Revista nº 39 - MULTIRIO
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A impressionante história de Camila, que mostra como o saber pode vencer o preconceito e o medo<br />
TEXTO<br />
LENY CORREA DATRINO E<br />
MARIA ALICE OLIVEIRA DA<br />
SILVA, DA SME/DGED<br />
ILUSTRAÇÕES<br />
ESCULTURAS DE<br />
GUSTAVO CADAR<br />
FOTOGRAFADAS POR<br />
ALBERTO JACOB FILHO<br />
Camila tinha 12 anos e já havia passado pelo<br />
processo de alfabetização em diferentes escolas<br />
e grupamentos. No meio do ano, foi<br />
transferida para uma nova escola e matriculada<br />
na turma de progressão.<br />
Tive conhecimento do caso de Camila ao visitar<br />
sua escola e conversar com a professora da<br />
turma, que me pediu ajuda. Na conversa, a professora<br />
informou-me que desde os primeiros<br />
dias de aula percebia que a menina era diferente<br />
das outras crianças e não acompanhava o grupo.<br />
Sua participação nas atividades era insatisfatória.<br />
Era muito tímida, quase não se comunicava, e<br />
os colegas não queriam sentar-se perto dela,<br />
rejeitando-a. Por isso, a professora solicitoume<br />
apoio, acreditando necessário encaminhála<br />
a um atendimento especial. Comentou ainda<br />
que, pelo que apurara de professores da escola<br />
anterior, Camila nada havia aprendido. A<br />
preocupação da professora era grande, pois<br />
sua turma estava caminhando bem e ela não sabia<br />
o que fazer para atender a uma aluna especial.<br />
Quando entrei na sala de Camila, a professora<br />
indicou-me a aluna, falando da sua preocupação<br />
quanto ao tempo que a menina havia perdido em<br />
todos aqueles anos de escolaridade, passando<br />
por várias unidades escolares sem ter recebido<br />
o encaminhamento adequado, já que para<br />
ela parecia clara a necessidade de Camila ser<br />
indicada para a classe especial de retardo mental.<br />
De família pobre, a menina ia à escola levando<br />
seus objetos pessoais em uma sacola plástica.<br />
Era a última de uma série de irmãos que, bem<br />
mais velhos, trabalhavam para o sustento da<br />
família e quase não podiam dar-lhe atenção. Ela<br />
vivia praticamente sozinha, pois não tinha mãe.<br />
<strong>nº</strong> <strong>39</strong>/2006 caleidoscópio Um olhar transformador<br />
Camila tinha nas mãos uma toalha rasgada que<br />
servia para enxugar a baba que, constantemente,<br />
teimava em escorrer-lhe do canto da boca. Seus<br />
dentes, desordenados uns sobre os outros, pre-<br />
judicavam-lhe muito a aparência. Ela parecia tentar<br />
fechar a boca, unir os maxilares, mas sem sucesso.<br />
Olhei para Camila sentada ao fundo da sala, sozinha<br />
e sem proposta alguma de trabalho, enquanto<br />
os outros alunos já preenchiam a data no caderno<br />
e desenhavam a figura relativa ao tempo.<br />
Camila não tinha caderno sobre a mesa. Sentei-me<br />
próximo a ela e pude sentir um cheiro desagradável,<br />
originado pelo acúmulo de baba que<br />
ficava em suas mãos e roupa. A menina pareceu<br />
se encolher ao meu olhar. Apresentei-me, dizendo<br />
que estava ali para conhecê-la. Camila me olhou<br />
parecendo não acreditar no que eu dizia. Deu um<br />
sorriso tímido e voltou a baixar a cabeça.<br />
Iniciei uma conversa com a menina, perguntandolhe<br />
seu nome, sua idade, do que gostava e outras<br />
coisas simples sobre o seu dia-a-dia. Camila<br />
respondia com muita dificuldade. Sua fala arrastada<br />
dificultava a compreensão do que tentava<br />
dizer. Parecia fazer um grande esforço para falar,<br />
emitindo um som quase inaudível. Tentava articular<br />
as palavras, para ser compreendida, mas<br />
com extremo sacrifício. Confesso que muita coisa<br />
dita por ela não consegui entender. Além da timidez,<br />
a criança parecia ter realmente uma grande<br />
dificuldade e medo de expressar-se oralmente.<br />
Enquanto buscava uma melhor estratégia para<br />
me relacionar com Camila, a professora continuava<br />
seu trabalho na sala de aula. Sua proposta<br />
para os alunos era que escrevessem<br />
palavras que tivessem relação com a figura colada<br />
ao quadro. Perguntei a Camila se ela poderia<br />
fazê-lo. Ela balançou a cabeça negativamente.<br />
Comecei então a nomear palavras que se relacionassem<br />
com a figura e, ao mesmo tempo, a<br />
dizer outras que não tivessem qualquer relação,<br />
pedindo à menina que, toda vez que eu dissesse<br />
algo que ela considerasse coerente com o<br />
desenho aposto ao quadro, ela levantasse a mão.