You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
30<br />
20<br />
25<br />
30<br />
35<br />
40<br />
45<br />
50<br />
– Eh!, alma do diabo, sofre! – instigou-o por fim uma onda a deitar os<br />
bofes de espuma pela boca fora.<br />
Um peixe insurgiu-se com voz mole:<br />
– Assim não vale! Vê se acabas com isso. Eu e os meus camaradas<br />
peixes queremos dormir em sossego. Vamos, chora!<br />
Uma gaivota baixava de vez em quando para lhe insinuar, baixinho:<br />
– Então? Toma-te infeliz. Soluça. Berra. Chora. Lembra-te de que<br />
seguiste o Caminho da Infelicidade. Não faças essa cara de quem ganhou<br />
a sorte grande.<br />
Por último, uma coruja de mitra 2 pequenina na cabeça e venda nos<br />
olhos – para voar de dia e de noite em perpétua escuridão – segredou -<br />
-lhe ao ouvido:<br />
– Queres laranjinhas? Ouve a minha sugestão: representa a comédia<br />
da dor. Finge que sofres muito, sê hipócrita. Mente. Pede a esmolinha de<br />
uma laranja por amor de Deus. Vá! Não sejas tolo. Chora.<br />
Como única resposta, João Sem Medo repeliu a coruja, fez das tripas<br />
coração e desatou a cantar à sobreposse 3 .<br />
Então, ao som do seu canto, por fora tão vibrante e viril, a fúria das<br />
águas amainou 4 . O rugir das ondas amorteceu lentamente. Um murmúrio<br />
de desistência soprou pela superfície do lago. E João Sem Medo, com<br />
algumas braçadas vigorosas e seguras, logrou pôr o pé em terra perto do<br />
laranjal carregado de pomos de ouro.<br />
Claro, correu logo como um doido para a árvore mais próxima, sôfrego<br />
de engolir meia dúzia de laranjas. Mas, num lance espetacular, os frutos<br />
diminuíram rapidamente de volume até atingirem o tamanho de berlindes<br />
e – zás! – com um estoiro despedaçaram-se no ar.<br />
Humilhado, e a contar com nova surpresa desagradável, abeirou-se de<br />
outra laranjeira. Desta vez, porém, as laranjas transformaram-se em<br />
cabeças de bonecas doiradas e deitaram-lhe a língua de fora.<br />
– A partida anterior teve mais graça! – observou João Sem Medo. […]<br />
Então, numa tentativa suprema, João Sem Medo acercou-se de outra<br />
árvore, sorrateiramente, em bicos de pés.<br />
Tudo inútil. Como se estivessem combinadas, as laranjas e as tangerinas<br />
do pomar desprenderam-se dos troncos, abriram pequeninas asas<br />
azuis e começaram a subir serenamente no céu.<br />
Apesar da fome, João Sem Medo, com os olhos fixos no espetáculo<br />
maravilhoso das bolas de ouro a voarem, não pôde reprimir este clamor<br />
de entusiasmo, braços erguidos para o ar: