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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial

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<strong>II</strong> <strong>Seminário</strong> <strong>Brasileiro</strong> <strong>Livro</strong> e <strong>História</strong> <strong>Editorial</strong><br />

As marcas da oralidade na escritura de Corpo de baile<br />

Tereza Paula Alves Calzolari 1<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

Resumo:<br />

A obra mundialmente conhecida de Guimarães Rosa tem no transitar entre o<br />

popular e o erudito, o oral e a escrita, uma de suas características determinantes. Por meio<br />

dessa fusão, o autor transpõe e recria na ficção, na figura do sertanejo do interior dos<br />

Gerais, os medos e incertezas humanos, no que diz respeito à compreensão de si mesmo e<br />

do mundo. Nosso trabalho objetiva analisar a presença da oralidade em Corpo de baile<br />

(1956), a partir de “Campo Geral” e “Uma estória de amor”, a primeira porque “contém,<br />

em germe, os motivos e temas de todas as outras” (ROSA, 2003, 91), a segunda porque<br />

“trata das “estórias”, sua origem, seu poder” e do “papel, quase sacerdotal” (idem) de seus<br />

porta-vozes. Para tal, recorreremos aos contributos de Paul Zumthor e Câmara Cascudo,<br />

dentre outros.<br />

Palavras-chave:<br />

escritura; oralidade; Corpo de baile; Guimarães Rosa<br />

É com Corpo de baile (1956) que Guimarães Rosa, dez anos depois de sua estréia<br />

com Sagarana, retorna às livrarias. Ofuscado por Grande sertão: veredas, de cujo<br />

lançamento distou apenas quatro meses 2 , apresenta uma estrutura meticulosamente<br />

trabalhada, comportando dois índices, mescla de gêneros literários e expressões artísticas,<br />

1 Doutoranda em Letras Vernáculas pela UFRJ e bolsista do CNPq, atua principalmente nas áreas de<br />

Literatura Brasileira, onde investiga a obra do autor mineiro Guimarães Rosa, e de Literaturas Africanas de<br />

Língua Portuguesa. Entrelaçando as duas áreas, escreveu sobre literatura infantil um capítulo de Entre fábulas<br />

e alegorias: ensaios sobre literatura infantil de Angola e Moçambique, organizado por Carmen Lucia Tindó<br />

Ribeiro Secco e publicado pela Quartet em 2007. É também autora do capítulo sobre António Jacinto, em que<br />

compara o poeta angolano a Manuel Bandeira, em África & Brasil: letras em laços, organizado por Maria do<br />

Carmo Sepúlveda Campos e Maia Teresa Salgado, cuja segunda edição, da Yendis Editora, data de 2006. Email:<br />

tecalzolari@gmail.com<br />

2 Corpo de baile e Grande sertão: veredas foram publicados em janeiro e maio de 1956, respectivamente.


epígrafes comuns e específicas, citações a referenciais da literatura universal e da cultura<br />

popular, notas de pé de página, enfim, um conjunto variado de características que fazem da<br />

leitura um desafio e um presentear constante ao leitor.<br />

Como o próprio título aponta, para melhor fruição da obra, faz-se necessária a<br />

leitura integral, isto é, sua leitura e compreensão como um corpo, uma unidade, na ordem<br />

mesma em que as narrativas se dispõem. Caso contrário, passará desapercebida ao leitor,<br />

por exemplo, a migração das personagens de uma a outra estória, como é o caso do menino<br />

Miguilim, de “Campo Geral” (narrativa inaugural de Corpo de baile), que ressurge em<br />

“Buriti” (narrativa que encerra a obra), como o veterinário Miguel.<br />

Selecionamos como corpus ficcional para este trabalho, entretanto, apenas as duas<br />

primeiras novelas, “Campo Geral” e “Uma estória de amor”. A escolha se deu não apenas<br />

em virtude do tempo/espaço disponível, mas porque respeitaríamos a ordem original das<br />

narrativas e por entendermos que ambas são bastante ilustrativas no que diz respeito ao<br />

tema abordado, a presença da oralidade na escritura rosiana. Não nos referimos aqui à<br />

questão lingüistica, ao trato do autor à língua, mas à oralidade presente na obra por meio<br />

das estórias contadas, estendendo-nos também àquilo e àqueles que as tornam possíveis, os<br />

que as contam e os que as ouvem. Cientes de que a oralidade também se dá sob a forma de<br />

cantigas, quadras, aforismos e provérbios, preferimos, no entanto, circunscrever mais o<br />

campo de observação, objetivando explorá-lo mais detidamente.<br />

A escolha das novelas assenta-se igualmente em carta do escritor ao tradutor<br />

Edoardo Bizzarri, datada de 25 de novembro de 1963, cujos fragmentos que por ora mais<br />

interessam transcrevemos a seguir:<br />

A primeira estória, tenho a impressão, contém em germes, os motivos de<br />

todas as outras, de algum modo. Por issso é que lhe dei o título de “Campo Geral”<br />

– explorando um ambiguidade fecunda. Como lugar, ou cenário, jamais de diz um<br />

campo geral ou o campo geral, este campo geral; no singular, a expressão não<br />

existe. Só no plural: “os gerais”, “os campos gerais”. Usando, então, o singular, eu<br />

desviei o sentido para o simbólico: o de plano geral (do livro). (ROSA, 2003, p.91<br />

– grifos nossos)<br />

“Uma estória de Amor” – trata das “estórias”, sua origem, seu poder. Os<br />

contos folclóricos como encerrando verdades sob forma de parábolas ou símbolos, e<br />

realmente contendo uma “revelação”. O papel, quase sacerdotal, dos contadores<br />

de estórias. (Miguilim já era um deles... (...)) A formidável carga de estímulo


normativo capaz de desencadear-se de uma contada estória, marca o final da novela<br />

e confere-lhe o verdadeiro sentido. (Idem, p.91-2 – grifos nossos)<br />

Em “Campo Geral”, contando apenas oito anos, Miguilim convive com a<br />

melancolia da mãe, o comportamento violento do pai e o envolvimento extraconjugal, que<br />

ele é capaz de intuir, da mãe com o tio. Este último acaba por assumir o papel paterno<br />

diante de Miguilim, na medida em que com ele compartilha experiências as mais diversas,<br />

desde a primeira viagem, para a crisma no Sucurijú, até a armação de arapucas para<br />

passarinhos, para logo em seguida serem libertados, conversas sobre saudade e outros<br />

sentimentos.<br />

Apesar da pouca idade, o menino ainda tem de enfrentar situações trágicas, como a<br />

morte de Dito, o irmão que tanto admira e com quem tem mais afinidade, o assassinato de<br />

Luisaltino, trabalhador da fazenda, pelo pai, por motivo de ciúme, e o suicídio deste. Para<br />

lidar com tal sorte de acontecimentos e com outros não tão graves, mas que exigem uma<br />

postura, uma tomada de atitude, ou que provocam um profundo desagrado, para vencer seus<br />

medos, angústias e compreender a si mesmo, o outro e o mundo, Miguilim recorre às<br />

estórias. Além da necessidade de ouvi-las, o menino quer e precisa inventá-las. Por meio da<br />

ficção, ele pode reelaborar os fatos para enfim buscar compreendê-los e, se for o caso,<br />

aceitá-los.<br />

Em conhecida entrevista a Gunter Lorenz, em 1965, declarou o autor:<br />

Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue<br />

narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos,<br />

estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os<br />

contos e lendas, e também nos criamos num mundo que às vezes pode se<br />

assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre<br />

por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma<br />

de seus homens. Assim, não é de se estranhar que a gente comece desde muito<br />

jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não<br />

ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las,<br />

escrevia. (COUTINHO, 1991, p.69)<br />

À parte o que pode haver de autobiográfico em “Campo Geral”, como podemos<br />

depreender das palavras de Vicente Guimarães em Joãozito. Infância de Guimarães Rosa


(1972) 3 , e da predileção do escritor pela estória de Miguilim, conforme relata à prima em<br />

entrevista, o hábito da contação e fabulação de estórias pelo sertanejo é reconhecido pelo<br />

autor como dom, adquirido e reforçado na infância, que se leva por toda a vida. O “menino<br />

poeta” 4 , como Henriqueta Lisboa apropriadamente se refere a Miguilim, faz sua<br />

aprendizagem dos mistérios do homem e da vida, questionando, refletindo e amadurecendo<br />

também na medida em que reelabora suas incertezas e angústias em arte, em ficção.<br />

Em “Uma estória de amor”, encontramos Manuelzão, perto dos sessenta anos de<br />

idade, especulando sobre os (des)acertos de sua vida, em meio à festa de “fundação” da<br />

Samarra, fazenda de gado que chefiava e na qual “valia como único dono visível, ali o<br />

respeitavam” (ROSA, 1956, p.144), mas que não lhe pertencia de fato.<br />

Antes de se estabalecer naquelas terras, sua vida era “sem pique nem pouso” (Idem,<br />

p.145), de trabalho árduo e contínuo, sem tempo para amar e ser amado. Sente-se só e<br />

resolve levar para morar com ele a mãe, Dona Quilina, já velhinha, que morre pouco tempo<br />

depois, e, em seguida, o filho, Adelço, com quem praticamente até então nenhum contato<br />

tivera. Ganha, assim, uma família já pronta, a nora Leonísia e sete netos. Nessa família<br />

faltava, porém, a esposa. A nora ocupa uma espécie de entre-lugar no coração da<br />

personagem e no dia-a-dia da fazenda. Manuelzão a respeita, embora julgue o sentimento<br />

por parte do filho um “amuo de amor” 5 , nela idealizando a companheira perfeita. Na<br />

fazenda, Leonísia faz as vezes de dona da casa, até por ser, de fato, a única mulher da<br />

família.<br />

Mas o protagonista sente fortes dores no peito, falta de ar, cansaço e fraqueza,<br />

desconforto para caminhar dado um “machucão num pé” (Idem, p.142). Percebe enfim que<br />

a saúde começa a fraquejar e que não lhe resta muito tempo para pôr termo a seu projeto de<br />

comprar a Samarra, tornar-se bem sucedido e afamado. Depois de uma vida dedicada ao<br />

trabalho, de costas para assuntos do coração, “De todo não queria parar, não quereria<br />

suspeitar em sua natureza própria um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do<br />

3 “A alegoria do menino usando os óculos do doutor, colega em miopia, aproveitou o escritor para descrevê-la<br />

em cena apresentada no conto “Campo Geral”. Quase toda verdadeira, existida mesmo, exceção feita de<br />

alguns nomes.” (GUIMARÃES, 1972, p.16)<br />

4 LISBOA, 1991, p.174<br />

5 “Leonísia era linda sempre, era a bondade formosa. O Adelço merecia uma mulher assim? Seu cismado,<br />

soturno caladão, ele encabruava por ela cobiças de exagero, um amuo de amor, a ela com todas as grandes<br />

mãos se agarrava. Nem a gente podia aquilo moderar, não se podia repreender, com censuras e indiretas, pois<br />

não era a mulher dele?” (ROSA, 1956, p.176)


corpo.” (Idem, p.149) A angústia gerada pela intuição de que “ele, Manuelzão, levava a<br />

breca, no bom repente ia bater com o rabo na cerca?” (Idem, p.178), sem haver<br />

aproveitado o melhor da vida ou logrado êxito nos seus objetivos, será pensada e digerida<br />

pela personagem por meio das estórias que, a todo custo, procurava evitar.<br />

Ao voltar de viagem, quando indagado pelos irmão sobre os possíveis presentes,<br />

Miguilim oferece uma estória: “ – Estava tudo num embrulho, muitas coisas... caiu dentro<br />

do corgo, a água fundou... dentro do corgo tinha um jacaré, grande...” (Idem, p.20) O<br />

menino, que trazia na algibeira “um pedaço de barbante e as bolinhas de resina de<br />

almecêga, que unhara da casca da árvore” (idem), interessado em brincadeiras, em<br />

fantasia, e forçado a viver “uma lenda cruel”, oferece o que tem de melhor, o que ainda<br />

resiste de sonho e está lá dentro, sobre o que ele tem poder de mandar, porque “podia<br />

brincar de pensar” (Idem, p.24) e criar. Drelina, a irmã mais velha, confunde o presente<br />

com mentira, que Tomezinho, de quatro anos, e Dito aceitariam de bom grado.<br />

Noutra ocasião, ao receber do tio Terêz, expulso de casa pela Vovó Izidra, um<br />

bilhete para entregar à mãe, Miguilim vive um dilema. Sem saber que atitude tomar, o<br />

menino indaga os que o cercam sobre quando se deve ou não fazer determinada coisa. As<br />

respostas que recebe são as mais diversas, de acordo com os pensamentos ou preocupações<br />

de cada um, suas conveniências, e não ajudam Miguilim. Ainda com o bilhete na algibeira,<br />

o menino repete o caminho – não há outro possível – com o tabuleiro do almoço do pai<br />

sobre a cabeça. Procura então transformar em estória sua dúvida, vista de outro ângulo,<br />

bem poderia achar uma solução.<br />

Ah, meu-Deus, mas, e fosse em estória, numa estória contada, estoriazinha assim e<br />

ele inventando estivesse – um menino indo levando um tabuleirinho com o almoço<br />

– e então o que era que o Menino do Tabuleirinho decifrava de fazer? Que palavras<br />

certas de falar?! (Idem, p.79)<br />

Mas Miguilim estava tão aflito com a situação, que nem a estória poderia socorrê-lo,<br />

nem a estória ele controlava: “Mas, aí, Tio Terêz não era da estória, aí ele pegava escrevia<br />

outro bilhete, dava a ele outra vez; tudo, pior de novo, recomeçava.” (Idem, p.79-80)<br />

Outras vezes, Miguilim busca, não uma resposta, mas um consolo ou a alegria, que<br />

pode ser também a do outro, nas estórias. Quando o irmão Dito está acamado, gravemente<br />

enfermo,


Miguilim contava, sem carecer de esforço, estórias compridas, que ninguém nunca<br />

tinha sabido, não esbarravade contar, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era<br />

o entendimento maior. Se lembrava de seo Aristeu. Fazer estórias, tudo com um<br />

viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, sabia: Deus mesmo era quem<br />

estava mandando! – “Dito, um dia eu vou tirar a estória mais linda, mais minha de<br />

todas: que é com a Cuca Pingo-de-Ouro!...” O Dito tinha alegria nos olhos; depois,<br />

dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir a vida inteira. (Idem, p.100 –<br />

grifos nossos)<br />

Seo Aristeu é quem lhe vem à lembrança no ato de contar estórias. “Aquele<br />

homem” que “parecia desinventado de uma estória” (Idem, p.62), sabia tocar viola, criava<br />

abelhas para o fabrico do mel e aconselhava remédios. Alegre e divertido, dava ânimo às<br />

colheradas quando Miguilim mais carecia, sempre através da palavra, fosse por meio da<br />

música, das estórias ou até mesmo por si, sozinha. A palavra acontecedora, quando<br />

proferida por seo Aristeu, e seu poder encantatório “curam” Miguilim duas vezes do medo-<br />

quase-certeza de que estava para morrer. Da primeira experiência, transcrevemos a<br />

passagem a seguir:<br />

– “ Vamos ver o que é que é que o menino tem, vamos ver o que é que o<br />

menino tem?!... Ei e ei, Miguilim, você chora assim – p’ra cá você ri, p’ra mim!...”<br />

(...) Miguilim – bom de tudo é que tu’tá: levanta, ligeiro e são, Miguilim!....”<br />

- Eu ainda pode ser que vou morrer, seo Aristeo...<br />

- Se daqui a uns setenta anos! Sucede como eu, que também uma vez já<br />

morri: morri sim, mas acho que foi morte de ida-e-volta... Te segura e pula,<br />

Miguilim, levanta já!<br />

Miguilim, dividido de tudo, se levantava mesmo, de repente são, não ia<br />

morrer mais, enquanto seu Aristeo não quisesse. Todo ria. Tremia de alegrias.<br />

(Idem, p.62-3 – grifos nossos)<br />

A palavra acontecedora, encantatória, é a “palavra-força” que “proferida pela Voz<br />

cria o que ela diz” (ZUMTHOR, 1993, p.75). Tornando presente aquilo a que se refere, a<br />

Palavra se opõe à “palavra ordinária, banal, superficialmente demonstradora” (Idem), que<br />

apenas remete. A Palavra faz-se proferir pelo intérprete, o “portador da voz poética”<br />

(Idem, p.57) por excelência que, ao contar estórias, atualiza uma tradição, atuando como<br />

mediador entre tempo e espaço da narrativa, tempo e espaço do cotidiano.


A performance do intérprete é que garantirá ou não a atenção dos ouvintes, do<br />

público a quem as estórias se destinam. A performance diz respeito a todos os recursos que<br />

marcam sua presença,<br />

perceptível não só pela autoridade de quem fala e do conteúdo do seu discurso, mas<br />

também pela autoridade que provém de sua presença física, de sua posição no grupo<br />

e, ainda, da situação em que a performence ocorre. Portanto, tão importante quanto<br />

o que é dito é a pessoa que assume esse dizer, responsável por transformar a palavra<br />

em profecia. (FLACH, 2007, p.100)<br />

Seo Aristeu reúne todas as características necessárias para assumir o posto de<br />

intérprete oficial, digamos assim, de “Campo Geral”. É respeitado por seus conhecimentos<br />

medicinais. É iluminado, festivo, animado, vive em comunhão com a natureza,<br />

dispunha notícia do regulamento dos bichos, por onde passavam acostumados (...)<br />

Outras vezes também dava rumo aos vaqueiros do movimento do gado fugido, e<br />

conduzia de benzer bicheira dos bois, recitava para sujeitar pestes. Seo Aristeu<br />

criava em roda de casa a abelha-do-reino e aquelas abelhinhas bravas do mato, ele<br />

era a única pessoa capaz dessa inteligência. (ROSA, 1956, p.44-5 - grifos nossos)<br />

As situações ou contexto também lhe são favoráveis, na medida em que a personagem<br />

aparece em momentos de aflição, de doença, como luz e alegria necessárias para sarar.<br />

Em “Uma estória de amor”, Joana Xaviel e velho Camilo fazem as vezes dos<br />

intérpretes. A primeira, contando aproximadamente quarenta anos, é desprovida de bens<br />

materiais e de qualquer atributo físico que lhe pudesse favorecer. Os das redondezas a<br />

acreditavam bruxa e ladra, capaz de feitiços e perversidades. Mas “Pegava a contar<br />

estórias – gerava torto encanto” (Idem, p.173)<br />

Joana Xaviel fogueava um entusiasmo. Uma valia, que ninguém governava,<br />

tomava conta dela, às tantas. (...) Joana Xaviel virava outra. No clarão da lamparina,<br />

tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara demudava, destava os<br />

traços, antecipava as belezas, ficava semblante. Homem se distraía, airado, do<br />

abarcável do vulto – dela aquela: que era uma capioa barranqueira, grossa roxa,<br />

demão um ressalto de papo no pescoço, (...). Mas que ardia ardor, se fazia. Os olhos<br />

tiravam mais, sortiam sujos brilhos, enviavam. (Idem, p.167-8)<br />

Em “Uma estória de amor”, encontramos diversas estórias narradas por Joana<br />

Xaviel, na verdade, versões ou variantes resultantes da mistura da tradição cultural ibérica


com as estórias originais de diferentes regiões do Brasil. A da Destemida e da Vaca<br />

Cumbuquinha, “a primeira grande intervenção do mundo das estórias orais” 6 na narrativa<br />

– e, portanto, a que daremos aqui destaque – apresenta-se como um conto popular de<br />

exemplo, dentro do ciclo de estórias populares que tem no boi a figura central. Sua gênese,<br />

conforme explica Guardini Vasconcelos, liga-se à relevância da atividade pecuária em<br />

diversas regiões do país, além, em primeira instância, da presença constante na paisagem<br />

brasileira.<br />

A estória em questão tem origem na “Estória do Vaqueiro que não mentia” ou<br />

“Estória do Boi Leição”, também conhecida como “Quirino, Vaqueiro do Rei”. A diferença<br />

fundamental entre as variantes da estória e a versão de Joana reside na ausência de punição<br />

no final do relato, o que se mostra inaceitável para a platéia, sobretudo para Manuelzão, em<br />

quem a estória de imediato encontra eco, na medida em que a personagem se identifica com<br />

o vaqueiro empregado da fazenda. Senão, vejamos.<br />

Um rico fazendeiro deixa sua maior propriedade sob os cuidados de um vaqueiro,<br />

em quem muito confiava. Muita atenção e todo o zelo deveriam ser dispensados a uma<br />

vaca, de nome Cumbuquinha, era o que o fazendeiro mais queria. Destemida, a mulher do<br />

vaqueiro, contudo, estava grávida e desejosa de comer da carne da vaca. O marido cede aos<br />

apelos da esposa, mentindo ao fazendeiro que Cumbuquinha havia rolado de um barranco e<br />

morrido. Destemida ainda rouba o fazendeiro, mata-lhe a mãe e incendeia a casa em que o<br />

corpo aguardava pelo velório. E assim acaba a estória.<br />

No conto original, diferentemente, o vaqueiro confessa o erro ao fazendeiro, sendo<br />

não apenas perdoado, mas recompensado pela lealdade. A índole da mulher é irrelevante, o<br />

que importa é a honestidade do empregado. A consonância da Joana-intérprete com os<br />

espectadores, satisfeita ao longo de toda a estória, é rompida quando se frustra a expectativa<br />

que a estória suscitava, a satisfação da moral ingênua, com a punição do mal. Por isso o<br />

estranhamento da platéia e a “certeza” de que a estória estava errada, que faltava a segunda<br />

parte.<br />

Velho Camilo, par amoroso de Joana Xaviel, agregado da fazenda, com mais de<br />

oitenta anos de idade, “Era digno e tímido. Olhava para as mãos dos outros, como quem<br />

espera comida ou pancada. Mas às vezes a gente fitava nele e tinha a vontade de tomar-lhe<br />

6 VASCONCELOS, 1997, p.105


a bênção.” (ROSA, 1956, p.152) Apesar de alvo constante das brincadeiras dos meninos,<br />

de trajar pobres andrajos, de assemelhar-se a “uma espécie doméstica de mendigo,<br />

recolhido, inválido” (Idem, p.151), mantinha “um certo ar de decoro antigo, um siso de<br />

respeito de sua figuração” (Idem, p.152).<br />

A seo Camilo cabe papel fundamental em “Uma estória de amor”, o de orientar o<br />

protagonista nas reflexões acerca da própria vida, da senescência e da morte. O sentimento<br />

de Manuelzão para com o agregado da Samarra é, num primeiro momento, de desprezo,<br />

dada a pobreza e a velhice da personagem, “velho Camilo se demonstrava a pessoa<br />

separada no desconforme do pior: botada sozinha no alto da velhice e da miséria”. (Idem,<br />

p. 163) Gradativamente, porém, vai se transformando em interesse, em desvendamento,<br />

para culminar no desejo de protegê-lo e, finalmente, de ouvi-lo.<br />

Perguntasse ao velho Camilo. Assim, todo vivido e desprovido de tudo, ele bem<br />

podia ter alguma coisa pra ensinar... Mas o velho Camilo, o que soubesse, não sabia<br />

dizer, sabia dentro das ignorâncias. A ver, sabia era contar estórias – uma estória,<br />

do pato pelo pinto, me conte dez, me conte cinco. (...) Daí, pois, perguntava.<br />

Perguntava? – “Seo camilo...” Que era que ia indagar? Só se mandando. Mandava.<br />

– “Seo Camilo...”<br />

– Seo Camilo, o senhor conte uma estória! (Idem, p.228)<br />

Manuelzão, que passara toda a festa, dos preparativos aos intervalos para as<br />

refeições e descanso, fugindo das estórias, por considerá-las em atrito com a lida diária do<br />

trabalho, é capaz de reconhecer sua “amarugem e docice” (Idem, p.170), sua beleza<br />

simples, principalmente das “antigas, as já sabidas, das que a gente tem em saudades, até”<br />

(Idem, p.173).<br />

Angustiado com a dúvida de acompanhar ou não a boiada para a Santa-Lua dali em<br />

três dias, por medo de morrer no meio do caminho, a personagem acaba reconhecendo a<br />

importância da palavra-força, permitindo-se orientar por uma estória. Intuindo que seo<br />

Camilo quisesse lhe dizer algo, mas não encontrasse modos de fazê-lo, confiando na sua<br />

experiência de homem de muitas moradas e tanto mais de anos vividos, pede-lhe uma<br />

estória, ao que o velho de pronto atende:<br />

– Caso eu tenho, por contar...<br />

O velho Camilo estava em pé, no meio da roda. Ele tinha uma voz.<br />

Singular, que não se esperava, por isso muitos já acudiam, por ouvir. Contasse, na<br />

mesma da hora. Ele,assaz, se começou:


A estória do velho Camilo.<br />

– “Em era um homem fazendeiro, e muito bom vaqueiro. (...)<br />

De daí, ô gente, agora me venham, para perto, e queiram, todo o mundo a<br />

escutar. Ao velho Camilo de gandavo, mas saído em outro velho Camilo,<br />

sobremente, com avoada cabeça, com senso forte. Venham, minha gente, e os<br />

outros, pessoas, meus bons vaqueiros de campo, hóspedes de minha seriedade.<br />

(Idem, p.229)<br />

Ao assumir a posição de intérprete, Seo Camilo, mudado de figura, toma o meio da<br />

roda, ocupando posição de destaque no grupo, que antes o marginalizava. Todos se juntam,<br />

se aproximam, para escutá-lo. Manuelzão mesmo os convoca. A postura da personagem e a<br />

colocação da voz, “singular, que não se esperava”, são de imediato reconhecidas pelos<br />

convidados como a figuração do xamã, do guardião da Palavra. Seo Camilo é o mediador<br />

da revelação contida na estória que vai contar, o guia de Manuelzão para encontrar aquilo<br />

que procura, para orientar sua dúvida. A fonte do saber é a própria Palavra. A “Décima do<br />

Boi e do Cavalo” ou o “Romanço do Boi Bonito” é reconhecida pela platéia já no início da<br />

narração. A sabedoria coletiva, popular, é então colocada a serviço da vivência individual.<br />

O que se conta: um rico fazendeiro do interior do sertão morre, legando como<br />

herança ao filho a fazenda, um cavalo encantado e o Boi Bonito. Certa feita, o filho-então-<br />

fazendeiro resolve dar uma festa para que lhe recuperem o Boi, fugido já há algum tempo,<br />

em troca de recompensa. Dentre os candidatos, sobressai o Vaqueiro Menino, que “montou<br />

no Cavalo em que ninguém não amontava...” (Idem, p.231). Depois de uma longa<br />

perseguição, o Vaqueiro entrega as rédeas ao cavalo, “conhecedor deste mundo todo”<br />

(Idem, p.243), e chega à morada do Boi, que revela ter por ele aguardado “um tempo<br />

inteiro” (p.242) , “por guardado destinado” (Idem). De volta à fazenda, o Vaqueiro<br />

Menino, de nome Seunavino, deseja como recompensa o Boi solto, porque respeita a<br />

natureza e a compreende livre. O cavalo, no entanto, quer para si, de modo a lhe permitir<br />

outras experiências iniciatórias.<br />

Qualquer tentativa de interpretação da estória contada por seo Camilo e da<br />

correspondência estabelecida com Manuelzão, dentro dos limites deste espaço, mostrar-se-<br />

ia limitada, simplificadora 7 . Temos ciência da simplificação a que tivemos de aqui recorrer<br />

7 Sobre a estória contada por seo Camilo e sua repercussão em Manuelzão, escrevemos os dois últimos<br />

tópicos do terceiro capítulo de nossa dissertação de Mestrado, intitulada: Nas pegadas de Manuelzão – a<br />

trajetória do protagonista de “Uma estória de amor”, de João Guimarães Rosa, cuja referência encontra-se<br />

na bibliografia deste trabalho.


para resumir, ainda que com objetivos didáticos, a Décima do Boi e do Cavalo, um mal, no<br />

entanto, necessário, para que fosse possível acenar para a importância da estória contada,<br />

não só para o protagonista, mas para a narrativa como um todo e, por que não, para o<br />

projeto maior do livro Corpo de baile.<br />

Em síntese, e de forma redutora, dizemos que a revelação da estória para<br />

Manuelzão, especificamente, encontra-se na postura do Vaqueiro Menino diante do<br />

empreendimento ao qual se lança, a captura do Boi: “– (...) Pra vida ou pra morte alegre<br />

eu vou, (...)! Pois só dá descanso de bem-morrer é no meio de valentia.” (Idem, p.235)<br />

Manuelzão decide então partir com a boiada para a Santa-Lua, saindo em viagem, como<br />

sempre fizera, sem se resignar ao cansaço, aos limites do corpo.<br />

É interessante sublinharmos que Miguilim e Manuelzão, os dois protagonistas que<br />

buscam nas estórias consolo e coragem, a orientação de que careciam diante da vida, em<br />

momentos os mais diversos, encontram-se nas duas pontas da existência. O infante e o<br />

senescente, ambos aprendizes no lidar com o mundo, o outro e si próprio, nos são<br />

apresentados em narrativas em sequência. Colocados lado a lado, numa estória depois da<br />

outra, temos ressaltada a característica de eterna aprendizagem do homem, porque humano<br />

e travessia, não importando em que ponto do trajeto se encontre. Destaca-se também o traço<br />

fabulista por natureza do sertanejo, cultivado desde a infância pela audição das estórias<br />

contadas pelos mais velhos, num ciclo que se repete e renova.<br />

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Paulo: Hucitec, 1997.<br />

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_____________. Performance, recepção, leitura. 2.ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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