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A ESTRATÉGIA EPISTOLAR EM NOVAS CARTAS PORTUGUESAS

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Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura<br />

São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128<br />

1<br />

A <strong>ESTRATÉGIA</strong> <strong>EPISTOLAR</strong> <strong>EM</strong> <strong>NOVAS</strong> <strong>CARTAS</strong> <strong>PORTUGUESAS</strong><br />

Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha 1 (UFPB)<br />

Novas cartas portuguesas é uma obra de autoria coletiva de Maria Isabel<br />

Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, publicada, pela primeira vez,<br />

em Portugal, em 1972, e estabelece, desde o título, uma relação intertextual com<br />

Cartas portuguesas (Lettres portugaises), romance epistolar publicado em França, em<br />

1669, cuja autoria seria atribuída à freira portuguesa Mariana Alcoforado. Os cento e<br />

vinte textos de diferentes tipologias que compõem Novas cartas portuguesas estão<br />

agrupados sob o nome genérico “cartas”, o que leva a concluir que a estratégia<br />

epistolar é fundamental na concepção da obra. Interessa, então, perceber como em<br />

Novas cartas esse procedimento narrativo subordina o universo literário a uma função<br />

de comunicação. A exploração das possibilidades que a carta, enquanto registro da<br />

intimidade, apresenta é ainda mais significativa por se tratar de um gênero,<br />

preferencialmente, cultivado por mulheres, numa obra que continua a ser vista como<br />

manifesto feminista.<br />

Partindo de Lettres portugaises, Novas cartas afasta-se do modelo, mantendo,<br />

embora, o escopo epistolar, porquanto integra cartas (aquelas trocadas entre as<br />

autoras, assim como cartas ficcionais atribuídas a personagens, sejam elas Mariana,<br />

Maria, Ana Maria, mas também o cavaleiro de Chamily ou familiares da freira) e<br />

1 Doutoranda do PPGL da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sob orientação da Professora Doutora<br />

Nadilza Barros Moreira.


Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura<br />

São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128<br />

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bilhetes. Acima de tudo, o texto inaugural, sintomaticamente uma carta, parece<br />

subordinar todo o universo literário a essa técnica narrativa: “Pois que toda a<br />

literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura<br />

paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos.” (Barreno, [1972] 2010, p. 3)<br />

A opção por essa tipologia sublinha a relação com o texto-fonte, mas<br />

ultrapassa-o, pela intencionalidade de re-inscrição na época contemporânea, como<br />

que a sugerir que as Novas servem, não já à expansão amorosa, antes à denúncia e ao<br />

sarcasmo: “De Mariana tiramos o mote, de nós mesmas o motivo, o mosto, a métrica<br />

dos dias (...) fazendo dela uma pedra a fim de a atirarmos aos outros e a nós<br />

próprias.” (Barreno, 2010, p. 67) Ora, a subversão que operam Novas cartas<br />

portuguesas, lançando mão do modo de representação de certa literatura apodada de<br />

sentimental, mas unindo a esfera do privado à do público, é, por si só, inovadora.<br />

Num momento em que se vivia em Portugal a primavera marcelista, que dava<br />

continuidade às políticas repressivas de Salazar, a obra das Três Marias, nome pelo<br />

qual ficariam conhecidas as autoras, assume um tom de enfrentamento e como que<br />

paroxiza o estado de clausura que se faz sentir no país: “Porque o objeto da paixão é<br />

mesmo pretexto, pretexto para nele ou através dele, definirmos, e em que sentido, o<br />

nosso diálogo com o resto.” (Barreno, [1972] 2010)<br />

Se em Lettres portugaises o amor incondicional da freira pelo objeto amado se<br />

converte em paixão pelo sentimento amoroso, em Novas cartas esse excesso será o<br />

pretexto para o “diálogo com o resto”, tendo-se já afirmado na Carta I que a


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“literatura é uma longa carta”, aberta aos possíveis leitores, cúmplices destas cartas<br />

que irmanam autoras e leitores: “A menos que nos tenhamos amado e odiado mais<br />

que o dito e feito, muito mais, cada uma à espera das outras, não é, manas – Não é,<br />

manos escritores e ledores?” (Barreno, [1972] 2010, p. 295)<br />

O resgate de Novas cartas portuguesas, neste ano de 2912 em que se<br />

comemoram os quarenta anos da primeira edição, situa-se num contexto de<br />

abordagem crítica revisionista. Por isso, interessa, ainda, perceber como, para além<br />

de emblema do feminismo em Portugal, Novas cartas inauguraram uma prática de<br />

revisão do cânone nacional, ao (re)lerem um texto seiscentista, o que,<br />

simbolicamente, parece sugerir esse roubo do fogo prometeico, o “roubo da palavra”,<br />

nos termos de Simone de Beauvoir. As possibilidades de revisão do cânone literário<br />

de tradição masculina permitem a emergência e visibilidade de uma linhagem de<br />

autoria feminina em Portugal, pois, de acordo com Ana Paula Ferreira, “ainda se<br />

verifica a necessidade de abordar um dos pontos mais importantes das agendas<br />

críticas feministas dos finais dos anos oitenta: (...) a recuperação das escritoras<br />

esquecidas e uma releitura do cânone literário português.» (Ferreira, 1998: 3)<br />

Interessa, também, refletir acerca das implicações da opção por manter, no<br />

título e na estruturação da obra, o formato epistolar, gênero com tradição em<br />

Portugal. Ao contrário das cartas escritas por homens, frequentemente de caráter<br />

oficial ou veiculando ensinamentos (pense -se em cartas famosas, como Epistola ad


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pisones ou Carta a um jovem poeta), estas são cartas que têm como matriz as cartas de<br />

amor ou, pelo menos, insistem na referência à paixão, mesmo se se trata da paixão da<br />

escrita:<br />

Não fatigada da escrita, que a vou retomando agora no que tem de talha<br />

solitária como há muito o não fazia e talvez o devendo a isto que nos<br />

impusemos ou nos foi imposto – este exercício da paixão de escrever e da<br />

compaixão a três por vidas nossas e outras que bem desejaríamos mais soltas<br />

e de alegrias (...). (Barreno, [1972] 2010: 292)<br />

Novas cartas enfocam a centralidade da escrita, ampliando possibilidades de<br />

leitura e de interpretação, até pelo caráter, dir-se-ia, experimental de alguns textos.<br />

Curiosamente, apesar das polêmicas que opõem marianistas e seus detratores, e se as<br />

mais recentes investigações parecem ter retirado, definitivamente, do cânone literário<br />

português as cartas seiscentistas, as Novas cartas como que as re-inserem no sistema<br />

das letras portuguesas. Não obstante, resistem a uma visão canônica da literatura.<br />

Sóror Mariana, essa entrou no cânone da literatura universal amorosa e continua a<br />

suscitar recriações.<br />

A evocação de elementos extra-referenciais, como os cafés onde as autoras se<br />

encontrariam para porem em comum as cartas que, individualmente, escreveram dá<br />

pistas de leitura para a re-contextualização da história de Mariana que percorre<br />

gerações de mulheres até a atualidade, vítimas de repressão e alienadas no próprio<br />

corpo.<br />

A estratégia epistolar confere maior flexibilidade a uma obra que, dada a sua<br />

natureza heterogênea, “desordenada”, permite multiplicar as narrativas e os<br />

narradores, alcançando, assim, um “interlocutor invisível” e universal. “Cartas” que


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repercutem a nível social, funcionando como despertadores de consciência, como<br />

cartas-manifesto, portadoras de uma dimensão pragmática:<br />

(…) a revolta da mulher é a que leva à convulsão em todos os extractos<br />

sociais; nada fica de pé, nem relações de classe, nem de grupo, nem<br />

individuais, toda a repressão terá de ser desenraizada, e a primeira<br />

repressão, aquela em que veio assentar toda a história do género humano,<br />

criando o modelo e os mitos de outras repressões, é a do homem contra a<br />

mulher. (Barreno, [1972] 2010: 198)<br />

Segundo Maria de Fátima Valverde, em “A carta: um género ficcional ou<br />

funcional?”, “a carta contém uma possibilidade intrínseca de provocar modificações<br />

no destinatário, o poder de influenciar ideias, atitudes, de enriquecer e permitir a<br />

reflexão, mediadora de ficcionalidades e de funcionalidades.” (Valverde, 2008, p. 11)<br />

No entanto, face a uma realidade de violência doméstica contra as mulheres,<br />

obscurantismo político, pobreza, analfabetismo, aborto clandestino, desigualdades<br />

sociais, discriminação entre condições de trabalho para homens e mulheres, as<br />

missivistas questionam: “Irmãs: Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem<br />

as palavras?” (Barreno, [1972] 2010: 198) Marcado formalmente como carta, o trecho<br />

contém palavras de ordem e, à semelhança do que pretendia a estética neo-realista,<br />

apela à inscrição da ordem literária na ordem social. Talvez por isso, a carta seja o<br />

gênero que mais convém às Três Marias, já que supõe um interlocutor, um potencial<br />

aliado. Estas palavras de mulher querem extravasar. Basta dizer que Novas cartas<br />

portuguesas foi o único livro censurado por ter sido escrito por mulheres.<br />

Em “Segunda carta última”, pode-se ler:<br />

Pois do princípio não gostei. E muito me apeteceu emendar, omitir, elaborar,<br />

retirar os preciosismos do dito e da forma. Depois contive-me. O que é a<br />

literatura? E o que é esta experiência de três? Talvez nada mais que o


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espremer de um furúnculo. Talvez mais nada do que o dizermos em alta voz<br />

- coragem? necessidade? – os mal-estares, os ataques, as recusas e os medos.<br />

Quem escreve omite e elabora, segundo as regras do tempo e do lugar,<br />

alinda o auto-retrato. Aqui e agora, por exemplo, podem aparecer certas<br />

liberdades de linguagem, mas outras não, os maneirismos aceites são uns<br />

quantos, e ser reaccionários é a desclassificação sem recurso; somos todos<br />

escritores puros e limpos, ai, e de tão bons sentimentos. Por isso não<br />

emendei, não omiti, etc. Que saia a nossa dialéctica de mulheres-nascidas-ecriadas-na-burguesia-citadina-desta-sociedade-cujos-valores-bem-sabemose-simpatizantes-com-todas-as-classes-e-grupos-explorados-com-agudosentimento-de-pertença-ao-grupo-explorado-”mulheres”,<br />

que esta nossa<br />

dialéctica retorcida se desenrole entre nós e os outros, e não só intra-eus ou<br />

intra-nós. (Barreno, [1972] 2010: 288-289)<br />

Quer dizer, as autoras, nesta “assembléia de três” que compõem, como que se<br />

propuseram desclausurar a própria escrita e desclausurarem-se também enquanto<br />

escritoras, mostrarem-se como mulheres, como cidadãs, pois o nome do autor não<br />

assinala o indivíduo mas o escritor: “Considerai a cláusula proposta, a desclausura, a<br />

exposição de meninas na roda, paridas a esconsas de matriz de três.” (Barreno, [1972]<br />

2010, p. 6) Esse procedimento que a arte tem para se pensar nos seus processos,<br />

meios e fins, chamado de metalinguagem aponta para o exercício da escrita e como<br />

que denuncia o autor, sua mitologia. Como assinala Philippe Lejeune, em Pacto<br />

autobiográfico: de Rousseau à internet:<br />

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrita, a<br />

um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O<br />

autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente<br />

responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a<br />

pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa<br />

capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir do que<br />

ele produz.” (Lejeune, 2008, p. 23)<br />

Novas cartas portuguesas, ao fazer irromper no discurso a voz das autoras,<br />

frequentemente na primeira pessoa do plural – “nós” -, resgata o autor e o leitor,<br />

instância que é, constantemente, chamada a tomar parte no jogo. Prevendo as<br />

consequências de não assinarem os textos, põem o pé na realidade, pois têm<br />

consciência de quebrarem o pacto de ficcionalidade que a assinatura do autor implica


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- “Oh quanta problemática prevejo, manas, existirmos três numa só causa e nem bem<br />

lhe sabemos disto a causa de nada (...).” (Barreno, 2010, p. 7 ) No entanto, se “é no<br />

nome próprio que pessoa e discurso se articulam” (Lejeune, 2008, p. 22), então, ainda<br />

que não se proponha como autobiografia, o tom confessional e intimista que o gênero<br />

carta propicia estabelece um “pacto de verdade”. Aliás, por causa do conteúdo<br />

“pornográfico” da obra, as autoras foram submetidas a interrogatório, com o objetivo<br />

de se determinar qual delas teria sido responsável pelos lances mais despudorados.<br />

É, portanto, um jogo de esconde-esconde que textos em que o pacto biográfico está<br />

jogo colocam: justamente a fronteira entre realidade e ficção, numa obra em que<br />

personagens ficcionais apontam para a existência quotidiana de pessoas que são<br />

vítimas de relações opressoras e de injustiças sociais de vária ordem, em que todas as<br />

personagens podem encontrar seus duplos reais. O potencial subversivo de Novas<br />

cartas reside nessa possibilidade de correspondência com a realidade. Nem no plano<br />

da enunciação as autoras mencionam seus nomes nas cartas, certamente por causa da<br />

censura, mas também não se escondem atrás do anonimato nem atrás de<br />

pseudônimos. Aliás, vários textos poéticos têm o nome das autoras no título: Isabel,<br />

Fátima, Teresa.<br />

As autoras eram conhecidas na cena editorial portuguesa, tendo Maria Velho<br />

da Costa já publicado Maina Mendes, uma obra que é, ainda hoje, referência na ficção<br />

portuguesa, Maria Teresa Horta, Minha senhora de mim, fazendo, juntamente com<br />

Luiza Neto-Jorge, Gastão Cruz, Casimiro de Brito e Fiama Hasse Pais Brandão, parte


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do grupo Poesia 61, e Maria Isabel Barreno, Os outros legítimos superiores, todas obras<br />

convocadas no subtítulo de Novas cartas portuguesas, de forma jocosa mas também<br />

provocadora, justamente dando o tom da obra, que desafia a ordem estabelecida e se<br />

assume como discurso feminino e feminista : “De como Maina Mendes pôs ambas as<br />

mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores”.<br />

Atendendo à natureza fragmentária de uma obra que se propõe como<br />

“empresa grave” - a “revolta da mulher (...) que leva à convulsã o em todos os<br />

extractos sociais” (Barreno, 2010, p. 198) -, empreendida por três escritoras que se<br />

juntam para escrever e assinar uma obra cuja autoria dos textos é assumida pelas<br />

três, impõe-se uma leitura mais abrangente que considere o propósito que preside à<br />

elaboração de Novas cartas portuguesas. Neste sentido, a multiplicação dos focos<br />

narrativos é uma estratégia recorrente que estrutura a própria obra, como se a<br />

instância de leitura fosse permanentemente convocada a dar sentido, compor o painel<br />

que a obra, globalmente considerada, configura: “Deste modo vamos construindo<br />

um azulejo: painel. Carta por carta ou palavra escrita, volátil, entregue. A nós<br />

principalmente, depois a eles, a quem nos quiser ler, mesmo com raiva.” (Barreno,<br />

2010, p. 21) Maria de Lourdes Pintassilgo, autora dos dois prefácios de Novas cartas,<br />

refere-se à obra como um “’fresco’ da condição das mulheres, dos seus destinos, das<br />

suas limitações, das suas ânsias”. (Pintassilgo, 2010, XXXIV)<br />

Em Novas cartas portuguesas, os elementos biográficos e os ficcionais convivem,<br />

sem que pareça existir uma preocupação de delimitação de fronteiras ou de


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esclarecimentos prévios, já que a leitura que se propõe é justamente a de trazer para a<br />

realidade presente, a do momento histórico vivenciado pelas autoras, questões que<br />

ultrapassam a mera ficcionalidade, como que apelando a que se reative a dimensão<br />

militante da literatura. Existe um horizonte de expectativas e de referências<br />

históricas, sociais e culturais comum que faz com que o leitor compreenda as<br />

mudanças de registros, sem que haja necessidade de explicitação das fronteiras entre<br />

realidade e ficção: nem seria necessário, já que literatura e vida tecem-se da mesma<br />

matéria.<br />

Conforme Maria de Fátima Valverde, “a perda angular de todo o edifício<br />

epistolar é a comunicação indirecta entre dois elementos, o emissor, sujeito da<br />

enunciação e o receptor, sujeito de recepção, pressupondo uma mensagem, ou seja, a<br />

carta propriamente dita.” (Valverde, 2001, p. 3) Se as autoras entre si trocam cartas<br />

(nove: três de cada, portanto), sendo todas emissoras e receptoras das cartas,<br />

sabemos que, pela intencionalidade que o projeto de “desclausura” a que se lançam<br />

envolve, o receptor final é o leitor da obra a ser publicada, a sociedade patriarcal<br />

portuguesa na qual queriam intervir, para modificarem condutas, mentalidades.<br />

Andrée Crabée Rocha, em A epistolografia em Portugal, sintetiza claramente a função<br />

da literatura que Novas cartas anunciaram desde o início:<br />

A carta é um meio de comunicar por escrito com o semelhante.<br />

Compartilhado por todos os homens, quer sejam ou não escritores,<br />

corresponde a uma necessidade profunda do ser humano. Communicare não<br />

implica apenas uma intenção noticiosa: significa ainda “pôr em comum”,<br />

“comungar”. Lição de fraternidade, em que as palavras substituem actos ou<br />

gestos, vale no plano afectivo como no plano espiritual, e participa,<br />

embrionária ou pujantemente, do mecanismo íntimo da literatura – dádiva<br />

generosa e apelo desesperado, ao mesmo tempo (ROCHA, 1965, p. 13).


Referências bibliográficas:<br />

Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura<br />

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ALCOFORADO, Mariana. Cartas Portuguesas. Ed. Bilingue. (trad. de Eugénio de<br />

Andrade). Lisboa: Assírio e Alvim, 2004 [1669].<br />

BARRENO, Maria Isabel, HORTA, Maria Teresa, COSTA, Maria Velho da. Novas<br />

cartas portuguesas (org. de Ana Luísa Amaral). ed. anotada. Alfragide: D. Quixote,<br />

2010.<br />

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. (org. de Jovita Maria<br />

Gerheim Noronha e trad. de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra<br />

Guedes). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.<br />

FERREIRA, Vergílio. Carta ao futuro. 4ª edição. Lisboa: Bertrand Editora, 1985, p. 61.<br />

PINTASILGO, Maria de Lurdes. Pré-Prefácio; Prefácio. In: BARRENO et alii. Novas<br />

cartas portuguesas. Alfragide: Dom Quixote, 2010.<br />

ROCHA, Andrée Crabbé. A epistolografia em Portugal. Coimbra: Livraria Almedina,<br />

1965, p. 13.<br />

VALVERDE, Maria de Fátima. A carta, um gênero ficcional ou funcional?<br />

CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE<br />

LITERATURA COMPARADA, 6, 2001, Évora. Anais eletrônicos. Évora:<br />

Universidade de Évora, maio. 2001. Disponível em:<br />

http://www.eventos.uevora.pt/comparada. Acesso em 20 de julho de 2010.

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