso [então] os incitei a levantarem os<br />
25 Didier Masseau, , L’invention de l’intellectuel dans l’Europe du XV<strong>II</strong>Ie siècle. Paris, PUF, 1994, pp. 21-22.<br />
6
ios abatidos, e a se defenderem de tais tiranos, que sob a capa da amizade, os oprimiam<br />
duramente”. 26<br />
Seus hospedeiros escaldados de europeus o prenderam, e o entregaram a Martim de Sá<br />
que, após perdoá-lo, sabendo que era exímio com o arcabuz, o engajou na força que atacaria o<br />
poderoso reduto tamoio do Cabo Frio. Knivet relatou que nessa batalha dos maeríndios<br />
morreram “ dez mil, todos os velhos, mulheres e crianças [...] os vinte mil restantes foram<br />
vendidos como escravos.” Numa outra peripécia deparou-se com um cacique de cento e vinte<br />
anos, chamado Abousanga. Forçado pelos colonos a guerrear contra os vizinhos Goitacás, foi<br />
por esses mortalmente ferido. Knivet indagou “porque se batera com tão temerário arrojo e<br />
desprezo pela sua existência.” Abousanga respondeu “que no passado, foi um grande guerreiro<br />
e, tendo sempre vivido como homem livre, preferia morrer agora a viver no cativeiro.”<br />
Para o erradio inglês, o Brasil foi uma terra mítica e seu relato imaginativo nos legou<br />
descrições da natureza que raiam o fantástico. Assim ocorreu com o episódio da célebre<br />
montanha dourada que divisou durante uma incursão pelo sertão. Relatou que ela surgiu,<br />
dominando o horizonte com sua majestade natural e, “lançava de si tal brilho, quando o sol<br />
pairava sobre ela, que, estando nós na planície, não podíamos caminhar ao seu encontro, pois<br />
nos ofuscavam os olhos.” Nesses percursos fazia-se acompanhar de um índio. “Nunca homem<br />
algum - escreveu - votou-me amizade mais sincera do que a dele.” Encontrou com ameríndios<br />
fugitivos erradios pela mata e que disseram preferir “cair nas garras de um leão ou nas fauces<br />
de uma serpente, a voltarmos às mãos sanguinárias dos portugueses.” O relato de Knivet não é<br />
permeado pelas utopias medievais como o de Lery ou de Thevet. No seu itinerário brasileiro a<br />
teologia desapareceu, cedendo lugar a um completo vazio do divino. Os ameríndios se<br />
apresentam como ambivalentes e desmitificados; ninguém é mostrado completamente mau ou<br />
totalmente bom, muito embora a montanha fosse dourada e Abousanga um bravo.<br />
No rascunho do elogio ao Otimismo.<br />
Alguns autores franceses modernos exaltam o peso que a América tem na literatura<br />
francesa das Luzes, embora Wolfzettel ressalte o caráter contraditório dos discursos por ela<br />
26 Anthony Knivet, Narração da viagem que, nos anos de 1591 e seguintes, fez ao mar do Sul em Companhia<br />
de Thomas Cavendish. Rio de Janeiro, Revista do IHGB, tomo XLI, p. 192.<br />
7
produzido. 27 Relatos como os de Lery, Thevet e Knivet, podem muito bem ter servido para<br />
que Voltaire, cuja crítica histórica se interessou pelas relatividade do progresso escrevesse o<br />
Candide. Como viajante da imaginação, em sua tarefa de repensar o contexto social e político<br />
europeu, procurava as raízes de uma nova sociedade virtuosa nos troncos meio consumidos de<br />
outras. Autor atuante na segunda geração do Iluminismo, esse polemista ardoroso, satírico e<br />
implacável viveu longa e seminal estadia na Grã Bretanha. Admirador das instituições da ilha e<br />
admirando profundamente seu povo, bem pode ter lido Knivet. 28<br />
Candide é o personagem do romance que se envolve em inúmeras peripécias na sua<br />
terra natal. Fugindo da Inquisição, abandonou a Europa e numa voyage imaginaire, refugiou-se<br />
na América para experimentar novas desventuras. Numa delas, sua amada, a loura Cunegundes<br />
é arrebatada por um potentado colonial desejoso de saborear suas carnes alvas. Para não ser<br />
assassinado Cândido fugiu do território dominado pelos colonizadores europeus. Ao mergulhar<br />
na natureza, redescobriu uma América que não se apresentava como a terra inculta e<br />
desprovida de saberes. Ao invés disso, é o colonizador europeu que se mostra ignorante,<br />
inclinando-se diante dos supostos selvagens, cuja conduta moral, modos, costumes e<br />
conhecimentos práticos devem ser reconhecidos. 29 Na América, Candide afirmou embevecido<br />
que este país lhe parecia “muito diferente da Vestfália”. E apontando as assimetrias exclamou:<br />
“Que pais é esse, tão ignorado do mundo inteiro, e onde toda a natureza é de uma espécie<br />
muito diferente da nossa”? Para ele, o paradigma do bom homem americano era seu escravo<br />
Cacambo, que – como o índio de Knivet, demonstrou por ele uma dedicação filial. Se<br />
apresenta como americano embora integrado as redes da mundialização. Suas estratégias de<br />
resistência e de sobrevivência são dinâmicas e ardilosas. Diante das lágrimas impotentes do<br />
mestre corneado, esforça-se para o consolar. Oferece-se para conduzi-lo até um reino ignorado<br />
e rico, onde as pessoas ficariam encantadas ao vê-lo “exercitar-se à maneira búlgara”. E<br />
proclama:<br />
Quando a gente não se acomoda num mundo, procura arranjar-se em outro. É<br />
enorme prazer ver e fazer coisas novas . Já servi de auxiliar de cozinha no colégio<br />
de Assunção e conheço o governo dos padres como me oriento nas ruas de Cádiz. É<br />
uma coisa admirável esse governo. O reino em questão tem muito mais de trezentas<br />
27 Friedrich Wolfzetell, Le discours du Voyageur. Le récit de voyage en France, du Moyen Age, au XV<strong>II</strong>Ie<br />
siècle. Paris, PUX, Perspectives literaires,1996,p.73.<br />
28 Pierre Chaunu, A civilização da Europa das Luzes, volume <strong>II</strong>, Lisboa, <strong>Editorial</strong> Estampa,1985, p. 311.<br />
29 Roger Chartier, A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990, p.214.<br />
8
léguas e diâmetro: é dividido em trinta províncias.Os padres podem tudo e o povo<br />
nada. E a obra prima da razão e da justiça. 30<br />
Cacambo era o novo homem, fruto da colonização, um híbrido que, ao invés de uno é<br />
múltiplo, é multiplicável assim definido: “Tinha um quarto de espanhol pois nascera de um<br />
mestiço em Tucumã. Serviu como menino de coro, sacristão, marinheiro monge, carregador,<br />
soldado, lacaio.” Essa presença de reconfiguração escrituraria nos leva a pensar nos<br />
deslocamentos e reconfigurações do texto de Knivet para o Candide, ou seja, a enunciação<br />
deste último denuncia a operação de captura genética praticada sobre o outro.Em ambos os<br />
relatos, Knivet e Voltaire outorgam à natureza o estatuto de um ente quase soberano.<br />
O inglês e seus companheiros, após divisaram a elevação dourada, levaram “mais ou<br />
menos vinte dias a caminhar ao longo dessa montanha sem depararmos caminho por onde a<br />
transpuséssemos. Finalmente chegamos a um rio que corre debaixo dela. [sendo que] do alto<br />
do monte Potosí, avista-se esta serra onde estamos em tempo claro.” Após construir uma<br />
jangada penetraram por um canal, cujas “águas faziam um ruído semelhante ao de vozes<br />
humanas”, e vogaram por mais de um dia sob daquela abóbada. “O rio cada vez se alargava<br />
mais até perder-se debaixo de uma abóbada de rochedos terrificantes que se erguiam até as<br />
nuvens”. O rio apertado naquele local, arrastou-os com uma rapidez e fragor terríveis. Ao cabo<br />
de vinte e quatro horas tornaram a ver a luz do dia “descobrindo um horizonte imenso, fechado<br />
por montanhas inacessíveis”.<br />
Voltaire porém, ao lado da exaltação da natureza, introduziu a dialética frutificante que<br />
produziu para o leitor a base da legitimação de um novo tipo de poder. 31 Onde Knivet divisou<br />
um magnífico deserto vegetal e mineral, nosso filósofo instalou a presença pedagógica do<br />
outro, indígenas oriundos de outros relatos. Trazendo a baila a reflexão criativa sobre práticas<br />
da sociabilidade e valores éticos e morais ele coloca os heróis Cândido e Cacambo chegando<br />
ao país do Eldorado, onde são recebidos por hospitaleiros ameríndios. Ao comerem numa<br />
hospedaria, notaram que os “convivas eram na maior parte comerciantes e cocheiros, todos de<br />
extrema polidez”. Quando Candide pagou a despesa “deixando sobre a mesa duas grandes<br />
pepitas de ouro que apanhara (...) provocou no estalajadeiro e sua mulher uma explosão de riso<br />
[...] O ouro e as demais pedras preciosas nada valiam para os nativos”. Por isso o motivo da<br />
30 Voltaire, Candide, ou l’optimisme. Pocket,1998, p.70.<br />
31 Didier Masseau, , L’invention de l’intellectuel dans l’Europe du XV<strong>II</strong>Ie siècle. Paris, PUF,P.155.<br />
9
hilariedade, explicam “quando nos deram em pagamento as pedras da rua.” Para o soberano<br />
local, o ouro não passava de uma “lama amarela”, e ele não compreendia “que gosto tem os<br />
europeus” por ela, “mas levai quanto quiserdes, e bom proveito vos faça.”<br />
Conclusão<br />
A República das Letras e os filósofos como Voltaire, se constituem como um projeto<br />
europeu não formalizado e que se inicia no Renascimento, exatamente quando a América e seu<br />
crisol de alteridades foram achados. O embate entre o humanismo cristão e o nascente<br />
capitalismo estruturado em rede, a vitória foi deste ultimo. Sua racionalidade elaborou na<br />
América um novo e terrível mundo com a produção externalizada e o escravismo colonial. Na<br />
América portuguesa do século XVI alguns europeus vivem e recatam suas experiências. Jean<br />
de Lery e André Thevet narram suas vivencias entre os indígenas da baia da Guanabara. O<br />
inglês Knivet vive a trágica realidade do escravismo e da brutalidade da descartabilidade da<br />
terra e do homem. Seus relatos de viagem e experiências são mediados entre a imaginação e a<br />
razão. Os relatos analisados foram lidos por Voltaire como uma operação de caça onde foram<br />
reapropriados e se transformam num fármaco. Ou ainda num mundo encantado para seus<br />
leitores, atingindo um critério de verdade capaz de impor ao mundo o poder do espírito.<br />
Voltaire como intelectual é um homem de ações múltiplas no seu campo, e é exatamente essa<br />
diversidade que lhe permite caçar com tanto sucesso na literatura, na produção dos novos<br />
relatos como seu romance, Candide ou l’optimisme. Romance que parece desafiar os debates<br />
em torno de sua definição, como assinalou Robert. 32 A viagem em ambos é uma viagem<br />
recortada de sentidos diferentes, de objetivos diversos posto que se trata de indivíduos movidos<br />
por interesses divergentes. Quando Voltaire se apropria dos seus objetos humanos – os índios-<br />
não pratica uma tradução do vivido, como ocorreu a Lery. Ele fabricou um artefato intelectual:<br />
o fármaco, pois no século XV<strong>II</strong>I, o Velho Mundo empregou a América como um procedimento<br />
epistêmico para ter uma medida de sua própria existência. Finalmente, para ser um filósofo<br />
dentro da tradição das Luzes, projeto europeu não escrito e iniciado no Renascimento, tornou-<br />
se indispensável agir comme il faut, ou seja, ser pensador transversal. Deve ser romancista,<br />
sábio, filósofo e critico , cientista, deve jogar nas onze e fazer aproximações inesperadas<br />
empregando discursos múltiplos. Foi assim que Voltaire transformou seu romance fazer<br />
32 Marthe, Robert, Roman des origines et origines du Roman, Paris, Editora Gallimard, 1972, p.22.<br />
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destinado a inaugurar o futuro. 33 Ou conforme escreveu o próprio: “l’histoire dit ce qu’on a<br />
fait; un bon Roman, ce qu’il faut faire.” 34<br />
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33 Didier Masseau, , L’invention de l’intellectuel dans l’Europe du XV<strong>II</strong>Ie siècle. Paris, PUF, 1994,p.158.<br />
34 Marthe, Robert, op. cit., P.26.<br />
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