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O cancioneiro popular brasileiro deslocando ... - Ippur - UFRJ

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WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>deslocando</strong><br />

paradigmas de modernidade, urbanidade,<br />

ruralidade e tradição <strong>deslocando</strong> o <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> OU A<br />

desmetrocampolismatacidade de alegorias<br />

autorOuvintes do <strong>cancioneiro</strong> OU A almAtéria<br />

musical de desurbaRuralidades que a canção<br />

movimenta OU o Jogo/devir entre o papel<br />

falante, o rádio, nós e Isaura.<br />

Rio de Janeiro<br />

2009


WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>deslocando</strong> paradigmas de<br />

modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição <strong>deslocando</strong> o<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> OU A<br />

desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do<br />

<strong>cancioneiro</strong> OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que<br />

a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o<br />

rádio, nós e Isaura.<br />

Tese apresentada ao Instituto de Pesquisa e<br />

Planejamento Urbano e Regional da Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à<br />

obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano<br />

e Regional.<br />

Orientação:<br />

Frederico Guilherme Bandeira de Araujo<br />

Rio de Janeiro<br />

2009<br />

2


WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>deslocando</strong> paradigmas de<br />

modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição <strong>deslocando</strong> o<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> OU A<br />

desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do<br />

<strong>cancioneiro</strong> OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que<br />

a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o<br />

rádio, nós e Isaura.<br />

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e<br />

Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – <strong>UFRJ</strong>, como parte dos<br />

requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e<br />

Regional.<br />

Aprovada por:<br />

...............................................................................................................................<br />

Frederico Guilherme Bandeira de Araujo (IPPUR/<strong>UFRJ</strong>/Orientador)<br />

Doutor em Engenharia de Produção, pela <strong>UFRJ</strong><br />

...............................................................................................................................<br />

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/<strong>UFRJ</strong>)<br />

Doutora em Ciências Humanas, pela USP<br />

...............................................................................................................................<br />

Maria Angélica da Silva (UFAL)<br />

Doutora em História, pela UFF<br />

...............................................................................................................................<br />

Luís Antônio Batista (UFF)<br />

Doutor em Psicologia, pela UFF<br />

3


Resumo:<br />

Trata-se de um percurso, não se trata de um circuito, apesar de também operarmos por voltas,<br />

produzindo refrões, ritornelos. Trata-se de um jogo, não se trata de análise/interpretação do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong>, apesar de produzirmos uma miríade de comentários que<br />

especificam relações político-sociais entre canções e contextos historicamente propostos.<br />

Trata-se de ouvir/falar por alegorias do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong>, não se trata de um<br />

compêndio de autores e atores, apesar deles estarem em grande número presentes em citações<br />

e contextos. Trata-se de uma tentativa de re-qualificar a instância política, as possibilidades de<br />

participação na palavra e da palavra através da desconstrução de matrizes que prevalecem<br />

como paradigmas de percepção de sujeitos, ações e objetos. Não se trata de uma re-edição da<br />

dialética, apesar de não nos propormos à pretensão de desqualificar as instâncias do<br />

pensamento histórico-materialista, mas deslocá-las, até onde elas quase já não são, mas, ainda<br />

estão presentes, fio de inspiração, palavra que não se quer subverter, sonho franciscano em<br />

que homens e bichos na condição da delicadeza e não da cordialidade prometem não mais se<br />

destratar.<br />

4


Abstract:<br />

This is a journey, not a circuit, while also operating by turns, producing refrain, “ritornellos”.<br />

This is a game, it is not an analysis / interpretation of Brazilian <strong>popular</strong> songs, despite<br />

producing a myriad of comments that specify relationships between socio-political songs and<br />

historical contexts proposed. It regards listening / speaking allegories of <strong>popular</strong> Brazilian<br />

songs, this is not a compendium of authors and actors, despite their being in many contexts<br />

and in citations. This is an attempt to re-qualify a political body, the possibilities of<br />

participation in the word and the word through the deconstruction of matrices as prevailing<br />

paradigms of perception of subjects, actions and objects. This is not a re-edition of the<br />

dialectic, though not in the intention of proposing to disqualify the bodies of the historicalmaterialist<br />

thought, but move them to where they almost “are not”, but are still present, stringinspired<br />

word that does not want to subvert, Franciscan dream in which men and animals on<br />

the condition of delicacy promise never to mistreat each other.<br />

5


Sumário:<br />

INTRODUÇÃO_________________________________________________7<br />

LADO A_______________________________________________________10<br />

INTERMEZZO_________________________________________________77<br />

LADO B_______________________________________________________84<br />

CONFETES E CONFLITOS DE UMA BELA ÉPOCA______________200<br />

A INVENÇÃO E O CANSAÇO DO JOGO________________________219<br />

A SAIDEIRA E A CONTA______________________________________224<br />

RESSACA____________________________________________________226<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_____________________________231<br />

6


Introdução:<br />

Trata-se menos de uma introdução do que de um tutorial que especifica certas regras de como<br />

melhor aproveitar o seu jogo. Sim, trata-se de um jogo que é contido em/ao conter um<br />

percurso rizomático por entre canções, papéis, sons, falas e subjéteis 1 – nem, nem e, e, sujeito,<br />

objeto, alegoria, suporte. Conceitos e não conceitos emergem e são abandonados. Outras<br />

vezes emergem, mas pacientemente aguardam para serem tratados/analisados no momento em<br />

que eu, nós, subjétil venham a considerar mais oportuno. Ou emergem já analisados e<br />

desconstruídos, simultaneamente ao andar do papel e do som, leitura e escuta. Por isso,<br />

orienta-se o jogador a não criar sérias expectativas a respeito do cumprimento de certas<br />

formalidades acadêmicas e didáticas (já me desculpando com os acadêmicos didatas) que<br />

dizem respeito ao circuito, apresentação, desenvolvimento e conclusão, nem no que configura<br />

o corpus como um “não-todo”, nem no que diz respeito às categorias, idéias e formas que<br />

comparecem ao jogo. Inclusive, há um descumprimento do que é dito aqui. Nem mesmo a<br />

forma anacoluta, ruptura como forma, como padrão, nem mesmo ela é respeitada, mas, sim,<br />

rearticulada, podendo até mesmo operar/dizer pela/na linearidade histórica e pedagógica, sem<br />

o mínimo respeito por ambas, podendo a qualquer momento sofrer um golpe, uma traição do<br />

subjétil e estancar o movimento. Porém, apelando à paciência do jogador, especifica-se que<br />

estancar ou desenvolver linearmente, faz parte do mesmo movimento. O mesmo movimento<br />

que articula e rompe. Articular/romper não se especificam como opostos, mas<br />

complementares. Outra dica seria parar a leitura/escuta/escrita/fala nos momentos de ruptura<br />

para imersão no corpus, a exemplo do que o cineasta Wenders experimentava na infância<br />

assistindo nos cinemas da Berlin do pós-guerra os bangue-bangues de John Ford. Quando o<br />

plano abria, a trilha sonora ganhava força e o Mojave estendia-se soberano, como<br />

imagem/som livre de atores, diálogos, perseguições e tiros, os olhos do pequeno Wenders<br />

sentiam-se convidados a entrar na tela e o pensamento a conspirar no respiro da narrativa<br />

clássica perguntando-se, que deserto? Que Mojave? Ou talvez, se possa descumprir essa dica<br />

e interromper o fluxo, criando seu próprio respiro que se impõe não como concessão à<br />

1 Faremos menção e uso ao indecidível derridiano no decorrer desse corpus. Por hora vale destacar<br />

que o subjétil funciona como efeito de brizura (outro indecidível) que articula e separa sujeito de<br />

objeto em um suporte para além dos termos dialéticos, por isso mesmo, não se trata de um simples<br />

suporte. Mas, de um papel que fala e interfere no texto e que pode tomar o lugar do sujeito ou do<br />

objeto, mas, não é nem um nem outro. Considera-se ainda a possibilidade do subjétil trair, faltar à<br />

promessa, renegar o projeto, subtrair-se ao controle e revelar outra coisa, uma “verdade traída” que<br />

ele traduz e arrasta para a luz do dia, justo quando se tentava escondê-la (DERRIDA; BERGSTEIN,<br />

1998, pp.23,24).<br />

7


narrativa, mas como reação ao texto – traição da traição do subjétil. E digo dessas<br />

possibilidades porque se constata a presença de um labirinto que, não vamos entrar de fato,<br />

mas, deixá-lo operar, como tal, ao redor e entre e adiante. Também não se tratam de brumas<br />

que ao se dissiparem nos revelam as paredes e percursos. Paredes, corredores e passagens se<br />

formam simultaneamente à leitura/escrita/fala/escuta do jogo, como ações que reinventam o<br />

jogo que as erguem à medida que vai sendo jogado. Por fim, não se trata de uma dialética<br />

entre pólos, mas da desconstrução da lógica, do logos, que os permitiu especificar-se<br />

enquanto tais 2 . Não se trata de um jogo de anulação estético/ético, moderno/pós-moderno,<br />

dominador/dominado, mas da rearticulação dessas palavras, termos, conceitos, lógicas sob<br />

outra condição que apela à participação, à democratização do uso do pensamento expresso<br />

como forma, como jogo político, atento às dominações que palavras e nomes operam, mesmo<br />

na melhor das intenções, muitas vezes ao preterir o labirinto à linha reta, intencionalmente ou<br />

não. O jogo, em termos gerais, diria então respeito a operar revoluções, para muito além do<br />

materialismo-histórico, no entanto e, à primeira vista, paradoxalmente, sem desqualificá-lo<br />

como prática e método de percepção e transformação das condições materiais que se nos<br />

apresentam aqui e agora como origem inventada. Por outro lado, o papel nos desafiaria<br />

perguntando se constatar essas condições e o exercício sobre elas já seria suficiente. Entre o<br />

Lado A e o Lado B apresenta-se em termos gerais um percurso que aos poucos parece aceitar<br />

a subtituição, assim como o amálgama, do método de inspiração bakhtiniana aos efeitos de<br />

desconstrução que Deleuze e Derrida propõem articulando questões conceituais e<br />

fenomenológicas, a ponto de re-qualificar inclusive as diferenças conceito/fenômeno ou<br />

teoria/prática, ou a oposição substituir/plasmar, entre muitas outras diferenças e oposições que<br />

se apresentarão ao longo do jogo. Rizoma ou khôra, no lugar de contexto, especificam-se<br />

como formas de operação de espaço/tempo, propondo-se como movimento e efeito de<br />

deslocamento entre as categorias de sujeito, identidade, fronteira, modernidade e tradição.<br />

Entre o Lado A e o Lado B não se passa exatamente um abandono, substituição de um método<br />

por outro, mas um efeito de contaminação do mesmo método que se repercute como um<br />

movimento do corpus, do pensamento que eu que já seríamos ao menos dois se não três<br />

pretendíamos e fomos re-pretendendo efetuar. Esse movimento não vai de um ponto A para<br />

um ponto B, mas, se expressa na forma, ou não-forma, de um feixe, rizoma, que possibilita<br />

entrar inclusive pelo Lado B, se a curiosidade for maior que a curiosidade do gato.<br />

2 Por isso o neologismo “desurbaRuralidade” do título não se acomoda ao termo Rururbano de<br />

Gilberto Freyre, nem se especifica no debate entre Brasil urbano e agrícola como proposto por Milton<br />

Santos.<br />

8


Interrompem-se as explicações. Joguemo-lo ou não, afinal, pode-se sempre desistir, avançar,<br />

retrucar, estancar, retroceder, pular partes, inclusive a partir daqui.<br />

9


LADO A<br />

Alguns problemas se nos apresentariam de cara. Problemas que possivelmente não<br />

resultariam em solução ao término desta apreensão. Mas, nos consideraremos parcialmente<br />

satisfeitos em identificá-los como questões metodológicas que venham a contribuir aos<br />

estudos sociais relacionados à música no campo específico da etnomusicologia<br />

contemporânea 3 , com foco nas interpretações de discursos expressos na interseção dos<br />

campos da política, no sentido amplo, e do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> como foco investigativo.<br />

O primeiro problema, de ordem mais objetiva, diria respeito a como trabalhar, expor e<br />

conceituar o objeto de investigação empírica, o dialogismo expresso nos discursos do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong>, em seu caráter prosódico, ou para além dele, contemplando<br />

manifestações sociais relativas ao ethos e ao contexto da canção. Isto é, a canção deveria ser<br />

analisada discursivamente considerando, não só os elementos musicais que a compõem, o que<br />

diz respeito à prosódia, relação música e letra, mas também seu ethos: os gestos, os<br />

movimentos dos corpos, a performance e os ritos que se conjugam com e na canção,<br />

constituindo um sobre-corpo que não se encerra nos limites prosódicos, nem no registro ou<br />

leitura da música em si.<br />

10<br />

Caracterizada pela criação espontânea, pela potência de todos os sons na<br />

tensão de um fluxo constantemente renovado, a música seria destinada a ser<br />

sentida – vivida na sua experiência inefável – e não a ser pensada ou<br />

analisada. Seu sentido residiria menos nos próprios sons que nos estados<br />

afetivos suscitados pela audição (Queiroz, p. 25, 2006).<br />

Sobre essa questão, podemos adiantar como premissa de leitura e atuação no jogo uma<br />

sugestão importante que talvez devesse estar na introdução, no tutorial, mas, como o<br />

problema foi destacado agora, entendemos que a sugestão deve responder a essa questão. A<br />

dica é: o jogo deve ser operado também pela escuta. Apenas ler os versos das canções não<br />

permitirá ordenar percepções para então fazê-las mover. Por isso as canções foram<br />

disponibilizadas para escuta e desde já apelamos para que sejam ouvidas ou simultaneamente<br />

3 A etnomusicologia no Brasil, como discurso que se inscreve no campo acadêmico da música<br />

legitimando-se com o poder de dizer o que é a música folclórica e <strong>popular</strong>, foi revisada no decorrer do<br />

século XX, obedecendo a um percurso que se desdobra desde o naturalismo determinista de olhar<br />

eurocentrado do inicio do século, deixando-se contaminar pelas propostas do modernismo de 20,<br />

pela sociologia da geração de 30, avançando ainda por uma leitura com base no materialismo<br />

histórico e na percepção de classes sociais. O que denomino de etnomusicologia contemporânea<br />

seria algo que procura romper o axioma que estabelece a percepção do objeto de investigação<br />

empírica como sendo a expressão do “outro” completamente diferente de mim. Um “outro”, cujo ethos<br />

em nenhuma medida se aproxima do ethos daquele que pergunta. Para essa etnomusicologia<br />

contemporânea a idéia de participação entre discursos da academia e das comunidades, ethos,<br />

culturas, atenta às pré-construções hierárquicas que um lado ou outro sempre podem incorrer, parece<br />

nortear as pesquisas no campo (Queiroz, Tugny, 2006).


a leitura ou na forma que se achar conveniente. Aliás, essa decisão já especifica uma forma de<br />

atuação no jogo. A partir do Lado B, retornaremos de forma mais detalhada a essa questão,<br />

por hora, deixamos esse aviso, sugestão, indicação de como proceder/operar o jogo.<br />

Um segundo problema apontaria para qual recorte analítico discursivo deveria ser<br />

considerado, visto que, abarcar o corpo discursivo de todo o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong><br />

que, sob minha interpretação, teria por tema questões relativas à urbanidade, modernidade,<br />

ruralidade e tradição operando também sobre o signo da Identidade Nacional, entre o início e<br />

meado do século XX, diria respeito a um universo imensurável e, por isso, fora de questão.<br />

Por outro lado eleger os discursos que mais se destacaram a partir dos meios hegemônicos de<br />

divulgação ou de comunicação de massa equivaleria a ignorar os discursos que<br />

correspondessem aos micro-poderes, às micro-físicas exercendo forças e produzindo efeitos<br />

subversivos a certa ordem hegemônica de caráter comunicativo, difusor (imprensa, rádio,<br />

televisão), seja do próprio campo da musica <strong>popular</strong>, seja pertencente ao contexto (de modo<br />

mais geral, o corpus discursivo localizado nos campos da política, imprensa, academia, lei e<br />

polícia que se transforma no período especificado ao mesmo tempo em que interfere no<br />

dialogismo efetivo relativo aos discursos dos sujeitos discursivos das canções).<br />

Terceiro problema: considerando, metodologicamente, que os sujeitos discursivos em<br />

construção e deslizamento 4 não se enquadram num esquema semiótico, fixo, estático, seria<br />

necessário propor que ao mesmo tempo em que se aplica o método de inspiração bakhtiniana<br />

de abordagem das relações dialógicas entre os sujeitos discursivos, já se faria necessário ir<br />

desconstruindo, rasurando, esse mesmo método, considerando que os discursos deslizam<br />

significados e sentidos sob a ótica desconstrutivista derridiana.<br />

Tomemos como certas premissas metodológicas, o modo de inscrever, recortar e interpretar o<br />

<strong>cancioneiro</strong> no discurso-tese. (1) Primeira premissa: não especificamos canção de nenhuma<br />

região ou cidade do Brasil, tendo em vista que o <strong>cancioneiro</strong> recortado é aquele que lida com<br />

categorias de âmbito nacional, que rasuram o signo Identidade Nacional pelos signos<br />

modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição. Considerando o discurso como da ordem do<br />

conflito interno da nação, não faria sentido privilegiar ou ignorar enunciados ou discursos<br />

porque se originam daqui ou de acolá (mesmo porque o conceito de origem/autoria será<br />

relativizado pela mesma fundamentação epistemológica que nos serve de alicerce). (2)<br />

4 Os conceitos de Sujeito Discursivo, dialogismo, o próprio método referente à hermenêutica dialógica<br />

(construção) e a sua rasura (desconstrução, marca, sulco, deslizamento) serão explicitados e<br />

aplicados no decorrer dessa apresentação.<br />

11


Segunda premissa: o recorte do <strong>cancioneiro</strong> especificado é caracterizado no plano dos<br />

significados, com caráter de enunciado, pela propriedade de inscrever aspectos da<br />

modernidade, ruralidade, urbanidade e tradição e, no plano dos sentidos, com caráter de<br />

discurso, pelas relações dialógicas que produz com alteres de dentro do campo da música sob<br />

a interferência dos contextos abordados (Correndo o risco de produzir um caos na estrutura<br />

dessa apresentação e, conseqüentemente, dificultando a interpretação do leitor, faz-se<br />

necessário, porém, já especificar que essa definição de contexto, assim como a de campo, será<br />

desconstruída no decorrer do discurso-tese, uma vez que ambas determinam fronteira rígida e<br />

hermética entre o dentro e o fora, entre o campo e o contexto. Duas perguntas nos caberiam:<br />

no recorte temporal já localizado, seria possível estar fora do <strong>cancioneiro</strong>? Seria possível ao<br />

<strong>cancioneiro</strong> não dialogizar efetivamente com os discursos enunciados por vozes localizadas<br />

no Estado, relativas ao poder político, à ordem, ou localizadas nos meios de comunicação de<br />

massa, ou mesmo na Academia? E vice-versa. Seria possível aos discursos enumerados não<br />

serem contaminados pelos discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>? Por hora, retornemos à<br />

hermenêutica dialógica).<br />

Objetivamente, aquilo que denominamos como canção especifica enunciado e o que<br />

denominamos como alegoria 5 , correspondente aos sujeitos discursivos eleitos (SD de dentro<br />

do campo do <strong>cancioneiro</strong>), especifica discurso. De posse dessa informação cabe esclarecer<br />

que não elegemos o <strong>cancioneiro</strong> de nenhum compositor, nem consta no corpo da tese, salvo<br />

em notas, a autoria das canções ou grupos de canções, visto que canções ou conjunto de<br />

canções devem ser interpretados nos moldes bakhtinianos como enunciados ou discursos no<br />

mundo, como objetos significantes que passam a existir independentemente de sua origem<br />

espacial, temporal ou mesmo autoral. Em suma, não analisaremos o <strong>cancioneiro</strong> de Lupcínio,<br />

de Caymmi, de Gonzaga ou Noel Rosa, mas sim, interpretaremos enunciados-canções como<br />

falas singulares que compõem determinado discurso no dialogismo pretendido. Ainda assim,<br />

considera-se tais informações relativas a uma origem inventada, autoria, lugar e época, como<br />

5 O termo alegoria é adotado com base no conceito desenvolvido por Walter Benjamin em Origem do<br />

drama barroco alemão como construção que rompe com a linearidade histórica, propondo a<br />

desmistificação do sujeito histórico e a desvelação das relações de dominação intrínsecas ao<br />

discurso historiográfico. “A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia ainda<br />

afirmar uma identidade coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos objetos que<br />

não são mais os depositários da estabilidade, mas se decompõem em fragmentos; enfim, o do<br />

processo mesmo de significação, pois o sentido surge da corrosão dos laços vivos e materiais entre<br />

as coisas, transformando os seres vivos em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em escombros e<br />

os edifícios em ruínas”. (GAGNEBIN, p.39, 2004) Sobre o isso, diria o próprio Benjamin que è sobre a forma<br />

de fragmentos que as coisas olham o mundo (BENJAMIN, Walter, 1984).<br />

12


também constituintes de nossas interpretações, porém, como dito, sem especificar<br />

marca/caráter original, único, unívoco ou fixo.<br />

Com o propósito de começar a esquematizar como se dará a rasura derridiana na<br />

hermenêutica dialógica, evitando assim excessos desnecessários de abstração, propomos focar<br />

nossas primeiras atenções sobre as justificativas das escolhas dos sujeitos discursivos<br />

propostos na tese e que objetivam as Posições (ou Estado) 6 de Sujeitos relativas à<br />

hermenêutica dialógica. Propomos no que tange a apresentação da tese, explicar o movimento<br />

metodológico aplicando-o sobre o objeto de pesquisa, o que significa trabalhar a metodologia<br />

de forma simultânea à construção dos sujeitos discursivos. Consideremos a principio que os<br />

sujeitos discursivos estabelecem-se e emergem como tais de nosso campo investigativo<br />

através de relações dialógicas entre si, sujeitos discursivos de dentro do campo da música sob<br />

a interferência do contexto.<br />

Mas, afinal o que exatamente se quer especificar com dialogizar ou com dialogismo?<br />

Para efeito de aplicação nessa apresentação, o discurso dialógico diz respeito à forma como a<br />

categoria discurso opera na tese, tomando por base a hermenêutica dialógica.<br />

13<br />

Bakhtin desenvolve (...) um novo campo de estudos que designa então como<br />

metalingüística, cujo foco central é o processo que denomina de relações<br />

dialógicas. (...) O dialogismo bakhtiniano tem por fundamento primeiro a<br />

consideração de que toda e qualquer idéia se constitui, objetivada por<br />

intermédio de código lingüístico, como um discurso, posto que destinado a<br />

outrem (ARAUJO et. al, 2007, p.3).<br />

A orientação primordial a outro sujeito discursivo é o que confere, a cada<br />

discurso, o caráter dialógico que nenhuma orientação a um objeto pode dar.<br />

Por mais que um enunciado se concentre em um objeto, não pode deixar de<br />

ser, essencialmente, uma resposta ao já dito acerca do mesmo objeto (...)<br />

Assim sendo, todo enunciado deve ser tomado como um elo em uma<br />

complexa trama de enunciados componentes da cadeia de comunicação<br />

discursiva em uma esfera determinada (idem, p. 4). O dialogismo (...) diz<br />

então das diversas relações de alteridade existentes em qualquer discurso. O<br />

destinatário, mais do que uma abstrata meta do enunciado, é, também, visto<br />

como autor deste, na medida em que é em função dele (...) que se define em<br />

parte o que será dito efetivamente (ibidem, p.5).<br />

Seguindo na compreensão da hermenêutica dialógica, apresentaremos agora um percurso que<br />

vai da explicitação de significado e sentido em Bakhtin à idéia de interpretação como<br />

tradução rasurada em Derrida.<br />

6 O termo “posição” por sugerir taxonomia e fixação necessitaria ser revisto de maneira a adequar-se<br />

às rasuras que os sujeitos discursivos sofrerão alhures. Por isso a adoção do termo Estado de Sujeito<br />

como algo que se transforma no tempo e não como algo fixado.


Segundo Bakhtin, o significado diz respeito ao ato compreensivo expresso no domínio interno<br />

do discurso. A compreensão do significado se dá através do isolamento das unidades<br />

significantes, analisadas através das normas semânticas e sintáticas de um idioma. Por<br />

exemplo: na expressão “Amélia que era mulher de verdade”, a compreensão semântica diz da<br />

compreensão do significado isolado de: “Amélia”, “era”, “mulher” e “verdade”. A<br />

compreensão sintática faz a junção das quatro palavras numa única oração. O significado do<br />

discurso é dado pela articulação destas unidades. Nesse domínio interno, pode-se entender<br />

ainda um discurso contendo vários discursos, como, por exemplo, um parágrafo, uma seção<br />

de um artigo etc... Desta forma, essa possibilidade de um discurso contendo vários discursos<br />

instituiria um dialogismo interno em um discurso composto assim por multisignificados.<br />

No momento em que o discurso é considerado em uma externalidade, relação com alteres e<br />

contexto do ponto de vista da hermenêutica dialógica, o processo de significação se fecharia<br />

na idéia de sentido que completa a relação dialógica. O sentido é constituído sempre como<br />

sentido de um discurso para outro discurso. É esse sentido, que, segundo Bakhtin, o sujeito<br />

dialógico prevê, como um juízo, julgamento, ao emitir o discurso e imaginar/adiantar a<br />

resposta ao seu altere.<br />

Porém, já nos aproximando da rasura da hermenêutica dialógica e por isso da idéia de<br />

interpretação, antes mesmo de problematizar a construção do sentido, referente à<br />

externalidade do discurso, não nos parece possível falar de multisignificados internos ao<br />

discurso sem que o intérprete esteja implicado. Uma “análise de discurso” pressupondo a<br />

possibilidade de um sujeito do conhecimento distanciado e um objeto como unidade fechada<br />

parece dificultada pela própria abertura elaborada por Bakhtin de que as palavras adquirem<br />

expressividade transcendente em cada relação dialógica. Dessa forma, uma análise que<br />

operasse a busca de significados internamente ao discurso apresentaria problemas, pois<br />

buscaria a unidade fechada de um discurso (ainda que múltipla) como algo existente<br />

independentemente do intérprete, sujeito discursivo eu. A minha “Amélia que era mulher de<br />

verdade” pode ser outra, diferente da de outros, diferentes entre si. Ao analisar a relação<br />

dialógica que constituo nessa tese apareço inescapavelmente como sujeito discursivo cujo<br />

discurso observa relação dialógica com essa relação dialógica. Procedo assim a interpretações<br />

supondo um intérprete implicado ativamente. Dessa forma, sentimos a necessidade de operar<br />

uma transferência que abre o circulo hermenêutico dialógico de forma radical: a compreensão<br />

14


do significado, não mais nos termos bakhtinianos, mas, como um querer-dizer 7 para o<br />

intérprete.<br />

Mais ainda, torna-se necessário marcar como operar esta interpretação. Uma interpretação é<br />

sempre uma tradução, uma relação dialógica discurso-intérprete, marcada por um<br />

anacronismo “estrutural” que, antes de ser visto como uma falha de método, um não-controle<br />

do analista, deve ser pensado como parte da própria ação de traduzir. Traduzir um discurso,<br />

fazer emergir dele um significado, seria, desta forma muito mais tratar de uma textura trópica,<br />

de uma rede de interpretações possíveis, do que da precisão da análise de uma estrutura<br />

fechada onde unidades significantes se revelariam em precisão como “si mesmas”: todas as<br />

Amélias, a Amélia.<br />

Ao me colocar, desta forma como “tradutor” dos significados-canções, estaria me<br />

introduzindo na relação dialógica que vamos propor, operando uma dobra da interpretação<br />

sobre mim mesmo – não um “eu” coeso e fechado, nem psicologizado, mas sulcado 8 por<br />

alteres e contextos. Esta transferência traz uma implicação para a compreensão dos<br />

significados: se este, através dessa nossa rasura, diz respeito à relação discurso-sulcamentos-<br />

álteres-intérprete-sulcamentos-álteres-tradução-..., ele nunca se fecha, está sempre em<br />

possível movimento. Trata-se assim, não mais de significados ou multisignificados, mas de<br />

interpretações, como cadeia aberta de possibilidades. As possibilidades dialógicas entre os<br />

meus discursos, sulcados por meus outros “eus” e alteres, e dos sujeitos discursivos eleitos<br />

por mim serão apresentadas e aprofundadas em momento posterior dessa apresentação. Por<br />

hora, fica apenas apontada a minha participação como sujeito dialógico que produz<br />

dialogismo no dialogismo que se manifesta nos discursos dos sujeitos discursivos por mim<br />

eleitos como alegorias.<br />

Essas rasuras produzidas na hermenêutica dialógica marcam as limitações desse método para<br />

a interpretação de discursos ao mesmo tempo em que aludem às possíveis saídas aos limites<br />

que vão sendo apresentados. A idéia é manter esse diálogo de apresentação e rasura da<br />

hermenêutica dialógica simultaneamente a apresentação da base empírica que, por sua vez,<br />

7 O querer-dizer para a rasura derridiana configura-se uma metafísica que sofrerá processo de<br />

desconstrução em dado momento no desenvolvimento dessa apresentação.<br />

8 O termo sulcar ou sulcamento, da desconstrução derridiana, será devidamente explicitado para o<br />

leitor no momento em que operarmos a rasura da metodologia na especificidade de cada SD eleito do<br />

campo do <strong>cancioneiro</strong>. Por hora, pode-se pensar a rasura como uma marca uma interferência que um<br />

discurso provoca em outro, no caso específico, a marca que a minha interpretação, sulcada por meus<br />

alteres e contextos, deixa no discurso dos SD eleitos.<br />

15


também vai sendo rasurada ao ser submetida à passagem, que nunca se completa da<br />

hermenêutica dialógica para a sua rasura com base na desconstrução derridiana.<br />

De forma embrionária, tomei por objeto investigativo o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> que<br />

segundo minha interpretação tratava de questões relativas aos movimentos de significação que<br />

os termos urbanidade, modernidade, ruralidade e tradição especificando signos de Identidade<br />

Nacional sofreram segundo os dialogismos que sujeitos discursivos, de dentro e de fora do<br />

campo da música, propuseram ao país na primeira metade do século XX. A partir do<br />

levantamento das fontes primárias me foi possível eleger os discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

dialogizando entre si sob a interferência do contexto que propunha construções e formulações<br />

relativas às bases identitárias do país, onde construções de urbano, moderno e novas<br />

expressões de poder digladiavam-se com outras relativas à tradição e a manutenção de<br />

modelos de dominação a muito estabelecidos. Em resumo, esse <strong>cancioneiro</strong> se constitui de<br />

forma dialógica, isto é, através de discursos internos que dialogizam entre si sob a marcação<br />

cerrada do contexto (discursos externos ao campo da música que também fazem referência às<br />

mesmas questões temáticas: identidade, ruralidade, tradição, urbanidade e modernidade). A<br />

construção discursiva do <strong>cancioneiro</strong> pode se dar tanto através de uma postura de adesão aos<br />

discursos hegemônicos do poder quanto através de uma postura de transgressão a esses<br />

mesmos discursos. O recorte dialógico-discursivo referente aos discursos que aderem e aos<br />

que transgridem, dentro do campo da música <strong>popular</strong>, considerando, claro, o repertório<br />

discursivo localizado como contexto, (discursos de ordem política, intelectual, acadêmica,<br />

jornalística, literária, etc. expressando-se fora do campo da música, mas, interferindo no<br />

dialogismo interno do <strong>cancioneiro</strong>) constitui o que tomaremos como campo investigativo. É<br />

importante acrescentar que, os discursos localizados como contexto, isto é, fora do campo do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, serão considerados à medida que exercerem algum tipo de poder, relação<br />

de dominação, sobre os discursos internos ao campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Por isso, serão<br />

eleitos no contexto apenas os discursos localizados socialmente acima da fala do <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong>. Estes seriam, grosso modo, os discursos políticos, literários, acadêmicos,<br />

intelectuais, científicos, legais e midiáticos.<br />

É importante atentar para o objeto investigado: o dialogismo produzido pelos discursos do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> que trata da identidade, ruralidade, tradição, urbanidade e modernidade,<br />

como algo que se constitui, não como representação 9 , mas, como campo reflexivo o que<br />

9 Representação como algo que representaria um real dado, oposto e completamente outro em<br />

relação dicotômica com o que dele se diz, representação, mas, não se trata disso. Não se trata disso,<br />

16


significa entender esse campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> como domínio de construção<br />

de significações, signos. Os discursos que o campo reflexivo em questão compreende devem<br />

ser entendidos como construções de signos.<br />

Pode-se dizer que, para Bakhtin, compreender um discurso é compreender seu signo, ainda<br />

que ele não use essa formulação. Entendendo signo como um constructo<br />

17<br />

em ruptura com as teorias da representação e com a lingüística tradicional,<br />

deriva da concepção de que a linguagem diz do mundo (em qualquer de suas<br />

dimensões: material, ideológica e axiológica) instituindo, de modo<br />

necessariamente associado, designações e atributos que podem ser<br />

considerados como constituintes de um signo. O signo assim suposto<br />

constitui-se de quatro domínios imbricados e inseparáveis, conformando<br />

totalidade: o dos objetos apontados no mundo; o dos significantes (...) que<br />

denotam os objetos e, ao mesmo tempo, os conotam como algo em si; o dos<br />

significados (...) que conotam ou atribuem significação aos significantes em<br />

contexto discursivo fechado (...) e o dos sentidos que concerne à conotação<br />

de significantes e seus respectivos significados enquanto assentados<br />

relacionalmente no mundo (...) (ARAUJO et. al, 2007, p.6).<br />

Chamar o <strong>cancioneiro</strong> de campo reflexivo sugere pensá-lo como instância que constitui<br />

objetos ao mesmo tempo em que sugere formas de ação e produz juízos. Essas inscrições são<br />

contaminadas por, ao mesmo tempo em que contaminam inscrições de fora do campo do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Por isso, o sentido dessa construção deve considerar além do dialogismo<br />

expresso entre os discursos dos sujeitos discursivos dentro do campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>,<br />

a interferência que os discursos desses mesmos sujeitos sofrem dos discursos localizados no<br />

contexto. Enfim, devemos considerar como contexto as construções discursivas que são<br />

produzidas fora do campo de investigação, no caso, o campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

uma vez que não se considera, metodologicamente, o campo pesquisado como que cindido na forma<br />

dicotomizada de um real dado e concreto que se contrasta com a representação ou o discurso que se<br />

escreve como algo que fala desse real que existiria à priori. Mais que isso, não se trata nem de<br />

simples nomeação direta de referentes, nem de representação nominalista (nos termos da episteme<br />

clássica), nem de significado nos termos da lingüística tradicional. Mas, sim, construção reflexiva e<br />

dialógica entre os discursos da música pautados pelos temas da urbanidade, da modernidade, da<br />

tradição e da identidade e o discurso de seus alteres. Segundo a terminologia arqueológica de<br />

Foucault, não seria representação nos termos da episteme da tradição que separa o real dado da<br />

representação que tem o caráter de revelar o mundo, revelar o real; não se trataria também de<br />

representação nos termos da episteme clássica onde tudo é representação e tudo remete à idéia de<br />

representação. Sobre essa forma de interpretação de mundo, Foucault afirma que “Todo o sistema<br />

clássico da ordem, toda essa grande taxonomia que permite conhecer as coisas pelo sistema das<br />

suas identidades desenrola-se no espaço aberto no interior de si pela representação quando<br />

representa a si mesma: o ser e o mesmo tem aí o seu lugar. A linguagem não é senão a<br />

representação das palavras, a natureza não é senão a representação dos seres; a necessidade não é<br />

senão a representação da necessidade. O fim do pensamento clássico (...) coincidirá com o recuo da<br />

representação, ou antes com a libertação, relativamente à representação, da linguagem, do vivo e da<br />

necessidade” (FOUCAULT, 1966, P. 277).


asileiro, mas que interferem na produção do discurso desse <strong>cancioneiro</strong> ao, também, por sua<br />

vez, lidar com as temáticas do urbano, do rural, do moderno, da tradição e da identidade<br />

nacional.<br />

Dentro do percurso metodológico sugerido pode-se agora partir para a caracterização mais<br />

clara do que vem a ser ou se constituir um sujeito discursivo. Isso implica diretamente no<br />

recorte do que será considerado como relação dialógica, a ser eleita para interpretação dos<br />

discursos do campo enfocado. Pela hermenêutica dialógica caracteriza-se o sujeito discursivo<br />

como um agente social concreto especificado enquanto Linguagem, Língua e Voz (LLV),<br />

essa especificação constitui-se através da interpretação do discurso em termos do que é<br />

dominante como LLV. No caso específico dessa apresentação, os SD não são mais do que<br />

alegorias de discursos (estabelecidas por mim) que por sua vez estabelecem relações<br />

dialógicas entre si. Assim sendo, essas alegorias expressam enunciadores-tipo de discursos<br />

que se constituem em relação dialógica entre si sob a interferência de discursos localizados<br />

nos contextos especificados no recorte temporal proposto entre a Belle Époque e o início da<br />

ditadura militar nos anos 60, com ênfase na sociedade trabalhista da Ditadura Vargas.<br />

Sob a orientação metodológica da hermenêutica dialógica, pode-se num primeiro momento<br />

pensar os Sujeitos Discursivos como alegorias que sintetizam, enquanto campo reflexivo,<br />

objetos, idéias, questões, modos de agir, refletir e existir, cujos discursos se constituem, como<br />

já frisado, sempre em relação dialógica com o de seus alteres. A princípio pode-se pensar em<br />

dois tipos alegóricos: (1) um tipo que ao dialogizar, sob a interferência dos discursos<br />

localizados nos contextos do recorte, produz significados de discurso que tendem a aderir aos<br />

significados discursivos estabelecidos pelos discursos hegemônicos de modernidade,<br />

urbanidade, tradição, ruralidade e identidade nacional, construídos e defendidos, de forma<br />

geral, pelos inúmeros discursos caracterizados como fala das elites que exercem poder sobre o<br />

Estado, o pensamento intelectual e a riqueza econômica. (2) O segundo tipo opera,<br />

simplesmente, em sentido oposto, transgredindo os discursos da elite hegemônica. Ao grupo<br />

de discursos caracterizados pelo tipo que adere emprestaremos o nome de “Barão da Ralé 10 ”<br />

(BR). Isto é, trata-se do sujeito discursivo que embora caracterizado por sua origem <strong>popular</strong>,<br />

adere aos códigos e valores das elites, considerando-se assim como uma espécie de tutorial<br />

das classes <strong>popular</strong>es. Um tutorial que faz chegar aos <strong>popular</strong>es à consciência dos ideais de<br />

modernidade ou identidade nacional, construídos em movência, segundo a negociação travada<br />

10 Faz referência à música de Chico Buarque, A volta do malandro, 1985, que ironiza o malandro na<br />

tensão entre o ethos <strong>popular</strong> e a elite.<br />

18


entre grupos no poder. A estratégia correspondente ao tipo de discurso do Barão da Ralé seria<br />

contestada pelo outro tipo de sujeito discursivo que trataremos como “Rapaz Folgado 11 ” (RF),<br />

cuja postura, como o nome bem sugere é de enfrentamento aos códigos e posturas dos<br />

discursos hegemônicos. Obviamente, tais estratégias se confundem e, por vezes, pode-se<br />

identificar os discursos do “Barão da Ralé” travestidos das formas e estéticas do discurso<br />

“Rapaz Folgado” ou vice-versa. Seguiremos retomando nossas alegorias, interpretando seus<br />

discursos, características, estratégias e possíveis contradições. Aliás, sobre contradições,<br />

podemos adiantar que, ao contrário do discurso de um possível SD revolucionário<br />

(configurado mais estreitamente ao materialismo histórico de base marxista e expressando-se<br />

através do repertório das canções de protesto dos anos 60), esses tipos, BR e RF, adotariam<br />

estratégias, aparentemente, opostas, expressando discursos que interpretamos como de<br />

enfrentamento ou de adesão, mas que, também, retro-alimentam a manutenção de certas<br />

condições de dominação, e, sendo assim, segundo nossa interpretação, não expressariam<br />

discurso revolucionário. Pelo menos, não nos moldes paradigmáticos a partir de uma<br />

consciência/formulação nítida de classe social. Às vezes, podem mesmo adotar estratégias<br />

discursivas tais como expressar significados conservadores visando transformação. Porém, o<br />

caráter dessa transformação seria sempre pontual ou particularizado em um contexto que não<br />

ultrapassa os limites da pessoalidade. O mesmo vale para os discursos localizados no<br />

contexto, como discursos das elites políticas, intelectuais etc. Por exemplo: é comum a<br />

posição hegemônica expressar um discurso de base moderna e transformadora, mas, que<br />

resulta na conservação de valores da tradição e de determinadas formas de dominação. A<br />

especificação e aprofundamento da interpretação dos discursos dos SD eleitos BR e RF<br />

expressando dialogismos não revolucionários, assim como, a interpretação discursiva da<br />

pertinência metodológica sob a qual elegeríamos ou não um possível SD Revolucionário fica<br />

prometido ao leitor na continuação dessa apresentação.<br />

A possibilidade exemplar de relação dialógica entre discursos de dois SD eleitos sob a<br />

interferência do contexto poderia funcionar de forma inconteste se assumíssemos sem rasuras<br />

a hermenêutica dialógica. Isto é, caso tomássemos essa estrutura como uma hermenêutica, o<br />

significado de cada discurso seria dado pela análise e síntese de suas partes decompostas,<br />

enquanto que um sentido seria dado como juízo de um discurso sobre outro. Singular e<br />

11 Faz referência à música homônima de Noel Rosa, Rapaz Folgado, 1933, que ironiza a postura da<br />

malandragem desregrada. Aliás, o próprio Noel costumava afirmar em conversas com amigos que o<br />

malandro de verdade não se declara malandro. Assumir que é malandro é dar arma ao inimigo, além<br />

de não ser coisa de malandro (Fonte: conversas pessoais com músicos remanescentes da Rádio<br />

Nacional e da era de ouro do samba trabalhista, no Bar do Clóvis (Espaço Meu Kantinho), na Penha).<br />

19


inexoravelmente associado a um SD, ainda que em determinadas circunstâncias, determinado<br />

sentido estabelecido por um SD viesse a se espraiar, tornando-se hegemônico, em certa<br />

situação espaço-temporalmente localizada ou em certo contexto (relativo à interferência que<br />

discursos emitidos de fora do campo da música, produzem, por exemplo, sobre os discursos<br />

dos SD Rapaz Folgado e Barão da Ralé). Porém, como veremos adiante, essa possibilidade,<br />

não se concretiza, não se encerra, da mesma forma que a metodologia não rasurada revelar-se-<br />

ia incapaz de dar conta do movimento que a interpretação do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> executa. Por<br />

hora seguimos esmiuçando características dos Sujeitos Discursivos, ainda enfatizando a<br />

hermenêutica dialógica, assinalando rasuras quando for necessário fazê-lo.<br />

O sujeito discursivo segundo a hermenêutica dialógica seria uma alegoria cujos discursos se<br />

constituem como tal por intermédio de sua especificação enquanto Linguagem, Língua e Voz<br />

(LLV). Por sua vez, essa especificação é constituída pela interpretação que o intérprete-eu<br />

(cujo discurso está também constrangido pelo dialogismo com o discurso de meus alteres no<br />

presente dessa escrita) faço dos discursos dos SD eleitos e interpretados.<br />

A Linguagem (1) diz respeito à visão de mundo predominante do sujeito discursivo, isto é: se<br />

ele tem uma visão de mundo conservadora ou crítica, tradicional ou moderna, de manutenção<br />

ou transformação das estruturas, etc.<br />

A Língua (2) diz respeito ao modo de expressão do sujeito que em nosso caso geral é a<br />

música, mais especificamente a música <strong>popular</strong> 12 , o que seria aqui uma especificação da<br />

língua. Consideramos seus aspectos fundamentais como a letra, a melodia, o ritmo, os<br />

arranjos, a própria performance em que especifica-se a relação do comportamento do corpo,<br />

do lugar e da forma de execução, analisando possíveis identificações étnico-culturais que<br />

12 Como constituinte do signo musica especificam-se certas subdivisões como música erudita,<br />

folclórica e <strong>popular</strong> cujas características ajudariam a pensar o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> como língua.<br />

Pode-se adiantar que sob a visão elitista, da primeira metade do século XX, há uma hierarquização<br />

das formas onde a música erudita apresentando forma e conteúdo segundo critérios rígidos de<br />

composição ocuparia o topo. A música folclórica apela para o domínio do puro e da tradição, visto<br />

que remonta para passados distantes e primórdios de manifestações que seriam valorizadas por<br />

discursos acadêmicos e ilustrados no decorrer do século. Mesmo apresentando características de<br />

cruzamento de culturas como a européia, africana, indígena, o fator tempo remoto, que apela, por<br />

exemplo, para o nordeste-medievo dos cordéis da fábula castelã, garante o “valor” desse discurso<br />

segundo os critérios da elite ilustrada. Por fim, a música <strong>popular</strong> corresponde à forma musical menos<br />

valorizada pela elite do campo. Seu caráter híbrido, constituído de ritmos e formas contemporâneas e<br />

urbanas, coisas da “moda” que, por sua vez, se agregam aos ritmos e formas do folclore e do<br />

passado produzindo um “crossover” cultural de tal magnitude e velocidade de movimento que se<br />

torna, inclassificável, aos padrões taxonômicos da música como pensada segundo os critérios do<br />

erudito.<br />

20


apontem para uma construção de mundo, enunciado que expresse em seu ethos o ethos do<br />

outro 13 .<br />

A Voz (3) é o SD-tipo. Em nosso caso, então, as Vozes são “compositores <strong>popular</strong>es”. Porém,<br />

isso significa assumir que atuaremos dialogicamente não com agentes discursivos (que seriam<br />

compositores particulares, como o termo poderia sugerir), mas com “compositores-<strong>popular</strong>es-<br />

tipo”, especificados nas alegorias RF e BR. Estas, sim, formalmente, nos termos da<br />

hermenêutica dialógica, correspondem aos agentes no dialogismo que constituímos 14 .<br />

Operando a hermenêutica dialógica, pode-se afirmar que temos um sistema onde discursos<br />

constituem o mundo no qual são ditos como constituintes, como signos que, não como<br />

representações de um suposto real dado, apresentar-se-iam como construções indissociáveis e<br />

constitutivas do mundo em suas dimensões, material, ideológica ou axiológica (Araújo et all,<br />

2007). Fazer uso da hermenêutica dialógica com base em Bakhtin de forma não rasurada não<br />

nos leva para além de um sistema fechado, onde o signo é passível de compreensão, o sentido<br />

proposto como algo dado de forma relacional no mundo e o significado como coisa<br />

constituída de forma intrínseca ao discurso. Nessas condições, exponho, a partir de minha<br />

interpretação dos SD eleitos até o momento dessa apresentação, dois quadros de Posição de<br />

Sujeito relativos às duas alegorias, Barão da Ralé e Rapaz Folgado. Nesses quadros, certas<br />

características e estratégias discursivas dos SD eleitos são assinaladas com o intuito de<br />

localizar o leitor. É por minha interpretação que os discursos dos SD eleitos expressam tais e<br />

13 Considerando o objeto de investigação proposto, o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, deve-se especificar com<br />

mais rigor o movimento de construção sofrido pela categoria cultura <strong>popular</strong> que se transforma ao<br />

longo do século XX. Popular como algo que, segundo a análise de folcloristas e de certa sociologia<br />

que vigorou por boa parte do século XX, se opôs ao folclórico. Popular, como algo que se constituía<br />

de forma mais urbana e menos rural e cujo hibridismo teria elementos mais contemporâneos,<br />

diferente do hibridismo folclórico, que remonta para um passado épico. Por exemplo: as cavalhadas<br />

de Goiás-Velho e Pirenópolis que tratam das cruzadas entre cristãos e mouros incorporando<br />

elementos da mitologia brasileira como a onça e o boi.<br />

14 Problematizando possibilidades dialógicas dentro desse mesmo quadro, pode-se sugerir trabalhar<br />

com um segundo dialogismo, onde a mesma música entraria na posição de sujeito “Rapaz Folgado”,<br />

quando tomada numa versão da rua, e na posição de sujeito “Barão da Ralé”, quando tomada na<br />

versão oficial. Esse diálogismo diz respeito a uma polifonia referente à separação entre o <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong> oficial, aquele que é gravado e tocado nas ruas através dos mecanismos oficiais de<br />

divulgação do discurso como os auto-falantes públicos, os fonógrafos, gramofones, as partituras e,<br />

mais tardiamente, o rádio e o <strong>cancioneiro</strong> que emerge anonimamente na forma de versões, em geral<br />

irônicas e críticas, dos discursos do <strong>cancioneiro</strong> oficial. Um exemplo são as inúmeras versões que o<br />

samba “Pelo telefone”, gravado em 1917, ganhou nas ruas, sendo a mais famosa a que faz menção<br />

ao chefe de polícia da época. Em síntese, teríamos duas posições de sujeito (PS) ou duas vozes,<br />

segundo a terminologia de Bakhtin. Uma voz oficial referente ao sujeito tipo das canções gravadas e<br />

divulgadas de modo formal e uma voz da rua referente às versões que certas canções ganhavam<br />

durante o carnaval ou em outras manifestações públicas. Às vezes ocorria também o processo<br />

inverso, quando a voz oficial aproveitava um refrão ou mote já <strong>popular</strong>izado de forma anônima nas<br />

ruas e o transformava em versão oficial do discurso do <strong>cancioneiro</strong>. É o caso de “Rato, rato rato” que<br />

faz referência à campanha de Oswaldo Cruz contra a peste nas cidades do Rio de Janeiro e Santos.<br />

21


tais características e estratégias através de grupos discursivos referentes a um agrupamento de<br />

enunciados-canções que também por minha interpretação expressam idéias em comum. A<br />

construção das alegorias SD Barão da Ralé e SD Rapaz Folgado correspondem a uma<br />

construção-interpretação minha sobre uma maneira de sintetizar significados de enunciados-<br />

canções em discursos que dialogizam sob certos contextos.<br />

Considero que os anos 30, com a emergência, no plano internacional, de governos totalitários<br />

(fascismo italiano, nazismo alemão, franquismo espanhol), e com a correspondente<br />

emergência do Estado Novo, no plano nacional, localizam o processo contextual em que os<br />

discursos dos SD eleitos apresentam, de forma mais nítida, as características que figuram no<br />

quadro a seguir. Isto é, foi sob as interferências de movimentos políticos, culturais e<br />

intelectuais entre os anos 30 e 40 que os SD (1) Barão da Ralé e (2) Rapaz Folgado<br />

apresentam, de forma mais evidente, certas características discursivas, que correspondem,<br />

respectivamente a: (1) adesão à ideologia nacionalista e ufanista, ao trabalhismo varguista, ao<br />

modelo estético-social burguês, urbano, moderno e conservador. (2) Oposição à ideologia<br />

nacionalista e ufanista, ao trabalhismo de Vargas, fazendo apologia à malandragem como<br />

forma de resistência, questionamento do modelo estético-social burguês, urbano, moderno e<br />

conservador, ao denunciar em seu discurso (segundo a interpretação/tradução que opero sobre<br />

o significado e o sentido dialógicos dos discursos dessa alegoria), o caráter autoritário e<br />

controlador do Estado Novo. Os dialogismos dos discursos dos dois SD eleitos (apresentados<br />

até aqui), assim como seus movimentos sob os contextos relativos ao recorte temporal, serão<br />

traduzidos no decorrer dessa apresentação percorrendo simultaneamente um percurso em<br />

direção à Belle Époque onde identifico a emergência dos temas<br />

identidade/ruralidade/urbanidade/modernidade/tradição como temas contemplados pelo<br />

repertório do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> (trata-se de quando o <strong>cancioneiro</strong> começa a<br />

contemplar imagens públicas e políticas) e em direção à ditadura militar nos anos 60 quando<br />

os SD eleitos, sob tais características discursivas, passam a conviver com um possível SD<br />

Revolucionário, alegoria que desloca o SD Barão da Ralé e o SD Rapaz Folgado. Caso<br />

pretendêssemos, nessa apresentação caminhar para além dos SD eleitos, teríamos que assumir<br />

a contaminação que o SD Revolucionário produz nas alegorias anteriores como discurso<br />

preferencial do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> para efeito de inscrição de temas referentes ao<br />

público e ao político. Em resumo, a construção do quadro, a seguir, se presta a localizar o<br />

leitor no contexto mais evidente dos anos 40 em que os discursos dos SD eleitos e construídos<br />

como tais se apresentam de forma mais clara nas suas características discursivas traduzidas<br />

22


como adesão e oposição às formas hegemônicas de dominação. No decorrer desta<br />

apresentação pretendemos seguir esses movimentos, não de forma linear e sistematizada no<br />

tempo cronológico, mas como um movimento de comportamento rizomático, no qual, o texto<br />

vai cobrindo espaços, em direção à Belle Époque e à Ditadura Militar.<br />

Antes de, finalmente, expormos os quadros representativos das Posições de Sujeito relativas<br />

aos SD Barão da Ralé e Rapaz Folgado, apresento alguns enunciados-canção onde os<br />

significados de aderência e oposição aos discursos hegemônicos relativos aos alteres dos SD<br />

eleitos como já especificado emergem segundo minha interpretação-tradução de forma mais<br />

evidente sobre os temas trabalho, ordem e nacionalismo 15 .<br />

15 Estes enunciados-canção que foram postos aqui no intuito de localizar o leitor sobre os discursos<br />

dos SD eleitos, representam uma amostra ínfima de um universo pesquisado de mais de cinco mil<br />

canções, arquivadas por mim em formato MP3. Este levantamento consumiu mais de um ano do<br />

projeto, entre visitas a arquivos de áudio-visual e incontáveis horas de navegação na Internet. Deste<br />

montante de canções pré-selecionadas segundo os temas modernidade, tradição, urbanidade,<br />

ruralidade e identidade, as canções utilizadas por fim como discurso interpretado-traduzido nos<br />

dialogismos propostos no decorrer desta apresentação se encontram catalogadas e disponibilizadas<br />

no CD que acompanha a tese. Para ouvir a música referente basta buscar o número da referência de<br />

pé de página desse corpus nos arquivos sonoros do CD.<br />

23


RAPAZ FOLGADO<br />

Trabalho<br />

Vivo na malandragem.<br />

Não quero saber do batedor<br />

Pode escrever o que vou dizer<br />

Ando melhor do que um trabalhador<br />

Não há riqueza que<br />

me faça enfrentar o batedor<br />

Pois quem é rico nunca foi trabalhador 16<br />

Ordem<br />

Meu chapéu do lado tamanco arrastando.<br />

Lenço no pescoço, navalha no bolso.<br />

Eu passo gingando, provoco e desafio.<br />

Eu tenho orgulho de ser tão vadio<br />

Sei que eles falam do meu proceder<br />

Eu vejo quem trabalha andar no misere.<br />

Eu sou vadio porque tive inclinação<br />

Eu era criança tirava samba canção 17 .<br />

Nacionalismo<br />

Ia-iá me deixa subir nessa ladeira<br />

Eu sou do bloco que pega na chaleira<br />

Lá vem o cordão dos “puxa-sacos”<br />

Dando viva a seus maiorais<br />

Quem está na frente é puxado pra trás<br />

E o cordão dos puxa-sacos<br />

Cada vez aumenta mais<br />

Vossa excelência, vossa eminência.<br />

Quanta reverência nos cordões eleitorais<br />

Mas, se o doutor cai do galho e vai ao chão.<br />

A turma toda evolui de opinião.<br />

E o cordão dos “puxa-sacos”<br />

cada vez aumenta mais 18 .<br />

16 Nasci no samba. Benedito Lacerda e Bide, 1932.<br />

17 Lenço no pescoço. Wilson Batista, 1933.<br />

18 Cordão dos “puxa-saco”, Roberto Martins, Frazão, 1946.<br />

19 O bonde São Januário. Wilson Batista, Ataulfo Alves,1940.<br />

20 Saudosa maloca. Adoniran Barbosa, 1951.<br />

21 Mulato Patriota. David Nasser, J. Batista, 1942<br />

BARÃO DA RALÉ<br />

Trabalho<br />

Quem trabalha é que tem razão<br />

Eu digo e não tenho medo de errar<br />

O bonde São Januário<br />

Leva mais um operário<br />

Sou eu que vou trabalhar 19<br />

Ordem<br />

Mato grosso quis gritar<br />

Mas, em cima eu falei<br />

Os homi ta com a razão<br />

nós arranja outro lugar<br />

Só se conformemo<br />

Quando o Joca falou<br />

Deus dá o frio conforme o cobertor 20<br />

Nacionalismo<br />

Eu tenho um barraco no São Carlos<br />

Onde há paz e harmonia<br />

Onde há samba noite e dia<br />

Eu tenho uma nega e um violão<br />

Um herdeiro que mais tarde<br />

Ficará com o barracão<br />

Mas se a pátria precisar<br />

Boto meu fuzil no ombro<br />

Largo tudo e vou brigar<br />

Vocês estão pensando<br />

Que estou contando lorota<br />

Sou mulato patriota<br />

Meu sangue nunca negou.<br />

Tem lá em casa um baú<br />

Que por dinheiro nenhum eu dou<br />

Dentro tem uma medalha<br />

Que foi do meu bisavô<br />

Que em campanha ganhou 21<br />

24


POSIÇÃO DE SUJEITO do SD Barão da Ralé<br />

LINGUAGEM LÍNGUA VOZ<br />

Não-crítica Burguesa Musica Popular Compositor Popular<br />

Tipo: especificado na<br />

alegoria BR<br />

Sem projeto de<br />

mudança no tipo de<br />

sociedade<br />

Estética e<br />

comportamento<br />

orientados por<br />

parâmetros da<br />

sociedade burguesa e<br />

da classe média<br />

urbana.<br />

Sem percepção de<br />

classe e de sociedade<br />

polarizada entre rico<br />

e pobre.<br />

Apóia o trabalho e a<br />

modernidade<br />

conservadora.<br />

Transformação<br />

urbana sob a ótica da<br />

elite e do capital<br />

Inscrita nos meios de<br />

comunicação de<br />

massa.<br />

Institucional, no<br />

sentido de apoiar<br />

ações do Estado e do<br />

Capital privado.<br />

Ufanista Não utiliza termos<br />

chulos que possam<br />

ferir a estética e os<br />

valores da família<br />

burguesa e urbana<br />

Legalidade Reforma da<br />

sociedade tradicional,<br />

combate aos<br />

arcaísmos ligados aos<br />

valores da vida rural<br />

e das comunidades<br />

pobres.<br />

Integração nacional. Boas relações com o<br />

Estado.<br />

Progresso individual.<br />

Capitalismo.<br />

Emula o vocabulário<br />

da elite intelectual<br />

Promove unidade<br />

nacional<br />

25


POSIÇÃO DE SUJEITO do SD RAPAZ FOLGADO<br />

LINGUAGEM LÍNGUA VOZ<br />

Crítica TRADIÇÃO MÚSICA POPULAR Compositor Popular<br />

Tipo: especificado na<br />

alegoria RF<br />

Sem projeto de<br />

mudança no tipo de<br />

sociedade<br />

Valores individuais<br />

em oposição à<br />

reforma urbana sob<br />

estética burguesa.<br />

Contra a sociedade<br />

do trabalho e a<br />

penetração da troca<br />

monetária nas<br />

relações pessoais<br />

Tradição que se opõe<br />

às mudanças com<br />

base na modernidade<br />

conservadora<br />

orientada pelo capital<br />

e pelo Estado Novo<br />

Manutenção de seus<br />

valores frente aos de<br />

seu(s) outro(s).<br />

Objetos de desejo<br />

como objetos da<br />

própria tradição.<br />

Ilegalidade Tradição da<br />

malandragem frente à<br />

ordem burguesa e<br />

institucional.<br />

Inscrita nos meios de<br />

divulgação e<br />

comunicação de<br />

massa. Mas também<br />

divulgada de forma<br />

não oficial pelas<br />

versões anônimas e<br />

satíricas “da rua”.<br />

Não institucional, não<br />

apóia o Estado ou o<br />

Capital.<br />

Pode utilizar imagens<br />

e termos que ferem a<br />

estética e os valores<br />

da família burguêsa.<br />

Evita o vocabulário<br />

da elite.<br />

Marginal ao sistema. Não adere<br />

Realização pessoal<br />

aponta para valores<br />

de seu ethos:<br />

coragem esperteza e<br />

honra.<br />

26


Uma vez expostos os quadros em que se apresentam os SD em relação dialógica, podemos<br />

nos ocupar de forma mais atenta do contexto. Para efeito da construção aqui proposta, o<br />

contexto incorporaria enunciados e discursos de sujeitos discursivos localizados fora do<br />

campo da música que interferem e são apropriados pelos discursos dos SD de dentro do<br />

campo em foco, a princípio, o Rapaz Folgado e o Barão da Ralé. O contexto é apropriado<br />

como uma ressonância que participa do dialogismo efetivo entre o Rapaz Folgado e o Barão<br />

da Ralé 22 . Assim, o dialogismo efetivo é aquele que já vem sendo tratado até aqui como o<br />

dialogismo que ocorre entre discursos de dentro do campo do <strong>cancioneiro</strong>.<br />

O sentido atribuído ao significado de um discurso seria construído pelo juízo feito sobre esse<br />

significado, tendo por referencia fundamentos da Posição de Sujeito do discurso que confere o<br />

sentido. Por sua vez, o sentido do discurso também seria dado levando-se em conta a<br />

participação da resposta do outro (receptor da mensagem) naquilo que o emissor adianta dessa<br />

possível resposta do receptor em determinado contexto que faz parte do sentido dialógico<br />

como ambiência ou como fundo aperceptivo 23 .<br />

Dessa forma, o sentido do discurso, nas relações dialógicas entre os SD do <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong>, como propostos até aqui, estaria dado pelo movimento de escuta e resposta expresso<br />

nos discursos das duas alegorias, o “Barão da Ralé” e o “Rapaz Folgado”. Ainda assim, o<br />

sentido dos discursos desses dois SD constitui-se considerando os discursos que emergem de<br />

fora do campo da música ou do <strong>cancioneiro</strong> em questão, não exatamente constituindo um<br />

dialogismo, mas uma ambiência 24 para o dialogismo que efetivamente ocorre entre os SD<br />

eleitos dentro do campo. Esses discursos de ambiência que interferem no dialogismo são<br />

referentes, por exemplo, ao discurso de poder constituído pelas elites nos campos econômico,<br />

intelectual, literário, legal, acadêmico, jornalístico e político, atravessados pelo poder<br />

22 “O sentido do discurso, além de constituir-se primordialmente através da relação viva, tem também<br />

o traço de outras enunciações concretas sobre o mesmo assunto, concordes e/ou contraditórias,<br />

dado ao sujeito, não como suposta percepção de um objeto em si, mas enquanto fundo aperceptivo”<br />

(ARAUJO et. al, 2007, p.8). “O contexto (...), essencialmente, encontra-se fora do discurso em pauta,<br />

no papel de fundo dialogizador de sua percepção. Não obstante, o contexto não pode deixar de ser<br />

considerado como parte constituinte do enunciado” (ibidem, p.9). Em termos abstratos e simplificados<br />

o contexto deve responder à pergunta: o dialogismo considerado acontece em momento<br />

caracterizado pelo que no plano internacional, nacional, regional e temático?<br />

23 O fundo aperceptivo é tudo o que se disse sobre a questão ou o objeto, durante o período enfocado<br />

(o do contexto), mas, também para além dele. Por exemplo, qualquer trabalho atual sobre a questão.<br />

24 Trata-se de uma opção metodológica forte, considerando-se que é possível supor que as alegorias<br />

respondem dialogicamente também aos discursos que são externos ao <strong>cancioneiro</strong>. Para efeito do<br />

dialogismo proposto no quadro anterior fica valendo essa perspectiva que ao longo do corpus será<br />

rasurada por deslocamentos e contaminações operando sobre a diferença dentro/fora relativa aqui a<br />

campo/contexto.<br />

27


simbólico 25 , referente, por exemplo, às categorias axiomáticas de rico, de homem, de branco e<br />

de trabalhador. A dominação expressa por essas categorias pode ser reforçada ou contestada<br />

pelos SD do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Por isso, consideramos a dominação das elites políticas,<br />

econômicas e intelectuais, etc. exercendo-se sobre os SD eleitos através da produção de uma<br />

ambiência contextual que, ainda que, produzindo contradições internas (que fatalmente<br />

resultam no movimento de significação dessas categorias), apontaria para idéias exemplares<br />

de progresso, modernização e identidade nacional, constituídas também pela dominação<br />

simbólica expressa na hierarquização estética e moral de elementos como a riqueza, o<br />

trabalho, o branco, o homem. Justamente por não se configurarem como expressões de um<br />

discurso monocórdio, mas sim, por incorporarem a fala dos dominados, esses signos podem, e<br />

são reproduzidos também por sujeitos dominados, que expressam como parte constitutiva de<br />

seus discursos o discurso do dominador.<br />

A questão tratada nesse ponto diz respeito a determinar o recorte, a fronteira do que será<br />

considerado como relação dialógica efetiva e o que deve ser determinado como o contexto em<br />

que se insere essa relação. Atente-se para o fato de que a relação dialógica efetiva e seu<br />

contexto são constituídos de discursos, evidentemente, expressos por sujeitos discursivos.<br />

Assim, por exemplo, podemos caracterizar como constituinte do contexto o dialogismo não<br />

efetivo entre música e crônica, música e documentos políticos ou entre música e literatura,<br />

uma vez que tais expressões podem ser classificadas como fundo aperceptivo constituinte do<br />

sentido do discurso dos SD do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Estes enunciados ecoam no espaço tempo<br />

dos SD do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> que de forma responsiva os incorpora como constituidores dos<br />

sentidos de seus discursos.<br />

Em se tratando da temporalização 26 dos discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, deve-se ainda<br />

considerar o “dialogismo no tempo” que ocorre quando um enunciado expressa um<br />

significado no presente que já não mais corresponde ao que guardava no passado. Fora a<br />

ruptura, esse dialogismo deve contemplar também as continuidades, que diz respeito a quando<br />

o significado de um enunciado percorre as décadas sem eclipsar-se por completo. Perceber<br />

essas rupturas e continuidades referentes ao dialogismo no tempo é central à nossa análise<br />

25<br />

Constituído por determinados símbolos emblemáticos da dominação como expressos em Bourdieu<br />

(2004) e Foucault (1996).<br />

26<br />

Temporizar é uma categoria derridiana, discutida no texto “A Diferança” (1991), que guarda sentido<br />

de diferir no tempo – temporalizar – e no espaço – espacializar. O primeiro implica em devir no tempo<br />

e o segundo em devir no espaço. No primeiro caso, transforma-se o espaço em tempo (De Penedo a<br />

Marechal leva-se dois dias em lombo de burro). No segundo caso, transforma-se tempo em espaço<br />

(A fotografia, por exemplo, transforma o tempo em espaço ao sincronizar temporalidades distintas<br />

num mesmo espaço).<br />

28


posto que esse dialogismo expressa uma espécie de memória discursiva do SD. Lembrando<br />

que o signo, como aqui considerado, do qual o sentido é um dos componentes, é aquilo que se<br />

estabelece numa relação dialógica, fazemos referência aqui à idéia de que num determinado<br />

dialogismo passado estabeleceu-se certo signo, que, enquanto memória, pode constituir um<br />

discurso de um dialogismo no tempo (interno) para o mesmo SD, em relação a um (pré)<br />

discurso presente. Diz-se pré porque o signo que emergirá desse dialogismo diacrônico, para o<br />

SD no presente, é também constitutivo de seu discurso no dialogismo sincrônico do presente.<br />

O signo que este dialogismo constitui no presente pode ser interpretado como mais distinto ou<br />

mais semelhante daquele que foi constituído no dialogismo no passado. Um discurso de<br />

semelhança é a canção política cuja marcha expressa um comentário crítico aos nepotismos e<br />

ações pelegas referentes ao quadro político de 1907 e que depois se repete no quadro político<br />

de 1945. A permanência desse signo expressa a permanência de sentidos discursivos<br />

dialógicos entre SD eleitos do <strong>cancioneiro</strong> sob contextos diferenciados que interferem no<br />

dialogismo interno através de discursos do campo da política, da imprensa, da academia etc.<br />

O enunciado-canção em ritmo de polca alegre expressa-se assim: “Ia-iá me deixa subir nessa<br />

ladeira eu sou do grupo do pega na chaleira 27 ”, fazendo referência aos “puxa-sacos” de<br />

políticos poderosos que sobem a ladeira para “chaleirá-los”. A interpretação desse enunciado,<br />

dialogismo no tempo, será tratada de forma mais detalhada no decorrer do projeto. Um<br />

discurso de distinção é pensar em como no enunciado “Vai com Jeito 28 ”, cantado na década<br />

de 30, o sentido que um ou alguns SD da elite metropolitana atribuem ao significado do<br />

enunciado nos dias de hoje é modificado, considerando que fazer piquenique em Paquetá,<br />

passear no Joá ou ir à praia na Barra da Tijuca são práticas sociais de lazer que perderam o<br />

caráter de clandestinidade, moralmente reprovável aos parâmetros da moral familiar burguesa.<br />

Seguindo com a aplicação da metodologia sobre os SD eleitos, um problema que provocaria,<br />

mais adiante, ruptura bem maior do que imaginava, revelou-se como uma falta, uma lacuna no<br />

dialogismo efetivo manifestando-se entre os discursos das duas alegorias, altere entre si,<br />

considerando o contexto e o dialogismo no tempo que pode expressar ruptura ou continuidade<br />

do sentido dos discursos referidos. Essa lacuna diz respeito ao fato de que para lidar com o<br />

contexto, focado no quatrilho, modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição, seria<br />

necessário eleger um terceiro SD que não se expressasse nem como aderente, nem como<br />

contestador, nem Barão da Ralé, nem Rapaz Folgado. Segundo minha interpretação, fez-se<br />

27 No bico da chaleira. Costa Junior, 1909.<br />

28 Vai com jeito. (I) Emilinha Borba – (C) Braguinha, 1957.<br />

29


imprescindível para abordar, mais plenamente, os temas da modernidade, urbanidade,<br />

identidade e tradição no campo reflexivo do <strong>cancioneiro</strong>, considerar um terceiro SD.<br />

Esse terceiro SD, a exemplo dos SD eleitos até agora, Barão da Ralé e Rapaz Folgado,<br />

constitui relações dialógicas configuradas por mim como intérprete que traduz no dialogismo<br />

expresso nos discursos desse terceiro SD uma construção de oposição entre o campo e a<br />

cidade. Porém, essa oposição não é, sequer dialeticamente, dada, muito menos, dicotomizada,<br />

o terceiro SD constrói a urbanidade à medida que reconstrói o rural sob a experiência da<br />

perda. Entra na cidade para reconstruir o campo nela. Essa construção refaz vínculos<br />

identitários com o suposto lugar de origem, que não é a cidade, mas, que precisa ser<br />

reconstruído como oposição a ela. Assim, a nossa terceira alegoria justifica sua emergência<br />

como SD que se inscreve transpassando as questões de aderência e contestação e que tem<br />

como mote as relações de identidade e pertencimento principalmente em condições de êxodo<br />

e migração. Mas, não necessariamente êxodo e migração objetivados em corpos físicos que se<br />

movem no espaço, mas como movimentos inscritos como discurso que contamina e umidifica<br />

o campo com a rasura da cidade A essa terceira alegoria daremos o nome de Contente<br />

Magoado 29 , considerando que na construção identitária expressa no processo de<br />

reterritorialização que produz em contraponto à urbanidade/modernidade que o contexto<br />

inscreve, apela tanto para sentimentos de esperança com o novo, o incerto, o devir que o faz<br />

contente, palhaço, jeca, matuto, bruto quanto com a percepção da perda, da saudade que o<br />

magoa; torna-se o solitário, o sertanejo, retirante, caboclo, xucro, bugre. A saudade revestida<br />

sempre com a possibilidade do retorno que o refaz re-contente pelo retorno, mas, que, por sua<br />

vez, é sempre revestido com a impossibilidade da origem considerando que nem o Contente<br />

Magoado seria o mesmo ao retornar, nem o lugar seria o mesmo ao recebê-lo; e então se re-<br />

magoa. Nem contente, nem magoado e Contente Magoado.<br />

Em busca de fechar tradições/identidades regionais que remetem ao tempo/espaço pretérito o<br />

Contente Magoado alicerça-se em discursos de origem construída a partir de uma Europa<br />

feudal, mítica, ecumênica e rural. Esses discursos são adaptados e rasurados por sincretismos<br />

culturais regionalizantes. Isso vale para os fandangos do Paraná ou para o Boi-Bumbá do<br />

Pará. Fora do campo da música esses discursos inscrevem tipos regionais como o gaúcho dos<br />

pampas, o caipira paulista, o sertanejo de Guimarães, o retirante de Graciliano, em comum, os<br />

29 A música “O país de São Saruê” de Luis Gonzaga, José Siqueira e Marcus Vinícius, 1971, do<br />

documentário homônimo de Vladimir Carvalho, inspirou o batismo da alegoria com a frase “a balança<br />

dos contentes pesa a sede dos magoados”. No SD Contente Magoado o dialogismo operando o<br />

conflito interno de um mesmo sujeito discursivo, expressa a fala de dominados e dominadores como<br />

Contente Magoado.<br />

30


alteres urbano e civilizado, o sentido de perda da tradição, a tradição como algo que remonta a<br />

uma Europa rural e distante no tempo.<br />

O problema é que estas tradições/identidades antes de se fecharem num discurso que vai da<br />

origem ao fim, fixando um discurso fundador e final que contemplaria elementos comuns dos<br />

diversos discursos regionais a nível nacional, antes disso, entra em colapso. Isto é, quando<br />

ainda se encontravam nesse trânsito entre origem e fim no nível regional, os discursos<br />

fundadores da tradição já foram se constituindo como construções da perda, e como tais, não<br />

se prestariam ao papel de alicerce do discurso hegemônico da identidade nacional. A virada<br />

do século marca um impasse dogmático do pensamento nacional que se acentua no mesmo<br />

ritmo com que os regionalismos se auto-afirmam sob signos de perda e dominação (êxodo,<br />

carência, saudade, etc.): ou se apóia a identidade nacional sobre a tradição atrasada,<br />

reafirmando uma cultura sem estrangeirismos, mas que expõe o país ao risco de “perder o<br />

trem da história em direção ao primeiro mundo” ou adere-se aos estrangeirismos citadinos e<br />

se abre mão de uma identidade com base em tradições seculares que reinscrevem ainda no<br />

século XX um outro Brasil, rural e arcaico, na Casa-grande, na lavoura sertaneja, no pastoreio<br />

dos pampas, nas comitivas, nos pesqueiros de jangada e rede, nos festejos <strong>popular</strong>es, nos<br />

laços de compadrio, comunitários e provincianos. O fato é que a dicção da perda é o reflexo<br />

de que a tradição por si não se impôs como alicerce para o processo de construção da<br />

identidade nacional no século XX, mas, como contraponto da modernidade, como um coro<br />

grego que canta nos tons maiores as modas da saudade. A “Tristeza do Jeca”, ao contrário do<br />

samba-canção urbano, é chorada em “Do maior” mesmo. Tom alegre que disfarça/mitiga os<br />

signos tristeza e perda no Contente Magoado.<br />

Essa alegoria desliza em direção ao centro, à cidade, ao urbano, para cantar com saudades, e a<br />

esperança da volta, a perda daquilo que não chegou a se constituir em sua totalidade como<br />

identidade nacional: a tradição. Nesse caminho ele já não é o Jeca, mas também não se<br />

constitui como urbano. Disfarça-se num jogo de afirmação e negação da origem regional<br />

rasurada e incompleta a exemplo dos comedores de luz da canção Brejo da Cruz de Chico<br />

Buarque: “Mas, há milhões desses seres que se disfarçam tão bem, que ninguém pergunta de<br />

onde essa gente vem 30 ”.<br />

Num primeiro movimento, o Contente Magoado é o objeto de discurso tomado como aquilo<br />

para o qual se realiza o esforço de fechar a tradição em um discurso único de identidade<br />

nacional: um país de cultura exclusivamente nacional, cujas raízes pretéritas se fincariam num<br />

30 Brejo da cruz. Chico Buarque, 1984.<br />

31


passado, não menos nebuloso e glorioso, de uma nação européia. Porém, no meio do<br />

caminho, dá-se conta de que essa tradição não será suficiente para alicerçar o outro<br />

movimento que os discursos nacionais modernizadores manifestam as portas do século XX:<br />

um país que necessita embarcar no trem da história sob o risco de ficar para trás imobilizado<br />

pelo peso dessa mesma tradição que, por sua vez, ainda se encontrava mal assentada no<br />

discurso de nação. Esse movimento de abandono da tradição e aceitação da modernidade sob<br />

o ônus do estrangeirismo artificial, já traz embutido um terceiro que diz respeito a emancipar-<br />

se da Europa, propondo uma identidade moderna e singular. O pensamento que resultará no<br />

modernismo de 22 insurge de dentro da Belle Époque sugerindo que: “no momento em que o<br />

<strong>brasileiro</strong> estava espiritualmente, mais vinculado ao Velho Mundo é quando começa a pensar<br />

em emancipar-se” (S. B. Hollanda apud Santiago, p.30, 2006).<br />

Por sobre esse triplo deslizamento – tradição, modernidade postiça, modernismo singular – o<br />

Contente Magoado produz seu segundo movimento, desta vez em direção ao centro<br />

(considera-se que a idéia de centro desliza tal qual a de periferia, ou de moderno ou de<br />

tradição), cujo fim também não se conclui, uma vez que a alegoria Contente Magoado<br />

também não se fecha, não se constitui como um sujeito urbano.<br />

Com a entrada em cena do SD Contente Magoado, um problema se apresenta à nossa<br />

construção antes mesmo de ser possível colocá-la, metodologicamente, em prática. Parte-se<br />

do pressuposto de que a identidade “Contente Magoado” (construção minha), e a do sertanejo<br />

ou matuto ou jeca etc. (construção tanto dos inúmeros sujeitos discursivos do campo da<br />

literatura, imprensa, academia, etc. localizados no contexto, quanto dos SD eleitos do campo<br />

do <strong>cancioneiro</strong>), constrói-se através de um processo dialógico com os sujeitos discursivos do<br />

“centro” ou do Rio de Janeiro e São Paulo ou da cidade ou da parte que se inscreve urbana,<br />

moderna e progressista nos discursos que tratam do regional no país. Porém, quando essa<br />

construção, seja do Contente Magoado, construção minha, seja do sertanejo, matuto,<br />

especificado na cidade, alcança de fato o Contente Magoado (ou o sujeito sertanejo lá no<br />

sertão, construção hegemônica oposta a tudo o que diz centro e cidade) já o encontra, não por<br />

coincidência, escorregando pelo discurso do êxodo ou do completamente outro, cidade,<br />

imaginando-se, para o bem ou para o mal, nas rodas da Itapemirim ou no pau de arara das<br />

rodovias do eixo norte-sul, ou no caminhão velho que fornece às cidades os “caipiras” dos<br />

interiores e os “brutos” pampeiros, ou no Ita ou na chalana que desce do Mato Grosso em<br />

direção a qualquer grande centro urbano, independentemente do que isso especifique. E isso<br />

ocorre antes mesmo que se complete o movimento identitário que o fixaria como sujeito<br />

32


discursivo com esta ou aquela característica. Isto é, quando a voz que canta Asa branca e<br />

Carcará, quando o discurso que denuncia as mazelas da periferia, principalmente do<br />

nordestino e a seca (mas, também do jeca paulista inadaptado à velocidade urbana ou do<br />

bugre gaúcho arredio) na voz de Luís Gonzaga via Rádio Nacional a partir da cidade alcança<br />

(e já vai constituindo) o sertanejo/caipira, pela marca do que é dito sobre ele, rasura-o com a<br />

marca citadina antes mesmo dele, em primeiro lugar corresponder a uma suposta condição<br />

fixada de sertanejo (construção de inúmeros sujeitos discursivos como especificado) ou de<br />

Contente Magoado (construção minha) e, claro, antes dele alcançar uma suposta condição<br />

citadina 31 . Isso significa dizer que antes dessa construção, a identidade de “matuto” podia ou<br />

não existir ou não corresponder em nenhum aspecto à forma como ela passou a ser proposta<br />

como forma antitética do civilizado. A seguinte questão se nos apresenta: podemos pensar o<br />

Contente Magoado como uma não-categoria 32 que antes mesmo de se completar em seu<br />

drama marcado por êxodos, saudades, intempéries da natureza e injustiças sociais já escorrega<br />

para outra possibilidade identitária que se estabeleceria no futuro como sujeito urbano e<br />

moderno, mas que por hora não passa de uma possibilidade? Uma possibilidade de<br />

interpretação para pensar o Contente Magoado como não-categoria ou categoria que não se<br />

completa, aponta no sentido de pensá-lo marcado por um discurso de identificação em<br />

trânsito. Primeiro por certo conjunto discursivo manifesto pela voz da poesia de cordel, da<br />

poesia <strong>popular</strong>, das fábulas, lendas e cantigas da roça entre os séculos XVIII e XIX que<br />

inscreve o Contente Magoado como sujeito discursivo manifestado a partir de uma suposta<br />

origem ibero-castelã localizada na Europa da Idade Média sublinhada por imagens de<br />

Cruzadas, Mouros, Cruzes, Mosteiros, guerreiros, cavaleiros, reis e rainhas, príncipes, feudos<br />

31 Aqui uma pequena confusão pode se instaurar. A construção SD Contente Magoado ou a<br />

construção de nordestino, ou a de matuto ou a de sertanejo etc. podem e devem se confundir com<br />

um sujeito objetivado que entra num ônibus ou num caminhão, que se queixa da cidade, que se<br />

preserva da modernidade nas fronteiras platinas. Confundem-se, considerando que as construções<br />

aqui propostas, para efeito de sujeitos discursivos constituídos e constituidores de discursos, dizem<br />

de sujeitos discursivos tanto quanto o “eu” que escreve e os “meus alteres” leitores que seremos,<br />

remetidos por mim, à categoria de sujeitos discursivos prévios (os SD prévios serão devidamente<br />

apresentados mais adiante) que se distinguem dos sujeitos discursivos eleitos uma vez que essa<br />

relação já existiria (considerando que no doutorado sempre se prevê a produção e defesa de uma<br />

tese, desde que se ingressa no curso) antes mesmo da constituição do discurso-tese e logo da<br />

elaboração dos SD eleitos. Porém, essa distinção limita-se, exclusivamente, a essa temporalidade e<br />

não quer dizer que entre os SD prévios e eleitos configure-se uma classificação de sujeitos<br />

discursivos de natureza distinta do tipo “sujeito” e “objeto”. Outrossim, SD eleitos e prévios, assim<br />

como nordestinos que migram ou não, sambistas que sobem o morro, empunham violões, arengam<br />

com a polícia e circulam em salões de gafieiras, constituem-se, de igual maneira, como sujeitos<br />

discursivos constituidores e constituídos discursivamente como eu e o leitor.<br />

32 É necessário esclarecer que todas as alegorias constituídas serão entendidas por mim como não<br />

categorias derridianas, porque deslizam, ainda que, entretanto, constituam-se como elementos à<br />

interpretação.<br />

33


e burgos. Essa miríade de imagens que se relacionam à medida que esboçam um passado em<br />

comum, aos poucos vai sendo revestida de brasilidade e regionalidade, através de folguedos,<br />

jogos e festas sacro-profanas, para então, já no decorrer do século XX escorregar para uma<br />

suposta possibilidade de condição citadina construída a partir da construção da diferença<br />

campo cidade expressa também nos signos do êxodo e da saudade, como já formulado. Se às<br />

portas do século XX o sertanejo foi antes de tudo um bravo nos Sertões euclidianos, se no<br />

decorrer do século XIX foi à pena e pincel construído como um puro, pelo nosso romantismo<br />

eurocêntrico, se no meio do século XX foi retratado como o injustiçado, espólio do processo<br />

de modernização do país, (isso, para falar tão somente de discursos cânones que, a seu tempo,<br />

ainda precisavam defender-se de discursos subversivos de desconstrução, manifestados pelas<br />

vozes de seus alteres contemporâneos), se tudo isso já pôde um dia corresponder à uma dada<br />

condição rural, (e em certa medida, boa parte desses cânones permanece como tal,<br />

digladiando-se e rasurando-se com outros discursos) é no mínimo suspeitoso apostar fichas<br />

numa identidade fechada e fixa servindo de alicerce para a categoria do sertanejo, do matuto<br />

ou do nordestino. Para trabalharmos aqui com a não-categoria Contente Magoado,<br />

correspondendo a uma determinada posição de sujeito, faz-se então necessário pensar que<br />

estamos trabalhando com características de certos discursos produzidos momentaneamente<br />

sobre uma suposta relação de identificação/reterritorialização que desliza pelo “entre 33 ” das<br />

falas cruzadas, e não com a existência de discursos cujo significado é único e monocórdio, ou<br />

seja, (a exemplo do que já vamos observar como problemático, também, para os discursos dos<br />

outros SD eleitos, BR e RF) não poderiam ser interpretados sequer como multisignificações<br />

especificadas em um quadro de posição ou estado de sujeito.<br />

Mas, o que exatamente se quer dizer com deslizar, ou mais, com esse deslizar no entre?<br />

O processo de desconstrução do conceito e do não-conceito em Derrida dá-se através de<br />

momentos distintos, mas, simultâneos: o primeiro, diz do reconhecimento da hierarquia em<br />

que se alavanca o conceito do analista com o intuito de derrubá-lo, o que caracteriza a<br />

inversão da hierarquia anterior. No segundo, de deslizamento, ocorre o movimento do<br />

conceito cujo percurso e fim não podem ser previstos.<br />

34<br />

Aceitar essa necessidade (derrubamento) é reconhecer que, numa oposição<br />

filosófica clássica, não tratamos com uma coexistência pacífica de um vis-àvis,<br />

mas, com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos domina o outro<br />

(axiologicamente, logicamente, etc.) Desconstruir a oposição é (...) derrubar<br />

33 O entre inscreve um indefinível importante para o efeito rasura derridiana. Entre ou no entre como<br />

limite, nem um, nem outro, ou como confusão, no meio, dentro, constituindo os dois diferentes,<br />

operando dentro das duas falas cruzadas.


a hierarquia. Menosprezar esta fase de derrubamento é esquecer a estrutura<br />

conflitual e subordinante da oposição (DERRIDA, Posições, p.54, 1974).<br />

A própria idéia por traz do ato de desconstruir, que contém o deslizamento, remete, não a<br />

negação do sistema, mas ao deslocamento do conceito clássico que ele sustenta.<br />

35<br />

A desconstrução não pode limitar-se ou passar imediatamente a uma<br />

neutralização: deve, por um duplo gesto, uma dupla ciência, uma<br />

dupla escrita, praticar uma inversão da oposição clássica e um<br />

deslocamento geral do sistema. (...) A desconstrução consiste, não em<br />

passar de um conceito a outro, mas, em inverter e em deslocar uma<br />

ordem conceitual, bem como a não conceitual na qual se articula<br />

(DERRIDA, Limited Inc, pp.36,37, 1991).<br />

O deslocamento ou deslizamento do conceito original, ao negar a possibilidade de origem<br />

caracteriza a marca, a rasura que Derrida propõe como resultado como aquilo que fica<br />

gravado do movimento do conceito e do não conceito. A diferança (differance) expressa essa<br />

possibilidade de movimento, essa movência em que toda tentativa de totalização, fechamento<br />

ou esgotamento do discurso sobre algo falha, ao abrir-se sob os pés do totalizador uma nova<br />

possibilidade de movimento, sempre que algo mais é acrescentado ao que é dito sobre o algo.<br />

Esse sobre que aceita sem nunca se fechar, esgotar ou mesmo sem se deixar tocar, ferir pelo<br />

que nele se deposita é o que Derrida denomina como khôra. A khôra (nem conceito nem não-<br />

conceito que não implica em dentro e fora) pode ser pensada como aquilo que possibilita dizer<br />

Nordeste e não Nordeste ou sertão e não-sertão. O “entre” que possibilita ao mesmo tempo o<br />

estabelecimento do limite como espaçamento e da confusão como presença nos dois<br />

diferentes. É o que torna possível o discurso territorializar e desterritorializar, ou o discurso<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> (e sua negação) ser interpretado por inúmeros autores como repertório<br />

que “representa” a cultura nacional ou ser interpretado por mim como instancia mediadora,<br />

como campo interdiscursivo, que agrega discursos em estado dialogizante interno (sofrendo a<br />

interferência de discursos localizados no contexto, externo ao campo) que inscreve<br />

construções de modernidade, urbanidade, ruralidade, tradição e identidade. Porém, campo e<br />

contexto, como aspectos de dentro e de fora do <strong>cancioneiro</strong>, segundo consta em nossa<br />

interpretação até aqui, já vão sendo desconstruídos por khôra, pelo entre que rasura o dentro e<br />

o fora, que abarca o que foi e é dito sobre um <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> e um não-<strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong>, mas, não os encerra e menos ainda, se encerra nessa polarização. Ao contrário, é o<br />

que a faz mover, é o que torna não-<strong>cancioneiro</strong> em <strong>cancioneiro</strong> e vice-versa, é o que deixa<br />

entrever no entre do conceito (e do não-conceito) que nunca se fecha naquilo que já foi dito<br />

ou negado, mas que, de alguma forma continua ali, visível, compondo. Sempre que algo é dito<br />

sobre um discurso (<strong>cancioneiro</strong>, Nordeste, sertão) um novo movimento de temporização


produz um novo espaço-tempo na khôra que se move, se expande, se contrai, mas não se<br />

extingue. Pode mesmo vir a desdobrar-se tanto e tão longe daquela interpretação que abarcava<br />

a ponto de mais nada do movimento anterior ainda existir, a ponto de não haver mais um<br />

Nordeste frente a um não-Nordeste, ou um sertão e um não-sertão ou um <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

e seu negativo, mas até lá, enquanto os deslizamentos, deslocamentos, esse desdobramento da<br />

movência, permitirem ver no entre, nos espaços não totalmente preenchidos do discurso, o<br />

que lhe era dito anteriormente, permanece a khôra, nem sensível, nem inteligível, como o<br />

terceiro gênero, permitindo essa mirada, essa percepção de parte do discurso que foi no que é,<br />

como que superpostos também por um possível será. Essa possibilidade de movimento que a<br />

khôra aceita, mas não encerra, diz respeito ao deslizar no entre: espaço que se forma entre o<br />

conceito e sua negação, oposição que a khôra propicia sem se submeter a ela e ainda<br />

participando dos dois pólos.<br />

36<br />

Propiciando oposições, ela mesma, não se submeteria a nenhuma inversão.<br />

Não porque seria inalteravelmente ela mesma para além de seu nome, mas,<br />

porque levando para além da polaridade do sentido, ela não pertenceria mais<br />

ao horizonte do sentido, nem do sentido como sentido do ser (DERRIDA,<br />

Khôra, p. 16, 1995). (...) A khôra é anacrônica, ela é a anacronia no ser, ou<br />

melhor, a anacronia do ser. Ela anacroniza o ser (DERRIDA, Khôra, p. 18,<br />

1995). (...) As interpretações viriam então dar formas à Khôra, deixando nela<br />

a marca esquemática de sua impressão e depositando o sedimento de sua<br />

contribuição. Apesar disso, a khôra parece jamais se deixar sequer atingir ou<br />

tocar, menos ainda ferir, e, sobretudo, não se deixa esgotar por esses tipos de<br />

tradução trópica ou interpretativa (idem, p.19).<br />

Já nos seria possível agora pensar nesse movimento de deslizamento como um movimento de<br />

deriva que o nome executa toda vez que se diz algo sobre ele. O nome movimenta-se de uma<br />

origem rasurada (considerando-se a impossibilidade de uma origem original), marca daquilo<br />

que foi dito sobre ele, para um fim rasurado (considerando a impossibilidade de esgotamento<br />

de interpretações do nome), marca que expressa o estado para o qual o nome deslizou. A idéia<br />

de deslizamento/deslocamento me parece adequada, considerando que esse deslizar não pode<br />

ser totalmente previsto e controlado, ainda que intenções, interesses e estratégias,<br />

hegemônicas e contra-hegemônicas, devam ser consideradas no ato de nomear o nome. O<br />

nomear expressa um embate de poder cuja força hegemônica, por isso mesmo não totalitária,<br />

obtém resultados parciais de controle, enquanto as não hegemônicas obtêm resultados parciais<br />

de resistência. O fim rasurado, para onde desliza o nome, expressaria os sentidos parciais e<br />

momentâneos que os discursos desejam para o nome. O deslizamento no entre quer dizer<br />

desse desviar para um lugar imprevisível e indeterminado no e pelo calor do embate. No


entre, não diz de uma interseção entre um modo ou outro de dizer, mas sim dessa<br />

impossibilidade excludente do modo de dizer que nunca é salva das contradições que o<br />

embate de forças hegemônicas e contra-hegemônicas manifesta nas traduções, interpretações<br />

e nomeações do nome. Deslizar no entre é desviar da tradução ideal para a tradução possível<br />

considerando-se a negociação com o outro do nome. É considerar que tudo o que é dito sobre<br />

o nome rasura-o com a marca do deslocamento no entre do nome e do outro do nome. Em<br />

resumo, deslizar no entre é deslizar no embate, na simultaneidade do levantamento e da<br />

inversão.<br />

Tomemos agora, em nossa empiria dialogizante, de um ponto da historiografia que se ocupa<br />

do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> (por exemplo, na década de 40, quando o <strong>cancioneiro</strong><br />

expressou uma série ufanista de canções para a ditadura de Vargas localizadas no conjunto<br />

abarcado pela alegoria do SD Barão da Ralé), o Sujeito Discursivo Contente Magoado. Essa<br />

tomada provoca uma seqüência de deslizamentos. Um primeiro deslizamento é provocado já<br />

pelo ato de recortar: recorte expresso pela construção do Contente Magoado que eu proponho<br />

dentro da historiografia do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> (assumindo todo o problema que<br />

esse dentro confirma). Isto porque, o meu recorte já seria uma re-interpretação (rasura em<br />

Derrida) do significado desse discurso (<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong>) e acrescenta um novo<br />

significado à cadeia de multisignificados (segundo Bakhtin) que esse discurso já expressava<br />

antes da chegada do meu recorte/rasura. O meu recorte arbitrário produz um movimento do<br />

significado de um ponto A qualquer, marca, rasura, para um ponto B, indefinido e<br />

momentâneo, (porque já vai sendo superado pela interpretação do leitor e de outros discursos<br />

que se inscrevem sobre o <strong>cancioneiro</strong>). O SD eleito desliza em conseqüência da marca de não-<br />

origem que o SD prévio, “eu”, produzo no <strong>cancioneiro</strong> ao propor o recorte. O deslizamento<br />

diz desse movimento imprevisto, a partir da marca de não-origem expressa no comentário, na<br />

tradução, na nomeação. Não sei para onde vai o conceito e o seu “outro”, só posso afirmar<br />

que B é diferente de A. Tomando-se agora como exemplo os SD Barão da Ralé e Rapaz<br />

Folgado, podemos propor que, no contexto trabalhista, os discursos do SD Barão da Ralé são<br />

sulcados de forma aderente – “O trabalho é um dever todos devem respeitar, ó, Isaura me<br />

desculpe amanhã eu vou voltar” – pelo discurso hegemônico das elites – “O Brasil ostenta<br />

vergonhosamente a marca de 70 % de desempregados e sub-empregados e 50% de<br />

analfabetos, segundo dados do IBGE deste ano de 1940” – que ao cobrar compromisso<br />

<strong>popular</strong> com a necessidade de reverter a estatística, pode acabar produzindo no SD Barão da<br />

Ralé um movimento de dobra, transfigurando-o em seu oposto. Isto é, o BR, diante do<br />

37


fracasso em corresponder às expectativas do contexto trabalhista, pode, aos olhos da elite,<br />

dobrar-se sobre si aproximando-se do Rapaz Folgado – Fiz tudo para ver seu bem estar, até<br />

no cais do porto eu fui parar, martirizando o meu corpo noite e dia, mas, tudo em vão ela é<br />

da orgia, parei 34 ” – e caracterizando um movimento de deslizamento imprevisto por ele, por<br />

seu altere RF, pelas elites e pelos SD prévios eu e leitores.<br />

Sobre os deslizamentos do Rapaz Folgado e do Barão da Ralé podemos afirmar que os dois<br />

deslizam de um para o outro dependendo da situação – ambos estão sintetizados na figura do<br />

malandro que desliza no tempo em suas relações com seus alteres. Não é revolucionário.<br />

Antes de completar o movimento em direção ao contestador e em seqüência ao revolucionário<br />

o Rapaz Folgado desliza na direção do Barão da Ralé que não chega por sua vez a completar<br />

o movimento de aburguesamento e tende a retornar a condição de Rapaz Folgado quando o<br />

dialogismo com seus alteres da elite aponta no sentido de enquadrá-lo na sociedade do<br />

trabalho.<br />

Assim, vai ficando cada vez mais difícil sustentar essa oposição da metodologia dialógica,<br />

entre um dentro (campo) e um fora (contexto) uma vez que os SD eleitos, segundo uma<br />

interpretação derridiana, seriam sulcados pelo contexto trabalhista. O contexto,<br />

independentemente de ser parte constituidora do dialogismo está dentro e fora. Derrida<br />

desconstrói o contexto como mais uma coisa que sulca e produz deslizamento 35 .<br />

Outro deslizamento começaria simultaneamente ao ato de ler (interpretar/traduzir) o que já<br />

desliza, desta vez, provocado pelo leitor. Esses dois deslizamentos (escrever e ler) expressos<br />

em seqüência tornam-se simultâneos se considerarmos que o leitor já está presente, no sentido<br />

dialógico, no primeiro deslizamento e vice versa, considerando também que a leitura (que<br />

segundo Derrida não se diferenciaria da escrita, considerando que ambas fundem-se na idéia<br />

de “escritura” tal qual a fala e a escrita) é rasurada pelas sucessivas construções que o leitor,<br />

prévia, simultânea e constantemente, produz do Sujeito Discursivo que, em termos formais,<br />

escreveria esta apresentação, no caso, eu.<br />

Esse duplo deslizamento que ocorre agora, antes mesmo de se interpretar o objeto canção<br />

através dos sujeitos discursivos alegóricos, antes mesmo de recortá-lo de fato, não implica<br />

34 Oh Seu Oscar. Ataulfo Alves, Wilson Batista, 1939.<br />

35 Mas, os requisitos de um contexto serão absolutamente determináveis? Tal é, no fundo, a questão<br />

mais geral que gostaria de tentar elaborar. Há um conceito rigoroso e científico do contexto? A noção<br />

de contexto não abriga, sob uma certa confusão, pré-supostos filosóficos muito determinados? Para<br />

dizer algo de modo sumário, gostaria de demonstrar porque um contexto nunca é absolutamente<br />

determinável ou, antes, em que sua determinação nunca será assegurada ou saturada (DERRIDA,<br />

Limited inc.p. 13, 1991)<br />

38


movimento de um suposto ponto A para um ponto B, considerando que: não existe uma<br />

origem “ponto A” (para além da minha decisão arbitrária), eleito por mim, dentro da referida<br />

historiografia. Não existe porque o recorte Contente Magoado (Barão e Rapaz também)<br />

desliza no tempo como eu e o leitor, e, suas marcas, as marcas que eu destaquei como<br />

características desse SD, não são exclusivas desse SD e persistem no espaçamento para além e<br />

aquém do recorte metafísico que construo. Da mesma forma, esse movimento de A para B<br />

não vai encontrar ao término da narrativa um fim que dentro de um percurso temporizador<br />

(tempo/espaço) esgotaria o SD Contente Magoado.<br />

Ao escrever essa tese considera-se ainda a mesma dupla impossibilidade de marcar a minha<br />

própria origem ou meu esgotamento em posição dialogizante ao tema. Ao adiantar a fala do<br />

leitor, idem. Nem origem, nem esgotamento seriam possíveis de serem determinados a partir<br />

do que posso considerar dialogicamente como participação do leitor na construção do<br />

discurso tese que trata de movimentos operados pelos discursos dos sujeitos discursivos<br />

eleitos. Em síntese, constituir-me dentro da tese de forma deslizante, da mesma forma que o<br />

faço com o leitor e os SD eleitos, inviabiliza a determinação de origem e esgotamento dentro<br />

do recorte.<br />

A percepção desses deslizamentos leva a constatação de que a formatação de uma<br />

interpretação discursiva dentro de um molde de Posição de Sujeito como sugerido pela<br />

metodologia com base em Bakhtin, deve ser, a partir de agora, ainda que previamente, não<br />

inviabilizada, mas, rasurada pelas possibilidades da substituição da Posição de Sujeito pelo<br />

Estado de Sujeito.<br />

Sobre o leitor deslizante deve-se então considerar dois Estados de Sujeito que guardariam<br />

lugar privilegiado na estrutura discursiva que a tese expressará: o Estado de Sujeito<br />

Orientador, que do ponto de vista dialógico guarda lugar de primazia na elaboração do<br />

discurso tese, e o Estado de sujeito Banca Examinadora que também interfere dialogicamente<br />

no discurso tese, considerando que detém o poder de validar ou desqualificar o discurso.<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, previamente, enquanto movimento de deslizamento nos SD eleitos,<br />

CM, BR e RF, já seria rasurado por mim que deslizo no tempo de elaboração do discurso tese<br />

ao reformular sucessivamente identificações e reterritorializações, pelos dialogismos<br />

correspondentes aos sujeitos discursivos prévios, orientador e banca.<br />

O primeiro, orientador, rasura os SD eleitos de um lugar dialogicamente privilegiado<br />

considerando a proximidade que a orientação guarda em relação à produção do discurso tese.<br />

39


O segundo – banca examinadora – ao ocupar lugar de poder, considerando a inevitável marca<br />

de autoridade que produzirá na tese em dado momento, rasura os SD eleitos de um lugar não<br />

menos presente no dialogismo expresso em meu discurso que incorpora aquilo que devo ou<br />

espero ouvir de forma responsiva de meus leitores.<br />

Estes efeitos de rasura entre os SD eu, leitor (Orientador, Banca Examinadora, demais<br />

leitores) e o discurso-tese rasurado (já sob a marca derridiana) correspondem a rasuras<br />

prévias, tendo em vista que o exercício de interpretação discursiva do objeto de pesquisa<br />

empírica 36 ainda não começou.<br />

Apesar de já estarem identificados como Barão da Ralé, Rapaz Folgado e Contente Magoado,<br />

os discursos dos SD eleitos, para o discurso-tese, precisam ser postos em dialogismo entre si,<br />

considerando sua condição discursiva rasurada, considerando a interferência dos discursos<br />

que emergem do contexto e por fim aquilo que prevejo de discursos que resultam das rasuras<br />

prévias: eu, leitores e discurso-tese.<br />

♪♪♫♫<br />

A partir desse momento, a rasura da metodologia passa a atuar de forma constante. O corpus<br />

desloca-se em direção a outra coisa onde não caberia mais dizer o que a música fala ou deixa<br />

de falar. Ou de desvendar significados e sentidos da urbanidade, tradição, modernidade,<br />

ruralidade, identidade, centro, periferia. Trata-se de seguir os deslocamentos como pistas,<br />

através das marcas das rasuras e identificá-los através das canções, tratadas a partir de agora<br />

como rastros daquilo que se investiga nos discursos dos SD eleitos: movimentos de<br />

identificação 37 e reterritorialização 38 dos discursos dos SD eleitos que especificam estratégias<br />

dialógicas de sobrevivência e resistência aos discursos hegemônicos. No calor do embate,<br />

entre hegemonias e singularidades, os nomes da identidade, do urbano, do rural, do moderno e<br />

da tradição deslizam e se re-configuram na medida em que se tenta afirmar o que são.<br />

A princípio deve-se criticar a visão estruturalista do <strong>brasileiro</strong> amarrado na camisa de força<br />

das identidades construídas por opostos: Porém, acredito que será pela marca/rasura dessas<br />

dicotomias (civilizado/primitivo, negro/branco, rural/citadino) que se poderá seguir o rastro<br />

36 Os dialogismos expressos por certo conjunto discursivo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> que, segundo<br />

minha interpretação, tematiza sobre construções discursivas do moderno, do urbano, do rural, da<br />

identidade nacional e da tradição.<br />

37 Identificação como sentimentos de empatias fluidas, vulneráveis a rasuras circunstanciais e jamais<br />

fixadas no tempo. Na construção de Stuart Hall, a identificação se expressa como oposição ao<br />

conceito rígido de identidade.<br />

38 Reterritorialização como expresso no Ritornelo de Deleuze (1997), onde a ação de territorializar ou<br />

desterritorializar é entendida como movimento de posse do direito de nomear, lugar de conflitos da<br />

ordem do discurso, mas que expressam relações de dominação objetivadas e concretas.<br />

40


dos movimentos estratégicos que os discursos dos SD eleitos descrevem no decorrer do<br />

século XX. A identidade incompleta já não se define mais pelo seu oposto. O <strong>brasileiro</strong> não<br />

seria simplesmente o oposto do europeu. Mas, também não seria a mera negação dessa<br />

dicotomia.<br />

Perceber o indecidível khôra atuando no entre das aparências fenomenológicas. Os discursos<br />

do Barão da Ralé sob os do Rapaz Folgado e vice versa. O discurso do Contente Magoado<br />

urbano sob o solo da sanfona. Ouvir a grande capital paulista soar nos intervalos de terça da<br />

música caipira. O chocalho do gado rosiano ecoando na Presidente Vargas, cercada pela Zona<br />

do Mangue, pela proximidade com a Mangueira, o Estácio e os bairros portuários da Pequena<br />

África.<br />

Pensar nesse “entre” derridiano, expressão de khôra, como aquilo que está no entre, no<br />

embate, como algo que ainda não é, mas, também não o deixa de ser. O “entre” como<br />

espaçamento e confusão que permite o ver e o não ver (o que a fenomenologia chamaria de<br />

iguais e diferentes) as diferenças atuando em khôra, condição da possibilidade da marca, da<br />

rasura. O indefinível derridiano não se constitui nem como conceito nem como identidade,<br />

nem coisa nem signo, mas já se apresenta como possibilidade/devir através desse<br />

deslizamento no entre da possibilidade presente e do devir futuro. O espaçamento no entre<br />

como possibilidade de movimento entre um ser e um não-ser, ou mesmo entre um estar e um<br />

não-estar, a exemplo dos SD eleitos por nós configurados, que não aderem à posição de<br />

sujeito que os fixa e já deslizam para outra coisa que não é exatamente o seu oposto, mas, que<br />

incorpora no sentido dialógico a fala do outro. Pensar nesse movimento como micro-<br />

insubordinação à medida que não emula o valor do outro, mas também não o revoluciona.<br />

E abro um parágrafo para compartilhar certas dúvidas e desconfortos com o leitor/autor tese 39 .<br />

Mas, poderíamos nos perguntar agora para que serve identificar o deslizamento. Para que<br />

serve o método desconstrutivista? É substituir uma verdade da fixidez por outra do<br />

deslizamento? O mundo está condenado ao estado de movência e não se discute? Toda<br />

tentativa de fixação é reacionária e metafísica e deve ser combatida? Propor essa propriedade<br />

da movência tal qual movente – possibilidade de movimento – seria a resposta definitiva para<br />

a questão? E se o for isso também não seria fixo como um conceito?<br />

39 SD Orientador: “Leitor/autor da tese, não é? Seja como for, a indicação do ‘autor’ na frase implica<br />

que está em jogo aqui um dialogismo entre o texto (este da tese) e o próprio autor. Como se o texto<br />

se “independentizasse” do autor. É isso mesmo?”<br />

41


Retornando aos SD eleitos, considero que o quadro Posição de Sujeito, ainda que fosse<br />

renomeado e operado segundo uma nova condição de Estado de sujeito, não me pareceria<br />

adequado como esquema metodológico, uma vez que o discurso tese, para além da<br />

hermenêutica dialógica, deve, a partir de agora, ser transformado pelo pensamento derridiano<br />

que se ocupa menos de rupturas e negações, próprias do pensamento estruturalista, do que das<br />

identificações de rasuras, deslizamentos e rastros produzidos pelos discursos dos SD eleitos.<br />

Sob a perspectiva metodológica rasurada, apresentamos, no lugar de outro esquema em tabela,<br />

uma figura, onde os discursos dos (1) SD prévios 40 , eu, orientador, Banca examinadora,<br />

leitores, constituídos discursivamente por discursos sobre o <strong>cancioneiro</strong> que trata da<br />

ruralidade, urbanidade, modernidade, identidade e tradição e os discursos dos (2) SD eleitos<br />

por mim: Barão da Ralé, Rapaz Folgado e Contente Magoado, dialogizando entre si,<br />

produzem um efeito de rizoma que, ao desestruturar fronteiras, abre novas perspectivas<br />

interpretativas dos discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>.<br />

O deslizamento provocado na metodologia com base na hermenêutica dialógica orienta-se por<br />

um percurso que se iniciou com a assunção momentânea de uma Posição de Sujeito em que o<br />

Sujeito discursivo se constituía por um ser, um é. Segue-se para uma segunda assunção<br />

momentânea em que o Sujeito Discursivo foi caracterizado não mais pela rigidez do quadro<br />

hermenêutico da PS, mas por um Estado de Sujeito, em que o SD se constituiu por um estar<br />

contingente no tempo. O deslizamento que o discurso-tese sofre, expressando-se na<br />

perspectiva de Derrida, constitui a partir de agora a rasura maior na metodologia. Sob a<br />

metodologia da hermenêutica dialógica os grupos de discursos expressos nas alegorias Rapaz<br />

Folgado, Barão da Ralé e Contente Magoado (assim como, os grupos de discursos relativos às<br />

alegorias: eu, orientador, banca examinadora e demais leitores) nomeiam sujeitos discursivos<br />

taxonomizados em quadro de PS ou ES em que se apontam sentido específico aos discursos<br />

relativos aos dialogismos propostos 41 . Sob a condição da desconstrução derridiana os grupos<br />

de discursos, como especificados, nomeiam discursos, signos de signos, cuja determinação de<br />

sentido, ou, antes ainda, cuja determinação de autoria desliza por sobre as fronteiras que<br />

40 Prévios não no sentido de serem constituídos previamente por mim, mas, por serem constituídos<br />

previamente de forma institucionalizada dada a condição do doutoramento que prevê os SD eu,<br />

orientador, banca examinadora e demais leitores, e a qual o discurso tese, seja lá qual for, estará<br />

condicional e previamente submetido.<br />

41 SD Orientador: “Formalmente, nessa metodologia um dialogismo se estabelece entre discursos<br />

(não entre SD). Mas os termos usados para a caracterização dos discursos (PS, SD) ‘traem’ esse<br />

formalismo”.<br />

42


especificam sujeitos e alteres constituindo devires 42 do outro em si e vice-versa por<br />

movimentos de territorialização e desterritorialização que trataremos no decorrer desse<br />

corpus. Isso é, no lugar de mover a condição discursiva à condição de sujeito, o que nos<br />

parece configurar-se sob essa nova perspectiva é o movimento que trai e ultrapassa a condição<br />

de sujeito, seja a de PS ou ES, à condição de discurso rasurado pelo devir do outro-em-si e<br />

vice-versa. Sendo que antes desse encontro não havia nada, como afirma Derrida, não havia<br />

nada, nem um “em si” nem um “outro”. Assumir que eu e leitores somos constituídos<br />

discursivamente tal qual um livro ou uma escritura poderia dizer de um movimento em que<br />

pessoas e livros constituíssem sujeitos discursivos considerando que sofrem, sofremos,<br />

rasuras, traduções, interpretações e, de forma responsiva, pessoas e livros, identificamos e<br />

identificam-se e desterritorializamo-nos e desterritorializam-se como sujeitos. Outra<br />

possibilidade interpretativa, agora mais próxima da leitura derridiana, seria pensar e pensar-<br />

nos constituídos por discursos, grupos discursivos que elaboram, nos elaboram, como khôra,<br />

como interdiscursividade, como construção que se re-elabora constantemente por traduções,<br />

interpretações e leituras, nossas e de nossos alteres, corpo sem órgão, por isso, khôra.<br />

Veremos um pouco mais adiante como a khôra pode substituir a construção do contexto.<br />

42 A orquídea se desterritorializa formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se<br />

desterritorializa sobre esta imagem. (...) Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente:<br />

não mais imitação, mas captura de código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro<br />

devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa, cada um desses devires assegurando a<br />

desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando<br />

e se revezando segundo uma circulação e intensidades que empurra a desterritorialização cada vez<br />

mais longe. Não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha<br />

de fuga composta de um rizoma comum que não pode ser atribuído, nem submetido ao que quer que<br />

seja de significante (Deleuze, Guattari. Mil Platôs. Introdução: Rizoma, p. 19, 1995).<br />

43


O esquema acima não foi montado com o propósito de ilustrar, muito menos de confundir,<br />

mas de convidar os SD prévios por instituição e aos SD eleitos por mim, para caminharmos<br />

por um possível espaço da tese não delimitado por fronteiras regionais rígidas, mas por<br />

discursos que se inter-relacionam, rasurando-se, produzindo um espaço tese-deslizante,<br />

movente, que ORA se assemelha ao Planalto Central sob o signo rosiano, sertão nonada,<br />

vazio farpeado por veredas que autorizam dizer-lhe algo sobre, Planalto que quer fazer<br />

convergir para si forças telúricas do país, Brasília, JK, Peixe-vivo, Chapada e Discos<br />

Voadores, ORA se aproxima da grande capital, que já foi imperial, mas que agora é rasurada<br />

pelo discurso do Contente Magoado montado nas rodas da Itapemirim do Cordel do Fogo<br />

Encantado, no carro de boi boiadeiro de Gonzaga e nas vacas de Manuel de Barros que<br />

44


desfilam na rua, ORA se estende pelos pampas gauchescos borgeanos, desfronteiras platinas<br />

abrindo novo espaço de subjetividades para mim que gostava de ser-tão nordestino, mas, que<br />

por agora viaja por tantas subjetividades constituidoras do dissenso secular governado pela<br />

hipocrisia de uns e inocência de outros ao dizer que a identidade nacional é, ORA repete os<br />

passos das volantes e cangaço e “acorda Maria Bonita”, ORA cheira fumaça de óleo diesel e<br />

se embriaga até que o esqueça na esquina da Ipiranga com a São João de Adoniran e vinga-se<br />

de quem bebe e chora na mesa de um bar na Porto Alegre noir-lupciniana, ORA desce o<br />

morro de Cartola com uma lata d’água na cabeça, desliza em fragmentos de chão de estrelas e<br />

sobe as quantas ladeiras de Olinda cujos telhados escondem os mistérios ocultos dos<br />

mosteiros da Índia, ORA chora a morte da Índia guarânia que morreu de parto na mão dos<br />

brancos civilizados, ORA sobe Barão da Ralé no Bonde de São Januário como mais um<br />

operário, ORA lança-se ao mar de Caymmi e do Senhor dos navegantes, ORA chora viola,<br />

ORA cantos da floresta, ORA terças paulistas, ORA Rapaz Folgado que arrasta as tamancas<br />

de chapéu de lado e navalha, ORA, da janela do palácio varguista, pinta a Aquarela do Brasil.<br />

É com essa interdiscursividade rizomática que se quer dialogizar, seguindo os movimentos,<br />

deslizamentos e estratégias dialógicas dos SD eleitos, como alteres entre si, sob interferência<br />

do contexto e dos SD prévios que, igualmente, dialogizam entre si, rasurados pelos discursos<br />

do <strong>cancioneiro</strong>. Por isso no mapa do Brasil, que se fôssemos mais precisos deveria se<br />

esparramar, em gesto contínuo, pelos pampas platinos e, descontínuo, pela península Ibérica,<br />

pela África e pelas cidades de Paris, Londres e Nova Iorque 43 , não existem fronteiras internas,<br />

por isso um relevo sugere a idéia de dois conjuntos, que, necessariamente, não se separam por<br />

linhas de fronteira. Os matizes esmaecendo sugerem o vazamento do grupo de SD prévios<br />

para o grupo de SD eleitos e vice-versa.<br />

Na mesma figura o jogo de setas aponta para as possíveis interdiscursividades que se<br />

encadeiam e desencadeiam segundo possibilidades momentâneas entre os discursos dos SD<br />

eleitos e prévios, considerando as rasuras nas categorias de sujeito, alteres e contexto.<br />

Considerar tais rasuras significa dizer que sob diferentes contextos, diferentes<br />

interdiscursividades que constituem estratégias serão produzidas. Por exemplo, tomemos o<br />

debate sobre ruralidade, modernidade, identidade, urbanidade e tradição em diferentes<br />

43 Considerando que a máquina discursiva que opera em torno da questão Identidade Nacional não<br />

se limita ao território nacional, deveríamos também estender as fronteiras desse mapa, de forma não<br />

contígua, à Península Ibérica medieval, para depois saltá-las até a Belle Époque e emular os ares de<br />

Paris e Londres, depois esticá-las até a modernidade estadunidense e retorná-las aos primeiros<br />

contatos coloniais das polirritmias africanas e mesmo do Oriente de especiarias e estruturas musicais<br />

modais.<br />

45


períodos: no Estado Novo, na Belle Époque, no modernismo de 20, na Repúbica Velha, nas<br />

Revoluções conservadoras de 30 e 32, nos anos JK ou na ditadura militar, em cada um desses<br />

períodos da historiografia tradicional pode-se identificar movências, deslizamentos e rastros<br />

no discurso dos SD (eleitos e prévios) através de certas traduções e apropriações do discurso<br />

do “outro” que interpretaremos como estratégias de convívio e sobrevivência no discurso dos<br />

SD eleitos (em relação de alteridade entre si, sob contextos e a própria interpretação dos SD<br />

prévios) e como estratégias de afirmação e defesa, ainda que circunstancial, de posição<br />

(ideologia, autoridade, simpatia) para os SD prévios, em suas interpretações interdiscursivas<br />

do discurso tese como um todo e, especificamente, dos discursos dos SD eleitos como<br />

expressões dialógicas do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>.<br />

O Rapaz Folgado adota estas e não outras estratégias de convivência com seus alteres em<br />

determinado contexto. Lembrando que, sob rasura, o contexto não existe como corpo coeso e<br />

fechado para além da construção discursiva da historiografia tradicional. Em nossa<br />

interpretação, as estratégias devem corresponder à fala responsiva possível sob os<br />

constrangimentos do contexto em questão. Assim, quando, o Rapaz Folgado usa o chapéu de<br />

lado, o lenço branco e a navalha (e já vai sendo reprovado na canção homônima pelo Barão da<br />

Ralé: “malandro é palavra derrotista que só serve pra tirar o valor do sambista”), o faz como<br />

discurso dialógico possível – que expressa estratégia de convivência com seus alteres internos<br />

ao campo da música e de sobrevivência em determinado contexto – sob os constrangimentos<br />

das relações de dominação expressa entre os discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> e os discursos<br />

hegemônicos da elite (intelectual, econômica e política). No caso da canção (enunciado)<br />

Rapaz Folgado, o contexto localiza-se no decorrer dos anos 30, quando, segundo a fala da<br />

historiografia tradicional, o poder mudava de mãos, configurando novas construções<br />

discursivas de modernidade, urbanidade e identidade simbolizadas pelas imagens do Estado<br />

totalitário e da sociedade do trabalho orientada por padrões de consumo e comportamento da<br />

burguesia capitalista e progressista, sintetizados na emergência da classe media urbana.<br />

Esse mesmo Rapaz Folgado (não tão mesmo, considerando que o discurso desliza), sob outras<br />

condições de dominação, sob outro contexto, adotaria outras estratégias de convivência e<br />

sobrevivência. Por exemplo, durante o período historiografado como Belle Époque, as<br />

relações interdiscursivas do Rapaz Folgado com o discurso dominante expressavam-se de<br />

forma mais direcionada para a polícia que atuava no controle dos espaços públicos e do corpo<br />

do pobre. Enunciados como, “Pelo telefone 44 ” (1917), “Quando a polícia vier 45 ” (1915),<br />

44 Pelo telefone. Donga, 1917.<br />

46


“Paladinos da Cidade Nova 46 ” (1907), expressam invariavelmente a relação entre o pobre e a<br />

polícia. A primeira canção trata do espaço público da viração, do jogo ilícito. A segunda, do<br />

espaço privado, inadequado para os padrões morais da sociedade aburguesando-se: o refrão<br />

“quem paga a casa pra homem é mulher” expressa a condição de um lar reprovado que vai<br />

receber a visita da polícia. A terceira canção fala do controle da festa e do corpo também sob<br />

a tutela da moral. Nos três casos a polícia é citada explicitamente como o discurso localizado<br />

no contexto que mais nitidamente interfere e obriga a adoção de certa estratégia de<br />

sobrevivência dos discursos do tipo Rapaz Folgado. Porém, pode-se interpretar também que<br />

os discursos da polícia, mesmo localizados no contexto estariam, considerando a operação<br />

estratégica dos discursos do Rapaz Folgado, compondo de forma dialógica os discursos do<br />

Rapaz Folgado, ao exercer de forma explícita controle e dominação. Essa assunção nos<br />

remeteria a um último estágio da rasura metodológica da Hermenêutica dialógica, ao<br />

considerarmos o contexto como khôra, como aquilo que agrega uma série discursiva sobre si,<br />

porém sem se deixar esgotar ou mesmo ferir pela série. Considerando que discursos de dentro<br />

e de fora do campo do <strong>cancioneiro</strong> podem ocupar a mesma khôra, a própria construção de<br />

dentro e fora perde sentido o que promove outro deslizamento no discurso-tese e que nos<br />

orienta a gradativamente abandonar a idéia de contexto e de campo, assim como, a considerar<br />

que os dialogismos podem se dar tanto entre discursos de alteres relativos ao <strong>cancioneiro</strong><br />

(Barão da Ralé, Rapaz Folgado e Contente Magoado) quanto aos discursos localizados fora<br />

do campo ou no contexto sem hierarquizar, logo já desconsiderando a fronteira entre campo e<br />

contexto.<br />

Insistindo um pouco mais na idéia de contexto, já pensando em, não exatamente descartá-lo,<br />

mas fazê-lo deslizar para a condição de khôra, pode-se pensar que no contexto relativo ao<br />

período do Estado Novo, diferentemente da Belle Époque, os dialogismos com a burguesia,<br />

com o “doutor” e com o político são mais presentes do que com a polícia, considerando que o<br />

tema remetia menos diretamente a uma questão de ordem pública, do que a divergências sobre<br />

a formação no país de uma sociedade do trabalho.<br />

Outra forma de deslizar. Tomemos certo enunciado para perceber como o deslizamento de<br />

uma canção dialogizando com alteres e contexto pode levá-la deste para aquele conjunto de<br />

enunciados expresso por SD referente a uma das alegorias que foram por nós eleitas. A<br />

45 Quando a policia vier. João da Baiana, 1915<br />

46 Paladinos da Cidade Nova. Eduardo das Neves, 1907.<br />

47


canção folclórica Peixe-vivo 47 , esboçava-se como uma canção regional que falava de saudade<br />

e perda, imagem que a localizava relativamente próxima das características do Contente<br />

Magoado (exceto pelo fato de não fazer referencia a questões relativas ao rural como<br />

contraponto do urbano, apesar de que a perda implica movência temporizadora 48 , que bem<br />

poderia como subtexto estar se referindo a um território da tradição que deixou de sê-lo). Ora,<br />

a partir dos anos JK, pode-se interpretar esse enunciado migrando do Contente Magoado para<br />

o Barão da Ralé, no sentido de que perde o caráter de canção regional do folclore mineiro<br />

para se transformar em um hino da nação. Em um período marcado pelo discurso da<br />

modernidade, do crescimento econômico, da bossa nova e Brasília, arquitetura modernista<br />

brasileira internacionalmente reconhecida, isso pode parecer paradoxal. Porém, ao adquirir,<br />

em âmbito nacional, um caráter ufanista, Barão da Ralé de um Governo que se estabelece sob<br />

o discurso da modernidade, do crescimento, revisando tradições ainda poderosas, a presença<br />

do Peixe-vivo pode ter servido para estrategicamente amenizar a percepção de aniquilamento<br />

dessas tradições. Em resumo, ao deslizar de canção folclórica regionalizada para canção<br />

ufanista de alcance nacional, o Peixe-vivo bem poderia ser interpretado deslizando do<br />

Contente Magoado para o Barão da Ralé. Essa interpretação sugere que o ethos de uma<br />

canção, da mesma forma que a relação prosódica e performática, pode rasurar o significado<br />

intrínseco do enunciado e o sentido como discurso que desliza de um SD específico para<br />

outro.<br />

Considerando que esses deslizamentos não se originam e não se esgotam em um ponto<br />

especificado no tempo, é de se supor que os discursos dos SD eleitos, (expressos como<br />

enunciado-canção) sejam constantemente rasurados. A condição da rasura tornaria<br />

insuficiente enquadrar o discurso dos SD eleitos em uma estrutura de Estado de Sujeito, com<br />

tais características sob tal contexto, cristalizando, ainda que momentaneamente, significado e<br />

sentido. De fato, esse enquadramento não se realiza. Não se realiza, considerando a movência,<br />

condição de possibilidade do movimento, como uma latência do discurso que sugere um<br />

entre, uma diferança expressa entre o conceito que nunca se fecha e a palavra que sempre<br />

pode dizer uma outra coisa que não se consegue fixar.<br />

Como a construção do Pachuco 49 de Santiago que não é mais o sujeito “europeu rasurado pelo<br />

movimento em direção à América colombiana”, mas também não se tornou o americano do<br />

47 Peixe-vivo. Domínio público. s.d.<br />

48 Faz referencia ao deslizamento no espaço e no tempo..<br />

49 O Pachuco é uma construção explicitada sob a condição da movência. Santiago procura expor o<br />

caminho que a palavra-conceito trilhou e que expressam transformações de significados. SANTIAGO,<br />

2006.<br />

48


Norte, num segundo movimento que realiza do México para os Estados Unidos. Uma palavra<br />

que já expressou a possibilidade de denominar a primeira condição de existência, europeu<br />

rasurado, mas, que, em conseqüência do caráter aberto do movimento que nunca se completa,<br />

não consegue dizer fielmente nem do primeiro estado de europeu rasurado, nem do segundo<br />

de mexicano americanizado, sendo usada, pelo senso comum, no duplo sentido, o que desfaz<br />

o nome e o conceito, o próprio estado de sujeito e fica como uma sugestão da diferança<br />

derridiana.<br />

Os tipos discursivos Rapaz Folgado, Barão da Ralé e Contente Magoado podem ser pensados<br />

como alegorias sínteses cujos discursos deslizam através de um entre, o que não permitiria<br />

estabelecê-las sequer numa estrutura de Estado de Sujeito. A assunção dessa condição<br />

rasurada explica a condição de movência de caráter temporalizador a qual os SD estão<br />

subjugados. É importante acrescentar que essa movência não é necessariamente uma condição<br />

de movimento obrigatório, mas a possibilidade de movimento presente nos SD como uma<br />

latência que a qualquer hora pode manifestar-se e manifesta-se provocando deslizamentos no<br />

nome que sempre pode significar uma coisa a mais e no conceito que nunca se fecha.<br />

Vejamos como isso ocorre em cada SD.<br />

Rapaz Folgado e Barão da Ralé são categorias que a princípio operariam a partir de pólos<br />

opostos no que diz respeito à forma de se relacionarem como alteres ente si, porém, como já<br />

colocado, um pode emular o discurso do outro ou dobrar-se sobre o outro dependendo do<br />

contexto e das circunstancias em que produz o discurso dialógico. Repito, propositalmente,<br />

um parágrafo que já apareceu em momento anterior, mas, que dado o caráter rizomático do<br />

discurso-tese considero importante ser re-colado nesse momento do texto, considerando a<br />

aproximação com a diferança derridiana, pensada como esse entre, movimento em que se<br />

deixa entrever o elemento passado no presente, mas, que já vai sendo rasurado, marcado,<br />

sulcado por outros significados resultando em algo que não é completamente novo, mas que<br />

também já não teria semelhança com o estado apresentado no passado.<br />

49<br />

Sobre os deslizamentos do Rapaz Folgado e do Barão da Ralé podemos<br />

afirmar que os dois deslizam de um para o outro dependendo da situação –<br />

ambos estão sintetizados na figura do malandro que desliza no tempo em<br />

suas relações com seus alteres. Não é revolucionário. Antes de completar o<br />

movimento em direção ao contestador e em seqüência ao Revolucionário o<br />

Rapaz Folgado desliza na direção do Barão da Ralé que não chega por sua<br />

vez a completar o movimento de aburguesamento e tende a retornar a


condição de Rapaz Folgado quando o dialogismo com seus alteres da elite<br />

aponta no sentido de enquadrá-lo na sociedade do trabalho 50 .<br />

Esses deslizamentos podem operar como dobras sobre um mesmo corpo 51 , se pensarmos no<br />

malandro como síntese dos dois SD. A estratégia de um e de outro fica submetida à condição<br />

com que o contexto e as alteridades operam no dialogismo dos SD. Assim quando o Barão da<br />

Ralé começa a se aproximar em demasia do burguês, e considerando que Barão da Ralé e<br />

Rapaz Folgado são sínteses da mesma figura do malandro, ao não embarcar na condição<br />

imposta pela sociedade do trabalho, acaba produzindo um movimento de dobra sobre si. Esse<br />

movimento aos olhos do burguês será classificado como um retorno à condição, não de Barão<br />

da Ralé, mas de Rapaz Folgado, o malandro que não quer trabalhar. Pode-se pensar no<br />

enunciado de “Quem te viu, quem te vê 52 ”, como a fala de um Rapaz Folgado para um Barão<br />

da Ralé: “hoje eu vou sambar na pista você vai de galeria quero que você assista na mais fina<br />

companhia...”. Acontece que, aos olhos da burguesia, esse Barão da Ralé, arrivista social, não<br />

correria o risco de, na contingência relacional com a burguesia, sempre expor, como tatuagem<br />

na carne, a alcunha de (ex)-malandro?<br />

Essas rasuras dizem e especificam o que o dialogismo provoca no discurso. A rasura torna<br />

impreciso – como o viver Ibérico e também o navegar da canção 53 – determinar sentido ou<br />

significado intrínseco para aquilo que é enunciado. Resta navegar. Resta seguir o movimento,<br />

identificar rastros, linhas de fuga, sulcos do que nem se move constantemente, mas, que pode<br />

se mover a qualquer hora, resignificar, reterritorializar não permitindo haver mais sentido fixo<br />

possível, dado que guarda em si a propriedade da movência, não o movimento.<br />

Desafiando uma vez mais a paciência do leitor tomo a liberdade de outra vez reproduzir algo<br />

que foi dito anteriormente, mas, que, pela mesma justificativa anterior, considero importante<br />

ser re-colocada nesse momento em que começamos a trabalhar com a diferança que não é<br />

conceito nem palavra.<br />

50<br />

SD Orientador: “escancarando o dialogismo interno deste texto, coloque a referência bibliográfica<br />

(Mendes Junior, 2009, p. ...), como uma citação qualquer”.<br />

51<br />

Deleuze, Guattari. “Como criar para si um corpo sem órgãos”. Mil Platôs. Capitalismo e<br />

esquizofrenia. Vol 3. SP: Editora 34, 1996.<br />

52<br />

Quem te viu, quem te vê. Chico Buarque, 1967.<br />

53<br />

“O barco, meu coração não agüenta. Tanta tormenta, alegria. Meu coração não contenta. O dia, o<br />

marco, meu coração, o porto, não. Navegar é preciso, viver não é preciso. O barco, noite no céu tão<br />

bonito. Sorriso solto perdido. Horizonte, madrugada. O riso, o arco, da madrugada. O porto, nada.<br />

Navegar é preciso, viver não é preciso. O barco, o automóvel brilhante O trilho solto, o barulho. Do<br />

meu dente em tua veia. O sangue, o charco, barulho lento O porto silêncio Navegar é preciso, viver<br />

não é preciso”. Os Argonautas. Caetano Veloso, 1978.<br />

50


51<br />

Pensar a diferança como um entre, um indefinível, como algo que ainda não<br />

é, mas, também não o deixa de ser. Não se constitui como conceito nem<br />

como identidade, nem coisa, nem signo, mas já se apresenta como<br />

possibilidade/devir em que o deslizamento no entre da possibilidade presente<br />

e do devir futuro, confirmará ou não. O entre, nem ser, nem não-ser, a<br />

exemplo dos SD por nós configurados, que não aderem ao conceito que os<br />

gera e já deslizam para outra coisa que não é exatamente o seu oposto, mas,<br />

que incorpora no sentido dialógico a fala do outro. Pensar nesse movimento<br />

como micro-insubordinação à medida que não emula o valor do outro, mas<br />

também não o revoluciona.<br />

Assim, podemos considerar revolucionário o movimento que, ainda permitindo entrever o<br />

Barão, o Rapaz e o Contente, produziria tal rasura nas alegorias que nos obrigaria abordar um<br />

segundo discurso-tese. O Revolucionário que ainda não se manifestou nos SD eleitos, apesar<br />

de já estar ali silencioso ou quase calado, ao fazê-lo introduz novo contexto ou nova rasura,<br />

contexto revolucionário, um revolucionariando que se desdobra em novas relações de<br />

alteridade, a alteridade de um sujeito discursivo reacionário ou alienado, nova negociação<br />

onde o dialogismo se endurece e o jogo de oposições torna-se mais polarizado, dicotômico:<br />

“pai, afasta de mim esse cálice 54 ” porque “há soldados armados, amados ou não, quase todos<br />

perdidos de armas na mão 55 ”. O SD Revolucionário determinaria entre as décadas de sessenta<br />

e setenta, no contexto da ditadura militar, o corte de nossas investigações.<br />

Mais adiante neste discurso-tese abordaremos as justificativas de recorte. Por hora fica o<br />

registro acima.<br />

Retornemos aos SD rasurados pela diferança.<br />

O Contente Magoado produz um movimento quase preciso, quase navegar lusitano, de dobra<br />

sobre si. Ele foi em parte deixando de ser o sertanejo forte euclidiano e o matuto de Lobato<br />

para, no Romance regionalista de 30, Rosa, Ramos, Rego, Queirós, Amado, deslizar sobre a<br />

imagem do bom miscigenado que foi injustiçado pela geração anterior, ao mesmo tempo CM<br />

deixava de ser o cavaleiro medieval, mas não completamente, permitindo entrever naquela<br />

imagem mítica do passado ou sua face quixotesca inscrita nos enunciados das narrativas<br />

<strong>popular</strong>es, cordéis e fábulas de reis, dragões, castelos e princesas ou sua face vingadora,<br />

bandoleira, heróica e bandida, inscrita no mesmo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> e nos enunciados da<br />

imprensa e da literatura que tematizavam jagunços, cabanadas, farrapos, volantes e pistoleiros<br />

para, simultaneamente, como mosaico caleidoscópio dos fragmentos de bom miscigenado,<br />

54 Cálice, Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973.<br />

55 Pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré, 1968.


forte, castelão e jagunço deslizar sobre a imagem de migrante injustiçado, o pau-de-arara, o<br />

caipira, como antítese da modernidade, altere da classe média urbana, porém, já incorporando<br />

essa imagem em si, a urbanidade como estilhaço visível no fundo cilíndrico do mesmo<br />

caleidoscópio. A cidade inscrita em Riobaldo, inscrita no jagunço-fazendeiro internamente<br />

cindido e problematizado como sujeito urbano moderno, inscrita no moreno do “Rancho<br />

Fundo 56 ” que vive louco de saudade só por causa do veneno das mulheres da cidade, inscrita<br />

na gauchesca “Prenda Minha 57 ” que “foi-se embora e me deixou na saudade”, na perda, na<br />

impossibilidade de uma volta que não se realiza. Ainda que essa mesma saudade se inscreva<br />

no discurso do Contente Magoado camuflando essa perda incondicional e já construindo do<br />

mito da “Asa Branca 58 ”, o retorno possível: “Eu te asseguro, não chores não, viu, que eu<br />

voltarei, viu, pro meu sertão”. Essa saudade não precisa estar necessariamente narrando<br />

imagens de ordem migratória para ter por contraponto a cidade (Prenda Minha não fala nem<br />

de cidade nem de migração), mas, sim, a construção do interior, qualquer interior, pela ótica<br />

da perda, como o outro, como não-hegemônico. Em um país que expressa o discurso de poder<br />

pelo movimento de trânsito do rural para o urbano (do Fogo Morto para a Paulicéia<br />

Desvairada), sobressai-se, destaca-se no contexto de formação da nação uma imagem de rural<br />

contaminada pela umidade urbana. Mesmo a migração do Contente, como já dito, não precisa<br />

necessariamente ocorrer numa base física para atuar sobre a construção do outro rasurado pela<br />

cidade. Por exemplo, o nordestino e o caipira paulista não precisam necessariamente descer na<br />

rodoviária da cidade grande para perceberem-se rasurados por ela. O Contente Magoado já<br />

traz a cidade como fragmento de si desde que a inscrição rural como contraponto da cidade<br />

assumiu a hegemonia, a primazia dos embates discursivos que tratam desse outro Brasil. “A<br />

Serra da boa esperança 59 ”, que “encerra no coração do Brasil um punhado de terra” prenhe de<br />

saudade, não está localizada em nenhuma região específica, a não ser aquela que não é a<br />

cidade. O êxodo e a cidade instalam-se na máquina discursiva que inscreve a ruralidade no<br />

mundo, mesmo nas narrativas que não tratam necessariamente do trânsito intra e inter-<br />

regional em direção à capital.<br />

Esse “mundo” é o mesmo que faz contraponto com o lugar da “Felicidade 60 ” que fica “lá de<br />

trás do mundo”, o “lá de fora, onde a falsidade não vigora”. Lá de fora gaúcho, nordestino,<br />

56 Rancho fundo. Ary Barroso, Lamartine Babo, 1931.<br />

57 Prenda minha. Domínio Público, s.d.<br />

58 Asa branca. Luís Gonzaga, Humberto Teixeira, 1947.<br />

59 Serra da boa esperança. Lamartine Babo, 1937.<br />

60 Felicidade, Lupcínio Rodrigues, 1932.<br />

52


caipira, sertanejo e de tantas outras imagens da alegoria Contente Magoado que se contrasta<br />

com o centro, correspondendo à metafísica do dentro.<br />

Se na condição de altere da cidade, o Contente Magoado é constituído por imagens da<br />

saudade, da perda, do não-civilizado e do fora, pode-se articular um último deslizamento do<br />

Contente Magoado em direção aos dois outros SD eleitos, considerando que o malandro que<br />

especifica no mundo o Barão da Ralé e o Rapaz Folgado tem por ethos a não-cidade burguesa,<br />

as zonas obscuras da civilização, o fora da cidade que pode ser o subúrbio, a favela ou<br />

qualquer espaço degradado, construído sob o signo do perigo, da carência, da perda, do<br />

desaparecimento. O discurso reformador de aburguesamento dos espaços públicos e privados<br />

da cidade age no decorrer do século XX sob os paradigmas das concepções belle-epoqueanas,<br />

da modernidade conservadora do Estado Novo e, por fim, do progresso modernista dos anos<br />

JK. O <strong>cancioneiro</strong> sob a determinação dos SD eleitos inscreve esse lugar de fora que contrasta<br />

com um lugar de dentro, como Arcádia como comunidade de pessoas que se opõe à<br />

impessoalidade da multidão na cidade. Assim, o Barão, o Rapaz e o Contente inscrevem o<br />

espaço burguês como lugar cujos códigos precisam ser aprendidos e re-negociados ao<br />

contrário do que expressam ao inscrever favela e roça.<br />

♪♪♫♫<br />

Porque os SD eleitos localizam-se entre a Belle Époque e o período inical da Ditadura<br />

Militar?<br />

Comecemos identificando algumas interpretações que justificam a escolha do corte inicial da<br />

pesquisa na passagem ente os séculos XIX e XX. Essas justificativas podem ter por alicerce<br />

questões relativas aos SD eleitos, aos seus alteres ou ao contexto. Antes de ir adiante é<br />

necessário especificar, poupando-nos do risco da contradição, que já demos por desconstruído<br />

a percepção de um contexto que objetiva-se como um completamente outro em relação aos<br />

sujeitos discursivos. O contexto seria constituinte do dialogismo estando dentro e fora, nem<br />

dentro nem fora, Khôra que sulca. Por isso o Barão é sulcado pelo contexto trabalhista para<br />

dobrar-se sobre si e cair como Rapaz Folgado aos olhos da burguesia em movimento de<br />

deslizamento, deslocamento, metáfora de metáfora, sem origem, sem fim, sem descanso no<br />

conceito. A forma que adotamos nas sessões seguintes pode sugerir retrocesso ou contradição.<br />

Porém, o efeito pretendido é o de (1) alavancar, reconhecer a estrutura dada pela<br />

historiografia, pela Academia em termos gerais, em que se hierarquizou os discursos<br />

classificáveis pelas alcunhas de científicos e não-científicos, logo válidos ou não válido para o<br />

tratamento das “realidades sociais no mundo”, (2) derrubar, inverter essa estrutura,<br />

53


demonstrando que o discurso do tipo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> é válido para o tratamento da<br />

“materialidade social”, inclusive sendo capaz de enxergar tessituras de relações em que num<br />

texto enquadrado pela sociologia clássica, por exemplo, de inspiração durkheimiana,<br />

aparecem desfocadas ou nunca seriam contempladas.<br />

Feito o alerta, esboçaremos a partir de agora uma espécie de ação quase linear quase<br />

genealógica do <strong>cancioneiro</strong> em certos contextos historiográficos.<br />

Em termos bem objetivos, que dizem respeito à elevação da base tecnológica da sociedade, a<br />

Belle Époque corresponde ao momento de instalação da indústria fonográfica quando se<br />

realizam as primeiras gravações musicais no Brasil.<br />

O inverno é rigoroso. Bem dizia a minha avó.<br />

Quem dorme junto tem frio. Quanto mais quem dorme só.<br />

Isto é bom. Isto é bom. Isto é bom que dói...<br />

Se eu brigar com meus amores. Não se intrometa ninguém.<br />

Que acabado os arrufos. Ou eu vou, ou ela vem.<br />

Quem ver mulata bonita. Bater no chão com o pezinho.<br />

No sapateado a meio. Mata o meu coraçãozinho.<br />

Minha mulata bonita. Vamos ao mundo girar.<br />

Vamos ver a nossa sorte. Que Deus tem para nos dar.<br />

Minha mulata bonita quem te deu tamanha sorte?<br />

Foi o Estado de Minas ou o Rio Grande do Norte.<br />

Minha viola de pinho que eu mesmo fui o pinheiro.<br />

Quem quiser ter coisa boa não tenha dó de dinheiro 61 .<br />

Catálogos internacionais da primeira década do século XX já apresentavam músicas gravadas<br />

no Brasil: o “Hino Nacional 62 ”, a “Abertura do Guarani 63 ” e “Vem cá, Mulata 64 ”. Uma<br />

possível interpretação desses dados observa que, desde a sua gênese, a indústria fonográfica<br />

reproduziu a imagem do campo reflexivo, relativa ao <strong>cancioneiro</strong>, em que discursos que<br />

aderem e não aderem ao poder se articulam em SD distintos, porém, imbricados: O civismo<br />

61<br />

Isto é bom. Xisto Bahia, 1902. Gravado no Brasil pela Casa Edison e fabricado na Alemanha pela<br />

Zon-O-Phone. Trata-se de um lundu, ritmo híbrido de influência negra e européia, sincopados bem<br />

marcados e linha melódica inspirada no fraseado das modinhas de salão. A canção é interpretada<br />

pelo cantor Baiano, negro, migrante que se situa socialmente numa pequena burguesia étnica que<br />

tem como epicentro dos laços de solidariedade a figura das tias baianas da Gambôa, Praça Onze e<br />

adjacências. Para alguns historiadores esta pode ter sido a primeira gravação musical feita no Brasil.<br />

Vale acentuar na letra da canção algumas interpretações que inscrevo como aspectos da sociedade<br />

brasileira em processo embrionário de urbanidade e modernidade: a moral tradicional sendo rasurada<br />

por imagem ainda velada do erotismo entre casais. O pedido de privacidade nas questões conjugais.<br />

A adoração à mulata pela pequena burguesia comerciante. A migração negra inter-regional que pode<br />

vir de Minas Gerais ou Rio Grande do Norte. O dinheiro, elemento central numa sociedade que<br />

experimenta o capitalismo e a modernidade como percepções simultâneas à liberdade e a cidadania.<br />

62<br />

Hino Nacional. Francisco Manuel da Silva, 1822.<br />

63<br />

O Guarani. Carlos Gomes, 1870.<br />

64<br />

Vem cá mulata. (I) Pepa Delgado, Mário Pinheiro – (C) Arquimedes de Oliveira,1906.<br />

54


do “Guarani” e a ironia mestiça de “Vem cá, mulata!”, bem poderiam expressar enunciados<br />

respectivos aos SD Barão da Ralé e Rapaz Folgado.<br />

Em 1902, a Casa Edison editou um catálogo nacional com 228 gravações. Essa seleção<br />

musical reproduzida por meios mecânicos também é disponibilizada em lugares públicos.<br />

55<br />

Em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro, especialmente em locais de<br />

ajuntamento forçado, como os de espera de condução, instalaram-se,<br />

mediante pagamento, fonógrafos para divertimento do cidadão comum.<br />

(FRANCESCHI, 2002, p.33).<br />

Ao lado, uma sala de espera. Pobre e simples, para os passageiros,<br />

mostrando, ao fundo, um lavabo, que se decora de um espelho eternamente<br />

baço, bancos envernizados, e, digno de especialíssimo registro: em caixas de<br />

madeira, dos primeiros gramofones (fonógrafos) que chegam ao Rio, com<br />

seu par de auscultadores de borracha e uma fendazinha para o níquel da<br />

auscultação, mostrando um letreiro gravado em metal, com estas palavras:<br />

ponha aqui na parte superior, e na inferior, cem réis (EDMUNDO, Luís apud<br />

FRANCESCHI, 2002, p.33).<br />

Ao mesmo tempo em que se instalava a indústria fonográfica, que de forma pioneira<br />

começava a gravar música nacional, essas gravações passaram a circular pelo território<br />

nacional, constituindo-se como um <strong>cancioneiro</strong> gravado na cidade do Rio de Janeiro que, a<br />

partir do início do século XX, alcançava outras cidades e regiões do país.<br />

Valendo-se dos meios de comunicação da época – anúncio em jornal, envio<br />

de folhetos e catálogos pelo correio, e, sobretudo, com vendedores pracistas<br />

em quase todos os Estados, atingindo as mais distantes localidades, desde o<br />

Amazonas até o Rio Grande do Sul Figner 65 estabeleceu, para a Casa Edison,<br />

a base de uma rede nacional de comércio. (...) A partir de 1903 essa rede se<br />

tornou uma realidade. Daí em diante, a Casa Edison atendia solicitações –<br />

algumas restringiam-se a dois ou três discos ou a alguma novidade norteamericana<br />

– vindas de Santarém, de Manaus, de Cuibá, de Ponta Porá, de<br />

Corumbá, de Bauru, que constituíam parte da cadeia do interior; além das<br />

que eram atendidas pela rede do litoral que se formava em Belém, passando<br />

por S. Luís, Fortaleza, Natal, Recife, João Pessoa, Maceió, Aracajú,<br />

Salvador, Ilhéus, Vitória, Santos, Florianópolis, Pelotas, Rio Grande, indo<br />

até Porto Alegre. Considerando os meios de transporte da época, e<br />

conferindo a data dos pedidos com as datas de remessa e entrega, constata-se<br />

que o tempo necessário para o transporte, a esses pontos extremos, se<br />

estendia por um mês ou mais (FRANCESCHI, 2002, p.56).<br />

A literatura, no mesmo período, é atravessada pelo discurso de construção da identidade<br />

nacional que busca romper com o mito de origem alencariano, do índio nobre ou do caboclo<br />

puro, preso ao passado colonial e escravista do século XIX. Esse mito já não deveria servir<br />

65 Fred Figner foi proprietário da Casa Edison, primeira gravadora e distribuidora de música em<br />

cilindro, chapa e disco do Brasil.


como síntese da identidade nacional, frente à máquina discursiva que adentra o século XX<br />

tecendo discursos que defendem a urbanidade, a civilização e a modernidade com base em<br />

padrões estrangeiros, principalmente, francês e norte-americano (CUNHA 66 ).<br />

56<br />

Às portas do século XX, nossos intelectuais já sabiam (ou assim<br />

interpretaram 67 ) que as diversas versões do <strong>brasileiro</strong> – o índio, o mestiço, o<br />

sertanejo, o bandeirante, o gaúcho – não primavam exatamente pela força,<br />

beleza, coragem, nobreza, atribuídos a eles por José de Alencar ou por<br />

Gonçalves Dias (MOTA, 2000, p. 51).<br />

O período em foco, sob o discurso dos alteres dos SD eleitos, seria marcado por essa inversão<br />

de valor que caminha do regional puro para o híbrido urbano. Considerando que no século<br />

XIX o choro apresenta-se como uma derivação da polca européia, assim como o maxixe<br />

origina-se do lundu, afro-<strong>brasileiro</strong>, acrescido de certa contribuição da habanera afro-cubana,<br />

é razoável propor que os ritmos urbanos reforçaram a construção discursiva que inscreve a<br />

cidade como lugar da confluência de culturas estrangeiras, migrantes e oriundas de diferentes<br />

classes sociais reproduzindo uma polifonia que retro-inscreve a cidade como espaço<br />

hibridizado.<br />

A música brasileira moderna é em parte, o produto desta apropriação e desse<br />

encontro de classes e grupos sócio-culturais heterogêneos. Não houve, na<br />

verdade, a apropriação de um material puro e autêntico como querem alguns<br />

críticos (Tinhorão, 1981 68 ), na medida em que as classes <strong>popular</strong>es,<br />

sobretudo os negros pobres do Rio de Janeiro e mestiços do nordeste, já<br />

tinham a sua leitura do mundo do branco e da cultura hegemônica. Assim a<br />

música urbana brasileira nunca foi pura, (...) ela já nasceu como resultado de<br />

um entrecruzamento de culturas. De qualquer forma, as maneiras como os<br />

pensamentos em torno da música <strong>popular</strong> foram construindo uma esfera<br />

pública própria, com seus valores e expectativas, traduzem processos<br />

permeados de tensões sociais, lutas culturais e clivagens históricas. Esta é<br />

uma das possibilidades de abordar a relação entre música e história (social,<br />

cultural, e política), sem que uma fique reduzida à dinâmica da outra<br />

(NAPOLITANO, 2005, p. 49).<br />

A passagem do século, sob a leitura das elites artísticas, intelectuais e políticas, (enunciada em<br />

crônicas, discursos políticos, pinturas, na emergente fotografia, textos acadêmicos, poemas,<br />

notícias e músicas) carrega a marca da transição de uma identidade cultural colonial para uma<br />

identidade cultural urbana, onde as dicotomias são construídas pela oposição do velho ao<br />

66 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia, p 246.<br />

67 Observação minha.<br />

68 TINHORÃO, José Ramos. Música <strong>popular</strong>: do gramofone ao rádio/TV. São Paulo: Ática, 1981.


novo, do colonial ao moderno, do selvagem ao civilizado, do escravista ao trabalhista, do<br />

campo à cidade, da paisagem natural romântica à paisagem urbana moderna.<br />

Lembremos aqui que a Belle Époque corresponde ao período que se segue à abolição. Sobre<br />

esse período pós-abolicionista, Cunha argumenta que a meta da abolição, antes de ser<br />

alcançada, mantinha coesa a elite republicana e abolicionista na crença discursiva de que a<br />

partir do reconhecimento de todos como cidadãos livres, a tão sonhada unidade do povo<br />

naturalmente se expressaria, considerando a isonomia cidadã que ela produziria. Porém, essa<br />

interpretação da elite não se sustentou e o que se seguiu do episódio abolicionista foram mais<br />

diferenças, marcadas por múltiplas singularidades culturais e heterogeneidades sociais que até<br />

então operavam longe das ruas e do olhar civilizatório, encobertas sob o manto escravista.<br />

Frente esse fenômeno, a elite divide-se e testemunha a cizânia de seus discursos e opiniões<br />

sobre como lidar com a liberdade dos “novos cidadãos”. A Belle Époque também corresponde<br />

a esse momento em que os SD eleitos do <strong>cancioneiro</strong> expressam discursos que punham em<br />

cheque as novas regras sociais, enquanto os discursos oriundos da elite tentavam impor<br />

limites à experiência de liberdade. Essa transição representaria para a elite, “o momento em<br />

que não se sabia muito bem os limites entre o aceitável e o desejável” (CUNHA, 2001, pg.<br />

155).<br />

Eu estava no botequim ao lado de uma mulata<br />

Chegou um major na ronda e acabou com a serenata<br />

Era grito de socorro e toda gente a gritar<br />

Pegue o desordeiro não me deixe ele escapar<br />

Seu major vá se embora que eu não quero história não<br />

Não me prenda que eu não vou pra casa de detenção<br />

Se você não vai pra casa de detenção<br />

Então vai cantar aquele samba... Quebra calçada<br />

Ta bom, seu major já que o senhor pede.<br />

Eu vou cantar o quebra calçada<br />

De dia prego calçada de noite eu faço arrelia<br />

Me chamam quebra calçada<br />

Prega e canta Ave-Maria 69 .<br />

Eu vou beber. Eu vou me embriagar.<br />

Eu vou fazer barulho pra polícia me pegar.<br />

A polícia não quer que eu sambe aqui.<br />

Eu sambo ali. Sambo acolá 70 .<br />

Batuque na cozinha sinhá não quer.<br />

Por causa do batuque eu quebrei meu pé.<br />

Não moro em casa de cômodo não é por medo não.<br />

69 O malandro. Eduardo as Neves, 1907. p2<br />

70 Paladinos da Cidade Nova, 1907. Considerando a repressão da polícia expressa na canção, vale<br />

acrescentar que o termo “barulho” à época tinha conotação de briga.<br />

57


Na cozinha muita gente sempre dá em alteração 71 .<br />

A transição expressa tenciona diretamente as negociações entre os discursos que emergem dos<br />

SD eleitos, principalmente, nas negociações com o padrão burguês que determina práticas de<br />

uso e ocupação dos espaços da cidade. O discurso hegemônico da elite funciona opondo pares<br />

dicotômicos: civilização ou barbárie, modernidade ou atraso, música erudita ou ritmos<br />

primitivos, carnaval veneziano da elite ou carnaval de rua da plebe. Essa forma polarizada de<br />

construção mundo produzirá efeitos no discurso dos SD eleitos, interferindo naquilo que eles<br />

próprios selecionavam e atuavam como <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, em última instância, o que era<br />

considerado música e não-música. Na análise de Cunha, as Grandes Sociedades<br />

Carnavalescas do século XIX caracterizaram-se por sua insistente função pedagógica a<br />

serviço do discurso civilizatório. Tal função dá-se através da fixação de paradigmas estéticos<br />

da elite e condutas “civilizatórias” que, na prática, ocorriam durante os desfiles, seja através<br />

das mensagens veiculadas nos “carros de idéias 72 ” seja pelo luxo das apresentações públicas<br />

que marcavam o ponto alto do carnaval. O pobre adentra o século XX reproduzindo em certa<br />

medida práticas carnavalescas que emulam o discurso da elite através da apropriação de<br />

signos de distinção e da adesão a critérios de ordem e moral, tão caros à estética burguesa<br />

(CUNHA, 2001, pg. 162). Esse processo é identificado pela autora como o resultado direto do<br />

esforço pedagógico que o carnaval das Grandes Sociedades efetuou nos espaços públicos da<br />

cidade durante os festejos do século anterior. O resultado disso é que entre o entrudo do<br />

século XIX e os cordões e ranchos que ditam a folia no século XX, a idealização de um<br />

carnaval ordeiro passa a orientar as práticas carnavalescas. Em 1907, o Ameno Resedá do<br />

Catete torna-se o primeiro rancho, com reconhecimento de toda a imprensa, a inaugurar o<br />

novo carnaval civilizado.<br />

58<br />

Em 1911, o presidente Hermes da Fonseca reúne alguns convidados em<br />

palácio para o carnaval e decide convidar o Ameno Resedá para ali<br />

apresentar suas músicas e seu enredo intitulado “Corte de Belzebuth”. O<br />

sucesso do grupo fez com que aumentasse, ainda mais, o interesse do povo<br />

carioca pelos desfiles desses conjuntos harmoniosos, que aconteciam na<br />

segunda-feira de carnaval. Outros grupos vão se adaptando a essa forma de<br />

desfilar com o objetivo de desfrutar da consideração crescente por parte da<br />

imprensa e da elite intelectual. (FERREIRA, 2004, p.302).<br />

71 Batuque na cozinha. João da baiana, 1923. (Disponível no CD a versão de 1911 de Zeca).<br />

72 Apesar da tentação de se desejar enxergar nesses carros a origem dos carros alegóricos do<br />

carnaval moderno das Escolas de Samba, os carros de idéias se qualificavam como discursos da<br />

burguesia moderna que pretendiam, através da mensagem expressa nos carros, moralizar a suposta<br />

plebe rude que assistia amontoada nas ruas ao desfile das Grandes Sociedades circulando pelo<br />

Centro da capital do Império.


Propomos que, uma vez configurada a emergência e expansão da indústria fonográfica, a<br />

função pedagógica do discurso carnavalesco e musical exercida pelas Grandes Sociedades do<br />

século XIX, foi pari passu deslizando e sendo apropriada também por grupos das classes<br />

<strong>popular</strong>es como o Ameno Resedá. Tais grupos herdam o carnaval temático das Grandes<br />

Sociedades e reproduzem, como estratégia de negociação e convivência com o poder, as<br />

idéias hegemônicas de ordem e comportamento expressas nos discursos da elite. Em parte, o<br />

fazem como estratégia de sobrevivência no encontro de forças e poderes desiguais, em parte,<br />

o fazem de olho nas benesses que adviriam do pacto com o poder. As canções carnavalescas<br />

do século XX introduzem-se como um novo elemento de função pedagógica com maior poder<br />

de persuasão e divulgação, considerando-se também as novas tecnologias de reprodução<br />

mecânica das músicas como facilitadores desse processo de difusão que ao longo do século,<br />

transcorrerá um percurso histórico que vai dos alto-falantes nas praças públicas até a Rádio<br />

Nacional e a televisão.<br />

Sobre a apropriação dialógica do carnaval da elite pelas classes <strong>popular</strong>es (configurando uma<br />

pedagogia rasurada das canções que a princípio interpretaríamos como discurso do SD Barão<br />

da Ralé), há de se considerar, embutidos no dialogismo certos conflitos, adaptações, traduções<br />

e resistências. Tais aspectos discursivos constituem alguma ambigüidade, ou melhor, um<br />

deslizamento estratégico entre o pólo da ordem e o da transgressão. Como campo reflexivo, o<br />

<strong>cancioneiro</strong> inscreve na máquina discursiva oficial que pretende responder o que é a<br />

identidade nacional, essa convivência conflituosa entre os SD eleitos sob certos contextos.<br />

Podemos identificar na contaminação provocada pelo contexto no dialogismo entre os SD<br />

eleitos um duplo deslizamento do conceito pedagógico como aplicado às Grandes Sociedades.<br />

(1) Como um deslizamento em que os discursos da elite contaminam o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

inscrevendo em khôra, relativa ao feixe <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, o SD Barão da Ralé.<br />

Considerando aí um tipo de negociação em que o SD eleito tende a emular o discurso da elite<br />

(por sua vez, altere do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> inscrito pelos SD eleitos) como estratégia possível<br />

de convivência. (2) Como deslizamento em que os discursos escorregam do SD Barão da Ralé<br />

e contaminam os discursos do SD Rapaz Folgado e vice-versa. Nesse caso, a negociação<br />

expressa-se nitidamente de forma tensa. Não há uma predisposição de emular o discurso da<br />

elite, altere do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, sequer pelo filtro do Barão da Ralé. Ao contrário, há uma<br />

tendência de tomar esses discursos como paradigmas a serem transgredidos. É importante<br />

alertar ainda que esses deslizamentos ocorrem de forma simultânea e não como dois<br />

momentos que em seqüência seriam temporalizados pela historiografia tradicional ou pelo<br />

59


discurso-tese, como se o discurso da elite precisasse antes passar pelo SD Barão para então<br />

chegar ao SD Rapaz.<br />

Foi através do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> que se desenrola ao longo do século XIX, que a música<br />

<strong>popular</strong> inscreveu-se como discurso constituinte da invenção de uma nova percepção do<br />

cotidiano urbano e, principalmente, público. Isto é, o <strong>cancioneiro</strong> fez parceria com os<br />

discursos de seleção e reconstrução material, axiomática e sígnica dessa nova percepção de<br />

cotidianidade pública que apresentava seus novos personagens: vendedores de rua, políticos<br />

prolixos, populistas corruptos, dândis ditosos, atrizes famosas, cáftens e prostitutas afamadas,<br />

acadêmicos inflamados, malandros carismáticos e agentes da lei truculentos. Entram nesse<br />

repertório da reinvenção cotidiana os episódios contingentes, afetos e desafetos expressos em<br />

encontros inesperados no espaço público remodelado, na Avenida, na galeria, no bonde, nos<br />

cafés, nos teatros e nos bares, casos chocantes de violência, grandes acontecimentos cívicos,<br />

enfim, toda uma gama imagética de práticas, conflitos e personagens que até então não<br />

desfrutavam de primazia no campo reflexivo (ou khôra derridiana rompendo a separação<br />

campo/contexto) referente ao <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>.<br />

60<br />

“A mania de querer fazer a modinha dizer alguma coisa, que no romance<br />

Lima Barreto não esclarece qual seja, era referência ao fato de Eduardo das<br />

Neves ter criado, a partir da última década do século XIX, a novidade da<br />

composição de cançonetas, modinhas e lundus sobre acontecimentos<br />

históricos ou de interesse do momento, como os crimes famosos, escândalos<br />

da cidade, etc.” (TINHORÂO, 2000, p. 16).<br />

O estranhamento de Lima Barreto adviria justamente desse ponto de inflexão na primazia<br />

temática do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> (ou ainda na sua contaminação) ao abrirem-se espaços em<br />

seus discursos que, dantes, trataram tão enfaticamente do amor, da alcova e da vida privada<br />

burguesa e pequeno-burguesa, sentimental, na melhor das hipóteses, comunitária, para lidar<br />

com temas públicos e políticos que interessariam a todos contaminados e contaminadores do<br />

signo urbano/moderno.<br />

Em nossa interpretação, consideramos também como fator que justifica a escolha do corte<br />

inicial da pesquisa na passagem ente os séculos XIX e XX, esse deslocamento/deslizamento<br />

que os SD eleitos (como constituidores de um campo reflexivo referente ao <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong>) produzem ao inscreverem em si sob os efeitos de contaminação, umidade do<br />

contexto, khôra, construções relativas a práticas e conflitos do contexto que retro-alimenta-se<br />

re-significando-se no embate entre si, jogo de diferenças e semelhanças em que sujeitos e<br />

alteres se assujeitam e se ressujeitam em relação de uns aos outros. Os discursos SD eleitos, a


princípio, buscariam orientar-se, ideologicamente, segundo os pólos de afinidade/repulsa e<br />

proximidade/distância maior ou menor com os interesses inscritos pelo discurso da elite,<br />

constituindo um jogo de disputas e negociações principalmente nos campos político, social e<br />

cultural. Mas, também pelo direito a reterritorializar a cidade, pelo direito de ocupar, usar e<br />

redefinir a cidade. Tais discursos dos SD eleitos estariam contaminados, umedecidos, pelos<br />

discursos relativos à fala da imprensa, da academia e do dissenso interno à fala da política.<br />

Propomos que a partir do período assinalado o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> passa a fazer parte desse<br />

jogo de forma enfática, dessas composições de múltiplas parcerias imagéticas que constituem<br />

os inúmeros contextos: político, social, cultural, urbanístico, sanitarista, trabalhista que<br />

abrigam a derivação, rasura, da nova estrutura dialógico-discursiva: certa percepção moderna<br />

de cotidiano e de acontecimento, como nítido caractere belle-epoqueano.<br />

Propomo-nos agora apresentar uma série de canções que enunciam o deslizamento dos SD<br />

eleitos no campo reflexivo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> sob a rasura do novo contexto belle-<br />

epoqueano.<br />

Como canção que discursa próximo ao diapasão da crônica urbana moderna, umedecida pelas<br />

(e umedecendo as) falas da imprensa, do Governo enquanto participa da invenção de novas<br />

percepções de cotidiano e de acontecimento, pode-se citar o lundu “Rato, Rato, Rato” que em<br />

1904 ironizava a campanha do médico-sanitarista Oswaldo Cruz.<br />

Rato, rato, rato. Porque motivo tu roeste meu baú?<br />

Rato, rato, rato. Audacioso e malfazejo gabiru.<br />

Rato, rato, rato. Eu hei de ver ainda o teu dia final<br />

A ratoeira te persiga e consiga satisfazer meu ideal.<br />

Quem te inventou? Foi o diabo, não foi outro, podes crer.<br />

Quem te gerou? Foi uma sogra pouco antes de morrer!<br />

Quem te criou? Foi a vingança, penso eu.<br />

Rato, rato, rato, rato. Emissário do judeu.<br />

Quando a ratoeira te pegar, monstro covarde, não me venhas a gritar, por favor.<br />

Rato velho, descarado, roedor. Rato velho, como tu fazes horror!<br />

Nada valerá o teu qüim-qüim, Tu morrerás e não terá quem chore por ti,<br />

Vou provar-te que sou mau, Meu tostão é garantido, Não te solto nem a pau 73 .<br />

73 Casemiro Rocha e Claudino Costa, 1904. Em 1902, depois de uma epidemia de peste bubônica no<br />

Rio de Janeiro, o recém-nomeado diretor da Saúde Pública, o médico Oswaldo Cruz, lançou uma<br />

grande campanha para reduzir o número de ratos, que proliferavam nas favelas, cortiços e bairros<br />

pobres da cidade. Um esquadrão de cinqüenta “homens da corneta” passou a percorrer os bairros<br />

pobres espalhando raticida, removendo lixo e pagando à população cem réis por bicho morto.<br />

Chegou-se a criar o cargo público de “caçadores de ratos”. Estima-se que 10 milhões de animais<br />

tenham sido abatidos. As medidas sanitárias desencadearam uma enorme onda de comércio de<br />

ratos, havendo, inclusive, quem tenha passado a criá-los com o objetivo de vendê-los às autoridades.<br />

A frase inicial que fala em “roer o baú” refere-se ao rombo que os “criadores de ratos” teriam<br />

provocado nos cofres públicos. O refrão “Rato, rato , rato” se inspira nos pregões dos compradores<br />

61


74 75<br />

Outra canção que expressa reinvenção de percepção cotidiana é o maxixe “Vem cá mulata”,<br />

1906, que caçoa das relações amorosas entre o migrante português e a mulata brasileira. A<br />

construção imagética do português seduzido pela mulata, típica do período, seria re-inventada<br />

inúmeras vezes pelo <strong>cancioneiro</strong> nas décadas seguintes, como no samba “Com que roupa?”,<br />

de 1924, reforçando a imagem dicotômica português/mulata como experiência cotidiana.<br />

Vem cá mulata! Não vou lá não!<br />

Sou democrata, sou democrata, sou democrata de coração.<br />

Ao povo sempre damos alegria e batalhamos pela folia.<br />

Não receamos nos sair mal e letra damos no carnaval 76 .<br />

Teu português agora deu o fora.<br />

Foi embora e levou seu capital.<br />

Desprezou quem tanto amou outrora.<br />

Foi no Adamastor pra Portugal.<br />

Pra se casar com uma cachoupa 77 .<br />

Em 1907, foi aproveitado um “paso doble” (ritmo espanhol) intitulado “La Mattchitche”,<br />

para musicar a narrativa dos assassinatos dos migrantes Carluccio e Paulino Fuoco pelos<br />

de rato que saíam a rua anunciando a compra da mercadoria. Atente-se ainda para o anti-semitismo<br />

desavergonhado que compara o povo judeu aos ratos.<br />

74 A caricatura foi capa da revista “O Malho” de 1904. Dedicada a ridicularizar a campanha contra a<br />

peste bubônica do sanitarista Oswaldo Cruz. O agente de saúde acaba enforcado pela lei, enquanto<br />

os ratos passeiam livres ao redor dos governantes.<br />

75 “Caça aos Ratos”. Álbum de recortes de jornais e revistas reunidos por Oswaldo Cruz, década de<br />

1900. Caricatura de J. Carlos. Acervo Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz.<br />

76 Vem cá mulata. (I) Pepa Delgado, Mário Pinheiro – (C) Arquimedes de Oliveira,1906.<br />

77 Com que roupa. Noel Rosa, 1929.<br />

62


italianos Carleto e Rocca, O crime ocorreu a 18 de outubro de 1906, no Rio de Janeiro, numa<br />

joalheria à Rua da Carioca nº 11. Esse cotidiano referente a crimes e violências comumente<br />

noticiado nas páginas dos periódicos e analisado nas crônicas urbanas passa a ser inscrito<br />

também pelo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>.<br />

O Padre Santo disse<br />

Que é pecado<br />

Andar de braço dado<br />

Com o namorado<br />

O Padre Santo disse<br />

Que é pecado<br />

Andar de braço dado<br />

Sem ser casado<br />

Mandei fazer um terno<br />

De jaquetão<br />

Pra ver Carleto e Rocca<br />

Na detenção<br />

Mandei fazer um terno<br />

De jaquetinha<br />

Pra ver Carleto e Rocca<br />

Na carrocinha 78 .<br />

Outra canção que produz inscrição de imagens de crime e violência na construção do<br />

cotidiano é “Estranguladores do Rio” de 1907. O tom dramático da melodia orienta a reação<br />

de indignação da sociedade.<br />

Na Rua da Carioca, pleno Rio de janeiro.<br />

Deu-se um crime horroroso<br />

Que abalou o mundo inteiro<br />

Sarmento e Eugênio Rosa<br />

Heróis da perversidade<br />

Mataram Carlo e Maurino.<br />

Dois entes na flor da idade<br />

Justiça, senhores da terra, justiça, mais uma vez.<br />

Gritar não é demais para quem tal crime fez 79 .<br />

A música seguinte reinscreve na percepção cotidiana referente à bela época um acidente<br />

marítimo com um navio da marinha brasileira. A canção carnavalesca foi muito cantada, seu<br />

tom alegre em marcha veloz animava as ruas da cidade no carnaval de 1906, a despeito dos<br />

200 marinheiros que morreram afogados no naufrágio.<br />

Lá se foi o Aquidabã.<br />

O navio da batalha.<br />

Pegou fogo no alto mar.<br />

No alto mar.<br />

78 La Mattchitche. Borel Clerc, 1907.<br />

79 Estranguladores do Rio, Eduardo das Neves, 1907.<br />

63


E não pôde se salvar 80 .<br />

Como enunciado que se expressa em diapasão próximo ao do discurso político-ufanista, cito<br />

uma canção enaltecendo Santos Dumont, em virtude de uma visita do inventor ao Rio de<br />

Janeiro. O tom da música é de respeito, reforçando a idéia da celebridade nacional que<br />

representa o valor do Brasil no exterior e por extensão do povo <strong>brasileiro</strong> frente outros povos.<br />

A Europa curvou-se ante o Brasil.<br />

E clamou parabéns em meigo tom.<br />

Brilhou lá no céu mais uma estrela.<br />

Apareceu Santos Dumont 81 .<br />

Ainda no que tange a reinvenção dessa percepção de cotidiano reforçada pela parceria com<br />

discursos que emanam do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> e que se espraiam inclusive pelo campo da<br />

política, vale explicitar o contexto que motivou a polca carnavalesca, “No bico da chaleira”. O<br />

Morro da Graça no bairro das Laranjeiras no Rio de Janeiro era palco de um ininterrupto sobe<br />

e desce de senadores, deputados, juízes, empresários ou, simplesmente, candidatos a cargos<br />

públicos ou mandatos eletivos. A razão do tráfego de personalidades e pessoas comuns era<br />

que no morro morava o então senador Pinheiro Machado, do Rio Grande do Sul, líder do<br />

Partido Republicano conservador que dominou a cena política no início do século XX. A<br />

polca "No Bico da Chaleira" – grande sucesso do carnaval de 1909 – satirizava o<br />

comportamento dos bajuladores que disputavam acirradamente o privilégio de segurar a<br />

80 O encouraçado <strong>brasileiro</strong> Aquidabã, após sucessivas explosões no paiol de munições, naufraga na<br />

Ilha Grande, enseada de Angra dos Reis. O acontecimento serviu de tema para essa canção<br />

carnavalesca apresentada pelo cordão Filhos da Estrela dos Dois Diamantes, 1906.<br />

81 A conquista do ar. Eduardo das Neves, 1902.<br />

64


chaleira que supria de água quente o chimarrão do senador gaúcho, nem que para isso<br />

queimassem os dedos segurando a chaleira pelo bico. Segundo Almirante, em depoimento<br />

para a Rádio Nacional: “Nascia daí o dito <strong>popular</strong> chaleira, para chamar alguém de adulador,<br />

e a expressão pegar no bico da chaleira, para indicar a ação de adular”.<br />

Iaiá, me deixe subir esta ladeira.<br />

Que eu sou do grupo do pega na chaleira<br />

Que vem de lá<br />

Bela Iaiá<br />

Ó abre alas<br />

Que eu quero passar<br />

Sou Democrata<br />

Águia de Prata<br />

Vem cá mulata<br />

Que me faz chorar 82 .<br />

A imagem da chaleira que sustenta a ironia com o grupo de aduladores do senador, ainda<br />

renderia duas outras versões. Uma confrontando a moral da época com imagens de duplo<br />

sentido e outra produzindo críticas de referência política mais evidentes.<br />

Menina eu quero só por brincadeira<br />

Pegar no bico da sua chaleira<br />

Ela está quente e se você segura<br />

Fica com uma grande queimadura<br />

É moda agora e eu justifico<br />

(Com que eu implico)<br />

Pegar no bico de uma chaleira<br />

Muita senhora nos engrossando<br />

Leva pegando a vida inteira<br />

Se você vai apertar-me no bico<br />

Não imagina como eu logo fico<br />

Não, eu seguro assim desta maneira<br />

Lá no biquinho da sua chaleira 83 .<br />

Neste século de progresso<br />

Nesta terra interesseira<br />

Tem feito grande sucesso<br />

O tal “pega na chaleira 84 ”.<br />

A percepção da hipertrofia da cidade no repertório imagético da Belle Époque deve ser<br />

interpretada não como algo dado, mas, como resultado de tensões que se desenrolam no<br />

âmbito do jogo discursivo: do querer-dizer em conflito com o poder-dizer. Assim, notícias,<br />

caricaturas, festejos carnavalescos, cívicos e religiosos, discursos políticos, laudos da polícia,<br />

82 No bico da chaleira, Costa Júnior, 1909.<br />

83 No bico da chaleira. Vanderley, Eustórgio, 1909.<br />

84 Gargalhada (Pega na chaleira). Eduardo das Neves, 1909. Eduardo das neves vai citar vários tipos<br />

sociais e várias relações de adulamento, como por exemplo o padre que pega na chaleira do bispo ou<br />

o soldado que pega na chaleira do tenente e assim por diante. A música inteira consta da seleção<br />

gravada no CD.<br />

65


falas técnicas de sanitaristas e urbanistas, a voz emergente da publicidade, reclames e<br />

propagandas, falas do teatro de revista, a crônica policial 85 e a crônica de costumes, revistas<br />

de tipos, modas e personalidades 86 , discursos da academia, além da produção literária,<br />

científica e ficcional, estariam dialogizando entre si, constantemente, mas, também<br />

disputando com determinação a primazia do enunciado que diz da coisa em si, segundo<br />

interesses de indivíduos, de grupos, de classe, de campo e de qualquer outra síntese<br />

construtivista metodológica que a rasura identificaria como metafísica ou efeito de verdade,<br />

análise de um suposto real dado.<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> no período especificado soma-se ao escopo discursivo, como máquina<br />

discursiva, mas, principalmente, como um efeito que quer também especificar efeitos sobre<br />

efeitos, diria Derrida, metáfora de metáfora. E derivar, disseminar tanto no entre de si (alteres<br />

entre si: BR, RF, CM) quanto no entre que especifica a diferença contaminada, espaçamento,<br />

do campo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> e do contexto em que se localizam os discursos da elite, altere<br />

mais evidente do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. O faz, não para dizer a coisa no mundo, a cidade, a<br />

urbanidade, a modernidade, a identidade nacional, mas para participar do jogo, do embate, do<br />

conflito, este sim de ordem estritamente política. Jogo que constantemente se re-inaugura,<br />

segundo contingências, elegendo e preterindo pensamentos e formas que expressam esta ou<br />

aquela economia de dominados, dominadores, sujeitos, alteres, campos, contextos etc. Enfim,<br />

sistematizando modos de pensar em que, respondendo à lógica de mecanismos<br />

disseminadores, torna possível ao <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, em dado momento contingente, atuar<br />

de forma violenta por dentro do contexto político.<br />

As metáforas de metáforas, resultados parciais do jogo, especificam percepções cotidianas na<br />

sociedade belle-epoqueana (manifestações, conflitos, festas, crimes, costumes, modas,<br />

práticas de habitação, trabalho, consumo, lazer e circulação), especificam modos de percepção<br />

e construção como resultados parciais e circunstanciais de efeitos em movimento. Efeitos que,<br />

85 Houve uma série de crônicas dessa natureza, bastante divulgada, conhecida por Os Mistérios do<br />

Rio, de Benjamin Costallat e inspirada nos Mistérios de Paris de Alexandre Dumas. Essa série se<br />

reproduziu em inúmeras publicações no Brasil que procuravam interpretar o lado obscuro das<br />

cidades, gerando diversas versões, sempre amplificando a atmosfera noir e metropolitana de<br />

imagética européia.<br />

86 Vale acrescentar que no mesmo período multiplicaram-se revistas como “A Lanterna”, de 1901, “O<br />

Malho”, de 1902, “Fon-Fon” e “Tico-Tico”, de 1905, “Careta”, de 1908, que também propõem<br />

dialogicamente, tipos, personagens e questões relativas a conflitos de ordem ideológica especificados<br />

pela eleição de aspectos da identidade nacional, da modernidade, da tradição e do urbano, este<br />

último, sintetizado na construção imagética da cidade moderna, cujo moto-contínuo é surpreendido e<br />

interrompido por datas cívicas e religiosas, festejos, modas de vitrine, reclames, costumes, conflitos,<br />

manifestações e múltiplos acontecimentos que atravessam a rotina dos citadinos.<br />

66


por sua vez especificam-se como rastros da violência do jogo, dominações, subordinações,<br />

insubordinações, revoluções, reacionarismos. O jogo que especifica as metáforas de<br />

metáforas, de forma retro-alimentar, deixa-se contaminar pelos novos efeitos que especificam<br />

violências no calor do jogo, cujo resultado, re-inaugura economias, estruturas lógicas de<br />

pensamento, que de novo se deixam contaminar pelo novo escopo discursivo,<br />

momentaneamente eleito, não fechado, metáforas de metáforas. Seguindo essa deriva, esse<br />

rizoma, sem centro, origem, fim, pode-se propor a entrada do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> como<br />

escopo discursivo que passa a incorporar algo que antes se estabelecia como “fora”, como<br />

“outro”, como altere, mas que desde então, pela contingência de um efeito de uma forma de<br />

jogar, passa a compor o/no campo da política e a fazer política de forma tão violenta quanto<br />

os demais discursos que já se digladiavam no mesmo feixe.<br />

Sendo assim, independentemente do contexto histórico em pauta, assumimos como premissa<br />

metodológica que o espaço público será sempre re-qualificado por sujeitos discursivos,<br />

através de disputas, conflitos e interesses que retro-alimentam novos discursos. O político<br />

assim proposto – muito mais do que palco das violências de embates e conflitos – é<br />

especificado por desconstruções discursivas em que o próprio conceito de política ainda que<br />

constitua formas hegemônicas momentâneas precisará sempre negociar com outras não<br />

hegemônicas.<br />

Mesmo para a metodologia de inspiração bakhtiniana referida, sem a contaminação do efeito<br />

da rasura, a percepção de político sugere que o conceito é construído de forma polissêmica e<br />

interdiscursiva através do dialogismo que se estabelece (1) genericamente entre os diversos<br />

sujeitos discursivos que colaboram em diferentes graus de poder e dominação com a constante<br />

re-construção do conceito e (2) especificamente, considerando a metodologia agindo no<br />

discurso-tese, através dos SD eleitos produzindo dialogismos entre si sob a contaminação<br />

direta do contexto. Essa forma de abordar certo movimento no conceito de político implica na<br />

condição de que os discursos que produzem o conceito se estabelecem através de um vínculo<br />

social provisório, sempre de caráter lingüístico, em que relações de dominação inerentes aos<br />

vínculos sociais são decisivas nas determinações do movimento desconstrutivista do conceito,<br />

do nome, enfim da própria linguagem.<br />

67<br />

A ênfase na linguagem empreendida por essa vertente (virada lingüística de<br />

wittgeinstain) constitui-se de tal maneira que tem por implicação a<br />

consideração de que o próprio caráter do vínculo social é lingüístico, ou, na<br />

forma desdobrada mais precisa de algumas compreensões, é discursivo.<br />

Assim sendo, a objetividade dos signos (...) é constituída no campo das<br />

relações interdiscursivas, das relações sociais, portanto, o que traz à


68<br />

problemática, de modo imediato e direto, questões de ordem política, ética,<br />

estética e gnosiológica, além de apontar ao espaço-temporalmente situado<br />

dos signos (ARAUJO, 2007, p.17).<br />

Podemos então assumir que a escolha do corte empírico na Belle Époque não representa<br />

exatamente a identificação de uma ruptura no discurso do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Mas, um<br />

deslizamento discursivo correspondente às alegorias dos SD eleitos que passam a incorporar,<br />

em seus enunciados (através de dialogismo entre si sob a contaminação do contexto no qual<br />

localizam-se os discursos da elite que se especificam como altere mais evidente dos discursos<br />

do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>), construções interdiscursivas do cotidiano, do urbano, da política, e<br />

de instância pública onde antes se ouviam preferencialmente construções discursivas da<br />

instância do privado. O deslizamento diz respeito a aproximar vozes, antes, inaudíveis entre<br />

si, o que implica numa re-acomodação da estrutura social oitocentista, ou seja, numa rasura do<br />

contexto, numa re-elaboração do jogo. As modinhas que dantes cantavam em primazia o<br />

sofrimento e desventuras dos casais, do amor impossível ou não correspondido de certo valete<br />

por certa dama, a “Moreninha” de Alencar, os perigos dos amores proibidos, de bilhetes, de<br />

olhares discretíssimos na sala de visita e de arroubos de alcovas, prosseguem cantando os<br />

mesmos temas, porém, vão incorporando ao longo do século XIX, e de forma mais nítida a<br />

partir do corte sugerido, as instâncias do público, do político, do urbano. Em suma, a canção<br />

<strong>popular</strong> não abandona o discurso anterior, deixa entrever o romantismo privado da sociedade<br />

oitocentista enquanto vai rasurando-o com novas construções mais próximas ou relativas à<br />

instância pública.<br />

Considera-se, enfim, o discurso referente ao <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> do século XX, como<br />

pertencente ao mesmo feixe (khôra), por isso nem ruptura, nem continuidade, como diferança<br />

(differance) efeito não-linear de trocas entre dominados e dominadores que ao mesmo tempo<br />

em que produziram forças reacionárias de manutenção de estruturas tradicionais de poder,<br />

incentivaram práticas interétnicas.<br />

O lundu é a primeira música negra aceita pelos brancos. Na realidade, é a<br />

primeira a crioulizar-se, a se tornar mulata. E foi precisamente um mulato,<br />

Domingos Caldas Barbosa, que no final do século XVIII dera início à voga<br />

do lundu-canção, fórmula que possibilitaria a aceitação desse ritmo pela<br />

sociedade branca. (...) Ao lado da habanera e da polca, o lundu contribuiu,<br />

principalmente com a síncope, para a criação do maxixe. Nos primeiros<br />

tempos da república, quando crescia grandemente a música <strong>popular</strong> no Rio,<br />

o ritmo sincopado já era produzido em toda a parte – mesas de café, chapéus<br />

de palhinha, caixas de fósforos, etc. A sincopa garantia a recriação ou<br />

reinvenção dos efeitos específicos dos instrumentos de percussão negros. (...)


69<br />

Os diversos tipos de samba (samba de roda, samba de salão, samba de<br />

terreiro, samba duro, partido-alto, samba cantado e outros) são perpassados<br />

por um mesmo sistema genealógico e semiótico: a cultura negra. (...) Desde<br />

o final do século XIX, o samba já se infiltrava na sociedade branca sob os<br />

nomes de tango, polca, marcha, etc. (SODRÉ, 1979, pp.27, 28, 30).<br />

Esse intercâmbio manifestando-se através de práticas, ritmos e enunciados irá provocar a<br />

assunção de novas posturas e novas formas de negociação dos SD eleitos tal qual novos<br />

percursos, efeitos de diferança que a música <strong>popular</strong> produzirá ao longo do século XX.<br />

Em resumo, as justificativas para o corte epistêmico se localizar no período da Belle Époque<br />

seriam: (1) de ordem bastante prática, a elevação da base tecnológica resultando nas primeiras<br />

gravações e reproduções mecânicas do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> no Brasil. (2) A interpretação de<br />

que esse <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> (enquanto SD eleitos e campo reflexivo) passa a produzir de<br />

forma mais nítida construções que se aproximam das instâncias públicas, do campo político e<br />

do cotidiano urbano quando antes operava preferencialmente nas instâncias privadas. (3) A<br />

Belle Époque marca um período de deslizamento de categorias centrais ao discurso-tese, quais<br />

sejam: urbanidade, modernidade, identidade nacional, ruralidade e tradição. (4) O duplo<br />

deslizamento que os SD eleitos operam, segundo nossa interpretação, sobre o discurso<br />

pedagógico das Grandes Sociedades do século XIX, rasurando-o, tanto através de uma re-<br />

construção mais próxima do SD Barão da Ralé que procura reproduzir os paradigmas de<br />

ordem e comportamento (por estratégia de sobrevivência ou por perceber vantagens na<br />

aliança com seus alteres) quanto através do SD Rapaz Folgado que re-negocia o dialogismo<br />

sob os termos da transgressão que não chega a ser revolucionária, mas que, propõe nas<br />

instâncias públicas uma convivência menos confortável para com o discurso da elite.<br />

♪♪♫<br />

Na outra ponta da pesquisa, localizamos o segundo corte empírico que corresponde ao<br />

período referente à década de sessenta, encerrando um percurso de pouco mais de meio<br />

século. Os dialogismos produzidos entre os SD eleitos – considerando os temas centrais:<br />

identidade, urbanidade, ruralidade, modernidade e tradição – perdem, segundo nossa<br />

interpretação, a primazia temática no campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> ao ceder esse lugar para<br />

outro SD, um possível Sujeito Discursivo Revolucionário, cujo tema contempla a revolução<br />

pelo paradigma marxista, utopias, estratégias de luta e diagnósticos sociais do país na<br />

eminência da ditadura militar e da consequente suspensão das liberdades individuais. Tal<br />

deslizamento, a princípio seria excessivo para o alcance e pretensões do discurso tese.


Segundo essa interpretação, os dialogismos efetivos que ocorreriam entre os SD eleitos e<br />

entre estes e seus alteres, as elites no poder, seriam substituídos pelo enfrentamento explícito<br />

expresso nos significados do “enunciado-canção de protesto” pertencente a um possível SD<br />

revolucionário 87 que, considerando o contexto dos anos 60, se desloca para o centro do fluxo<br />

discursivo que expressa conflitos econômicos, sociais, políticos e ideológicos. O SD<br />

revolucionário que, repito, não será desenvolvido pelo discurso-tese, considerando o<br />

movimento que produz nos SD eleitos, não propriamente expressa uma ruptura ou<br />

apagamento com e em relação aos SD Contente, Rapaz e Barão. O tipo de enunciado-canção<br />

com as características discursivas dos três SD eleitos, embora rasurado pelo movimento<br />

correspondente à centralidade assumida pelo SD revolucionário, no fluxo discursivo, continua<br />

presente no campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Porém, interpretar metodologicamente esse<br />

movimento de deslocamento para a margem do fluxo que o SD revolucionário provocaria<br />

sobre os SD eleitos nos pareceu excessivo, não só por deslocar o eixo temático, mas,<br />

principalmente, por promover um tipo de resposta à fala do poder em que a negociação é<br />

substituída pelo enfrentamento direto. A construção do discurso ditadura militar pelo SD<br />

Revolucionário como um quase “completamente outro” interrompe as contaminações<br />

interdiscursivas possíveis, seca a umidade que o poder, a elite política (representada agora<br />

pelos militares), poderia provocar no <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, o que polarizou sobremaneira o<br />

conflito, a diferença, dominador-dominado, ou na visão de um pelo outro, reacionário-<br />

subversivo, traidor-terrorista. Trocando em miúdos, na fala do poder da ditadura o SD<br />

Revolucionário é o comunismo que ameaça a liberdade e as instituições democráticas do país,<br />

na fala do SD revolucionário, a ditadura é a mão de ferro que, fundamentalmente freia o<br />

caminho da revolução, único caminho de liberdade e democracia que cabe ao país. Entre os<br />

dois discursos, trincheiras, arame farpado e exíguas veredas que permitissem a fala de um na<br />

fala do outro.<br />

Deve-se considerar ainda que no período pós-sessenta localiza-se uma segunda elevação da<br />

base tecnológica da produção musical (ou terceira se considerarmos os primórdios da<br />

87 O SD Revolucionário produz uma fala “anti-aquarélica” que enfrenta e desdiz o ufanismo das<br />

peças publicitárias a serviço do governo militar. Alguns exemplos da emergência do tema antiufanista<br />

são: “Querelas do Brasil” que lamenta o fato do Brazil com “Z” não conhecer o Brasil com “S”,<br />

“O mestre sala dos mares”, que utiliza a Revolta dos marinheiros, de 1910, liderada pelo marinheiro<br />

João Cândido Felisberto, para falar da tortura e da ditadura através de linguagem metafórica: “rubras<br />

cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas”, por fim, “Bye, bye Brasil” que<br />

explicitamente nos informa que “aquela aquarela mudou”. Mesmo quando a cidade aparentemente<br />

vem à baila como no verso “o Rio de janeiro continua lindo” da canção “Aquele Abraço”, não é da<br />

experiência da urbanidade ou da modernidade que Gilberto Gil fala, mas do exílio. O mesmo serve<br />

para o “Samba de Orly” de Vinícius de Morais e Chico Buarque.<br />

70


gravação de músicas no Brasil como a primeira e o rádio como a segunda), com a chegada da<br />

televisão que paulatinamente substituirá o rádio como principal veículo de comunicação de<br />

massa no Brasil. A televisão, a exemplo do rádio, também vai afetar a produção musical que,<br />

a partir de agora, precisa contemplar os aspectos da imagem de forma bem mais presente e<br />

urgente do que na cinematografia dos musicais da Atlântida. A televisão passa a “produzir”<br />

certo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> através de shows e festivais televisionados, vídeos musicais, e,<br />

principalmente, programas de auditório que anunciam os novos sucessos enquadrados<br />

visualmente por comerciais direcionados ao consumo moderno da família. A diferença entre<br />

os reclames do “Sabonete Lever: o sabonete das estrelas” da década de 40 na Rádio Nacional<br />

e a propaganda pós-64 nas emissoras de televisão pode ser interpretada a partir do discurso do<br />

SD revolucionário expresso nos enunciados-canções de protesto e anti-aquarélicos, em que a<br />

ideologia socialista sustentada pela construção política dual, direita x esquerda, contesta o<br />

sistema no poder também em suas práticas de consumo estandardizadas pela tutela do padrão<br />

americano de consumo para a classe média.<br />

Sigo o anúncio e vejo em forma de desejo o sabonete.<br />

Em forma de sorvete acordo e durmo na televisão.<br />

Creme dental, saúde. Vivo num sorriso o paraíso.<br />

Quase que jogado, impulsionado no comercial 88 .<br />

Ainda em termos bem objetivos, considerando aspectos discursivos do novo contexto, pode-<br />

se interpretar no fluxo discursivo, a partir dos anos sessenta, uma estreita relação entre a<br />

ditadura militar, a expansão da televisão como veículo de comunicação de massa e o<br />

deslizamento no campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, dividido por uma construção político<br />

ideológica dual, dos SD eleitos para o SD Revolucionário. Essa percepção dual produzida<br />

para e pelo <strong>cancioneiro</strong> vai dividir os conjuntos discursivos pós-64 entre uma música dita<br />

engajada e outra alienada e alienadora que bem poderia ser sintetizada na figura de um SD<br />

Ufanista ou Alienado (segundo interpretação do SD Revolucionário): “moro num país<br />

tropical, abençoado por Deus 89 90 91 ”, “Esse é um país que vai pra frente 92 ”, “Eu te amo meu<br />

88 Comunicação. Edson Alencar e Helio Matheus, 1970.<br />

89 SD Orientador: a questão é que SDR simplifica as coisas, eliminado nuances. Sem discordar<br />

de/para um SDR ortodoxo essa música pode ter sido vista como alienada/alienante. Para outro SDR,<br />

menos dogmático, ela foi vista e apropriada durante a ditadura como uma ironia.<br />

90 SD Eu para SD Orientador: Concordo contigo, em relação a País Tropical. Mas, as outras não têm<br />

nuances. A fala era explícita: quem não concordar, a bota bate a boca.<br />

91 País tropical, Jorge Bem, 1969.<br />

92 Este é um país que vai pra frente. “Uô Uô Uô Uô Uô, de uma gente amiga e tão contente… Uô Uô<br />

Uô Uô Uô. Os Incríveis, s.d.<br />

71


Brasil, eu te amo e Marcas do que se foi 93 ” que apelavam à juventude ufanista, “Noventa<br />

milhões em ação pra frente Brasil do meu coração 94 ”. No decorrer dos anos 80, com a falência<br />

dessa estrutura dualista que estabelecia a percepção do mundo construída sobre uma base<br />

discursiva revolucionária ou ufanista, desliza o SD revolucionário para outra coisa que<br />

expressa o enquadramento da música <strong>popular</strong>, salvo raras exceções, pelos padrões de<br />

consumo demarcados pela bitola da televisão em particular e da imagem em geral.<br />

72<br />

O público <strong>brasileiro</strong> de televisão situa-se em número próximo ao total da<br />

população do país e esse veículo, ao contrário dos demais canais de<br />

comunicação de massa, desconhece qualquer sorte de barreiras em sua<br />

emissão, sejam elas etárias, culturais ou econômicas. Em frente ao bezerro<br />

dourado do vídeo se postam crianças, velhos, intelectuais e iletrados, o<br />

público sofisticado da Vieira Souto e as populações marginalizadas da favela<br />

(VIEIRA, 1978, p.75).<br />

Na perspectiva do novo contexto, também seria pertinente afirmar que o grande público<br />

urbano que se mantinha fiel às novelas, concursos e programas da Rádio Nacional,<br />

comprando revistas da Rádio para ver fotos de artistas ou indo ao cinema para assistir de<br />

forma esporádica suas performances, sem cerimônias, migrou para frente da televisão, onde<br />

passou a “ver” o artista em “casa” e em apresentações “ao vivo”, nos programas de auditório,<br />

nos festivais da canção e nos eventuais especiais de música que a própria televisão produzia.<br />

A modernização conservadora senta praça no cenário sócio-cultural, encaixotado pela censura<br />

do governo militar e pela pressão econômica de multinacionais, cada vez mais atentas à<br />

expansão do mercado consumidor <strong>brasileiro</strong> em paralelo à expansão da própria classe media.<br />

Seria por volta desse período que a música brasileira, assim como a internacional, passa a<br />

compor a trilha sonora de novelas e comerciais de cigarro, banco, sabão, confundindo-se com<br />

o “jingle” 95 .<br />

93<br />

Brasil, eu te amo. (I) Os incríveis – (C) Dom e Ravel, 1970; Marcas do que se foi. Os incríveis,<br />

1970.<br />

94<br />

Pra frente Brasil. Miguel Gustavo Werneck de Souza Martins, 1970.<br />

95 Foi muito significativa a contribuição que as trilhas sonoras de novelas trouxeram para o setor<br />

fonográfico, sendo mesmo a elas creditado o crescimento do mercado nos anos setenta (DIAS, 2000,<br />

p. 59). Um claro sintoma desse boom foi o crescimento obtido no período pela gravadora do selo<br />

“Som Livre”, da Rede Globo, produzindo essencialmente trilhas. Atuando desde 1971, em 1974 ela já<br />

detinha 38% do mercado de discos mais vendidos, em 75, 56% e, em 77 tornou-se líder. (...) Outra<br />

vantagem da Som Livre frente às suas concorrentes estava no esquema promocional e de difusão<br />

que usufruía [considerando sua filiação com a Rede Globo]. (...) A verba destinada à campanha da<br />

gravadora [e de seus artistas contratados] era maior do que aquela investida por grandes anunciantes<br />

como a Souza Cruz ou a Coca-Cola. (idem, p.60). (...) O segmento das trilhas sonoras é ampliado<br />

quando chega, além das novelas, ao conjunto da programação televisiva, inclusive àquela que<br />

acompanha a publicidade (ibidem, p.60).


Independentemente da interpretação que se produza sobre a interferência da estrutura<br />

midiática da televisão no campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, isto é, o quanto o discurso desse<br />

<strong>cancioneiro</strong> passou a estar a serviço da novela, da publicidade, dos programas de auditório, do<br />

vídeo musical ou de qualquer produto vendável sob a orientação da imagem, o fato, é que<br />

nosso debate, como os SD prévios, orientador e banca, já devem ter percebido, se afastou<br />

sensivelmente da questão central da tese que objetiva enveredar-se pelos deslizamentos<br />

estratégicos que os SD eleitos produziram dialogizando com alteres e contexto sobre os temas<br />

da urbanidade, modernidade, identidade e tradição.<br />

Avançar para além do corte sugerido implicaria em um novo sistema discursivo<br />

correspondendo ao SD Revolucionário e ao SD Ufanista e seus possíveis desdobramentos. A<br />

diferença dos SD Revolucionário e Ufanista para os SD prévios (BR, RF e CM) seria da<br />

ordem do contexto e do próprio dialogismo, considerando a alteridade interna e a forma de se<br />

posicionar frente à ditadura militar, as multinacionais e os poderes hegemônicos de ordem<br />

global mais evidente. O tradicional enunciado do samba de roda baiano, como qualquer<br />

“baticum na beira do mar”, desliza transformando-se em um outro efeito de resistência crítica<br />

que expressa o altere na figura de poderes globalizantes e flexibilizadores que ameaçam a<br />

reprodução das estruturas locais da tradição. Se nos discursos do SD Contente Magoado o<br />

rural constituiu-se como contraponto do urbano, rasurado pelas imagens urbanas via Rádio<br />

Nacional, sob o novo contexto do SD revolucionário, o rural inscreve-se sob o risco de<br />

transformar-se, não mais pela ameaça da cidade propriamente, mas, por emular a nova lógica<br />

global e flexibilizada que ameaça também a urbanidade clássica.<br />

Veio Mané da Consolação. Veio o Barão de lá do Ceará<br />

Um professor falando alemão. Um avião veio do Canadá<br />

Monsieur Dupont trouxe o dossiê. E a Benetton topou patrocinar<br />

A Sanyo garantiu o som do baticum lá na beira do mar<br />

Aquela noite. Quem tava lá na praia viu<br />

E quem não viu jamais verá. Mas se você quiser saber.<br />

A Warner gravou. E a Globo vai passar (...).<br />

Zeca pensou: antes que era bom. Mano cortou: brother, o que é que há?<br />

Foi a G.E. quem iluminou. E a Macintosh entrou com o vatapá<br />

O JB fez a crítica. E o cardeal deu ordem pra fechar.<br />

O Carrefour, digo, o baticum. Da Benetton, não, da beira do mar 96 .<br />

96 Baticum. Chico Buarque e Gilberto Gil, 1989. Essa confusão que a canção ironicamente simula<br />

entre o espaço da festa e o espaço da mídia não é muito diferente daquela, do alto do morro, que os<br />

compositores nos primórdios do samba fizeram para aliviar-se do sentimento de impotência ante o<br />

poder do Estado e da elite: ironia como espaço que sobra da dominação.<br />

73


Se no plano local (rural ou urbano) os enunciados do SD Revolucionário expressam o risco de<br />

um progresso vazio 97 , no plano nacional um enunciado como o da canção Bye bye Brasil<br />

(1978) expressa a construção anti-aquarélica do SD Revolucionário. O silêncio sobre as<br />

organizações campesinas no interior do país que germinaram o ingresso do MST na cena<br />

política da década de 1980 fala através da crítica ao poder de penetração da televisão<br />

homologando um falso desenvolvimento metonimizado nas antenas de TV sobre sapês e<br />

palafitas. Via satélite, os discursos do poder pretendem-se como poderes que alcançam,<br />

desbravam e domesticam, de forma ubíqua, segundo seus próprios padrões ideológicos,<br />

confins de um Brasil (para discurso do poder militar) talvez ainda perigoso, sertões rosianos e<br />

euclidianos. Nonada e Canudos. Através de enunciados do tipo do SD Revolucionário, a<br />

crítica ao discurso de integração da ditadura constrói-se pela denunciada vulnerabilidade em<br />

que populações e culturas tradicionais são expostas à sanha do Estado e do capital<br />

integradores. Para o SD Revolucionário, relações tradicionais de sociabilidade quando<br />

confrontadas pela lógica do capital, relativa ao novo contexto, produziriam superlativos de<br />

exploração e dominação ainda mais constrangedores que os expressos nos contextos<br />

anteriores (como desenvolvimentismo de JK ou o trabalhismo de Vargas). Na canção Bye,<br />

bye Brasil, essa vulnerabilidade é denunciada por imagens críticas ao discurso de integração<br />

da ditadura militar. Como mensagem subliminar da canção registra-se o silêncio sobre as<br />

Ligas Camponesas e a germinação dos movimentos rurais que ainda aguardariam os anos 80,<br />

para poder operar.<br />

Oi , coração.<br />

Não dá pra falar muito não<br />

Espera passar o avião<br />

Assim que o inverno passar<br />

Eu acho que vou te buscar<br />

Aqui está fazendo calor<br />

Deu pane no ventilador<br />

Já tem fliperama em Macau<br />

Tomei a costeira em Belém do Pará<br />

Puseram uma usina no mar<br />

Talvez fique ruim pra pescar<br />

No Tocantins o chefe dos Parintintins<br />

vidrou na minha calça Lee<br />

Eu vi uns patins prá você<br />

Eu vi um Brasil na tevê.<br />

Capaz de cair um toró .<br />

Estou me sentindo tão só.<br />

97 Purificar o Subaê. “Purificar o Subaê, mandar os malditos embora... os riscos que correm essa<br />

gente morena o horror de um progresso vazio”. Caetano Veloso, 1981.<br />

74


Oh! tenha dó de mim.<br />

Pintou uma chance legal um lance lá na capital<br />

Nem tem que ter ginasial 98<br />

No embate discursivo travado no contexto da ditadura militar e da censura dos discursos do<br />

SD Revolucionário, das transformações do mercado fonográfico sob interferência direta da<br />

televisão e do consumo da classe-média festejado pelo discurso do SD Ufanista (tenho um<br />

fusca e um violão), os temas da urbanidade, modernidade, tradição e identidade ganham<br />

novos contornos, emprestando o lugar de centralidade a emergência de temas que tratam da<br />

liberdade de expressão, da revolução, do exílio, da anistia, da re-democratização e dos direitos<br />

individuais. Como dito anteriormente, nosso debate se exaure quando o tema cidade/campo,<br />

como lugar da cena urbana e da cena rural rasurado, cantado pelo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> a partir<br />

de 1900, cede primazia ao tema da nação que necessita ser salva, acudida e não mais exaltada,<br />

como o foi no Estado Novo.<br />

A música de protesto dos anos 60 apresentou-se como o novo paradigma discursivo da música<br />

<strong>popular</strong>, agora, cunhada sobre o termo de Música Popular Brasileira que substituiu a<br />

expressão <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. A MPB de protesto esboçava um discurso muito diferente<br />

daquele que astutamente negociou e questionou os ideais nacionalistas e ufanistas de Vargas.<br />

75<br />

A expressão música <strong>popular</strong> brasileira cumpria, pois, se é que se pode dizer<br />

assim, certa função de “defesa nacional” (...). Nos anos finais da década<br />

(1960), ela se transformou numa sigla, quase uma senha de identificação<br />

político-cultural: MPB. (...) MPB liga-se a meu ver a um momento histórico<br />

da República em que a idéia de “povo <strong>brasileiro</strong>” esteve no centro de muitos<br />

debates, nos quais o papel desempenhado pela música não foi dos menores.<br />

Pense-se, por exemplo, no CPC da UNE, nos artigos da revista Civilização<br />

Brasileira e, sobretudo, no show Opinião, em que Nara Leão, Zé Kéti e João<br />

do Vale representavam cênica e musicalmente a aliança estudantil-operáriacamponesa.<br />

É nesse momento que gostar de MPB, reconhecer-se na MPB<br />

passa a ser ao mesmo tempo acreditar em certa concepção de povo<br />

<strong>brasileiro</strong>, portanto, dos ideais republicanos (SANDRONI, 2004, p.29).<br />

A resistência de esquerda promovida pelo discurso do SD Revolucionário expressa o tema da<br />

nação seqüestrada pelo governo militar. Talvez, resida nesse sentimento de roubo, de assalto,<br />

a principal diferença entre o Estado Novo e a ditadura militar. Se o discurso Vargas permite e<br />

promove a Aquarela do Brasil e inúmeros enunciados que deixam entrever a fala do poder na<br />

fala dos SD eleitos que constroem a nação, na ditadura militar, a fala da ditadura é excluída da<br />

98 Bye Bye Brasil. Chico Buarque, 1978. A música continua no mesmo tom reproduzindo imagens que<br />

constroem criticamente o encontro desigual entre o capital moderno, representado pela TV, pela<br />

usina, pelo japonês e pelas maquinas e o lugar distante representado pelo índio, pela moça infeliz<br />

(que tem um tufão nos quadris), pela natureza severa, pelas práticas tradicionais da pesca e da<br />

navegação: “Eu tenho tesão é no mar, meu amor”.


fala SDR por em nada corresponder à imagem de Brasil que o SD Revolucionário tece. O<br />

discurso SDR mobiliza o discurso da MPB que quer salvar o país dos militares, resgatando<br />

ideais republicanos de democracia e liberdade.<br />

76<br />

Gostar de ouvir Chico Buarque, gostar de sua estética implicava<br />

eleger certo universo de valores e referências que traziam embutidas<br />

as concepções republicanas cristalizadas na MPB, mesmo nos casos<br />

em que a letra passava longe da política (SANDRONI, 2004, p.30).<br />

Porém, a arena de debates da década de 60 não se resumiu à simples dicotomia do “nós”, da<br />

esquerda liberal e revolucionária, contra “eles”, da direita militar reacionária. Nos interstícios<br />

do debate da esquerda uma divisão estrutural ocupava os meandros da contracultura em que<br />

um discurso elitista da classe média intelectual pretendia educar o povo dentro de um<br />

nacionalismo radical de esquerda, orientado por um patrulhamento ideológico de cima para<br />

baixo que despertasse a consciência do pobre para a revolução e para o estado de alienação no<br />

qual se encontrava. Segundo essa ala não haveria espaço para a cultura imperialista<br />

estadunidense nem para qualquer troca com o produto importado. Nesses discursos o povo é<br />

tomado como objeto de leitura: em sua alienação, seu subdesenvolvimento, sua falta de<br />

consciência de classe, sua parca percepção da espoliação a que está submetido. O ponto fraco<br />

desse posicionamento expressava-se em sua exígua penetração junto a enorme população<br />

pobre, o que talvez demandasse o esforço de descer do pedestal ideológico revolucionário e<br />

escutar o que as classes subalternas teriam a dizer sobre si. Tais discursos não foram capazes<br />

de alcançar espaços para além do próprio círculo da classe-média intelectual de onde<br />

emanavam, salvo raras exceções 99 .<br />

O outro lado desse debate, ruptura da classe média intelectualizada, expressa-se pelo<br />

movimento tropicalista. A tropicália, e todos os discursos transgressores ao nacionalismo<br />

radical que emergiram em paralelo, ainda que guardando o caráter hermético do discurso da<br />

vanguarda elitista, romperam com o lacre do nacionalismo puro 100 .<br />

99 Um caso de exceção foi a canção “Prá não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré que<br />

se torna um hino revolucionário reproduzido por estudantes e trabalhadores, pelo movimento do MST<br />

e até por ocasião da revolta da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, em 1997”. Tornou-se o hino<br />

nacional perfeito, visto que nascido no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada<br />

vez mais espontânea e emocionalmente, por maior número de pessoas” (COUTINHO, 2002, p.72).<br />

100 Em 1966, pouco antes de a Tropicália ganhar corpo, Caetano Veloso sustentou que a música<br />

brasileira pode se modernizar e continuar brasileira na medida em que toda a informação seja<br />

aproveitada (e entendida) a partir da vivência e da compreensão da realidade cultural brasileira<br />

(COUTINHO, 2002, p.82). “Sobre a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões, balança<br />

contra os chapadões, meu nariz, o movimento é bem moderno não disse nada do modelo do meu<br />

terno que tudo mais vá pro inferno meu bem”.


Como último argumento que justifica a localização do recorte final ao efeito do discurso SDR<br />

atuando sobre o <strong>cancioneiro</strong>, considera-se também neste período, a assunção de um novo<br />

paradigma hegemônico de urbanismo, de ideologia norte-americana que vem sendo proposta<br />

desde o pós-guerra sob a tutela da suburbanização e conseqüente esvaziamento das áreas<br />

centrais. Se, com forte inspiração em Haussmann, o ideal da cidade de Pereira Passos, em<br />

1900, remetia para as avenidas e para uma experiência cenográfica de espetáculo, sentida em<br />

práticas e usos desse cenário urbano – a flanerie, o passeio público, o aburguesamento do<br />

consumo e do lazer nas áreas centrais –, a cidade projetada nos anos sessenta, emulando a<br />

suburbanização norte-americana e o conseqüente esvaziamento do centro, propõe a<br />

substituição da experiência urbana pela experiência suburbana em que o automóvel, o<br />

shopping e a autopista substituem o flanêr, a galeria e a avenida. Se Haussmann foi o mentor<br />

de um controle pela urbanização que remodelava as áreas centrais para uso e ocupação das<br />

elites, o planejador Robert Moses, cumpriu e pôs em prática uma nova estratégia de controle,<br />

na contra-mão de Haussmann: esvaziamento e abandono das áreas centrais e subseqüente<br />

valorização das áreas suburbanas, através da construção de autopistas que viabilizassem esse<br />

deslocamento. Essas transformações não se deram sem que houvesse alguma resistência por<br />

parte de associação de moradores e outras lideranças preocupadas com os rumos que a<br />

urbanidade tomava. No Brasil, tal debate ficou em segundo plano diante das questões políticas<br />

emergenciais que a ditadura provocava. As ações dos governos militares sobre o espaço<br />

público pouco sofreram resistência considerando o grau mínimo de liberdade política<br />

permitida às vozes contrárias.<br />

♪♪♫♫<br />

Intermezzo<br />

O que apresentamos até esse ponto do discurso-tese, expressa as investigações dos rastros e<br />

efeitos provocados pelos movimentos de possíveis sujeitos discursivos em contexto (ou<br />

khôra), constituindo o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> como campo reflexivo (ou como khôra). Essas<br />

investigações expressam-se numa primeira tentativa de aproximação do campo reflexivo<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, em que se assume a metodologia hermenêutica dialógica, na qual o<br />

Sujeito Discursivo é enquadrado numa estrutura de Posições de Sujeito, identificando-se<br />

significados e sentidos referentes aos discursos desses Sujeitos Discursivos, classificados em<br />

esquema semiótico fixo. Uma vez que assumimos a rigidez do quadro como problema<br />

metodológico, optamos por operar com o efeito de rasura atuando sobre essa mesma<br />

metodologia. É provocado então um movimento de deslizamento/deslocamento que não se<br />

77


quer necessariamente como ruptura, mas como quem vai reterritorializando identidades,<br />

rearticulando o que de outra forma se construiria cristalizado como Sujeitos Discursivos<br />

prévios e eleitos amarrados na camisa de força do método. O movimento reterritorializando o<br />

campo reflexivo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> já vai expondo lacunas, saltos, descontinuidades,<br />

anacolutismos, possivelmente constituidores do próprio movimento, por isso mesmo,<br />

expressão de espaçamentos que não necessariamente aguardam preenchimento, pelo menos<br />

no espaço-tempo desse corpus. E considerando a instabilidade inerente ao discurso do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> já me vou desculpando e justificando-me entre palavras derridianas:<br />

78<br />

“Não, não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, nem drama nem<br />

assunto, e, direi mesmo, nem objeto, porque o motivo em si o que é? Se não<br />

algo como a sombra de ferro do motete de uma inenarrável música antiga,<br />

como o leitmotiv de um tema desesperado de seu próprio assunto, é da<br />

natureza da nua e pura visão, tal como se revela quando se sabe aborda-la<br />

de muito perto” (Artaud apud DERRIDA, 1998 pp39; 42). (Essa passagem)<br />

promete alguma coisa de essencial ao que Artaud entende sempre pela<br />

pintura: questão de sonoridade, de timbre, de entonação, de trovão e de<br />

detonação, de ritmo, de vibração, a extrema tensão de uma polifonia. (...) Tal<br />

proximidade beira a loucura, mas aquela que arranca da outra loucura, da<br />

loucura de estagnação, da estabilização no inerte quando o sentido se torna<br />

tema subjetivado, introjetado ou objetivado, e o subjétil 101 , uma tumba.<br />

Pode-se enlouquecer o subjétil até que louco de nascença ele abra passagem<br />

ao inato que um dia foi aí assassinado. (...) Naturalmente, Artaud falava aqui<br />

de Van Gogh. Mas, (...) deve-se reconhecer que Antonin Artaud não pôde<br />

entrar nessa relação, no alcance dessa relação com Van Gogh, a não ser<br />

entregando-se à experiência que descreve no momento em que renuncia<br />

exatamente a descrever a estabilidade de um quadro (DERRIDA;<br />

BERGSTEIN, 1998, P. 42).<br />

Considerando essa renuncia a descrição da estabilidade e a possibilidade de aproximação<br />

proposta por Artaud na leitura de Derrida, deparamo-nos com específico impasse<br />

metodológico, tomado como phármakon, veneno e cura derridianos, o qual, por isso mesmo,<br />

não nos propomos resolver, mas assumir como efeito ao longo do discurso-tese. Efeito que<br />

faria deslizar um “como” abordar pós-modernamente, em particular, desconstrutivistamente,<br />

categorias modernas aqui tratadas. Tais como, cultura de elite, cultura <strong>popular</strong>,<br />

modernidade/tradição, respectivamente, enquanto signos de transformação/progresso e<br />

101 Essa nota está presente logo na introdução. Tomamos a decisão de repeti-la considerando o<br />

afastamento ente as duas aparições do termo subjétil neste corpus: o subjétil funciona como efeito de<br />

brizura (outro indecidível) que articula e separa sujeito de objeto em um suporte para além dos<br />

termos dialéticos, por isso, não se trata de um simples suporte. Mas, de um papel que fala e interfere<br />

no texto e que pode tomar o lugar do sujeito ou do objeto, mas, não é nem um nem outro. Considerase<br />

ainda a possibilidade do subjétil trair, faltar à promessa, renegar o projeto, subtrair-se ao controle e<br />

revelar outra coisa, uma “verdade traída” que ele traduz e arrasta para a luz do dia (DERRIDA;<br />

BERGSTEIN, 1998, pp.23,24).


esistência/herança, e urbanidade/ruralidade, como signos da materialidade dos termos<br />

anteriores. Talvez, enlouquecer o subjétil música, o suporte falante do papel desse corpus, seja<br />

um caminho de aproximação do labirinto que parece ressoar aqui dentro.<br />

Não nos interessa a crítica moderna que classifica o labirinto desconstrutivista de niilista ou<br />

despolitizador. Habermans, por exemplo, afirma que a modernidade tinha poder de mobilizar<br />

as forças de esquerda enquanto que o pós-moderno seria conservador: poder atomizador de<br />

forças sociais com efeito alienante. Porém, tal efeito não chega a configurar ruptura e sim a<br />

presença prevalecente de certo poder moderno (político, midiático, econômico) operando<br />

hegemonicamente pelos mesmos paradigmas de dominação. Jameson observa que o pós-<br />

moderno funda uma nova cultura comercial em que a distinção cultura de massa x cultura de<br />

elite entra em colapso devido aos movimentos de inter-fluxos entre ambas. Aliás, Jameson,<br />

entre uma miríade de autores, vai também colocar a mesma questão sobre o contraste<br />

moderno/pós-moderno. O pós-moderno refletiria uma nova imagem que se produz negando a<br />

anterior ou expressaria continuidade intensificada da mesma imagem moderna? Ele também<br />

se/nos pergunta como dar abordagem pós-moderna a categorias modernas como <strong>popular</strong> e<br />

elite, considerando todo o problema e complexidade que esse dualismo já encerrava mesmo<br />

sob contexto e premissas do pensamento moderno, em particular, o pensamento de base<br />

frankfurtiana. Debord, Baudrillard, Baumann, Eco, Lyotard e inúmeros outros pensadores<br />

modernos buscarão, direta ou indiretamente, estimular o pensamento pós-68, logo rasurado<br />

pelo discurso pós-moderno, sobre questões que já se apresentavam problemáticas na<br />

modernidade. Habermann e Debord simplesmente ignoram a pós-modernidade como termo<br />

significativo inscrevendo os novos fenômenos, não propriamente como novos, mas como<br />

continuação concentrada/intensificada do que já havia. Baumann, Baudrillard, Eco e Lyotard<br />

considerariam a pós-modernidade como um momento da modernidade, o que, em certa<br />

medida, já poderia configurar ruptura. Porém, ambos os grupos, em raras vezes, conseguem<br />

escapar do platonismo que afirma a boa cópia frente o perigoso e astuto simulacro, no qual as<br />

representações flutuam livres de referente, sem objeto primário, sintonizado a volaticidade do<br />

sistema. Possivelmente, será por essa vereda que deixaremos o phármakon derridiano operar<br />

seus efeitos sobre a farmácia de Platão, que tão confortavelmente sustenta conceitos e<br />

axiomas, aparentemente, inexoráveis ao texto. Deleuze, em Lógica dos Sentidos, inverte a<br />

classificação platônica observando que o simulacro não seria uma cópia degradada, por não<br />

ter origem na Idéia. Ao contrário, ele encerra uma potência positiva que nega o modelo como<br />

original e a cópia como reprodução. Mais do que uma inversão, Derrida deslegitima a lógica<br />

platônica ao não considerar a existência da verdade essencial, da Idéia. O signo deleuziano diz<br />

79


espeito a um simulacro discursivo cuja validade ou descrédito depende do resultado de um<br />

jogo exercido no domínio das tramas e relações sociais, nas tessituras dos discursos, no<br />

embate dos corpos. Porém, a crítica mais presente ao pensamento que se estabelece no que se<br />

convencionou classificar de pós-modernidade, a partir da década de setenta, diz respeito aos<br />

subprodutos do niilismo e da despolitização que esse pensamento disseminaria como refugo<br />

conseqüente, ainda que não intencional, de suas premissas. Harvey, em Condição pós-<br />

moderna, condena o desconstrutivismo de forma bastante apaixonada.<br />

80<br />

Ao desafiar todos os padrões consensuais de verdade e de injustiça, de ética<br />

e de significado, e ao procurar dissolver todas as narrativas e metateorias<br />

num universo difuso de jogos de linguagem, o desconstrucionismo terminou,<br />

apesar das melhores intenções dos seus praticantes mais radicais, por reduzir<br />

o conhecimento e o significado a um monte desordenado de significantes.<br />

Assim fazendo, produziu uma condição de niilismo que preparou o terreno<br />

para o surgimento de uma política carismática e de proposições ainda mais<br />

simplistas do que as que tinham sido destruídas (HARVEY, 1992, p.315).<br />

Eu diria que a vigilância epistêmica e metodológica é uma das marcas mais presentes no<br />

pensamento derridiano, justamente, por reconhecer como não satisfatório o modo como<br />

conceitos, categorias, linearidades históricas, sínteses e aproximações são construídas seja<br />

pelo materialismo histórico, seja pelo racionalismo cartesiano que na interpretação de<br />

Nietzsche e Deleuze são fundamentados, aliás, como quase todo o pensamento ocidental, na<br />

lógica platônica que segue quase inabalável sustentando doutrinas de pensamento atuantes e<br />

muitas vezes hegemônicas em certos contextos: político, científico, acadêmico, econômico<br />

etc. Por outro lado, como veremos na continuação desse corpus, desconstruir não trata de<br />

fazer desabar o que havia antes, mas requalificar. Assim a maior parte dos interlocutores –<br />

pragmáticos, estruturalistas, fenomenólogos, lingüistas – que Derrida convida não são<br />

propriamente desqualificados, mas re-qualificados, deslocados para um outro texto. Aliás,<br />

para fazer jus ao que vai acima podemos re-citar Harvey em outro texto no qual ele bem<br />

explicita o que vem a ser a proposta de Derrida.<br />

O desconstrucionismo (movimento iniciado pela leitura de Heidegger por<br />

Derrida no final dos anos 60) surge aqui como um poderoso estímulo para os<br />

modos de pensamento pós-modernos. O desconstrucionismo é menos uma<br />

posição filosófica do que um modo de pensar (...) textos e de ler textos.<br />

Escritores que criam textos (...) o fazem com base em todos os outros textos<br />

e palavras com que se depararam, e os leitores lidam com eles do mesmo<br />

jeito. (...) Esse entrelaçamento intertextual tem vida própria, o que quer que<br />

escrevamos transmite sentidos (...) que possivelmente podiam não estar na<br />

nossa intenção, (...) o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora do<br />

nosso controle, a linguagem opera através de nós (HARVEY, 1992. pp. 53,<br />

54).


Também para fazer jus ao que foi colocado por nós, já lemos Harvey lendo Derrida operando<br />

interferências, pelos parênteses que excluem partes do texto que consideramos não contribuir<br />

ao entendimento da questão deconstrutivista. Simploriamente, esse movimento já expressaria<br />

um deslocamento, uma interferência no texto de Harvey, sem necessariamente desqualificá-lo<br />

e, muito menos, substituí-lo por uma visão niilista de mundo. No decorrer desse corpus<br />

participaremos ativamente de aplicações e possibilidades interpretativas experimentadas no<br />

pensamento desconstrutivista. Veremos que não se trata de despolitizar o produto cultural,<br />

impor-lhe uma estética desprovida de ética, muito menos de torná-lo vulnerável à<br />

manipulação do mercado de massa, como afirma Harvey (idem, p.55). Muito pelo contrário<br />

trata-se de democratizar as instâncias produtoras de discurso re-qualificando conceitos através<br />

da desqualificação de pólos, estruturas binárias que ganharam sobrevida com o pensamento<br />

dialético, porém, permaneceram constituindo metafísicas, fantasmagorias (tímida homenagem<br />

a Marx), que insistem na afirmação de recursos produtores de totalidades e sínteses que,<br />

pouco contribuem ao jogo político de dominação que se estabelece de forma cada vez mais<br />

nítida no nível dos micro-poderes foulcaultianos e menos eficaz sob as abstrações matriciais<br />

da modernidade: nação, classe e indivíduo.<br />

81<br />

A idéia de Estado-nação é posta em questão, por um lado em conseqüência<br />

da perda do poder de gestão interna e de representação externa dos Estados,<br />

com o transpassamento de suas fronteiras territoriais pelos fluxos<br />

econômicos e informacionais, por outro, pela reconstrução de tradições<br />

étnicas, numa lógica que opera sob a tensão da afirmação da diferença e da<br />

homogeneização (...). A idéia de classe socioeconômica, por sua vez, vê-se<br />

questionada como conseqüência das transformações na esfera das<br />

modalidades tecnológicas e organizacionais de produzir e a paralela<br />

ascensão de uma ideologia que privilegia o indivíduo em detrimento de suas<br />

formas coletivas (...). O indivíduo privilegiado, todavia, já não é mais aquele<br />

tornado sujeito consciente de si enquanto constituinte de uma totalidademundo,<br />

através da liberação de amarras ideológicas da tradição pelo<br />

exercício da subjetividade, ele o é agora, pela extremada exacerbação<br />

descentrada da liberdade da subjetividade, um ser apenas consciente de si<br />

para si, frente a uma coleção de outros “si mesmos” (Araujo, 2007, p.10).<br />

♪♪♫♫<br />

A promessa do jogo está feita. E já é hora de virar o lado e deixar o <strong>cancioneiro</strong> falar.<br />

Retornemos à música, mas por outro suporte. Ou pelo drama do Subjétil.<br />

Se se escuta a pictografia, e como a música, enquanto música, é antes de<br />

tudo por uma certa força de penetração. Da mesma forma que o som penetra<br />

o ouvido e o espírito, o ato pictográfico atinge e bombardeia, perfura,<br />

percute e faz entrar, atravessa. E a parte adversa, contra a qual se precipita<br />

tal força, é o subjétil (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p.55).


Já podemos divisar as paredes e corredores. Algo se move o tempo todo, no início parecia<br />

ameaçador, um touro, um monstro que viria de encontro nos devorar. Mas não, não havia<br />

nenhum simulacro de Minotauro nem de Teseu a espreita um do outro. O som era das próprias<br />

paredes que rizomaticamente se moviam estabelecendo novos corredores, passagens, atalhos,<br />

suportes falantes como papel falante em canções e palavras falantes. Mas, o que se escuta de<br />

fato, nessa proximidade toda com o subjétil derridiano não são palavras. O som não passa de<br />

um sopro que permite escutar palavras ao mesmo tempo em que as perfura. “Sopro lançado na<br />

gramática do verbo”.<br />

82<br />

O sopro permite escutar no pictograma, mas através, atravessando tanto as<br />

palavras quanto a página, perfurando o subjétil que um e outro são. (...) O<br />

sopro sopra no pictograma e literalmente sopra-o imprimindo nele ritmo e<br />

música. Ele se escuta e faz escutar (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p.87).<br />

O sopro de Artaud que Derrida escuta “não se confunde com a voz, em todo caso, não com a<br />

voz da língua ou do discurso, a do verbo ou da palavra”. Artaud esclarece que<br />

Faz dez anos que a linguagem partiu que entrou em seu lugar esse trovão<br />

atmosférico, esse raio (...) faz dez anos que com meu sopro eu sopro formas<br />

duras (...) por um golpe antilógico, antifilosófico, antiintelectual,<br />

antidialético por meu lápis preto apoiado e é tudo. (Artaud apud DERRIDA;<br />

BERGSTEIN, 1998, pp.87, 88).<br />

Admito que rearrumei a ordem das falas de Artaud para que elas dissessem mais claramente o<br />

que eu imaginaria “queria dizer” para mim, para outros eus, demais alteres, prévios e eleitos.<br />

Porém, já assumimos, em primeiro lugar que a ordem seria por mim arbitrada caso houvesse<br />

uma prevalescência das palavras, minhas ou qualquer palavra, o que não é verdade quando se<br />

está operando por sons repercutidos no labirinto a partir de uma “máquina de soprar não<br />

gramatical”. Segundo que essa ordem que desejaria arbitrar fica comprometida pela sempre<br />

possível subversão, traição, do subjétil que aparentemente de forma tão passiva se oferece<br />

para ser perfurado. Mas, sabe-se lá o que trama o suporte vivo sob essa aparente latência,<br />

terna e masoquista.<br />

Mais uma vez convido-nos a virar o lado A e escutar o lado B desse corpus, já considerando a<br />

possibilidade dessa aproximação violenta com o subjétil na elaboração do jogo. O labirinto se<br />

apresenta agora. Ouço o sopro que seu movimento faz repercutir nas paredes. Por um átimo<br />

suspeitei que ele sempre estivesse por aqui, mas, não nos foi dado escutá-lo.


LADO B<br />

E, por aqui, por volta da página oitenta desse corpus, sente-se o leitor/autor amparado pelo<br />

conforto da linearidade narrativa. E chamo leitor/autor porque já se encontra (encontramo-<br />

nos) desconstruindo-se (nos) e reunindo-se (nos), no indecidível derridiano da “escritura” que<br />

desconstrói a metafísica da presença, na autoria, no sujeito, no livro, em que não cabe<br />

diferença entre escrita e leitura ou, veremos adiante, fala e escuta. O próprio Derrida seria<br />

mais um leitor desconstrutor de suas leituras ou um autor rasurador de seus escritos? Vale<br />

essa diferença? O que significa dizer que o ato da leitura guarda aspecto da escrita (e da fala)<br />

em que, as duas serão sempre reescritas, rasuradas, desconstruídas na/pela escritura. Como<br />

dizia, sente-se o leitor/autor amplamente amparado pelo conforto da linearidade histórico-<br />

cronológica que a narrativa dos contextos instaura e promete na totalidade e na unicidade do<br />

livro, ao passo que já vamos deslizando para a zona de desconforto que a própria consciência<br />

do conforto provoca. A desconstrução, diz Derrida, vem de dentro, e já se movia como<br />

contaminação da escritura inscrevendo a ausência do livro e do autor ou a presença rasurada<br />

de ambos em que o livro, o papel, subjétil, bem poderia alegoricamente apresentar-se como<br />

sujeito rasurado do suposto autor. Autor igualmente rasurado e escrito pelo que escreve.<br />

Não há porta aberta que nos leve para dentro do labirinto nem Derrida nos convidando para<br />

com ele compartilhar de suas aventuras. Houve a escritura, sempre, de onde não há<br />

dentro/fora, nem um fora do jogo, em que demiurgicamente instalado o autor manipula suas<br />

alegorias como marionetes. Mas, há a escritura, desconstrução do sujeito metafísico da<br />

presença: autor, leitor, alegoria.<br />

83<br />

A escritura é a saída como descida para fora de si em si do sentido:<br />

metáfora-para-outrem-em-vista-de-outrem-neste-mundo, metáfora como<br />

possibilidade de outrem neste mundo, escavação no outro em direção do<br />

outro, submissão na qual sempre se pode perder o outro. Mas, não é nada,<br />

não é ele próprio antes do risco de se perder (DERRIDA, p. 52, 1995).<br />

A escritura, efeito, rastro na fala e na escrita, no espaçamento da diferença entre ambos e<br />

constituindo-as simultaneamente, arromba o conceito moderno de linguagem ainda<br />

expressando a divisão clássica entre fala e escrita e, por conseqüência, a metafísica da<br />

presença a si, autor, sujeito etc.<br />

Seja na ordem do discurso falado ou do discurso escrito, nenhum elemento<br />

pode funcionar como signo sem remeter a outro elemento, o qual ele próprio<br />

não está simplesmente presente. Esse encadeamento faz com que cada<br />

elemento – fonema ou grafema – constitua-se a partir do rastro, que existe<br />

nele, dos outros elementos da cadeia ou do sistema (DERRIDA, p.32, 2001).


Porém, essa condição de possibilidade de movimento no/pelo outro, o outro do signo,<br />

referente de referente, movência, deslocamento, descontrução, já a trazia o conceito de<br />

linguagem. A condição não veio de “fora”, idéia genial derridiana, para erguer sobre os<br />

escombros de uma ciência moderna o labirinto rizomático em que se co-habita. O labirinto<br />

sempre esteve lá. Nos espaçamentos do texto, nas sínteses, nas arbitrariedades, nos<br />

anacolutismos do constructo que como todo constructo tentará omitir suas fragilidades.<br />

Porém, como o indecidivel derridiano phármakon, remédio/veneno do pensamento clássico,<br />

foi também a partir do mesmo rastro desconstrutor, efeito escritura, operando sobre a<br />

linguagem, que certa ordem científica tornou-se possível e se instaurou e se hegemonizou<br />

como pensamento lógico, como logos.<br />

84<br />

O segundo capítulo de Gramatologia principia por afirmar que a própria<br />

noção de ciência já nasceu de certa “época da escritura” e que, ao contrário<br />

do que as “logias” pretendem, a escritura sempre fora a condição de<br />

possibilidade da objetividade científica. Ou seja, antes de ser seu objeto a<br />

escritura é a condição da episteme. (HADDOCK-LOBO, P.84, 2008).<br />

E da mesma forma que a escritura expressa a condição da possibilidade da ciência ordenar-se,<br />

organizar-se como tal (assim como mover-se e deslocar-se) e operar de forma objetiva e<br />

racional, sugerimos, nessa perspectiva, que a música, como efeito rasurador, rastro, operada<br />

pelo e como indecidível derridiano, expressa também essa condição da possibilidade de<br />

instauração de uma ordem antropocêntrica. Vejamos como. Vejamos como, apesar de não<br />

darmos aqui garantia de explicação dessa equivalência música/escritura, mas, pistas, dicas de<br />

como operá-la, como proceder diante do efeito que ela própria opera, logo, como estar pré-<br />

disposto à sensação, ao jogo de corpo que ela engendra. A equivalência música/escritura não é<br />

alguma coisa, mas, um efeito, uma rasura que pode atuar sobre um grupo de signos que se<br />

apresentariam confortavelmente fixados como um conjunto de representações, por exemplo,<br />

da ordem da palavra, escrita/falada ou da ordem da imagem. Assim da mesma forma que a<br />

escritura derruba, desloca a polaridade fala/escrita, a música deslocaria também, por exemplo,<br />

outra polaridade constituída pelo contraste entre imagem e palavra, rasurando a zona de<br />

conforto que taxonomiza signos como representações ora imagéticas ora verbais. Tomemos a<br />

canção que fala: “Aurora vem chegando anunciando o nosso amor, ôôôô 102 ”. Para além das<br />

questões prosódicas instaladas na relação entre elementos sonoros e verbais, o fragmento<br />

ôôôô, representado por uma repetição arbitrária da vogal, especifica mais nitidamente o efeito<br />

escritura que a música provoca na semiótica tradicional que qualifica signos como<br />

representações ou expressões de coisas apontadas no mundo. O fragmento em questão<br />

102 Ao romper da aurora. Francisco Alves, Lamartine Babo, Ismael Silva, 1932.


especifica som, música, efeito que possibilitaria ordenar percepções aproximadas do signo<br />

aurora produzindo nem imagem nem palavra, mas, inscrevendo-se em ambas, atuando sobre<br />

ambas, confundindo-as, rasurando-as. De fato, se o efeito fosse uma coisa, estaria em ambas.<br />

A impossibilidade de apontar no mundo o que é isso que verte, som, canto, freqüência que<br />

permite articular imagem/palavra aurora e diferir imagem/palavra aurora, impossibilidade de<br />

dizer música e sobre música é o que orienta a aparente impressão de centralidade que as<br />

letras, as palavras das canções podem sugerir ocupar nesse corpus. De fato, não dizemos<br />

muito desse efeito que o fragmento destacado especifica, a não ser afirmar que se trata de um<br />

efeito nos termos desconstrutivistas derridianos. Assume-se que o falar sobre música poderia<br />

sempre muito pouco. Produziria traduções precárias, demasiado arbitrárias. Resta-nos ouvir.<br />

Não da forma passiva, escuta formal. Mas, deixando-se contaminar pelas sensações musicais,<br />

impressões, ao mesmo tempo em que por elas também rasuramos o texto, o texto dizer sobre,<br />

o querer-dizer texto. Texto-formal rasurado por texto-poesia, texto-música, texto-som e<br />

também por um texto-imagem/palavra, por sua vez, operados “no entre”, brizura, diferança<br />

que permite descriminar cada tipo de texto ao mesmo tempo em que os articula, aproxima-os,<br />

efeito atuando de dentro dos textos, plasmando-os como um só texto, texto-tese. Como já<br />

colocado no inicio desse corpus, a grande dica é: o jogo devir só se justifica pela escuta,<br />

apenas ler os versos das canções não permitirá ordenar percepções para então fazê-las<br />

derrubar e deslocar. O signo “aurora” ao constituir-se no fragmento “ôôôô” sofre movimento<br />

de rasura e re-ordenamento que o efeito música, som, canto permite sentir como impressão de<br />

epifania, de despertar que, por sua vez, já aguarda o movimento que a escuta pode re-orientar<br />

talvez como impressão de saudade ou esperança, mas, já não cabe a nós e sim ao jogo esta<br />

movência.<br />

Ainda em se tratando da música/escritura, assumimos que não se inventou um ordenamento<br />

musical/poético porque havia um entendimento humano de ordem a partir de uma<br />

transcendência, pré-estabelecida pelo cosmos como presente dos deuses benevolentes. Mas,<br />

porque a escritura/música, efeito e rastro, cuja arqui-origem principia aqui e agora e sempre e<br />

sucessivamente, instaura a condição de possibilidade de percepção da ordem e a possibilidade<br />

de dizer ordem e a de ordenar e, ainda, de fazer mover essa ordem e outra ordem e outra que<br />

se instaura simultânea àquela, sem ser exatamente uma terceira, e mais outra, e assim,<br />

sucessivamente.<br />

85<br />

Numa cultura marcada pela oralidade e, consequentemente, pela sonoridade,<br />

a música, em sua articulação essencial com a memória, era, e é, o seu<br />

próprio modo de ordenação. (...): a música não é determinada desde a


86<br />

vigência de um ordenamento prescrito. Ao contrário ela é o fundamento, não<br />

propriamente prescritivo, mas, inscritivo. É a música que originalmente<br />

inscreve, isto é, marca, sulca, possibilita e realiza o memorável. (...). A<br />

música não é um mero suporte do memorável, ao contrário, ela é o mais alto<br />

grau de posssibilidade de vigência da memória enquanto memória (...) A<br />

música se configura, ela mesma, como uma dimensão, como possibilidade<br />

do desconhecido enquanto medida. Nessa compreensão, ela é mais do que<br />

uma via. Ela é mais do que um suporte, ela é mais do que uma razão, ou<br />

mesmo mais do que o estabelecimento de uma ordem, de uma lei (JARDIM,<br />

pp.74, 75, 2008).<br />

E a partir do ponto em que prazerosamente ordenamos o ordenamento das canções, como a<br />

última citada, ainda no Lado A, Bye, Bye, Brasil, numa série interpretativa confortável e<br />

coerente, já nos aponta como sombra agourenta e libertadora o deslizamento, a rasura dessa<br />

ordem como o rastro no que se quer objeto, como o grama no que se quer palavra. Seguimo-<br />

lo então.<br />

O rastro que marca o efeito que se pretende objeto a partir das origens rasuradas é o que<br />

possibilitaria ouvirmos sobre minha confortável interpretação nossos ilustres convidados:<br />

Rapaz Folgado, Barão da Ralé e Contente Magoado. Alegorias que se tornam sujeitos nem<br />

mais nem menos metafísicos que qualquer sujeito, todos os sujeitos, o sujeito, o altere, o<br />

contexto, o conceito. Nem mais nem menos inventados e falantes que o capitalista, o<br />

trabalhador e as classes sociais de Marx à Durkheim, que o tipo-ideal weberiano, que os à<br />

priori kantianos e o espírito hegeliano, que a mão-invisível de Adam Smith, que o super-<br />

homem de Niezscthe, que a alegoria de Benjamin, que o intelectual orgânico de Gramsci, que<br />

as pastoras do catolicismo, incluindo a Diana e a borboleta, que o boitatá e o curupira do<br />

folclore <strong>brasileiro</strong>, que os santos, orixás, Jesus, Buda e tantos mestres de saberes não-laicos<br />

(dos quais, a alguns, devoto minha fé incondicional), que os personagens históricos de<br />

Tiradentes a Nero, que os personagens da ficção Dom Casmurro e Dom Quixote, sem o qual<br />

não haveria Cervantes, como bem observou HADDOCK-LOBO. Salvo a condição de nome,<br />

qual outra autoridade os qualifica como distinções hierarquizadas? 103 Ao término da voz e o<br />

103 SD Orientador em dialogismo com o SD Banca Examinadora: Alguém que se assume ser<br />

sociólogo ou coisa do gênero, diria que a questão não é metafísica, mas social e que, portanto, a<br />

hierarquia referida se estabelece socialmente.<br />

SD Eu: Mas, justamente o que pretendemos afigurar aqui pergunta ainda o quanto esse suposto<br />

estabelecimento social pode não ultrapassar uma linha de fronteira confortável, invenção<br />

mundo/nome desse mesmo ser sociólogo que pode não encontrar eco em outros seres ou SD<br />

localizados além da fronteira. Por exemplo, o nome sertanejo inscreve/especifica um signo ou grupo<br />

de signos que se assemelham entre si segundo percepções que se estabelecem a partir da leitura de<br />

Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos. O mesmo nome sertanejo especifica outro grupo de signos<br />

para os ouvintes de Chitãozinho e Chororó ou Leandro e Leonardo, não leitores de Rosa ou Ramos.<br />

E outro ainda para um grupo de neo-punks da periferia paulista que, do interior de um ônibus em<br />

movimento, vêem anunciado em um out-door da Marginal Tietê o mais novo show sertanejo<br />

universitário da dupla Victor e Léo. Enfim, o que se argumenta diz respeito à possibilidade das


fenômeno Derrida nos dá uma pista para pensar o labirinto do qual o pensamento racional<br />

tenta através da compreensão esquivar-se sem sucesso.<br />

87<br />

Sem dúvida, tudo começou assim: um nome pronunciado diante de nós<br />

transporta-nos à galeria de Dresde... Erramos pelas salas... Uma tela de<br />

Téniers... representa uma galeria de quadros... Os quadros dessa galeria<br />

representam, por sua vez, quadros que revelam inscrições passíveis de ser<br />

decifradas etc. Certamente nada procedeu nessa situação. Seguramente, nada<br />

a suspenderá. Ela não está compreendida como o desejaria Husserl, entre as<br />

intuições ou apresentações. Da plena luz da presença, fora da galeria,<br />

nenhuma percepção nos é dada, nem, certamente, prometidas. A galeria é o<br />

labirinto que compreende em si suas saídas: nunca se cai ali como em um<br />

caso particular de experiência, aquele que Husserl acreditava descrever<br />

então. (...) Então resta falar, fazer ressoar a voz nos corredores, para suprir o<br />

brilho da presença. O fonema, a akumene, é o fenômeno do labirinto. Esse é<br />

o caso da phoné. Elevando-se em direção ao sol da presença, ela é o caminho<br />

de Ícaro. (...) E ao contrário do que a fenomenologia – que é sempre<br />

fenomenologia da percepção – tentou nos fazer acreditar, ao contrário do que<br />

nosso desejo não pode deixar de ser tentado a crer, a própria coisa se esquiva<br />

sempre (DERRIDA, 1994, p. 116, 117).<br />

A própria coisa se esquiva sempre. A coisa, a palavra e o labirinto sempre se esquivam da<br />

compreensão que, por sua vez, não se esquiva do indecidível. Não se esquiva da disseminação<br />

em que os sentidos desmancham umedecidos pelas notas de percurso. Resta-nos deixar falar.<br />

E eu que já tanto falei, esclarecendo sobremaneira o meu “querer-dizer”, na contingência da<br />

relação com as alegorias BR, RF, e CM, restaria ser o Seu Doutor. E, por mais bem<br />

intencionado que fosse o meu “querer-dizer”, lado a lado com as alegorias, antes mesmo de<br />

abrir a boca, já estaria eu mais próximo de quem mais gostaria de estar longe: o tal discurso<br />

da elite, localizado no contexto metafísico como altere mais nitidamente visível do campo<br />

reflexivo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Sim, porque, reificadas em sujeitos discursivos, as alegorias<br />

não me tratariam por um próximo, nem sambista, nem caipira, nem caipora, mas, um Seu<br />

Doutor. O Seu Doutor que pergunta “o que é a lira?”, o Seu Doutor que pergunta “o que é o<br />

ziriguidum? E o que expressa a batida do ganzá?” Mal disfarçadamente na intenção de possuir<br />

e taxonomizar a fala do outro, enquadrá-la em um logos, qualquer logos, pela ciência. O que<br />

provoca enorme estranhamento entre os convidados que logo vão se pronunciando.<br />

BR: Mas, Seu Doutor... o que é isso? O Seu Doutor vai entrar mesmo no samba? Por mim<br />

tudo bem.... Só não sei pra quê, afinal, já vou lhe afirmando que o samba não vem nem do<br />

fronteiras serem tal inventadas qual moventes, provisórias. Por isso, estabelecer uma hierarquia do<br />

nome a partir da sociologia inscreve signos que produzem efeitos enquanto expressões de uma<br />

fronteira igualmente inventada e contingente.


morro nem da cidade, ele é um privilégio e ninguém aprende samba no colégio (Feitio de<br />

Oração 104 ).<br />

RF: É DOUTOR, NÃO FORÇA! Para fazer meu samba não tirei diploma! (Minha<br />

cabrocha 105 ). Num samba, branco se escangalha, branco não tem jeito 106 . Oh, Seu Doutor,<br />

você, branco assim, vai subir no meu barraco lá no morro de Mangueira? Vai ter embaraço,<br />

e eu vou é sair com a rainha da escola de samba que seu nego é diretor (Escurinha 107 ).<br />

BR: O samba é de origem <strong>popular</strong>, não tem cor nem raça... (Lembranças de Noel 108 ), pois o<br />

samba do morro não distingue ninguém, samba quem está de branco e de amarelo samba<br />

quem está de tamanco e de chinelo (O samba me chamou 109 ). Vai mulato filho de baiana e a<br />

gente rica de Copacabana, Doutor formado de anel de ouro e branca cheirosa de cabelo<br />

loiro (Samba de fato 110 ).<br />

CM: Seu Doutor me dê licença pra minha história contar que hoje eu estou em terra estranha<br />

e é bem triste o meu penar (Vaca Estrela e Boi Fubá 111 ). Mas, se quer saber a minha opinião,<br />

Seu Doutor, priorize esse projeto e deixe o rio desaguar (Deixe o rio desaguar 112 ).<br />

BR: Tem outra coisa que eu quero dizer, tu és Doutor, mas eu também sou. Desde o subúrbio<br />

até a cidade quem canta samba é doutor (Sabor de samba 113 ). Sou Doutor em samba e quero<br />

ter o meu anel, tenho esse direito, como qualquer bacharel (Doutor em samba 114 ).<br />

RF: Eu ando melhor do que um doutor, com o meu terno de cursor (Jogo proibido 115 ). Muita<br />

gente diz que é bamba que tem diploma de samba... O malandro verdadeiro, não precisa de<br />

dinheiro, nessa vida folgada o seu batente é batucada (Muita gente diz que é bamba 116 ) e tem<br />

mais, não há, nem pode haver. Como em Mangueira não há. O samba vem de lá e a alegria<br />

também (Mangueira 117 ).<br />

104 Feitio de oração. Noel Rosa, Vadico, 1933.<br />

105 Minha Cabrocha. Braguinha, L. Babo, 1930<br />

106 O nego no samba. Ary Barroso, Luiz Peixoto, Marques Porto,1929<br />

107 Escurinha. Geraldo Pereira, Arnaldo Passos, 1952.<br />

108 Lembranças de Noel. Quatro ases e um coringa – A. Fernandes, C. de Menezes, 1953.<br />

109 O samba me chamou. Gilberto Alves – Alcebíades Nogueira, Rutinaldo, 1946.<br />

110 Samba de fato. Patrício Teixeira – Cícero de Almeida, Pixinguinha, 1932.<br />

111 Vaca Estrela e boi Fubá. Patativa do Assare, 1960.<br />

112 Deixe o rio desaguar. Luis Gonzaga e Flavio José, 1972.<br />

113 Sabor do samba. Patrício Teixeira – Germano Augusto, Kid Pepe, 1935.<br />

114 Doutor em Samba. Mário reis – (C.) Custódio Mesquita, 1933.<br />

115 Jogo Proibido. Moreira da Silva, Tancredo Silva, David, 1953. t0<br />

116 Muita gente diz que é bamba. Jorge André, 1933. t3<br />

117 Mangueira. Bando da Lua – Assis Valente, Zequinha Reis, 1935. p0<br />

88


BR: Mas, samba de morro não é samba, é batucada. Lá na cidade a escola é diferente só tira<br />

samba malandro que tem patente (É batucada 118 ).<br />

RF: Se não quiser perder o nome cuide de seu microfone e deixe quem é malandro em paz.<br />

Injusto é o seu comentário. Fala de malandro quem é otário. Mas, malandro não se faz eu de<br />

lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz (Mocinho da Vila 119 ).<br />

BR: Não tenho medo de bamba na roda do samba eu sou bacharel (Eu vou pra vila 120 ).<br />

RF: Deixa o cabrito berrar! (idem 121 ). Minha conversa não é com você, ô urubu malandro<br />

que pensa que é bonito e letrado e sabe mais que um dotô (urubu malandro 122 ), mas com o<br />

Seu Doutor ali. Se o doutor subir numa favela vai ver coisas de cortar o coração, barracos<br />

caídos no chão e crianças chorando pedindo um pedaço de pão (Drama da favela 123 ).<br />

CM: No começo eu tive medo, mas hoje eu peço, pare o samba três minutos pra eu contar o<br />

meu baião (Baião de São Sebastião 124 ). Nem que eu fique aqui dez anos eu não me acostumo<br />

não tudo aqui é diferente dos costumes do sertão. (No Ceará não tem disso não 125 ). E tem<br />

mais, lá no meu sertão pro caboclo lê tem que aprender um outro ABC. (ABC do sertão 126 ).<br />

Porque ser Doutor é muito fácil, o difícil é ser caipira 127<br />

BR: Fingindo é que se leva vantagem, isso sim é malandragem. E isso é conversa pra<br />

Doutor? (Escola de malandro 128 ). A malandragem é um curso primário que a qualquer é bem<br />

necessário. É o arranco da prática da vida que somente a morte decide ao contrário (Ora<br />

vejam só 129 ).<br />

RF: Ô, BR, vê se perde essa mania de bamba, todos sabem qual é o teu diploma no samba. E não<br />

deves apelar para um barulho à mão, em versos podes bem desacatar, pois não fica bonito um<br />

bacharel brigar (terra de cego 130 )<br />

118 É batucada. Moreira da Silva, Caninha, Visconde, 1933. t0<br />

119 Mocinho da vila, Wilson Batista, 1934. t3<br />

120 Eu vou pra Vila. Almirante – Noel Rosa, 1930. p0<br />

121 Deixa o cabrito berrar. Mirabeau, Airton Amorim, Milton de Oliveira, 1956.<br />

122 Urubu malandro. Pixinguinha, 1914.<br />

123 Drama da Favela. Mirabeau, Milton de Oliveira, 1956.<br />

124 Baião de São Sebastião. Luis Gonzaga, Humberto Teixeira, 1973.<br />

125 No Ceará não tem disso não. Luis Gonzaga, Guio de Moraes, 1950.<br />

126 ABC do sertão. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1953.<br />

127 O Capiau. Tião do Carro, José /Caetano Erba, s.d.<br />

128 Escola de malandro. Noel Rosa, Ismael Silva, Luís Machado, 1932.<br />

129 Ora vejam só, Sinhô, 1928. Há mais uma estrofe na canção de Sinhô que não foi gravada por<br />

Francisco Alves. “A malandragem é um curso primário que a qualquer é bem necessário é o arranco<br />

da prática da vida somente a morte decide ao contrário”<br />

130 Terra de cego. Wilson Batista, 1935.<br />

89


CM: Quando eu vim do sertão “seu moço” com meu bodocó, só trazia coragem e a cara<br />

viajando num pau de arara, eu penei, mas, aqui cheguei (Pau de arara 131 ). Mas, com Doutor<br />

eu não me meto. Lá na minha terra enxada e caneta não se dão não. Caneta só anda na mão<br />

dos mestres e dos homens de posição e a enxada de fato só vive no chão pra dar de comer pro<br />

patrão, mas, se não fosse o sustento dela ninguém tinha instrução. (A enxada e a caneta 132 ).<br />

SD: (mudo de espanto)<br />

SD: (recuperando-se do espanto)<br />

SD:<br />

E seria por essa disseminação dialógica, jogo que não experimentaria origem e se assim<br />

quisermos nem esgotamento, expressam-se os indecidíveis derridianos, nem fala, nem escrita,<br />

nem autor, nem leitor, nem conceito, nem palavra, nem objeto, nem signo, nem sujeito, nem<br />

não-sujeito, nem contexto, nem não-contexto – diferanca, khora, escritura, phármakon –<br />

indecidíveis incontroláveis pela tessitura do livro, do autor, do logos, da diferença, da posição<br />

e da oposição. Melhor deixá-los rasurar o pensamento como rastros atuando sobre superfície<br />

estriada, a mesma que a ciência insiste em ver lisa. Rastros sulcando constructos, efeitos que<br />

funcionam como alertas para conceitos, nomes (significantes), sínteses e analogias<br />

aparentemente tão bem fundamentadas nos alicerces da ciência moderna. O desconforto que a<br />

falta de controle e a falta de decisão causa no pensamento que “quer dizer”, “precisa dizer<br />

alguma coisa”, em geral, operando por pólos dicotômicos ou dialéticos para dizer o que quer<br />

dizer. Tal desconforto, nos é confrontado pelos indecidíveis e incontroláveis derridianos que<br />

fazem a cadeia lógica desfazer elos ainda incompletos e deslizar, deslocar-se em tropos<br />

indefinível antes de territorializar-se confortavelmente em qualquer conceito pré-estabelecido<br />

pelo discurso que hegemoniza a partir do dizer ciência e do dizer literatura etc. O indecidível<br />

não cabe entre a ciência e a literatura, entre real e ficção, entre, natureza e constructo, entre<br />

nenhum entre da diferença a não ser aquele que permite a diferença e por isso, efeito de<br />

espaçamento e confusão, diferança. Está no que não se quer conceito, nem sujeito, nem<br />

objeto, nem literatura, nem episteme, inspira-se no entre da Alegoria benjaminiana e do<br />

Sujeito Discursivo de Bakhtin. Mas, também inspirado no verbo de Manoel de Barros, pega<br />

delírio, inviabiliza a possibilidade de cristalizá-lo em lógica sistêmica, (mesmo um novo<br />

sistema de fundação híbrida: ciência e literatura) e já nos transforma (autor/leitor) no Sujeito<br />

Discursivo Seu Doutor, sem aspas, sem concessões, fazendo-nos deslizar para perto e para<br />

longe, simultaneamente, porque em estado de canção, não mais veríamos o objeto. Agora<br />

131 Pau de arara. Luis Gonzaga, Guio de Moraes,1952.<br />

132 A enxada e a caneta. Teddy Vieira, Capitão Barduíno, 1952.<br />

90


seríamos os SD eleitos que tem por prévios o Barão da Ralé, o Contente Magoado e o Rapaz<br />

Folgado? Ou, ainda, para além da inversão, a disseminação faz implodir a diferença na<br />

consistência mesma da lógica que permitia sua produção. Autor-sujeito-alegoria-leitor-<br />

contexto-livro-fala-escrita-papel-canção-subjétil-escuta e o efeito. Considerando que o mesmo<br />

efeito de espaçamento e confusão produzido no entre dos elementos é o que permite ao<br />

mesmo tempo nomeá-los, confundi-los e jogar com e entre eles.<br />

Porém, para produzirmos a disseminação ou irmos adiante com o movimento de<br />

deslocamento, caracterizando a desconstrução mesma do sujeito discursivo, proponho<br />

seguirmos os rastros, efeitos que permitem a inversão de se (autor/leitor) posicionar,<br />

considerando a contingência da relação, em estado de SD entre os SD: BR, RF e CM. Em que<br />

condição o Seu Doutor (autor/leitor) especifica-se como alegoria, como SD entre SD do<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>? A começar podemos focar-nos sob uma condição de escuta, visto que é<br />

pela função da escuta que mais diretamente estabelece-se a relação entre Seu Doutor (SD),<br />

RF, BR e CM. Condição de escuta que não seria jamais passiva ou apenas receptiva,<br />

considerando que ao selecionar, a escuta age de forma ativa e seletiva. Da mesma forma que a<br />

música para Deleuze e Guattari territorializa e desterritorializa em ritornelo constante, Pierre<br />

Schaffer propõe “não separar jamais o escutar do fazer” (SCHAFFER apud OBICI, p. 27,<br />

2008). Escuta como um ato de criação (OBICI, 26, 2008) e de afirmação de certo lugar<br />

político em que se (autor/leitor) coloca ativa e atuante como força capaz dos mesmos<br />

movimentos referentes à territorialização e desterritorialização identificados por Deleuze e<br />

Guatarri na música. Essa ação se expressa a princípio pelo juízo de valor que seleciona e julga<br />

o que se ouve para logo em seguida produzir a disseminação de sentidos, criação, metáfora de<br />

metáfora daquilo mesmo que se ouviu e já se vai ouvindo/produzindo segundas, terceiras,<br />

quartas, múltiplas, disseminadas interpretações, traduções, criações que propõe novas<br />

tedestereterritorializações 133 pela mesma força do ritornelo deleuziano.<br />

91<br />

Pode-se inventar mundos sônicos pela criação de territórios irreais, delírios<br />

de forças inaudíveis. É nesse paradoxo entre o que é possível e inimaginável<br />

que nossos ouvidos poderiam mobilizar uma atitude criadora que é também<br />

uma forma de inventar escuta (OBICI, 49, 2008).<br />

133 Neologismo que expressa a simultaneidade do movimento referente às categorias deleuzianas de<br />

territorializar, desterritorializar e reterritorializar como movimentos de ritornelo, cujo retorno, porém,<br />

nunca encontra o mesmo ponto deixado anteriormente. Poderíamos pensar numa espiral. Mas,<br />

Deleuze propõe a imagem de um rizoma. Podemos pensar em círculos que antes de se completarem<br />

já estariam originando novos círculos. Independentemente disso, os conceitos de ritornelo e rizoma<br />

serão abordados um pouco mais adiante.


Porém, eu diria que é mais do que inventar escuta, mas, inventar pela escuta, uma escuta que<br />

cria ao interpretar/traduzir o que ouve para além da condição de SD cristalizado em Posição<br />

ou Estado de Sujeito da qual se espera uma resposta dentro do padrão mapeado pelo<br />

dialogismo na contingência da relação estabelecida. No caso mais específico da música, antes<br />

mesmo de se ir mais a fundo nas possibilidades do jogo expresso na relação entre sujeitos que<br />

vão se desconstruíndo ou desterritorializando, já haveria uma indecisão mesmo a nível<br />

contextual que afeta internamente o dizer música. Uma vez que o contexto determinaria os<br />

limites estéticos do que deve ser classificado por música, ruído e silêncio, essas construções<br />

devem, por sua vez, responder à construção contextual (social, político, cultural etc.,<br />

hegemonicamente construída por um discurso falocêntrico, senso comum, monumental) ora<br />

desafiando o limite ora subordinando-se a ele.<br />

92<br />

De alguma forma a música vive em constante batalha de destruições de<br />

paradigmas e conceitos que definem o que é o musical, o ruído e o silêncio.<br />

Todas as categorias do sonoro precisam ser inventadas constantemente, o<br />

que não se faz sem perda e um grande exercício inventivo (OBICI, 95,<br />

2008).<br />

A música européia se juntou com a africana no território das Américas. Esse<br />

evento é produtor de uma extraordinária força multiplicadora: ele contribui<br />

para criar experiências de tempo musical de uma grande complexidade e<br />

sutileza. O ímã da música puxa agora de novo para o questionamento e a<br />

criação sobre o pulso, o tempo, o ritmo. Essas músicas devem ser lidas ou<br />

escutadas em nova situação. Elas fazem parte do processo de codificação<br />

entre som, ruído e silêncio como modos de admitir fases e defasagens, de<br />

trabalhar sobre o caráter simultaneamente rítmico e arrítmico do mundo<br />

(WISNIK, p.55, 2006). (...) A escuta está polarizada pela repetição do<br />

mercado, mas outros modos de escuta estão latentes nela como ressonâncias<br />

harmônicas. À medida que nos aprofundamos no tempo da dessacralização,<br />

toda a história dos símbolos, que vibra num acorde oculto (modal, tonal,<br />

serial), fica paradoxalmente mais exposta na sua simultânea<br />

contemporaneidade (WISNIK, p.56, 2006).<br />

A música se desloca entre o silêncio e o ruído, não sem drama, sem conflito, mas, é preciso<br />

pensar o quanto o ouvido não é também autor desse mesmo drama, produzindo e destruindo<br />

territórios, por ato auditivo ativo e afirmativo. Assim não muito distante do jogo entre fala e<br />

escrita expresso na escritura derridiana que, por extensão, reincreve a<br />

leitura/interpretação/tradução como ato de criação, apenas diferanciado da escrita, proponho o<br />

jogo entre música (como expresso pelo ritornelo deleuziano) e escuta estabelecendo uma<br />

dupla possibilidade de rasura, atuando no deslizamento do que se quer dizer música, no que se<br />

quer dizer ruído e no que se quer dizer silêncio.<br />

Assim, na contingência da relação com BR, RF e CM seríamos sujeitos discursivos em vias<br />

de sermos tedestereterritorializados, porém, sem escapar a passagem pelo constructo, pela


alegoria Seu Doutor que, simultaneamente, ouve e reterritorializa o CM, o BR e o RF,<br />

segundo juízo de valor sobre o que é musical, o que é silêncio e o que é ruído.<br />

Aproximando-se mais do ritornelo deleuziano podemos assumir que a princípio BR, RF, CM<br />

e SD carecem de ordem, território, movimento de ordenamento que garanta a sensação de<br />

sentir-se “em casa”. Porém, dessa mesma necessidade, sentimento, já emerge o movimento de<br />

abertura para o Caosmo deleuziano (Caos/Cosmo), para além do limite mal estabelecido pelo<br />

movimento de territorializar que, em termos deleuzianos, determinava um agenciamento<br />

territorial (ritornelo). O que explicita dizer que todo movimento de territorialização já<br />

expressa um devir desterritorializante, um efeito ritornelo: devir fuga e devir retorno que<br />

nunca reencontra o mesmo ponto.<br />

93<br />

Uma criança no escuro, tomada de medo, tranqüiliza-se cantarolando (...).<br />

Agora, ao contrário, estamos em casa. Mas o “em-casa” não preexiste: foi<br />

preciso traçar um círculo (cantarolando) em torno do centro frágil e incerto,<br />

organizar um espaço limitado. Eis que as forças do caos são mantidas no<br />

exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças<br />

germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita. Agora,<br />

enfim entreabrimos o círculo, nós mesmos vamos para fora, nos lançamos.<br />

Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um futuro, em função das<br />

forças em obra que ele abriga (DELEUZE; GUATTARI, pp. 116, 117,<br />

1997).<br />

Momentaneamente, em um princípio inventado, localizávamo-nos (autor/leitor) nas forças do<br />

caos que ameaçavam, por juízo de valor e escuta seletiva, e provocavam a necessidade das<br />

alegorias produzirem o círculo em torno do centro frágil. Mas, enquanto opera, a máquina<br />

discursiva (RF, BR e CM) que constrói e fortifica a obra a partir de dentro já abre-se para<br />

improvisar: “arriscamos uma improvisação, improvisar é ir ao encontro do Mundo, ou<br />

confundir-se nele” (Idem, p.117).<br />

O ritornelo tem os três aspectos, e os torna simultâneos ou os mistura: Ora o<br />

caos é um imenso buraco negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto<br />

frágil como centro. Ora organizamos em torno do ponto uma pose calma e<br />

estável. Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco<br />

negro. (Ibidem).<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> expresso pelas alegorias BR, RF e CM, simultaneamente ao ato de<br />

organizar-se para defender-se do caos expresso por contextos e sujeitos referentes a processos<br />

de modernização no país – urbanidade burguesa de transformação conservadora nas primeiras<br />

décadas do século XX – já caminha ao encontro dessa mesma burguesia, ritornelo,<br />

movimento para um novo meio, novo agenciamento territorial, improvisando parcerias<br />

improváveis com o Seu Doutor. Conosco. O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> através do discurso de suas


alegorias desliza para um novo meio que antes era por ele territorializado como o “outro”, o<br />

“fora”, “o caosmo” e, a partir daí, segue deslizando para novos outros meios nos quais os<br />

discursos da burguesia, da indústria cultural, da política etc. constituem-se cada vez menos<br />

como um “outro”. Para Deleuze o deslizamento se dá entre meios que incorporam e<br />

transformam em “dentro” e “casa” parcela do que era “fora” ou “caos”. E esse movimento de<br />

deslizar seria inevitável ao meio. A repetição continua (“meio”) promove, não<br />

necessariamente, de forma intencional, a diferença (“passagem para novo meio”), a<br />

transformação, em movimento simultâneo.<br />

94<br />

É que um meio existe efetivamente através de uma repetição periódica, mas<br />

esta não tem outro efeito senão produzir uma diferença na qual ele passa<br />

para um outro meio. É a diferença que é rítmica, e não a repetição que, no<br />

entanto a produz; mas, de pronto, essa repetição produtiva não tinha nada a<br />

ver com uma medida reprodutora (ibidem, p. 120).<br />

A título de evitar mal entendido por conta da terminologia deleuziana é tácito informar que o<br />

meio não constitui um território, mas, como dito, uma repetição. Repetição que se contrapõe<br />

ao caos ao mesmo tempo em que enfrenta o caos através do ritmo. Ritmo não é repetição,<br />

mas, efeito que somado ao caos estabelece o “entre-dois” meios, ritmo-caos, “caosmo” e<br />

possibilita a passagem de um meio para outro. Possibilita a expressão, criação, invenção.<br />

O Território não é um meio, nem mesmo um meio a mais, nem um ritmo ou<br />

passagem entre meios. O Território é de fato um ato, que afeta os meios e os<br />

ritmos, que os territorializa. O Território é um produto de uma<br />

territorialização de meios e ritmos (ibidem, p. 120).<br />

Toda essa explicação de ordem deleuziana se presta ao entendimento assumido por nós do<br />

que venha a ser território. Algo que se aproxima dos indecidíveis derridianos, no sentido de<br />

que não é signo, nem coisa, mas um ato, um movimento, um efeito, uma marca qualitativa<br />

que se dá no meio, este sim algo próximo ao que entendemos, pelo senso comum científico,<br />

como território, espaço, meio ambiente.<br />

A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes<br />

de meios tornados qualitativos. (ibidem, p.122). O ritornelo é o ritmo e a<br />

melodia tornados expressivos e tornados expressivos porque<br />

territorializantes. Não estamos girando em círculos queremos dizer que há<br />

um auto-movimento das qualidades expressivas (ibidem, p.124).<br />

Essa expressividade dá-se não por uma vaidade de um discurso, arte pela arte, mas por uma<br />

necessidade de delimitar uma distância. O território como uma distância entre, por exemplo,<br />

os SD Barão da Ralé, Rapaz Folgado, Contente Magoado e Seu Doutor.


95<br />

Trata-se de manter à distância as forças do caos que batem à porta. (...) A<br />

distância crítica não é uma medida, é um ritmo. Mas justamente, o ritmo é<br />

tomado num devir que leva consigo as distâncias entre personagens, para<br />

fazer delas personagens rítmicos, eles próprios mais ou menos próximos,<br />

mais ou menos combináveis. (...) Mais do que isso é preciso considerar dois<br />

aspectos simultâneos do território: ele não só assegura a coexistência dos<br />

membros de uma mesma espécie, separando-os, mas, torna possível a coexistência<br />

de um máximo de espécies diferentes em um mesmo meio,<br />

especializando-os (ibidem, p.128).<br />

Resta-nos pensar o movimento do ritornelo não como uma espiral ascendente, não como<br />

estrutura arbórea, mas como rizoma, como descentramento de centros que não guardam<br />

hierarquias de origem ou esgotamento. Deslizamentos simultâneos de centros de meios que<br />

deslizam entre-dois meios, incorporam parcelas do caos, do fora, do outro. Por isso, não<br />

caberia estabelecer Posições de Sujeitos arbitrados numa relação, visto que essa relação<br />

guarda em si, como devir, movimento de deslizamento imprevisível, cuja direção não pode<br />

ser decidida pela análise das partes que momentaneamente cristalizam o sujeito sequer sob um<br />

quadro Estado de Sujeito.<br />

Indiferentes ao luxuoso auxílio deleuziano, agora mesmo, o RF, o BR e o CM nos encaram de<br />

frente. Elegem-nos como seus SD eleitos: o Seu Doutor, nós, os doutores, os professores, os<br />

estudantes engajados, os advogados, os delegados, os profissionais, os políticos, os<br />

proprietários, a burguesia sensível e insensível ao povo, os urbanos da praia, moradores da<br />

beira-mar, da Zona Sul carioca, dos Jardins da Paulista, das áreas verdes, dos bairros nobres,<br />

dos casarões e palacetes suspensos, os privilegiados. De outra forma, nos dizem dessa<br />

diferença entre nós e eles. Não da nossa forma que os diz classe operária, classe <strong>popular</strong>,<br />

proletariado, campesinato, trabalhador, lumpesinato, migrantes, retirantes, exilados etc.<br />

Compreendendo que eles também nos chamam Seu Doutor entre variáveis constructos de<br />

alteridade, tentaremos ouvi-los no entre das nossas falas. No entre que como dito expressa a<br />

confusão de se estar na fala deles e na nossa assim como a separação que permite nomear BR,<br />

RF, CM e SD. Para falar dessa diferença que se constrói a partir de RF, BR, CM e SD, mas<br />

que já se deslocaria diferanciada para além daquela classificação de Sujeitos Discursivos<br />

prévios e eleitos, eles/nós se/nos convidam (mos) a certo contexto preferencial, uma espécie<br />

de entrada no feixe do jogo que desliza simultaneamente em direção a Belle-Époque e a<br />

Ditadura Militar. Essa entrada faz referencia ao contexto que elege os signos sociedade do<br />

trabalho e modernidade dos anos 30 e 40, quando possivelmente os discursos CM, RF e BR<br />

em dialogismo entre si e com o discurso SD foram emitidos e escutados de forma mais nítida.<br />

Vamos ao jogo.


RF:<br />

SD:<br />

♪♪♫♫<br />

Vivo na malandragem<br />

Não quero saber do batedor<br />

Pode escrever o que vou dizer<br />

Ando melhor do que um trabalhador<br />

Não há riqueza que me faça enfrentar o batedor<br />

Pois quem é rico nunca foi trabalhador 134<br />

Meu chapéu do lado tamanco arrastando<br />

Lenço no pescoço, navalha no bolso.<br />

Eu passo gingando, provoco e desafio.<br />

Eu tenho orgulho de ser tão vadio.<br />

Sei que eles falam deste meu proceder<br />

Eu vejo quem trabalha andar no misere<br />

Eu sou vadio porque tive inclinação<br />

Eu era criança tirava samba-canção. 135<br />

Eu não quero trabalhar<br />

Trabalho vá pro inferno<br />

Se não fosse pela minha nega<br />

Eu jamais poria um terno 136<br />

Quando esse nego chega, ai, meu coração me dói, dói<br />

Parece que vai, vai saltar do peito<br />

E vai rolando pelo chão, ai, que maldição<br />

Nego, não me pise nele não<br />

Mas o feitiço desse nego pega, ora se pega<br />

E quando pega dá trabalho pra limpar<br />

Quando a paixão é surda e muda, é cega, não sossega<br />

Fica no corpo até morrer<br />

Ele namora quase tudo que é mulata<br />

Não faz mal, sou democrata<br />

Eu nascí pra padecer 137<br />

Você quer comprar o seu sossego me vendo morrer num emprego<br />

Essa vida é muito cômica e eu não sou Caixa Econômica que tem juros a ganhar<br />

Você diz que eu sou moleque porque não vou trabalhar<br />

Eu não sou nenhum cheque pra você me descontar...<br />

Meu avô morreu na luta e meu pai pobre coitado<br />

Espatifou-se na labuta por isso eu nasci cansado<br />

E pra falar com justiça eu devo é aos empregados<br />

Ter em mim essa preguiça herança de antepassados 138<br />

134 Nasci no samba. Benedito Lacerda e Bide, 1932.<br />

135 Lenço no pescoço. Wilson batista, 1933.<br />

136 O trabalho me deu bolo. Moreira da Silva e João Golo, 1939.<br />

137 Quando esse nego chega. Araci de Almeida - Haroldo Barbosa, 1948.<br />

138 Caixa econômica. Nássara, Orestes Barbosa, 1933.<br />

96


O enfrentamento ao código trabalhista, referente à construção do signo “sociedade brasileira<br />

do trabalho sob a tutela varguista”, está presente no discurso do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> através<br />

dos discursos da alegoria RF (a ponto do Estado Novo baixar uma portaria proibindo sambas<br />

de exaltação à malandragem 139 ). Tal escopo discursivo põe em dúvida a garantia da<br />

reciprocidade que o pacto social baseado no trabalho e no respeito às leis e aos códigos<br />

promete ao pobre. Em geral, estas canções, na interpretação do poder (político, policial,<br />

jornalístico, acadêmico) se encaixam no rótulo de transgressoras, por produzirem construções<br />

apologéticas da vida do malandro, da liberdade desregrada, da inteligência de viver sem<br />

trabalhar, da coragem no enfrentamento com outros malandros, na destreza de escapar da<br />

polícia e do prestigio de que desfruta no grupo social que freqüenta, em particular, junto à<br />

mulher. Os discursos do RF também deixam claro que os poderes do Estado (representado<br />

pelas instituições e sujeitos formais, a polícia, os políticos, a Igreja, os assistentes sociais e de<br />

saúde) e do capital (representado pela burguesia, o patrão, a patroa, a grã-fina, o aristocrata)<br />

constituem alteridades bastante claras: são os “outros” do morro, do samba, da amizade, da<br />

malandragem.<br />

RF:<br />

Quando eu me espalho (...)<br />

Nem mesmo a polícia pode 140<br />

Mas que golpe errado que eu dei<br />

Dizendo que ia deixar a vadiagem<br />

Com o tal de trabalho eu não me acostumei<br />

Nem mesmo por camaradagem<br />

Força eu não faço, faça quem quiser<br />

139 Apela-se sabiamente para a música <strong>popular</strong>, abatida pelo protecionismo controlador do Estado<br />

empenhado em construir um protótipo do homem <strong>brasileiro</strong>. Vários compositores engajaram-se no<br />

projeto ideológico. Os cachês do DIP eram atraentes e os canais de divulgação (estávamos na "Era<br />

do Rádio") ofereciam novas oportunidades, acompanhadas de perto pela censura. O tema da<br />

malandragem cedeu lugar a enredos de exaltação ao trabalho e do operário-padrão. Um exemplo<br />

desta metamorfose musical é o samba "O bonde de São Januário", de Wilson Batista e Ataufo Alves,<br />

gravado em 1940 por Ciro Monteiro, em cuja letra a palavra "otário" foi substituída por "operário",<br />

transformando-se em elogio ao trabalhador: "o bonde de São Januário leva mais um otário..."<br />

Regenera-se o malandro transformado em um homem de vida regrada, bom marido e trabalhador<br />

exemplar. Malandragem e boemia transformaram-se em "lazer proibido", conjugando utopia com una<br />

nova realidade histórico-social. Reprimia-se a linguagem malandra e a "giria" brasileira, restando aos<br />

compositores a ironia e a ambigüidade, uma válvula de escape tanto para a música <strong>popular</strong> como<br />

para a charge política. Por este mesmo filtro cultural passou também o carnaval cujos sambasenredos<br />

das escolas de samba, censurados pelo DIP, deveriam versar sobre temas relativos á<br />

Historia do Brasil. Por entre sambas, documentários cinematográficos, bandeiras e desfiles paramilitares,<br />

criou-se uma aura de satisfação, harmonia e felicidade, expressa discursiva e plasticamente<br />

em torno dos preceitos ideais do Estado. Cativava-se o indivíduo para os desígnios do Estado,<br />

instigando todo <strong>brasileiro</strong> a atingir o ideal máximo de patriotismo<br />

(http://www.tau.ac.il/eial/I_1/carneiro.htm em 20 fevereiro 2009). Autoritarismo e anti-semitismo na<br />

Era Vargas (1930-1945)M. LUIZA TUCCI CARNEIRO. Universidade de São Paulo.<br />

140 Eu sou é bamba. Marinho e Getúlio, 1932. t0<br />

97


SD:<br />

Do tal de trabalho eu passo<br />

Pegar no pesado meu santo não quer<br />

Pra não ficar mal acostumado 141 .<br />

Sob a ótica do Estado tutorial, o discurso transgressor do <strong>cancioneiro</strong> questiona valores os<br />

quais a sociedade brasileira de forma consensual deveria aderir: o trabalho, como proposto<br />

pelas instituições trabalhistas estatais ou privadas, certo padrão estético, como esperado pela<br />

burguesia, certo comportamento público, obediente às expectativas dos agentes da lei e da<br />

ordem. A possibilidade do pacto sob a tutela trabalhista de Vargas é ameaçada pelo discurso<br />

transgressor do compositor <strong>popular</strong> que usa a ironia como forma de driblar inclusive a censura<br />

do Estado Novo. O apelo ao pacto trabalhista é respondido de forma ambígua pelo discurso<br />

do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> considerando que o mesmo poder de repercutir do <strong>cancioneiro</strong> serve<br />

tal aos interesses da ordem e do progresso na construção da nação pelo discurso BR, qual às<br />

vias alternativas de convivência social através da fala de RF que não corresponde ao modelo<br />

idealizado pelo poder constituído em inúmeras instâncias. Porém, os discursos RF ou BR, de<br />

modo geral, tomam as dores do pobre, privilegiam a festa <strong>popular</strong> e denunciam a<br />

vulnerabilidade do grupo <strong>popular</strong> frente esses poderes. Muitas vezes, mesmo o discurso BR,<br />

denuncia injustiças, explorações e desigualdades veladas pelo caráter informal das relações<br />

informais entre <strong>popular</strong>es e a elite “cordial”. Essa informalidade pode ser interpretada ora<br />

como o desejo do pobre em ser apadrinhado (extensão do coronelismo na urbanidade) ora<br />

como ação da elite cancelando direitos civis, sociais, às vezes, individuais do pobre. Em<br />

ambas as situações o pobre permanece na condição de refém dos humores e da cordialidade 142<br />

do poder do patrão, da polícia, do Estado etc..<br />

BR; RF:<br />

Bento fez anos e para almoçar me convidou<br />

Me disse que ia matar um cabrito e onde tem cabrito eu to, ora se to.<br />

E quando comes e bebes começou<br />

No melhor da cabritada a polícia e o dono do bicho chegou<br />

Puseram a gente sem culpa no carro da rádio-patrulha e levaram<br />

Levaram também o coitado do cabrito e toda a bebida que tinha quebraram<br />

O seu delegado, zangado, não estava querendo ninguém liberar<br />

O patrão da Sebastiana é que foi no distrito e mandou me soltar. 143<br />

141 Golpe errado. Francisco Alves, 1929.<br />

142 A cordialidade expressa por Sérgio Buarque de Hollanda como o lugar onde os códigos e<br />

regimentos da lei se apresentam sub-hierarquizados pelo emocional do afeto ou do ódio.<br />

143 Cabritada mal-sucedida. Geraldo Pereira, 1945.<br />

98


SD:<br />

Considerando enunciados como os anteriores, é pertinente propor que o discurso produzido<br />

pelo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> confecciona um tutorial que ora converge ora diverge do discurso do<br />

poder ao contituir arengas conjugais, relações de vizinhança, casos da política, reclamações<br />

dos serviços de transporte, saneamento, água, luz, segurança etc., códigos de etiqueta, lazer e<br />

festa, uso da rua e comportamento na cidade aburguesando-se. Também constructos como<br />

moradia, trabalho, viração, violência pública e doméstica (a mulher, via de regra, vítima, às<br />

vezes, transforma-se no algoz do malandro), injustiças sociais, questões raciais são inscritos<br />

ora em tons dramáticos ora na dicção crítica e irônica das crônicas, charges e caricaturas.<br />

RF:<br />

SD:<br />

Minha cabocla a Favela vai abaixo quanta saudade tu terás desse torrão<br />

Da casinha pequenina de madeira que nos enche de carinho o coração<br />

Que saudade ao nos lembrarmos das promessas<br />

Que fizemos constantemente na capela<br />

Pra que Deus nunca deixe de olhar<br />

Por nós da malandragem, pelo morro da Favela<br />

Vê agora a ingratidão da humanidade<br />

O poder da flor política amarela<br />

Que sem brilho vive pela cidade<br />

Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela 144<br />

A força do malandro está na expressão do seu olhar<br />

Ele fascina conquista domina a mulher<br />

Prende ao seu olhar pra não mais soltar depois faz dela o que ele quer<br />

O malandro interesseiro não precisa perguntar<br />

Se a mulher tem o dinheiro ele adivinha em seu olhar 145 .<br />

Ao se valer desse matiz, a música redistribui a produção de códigos e valores, estabelece seus<br />

próprios limites do que vem a ser norma e anomia, transgredindo, não a ponto de propor a<br />

desobediência civil, revolucionária, mas a ponto de produzir um contra-discurso subversivo à<br />

rigidez do discurso civilizatório. Segundo a sociologia de Merton (1964), o <strong>cancioneiro</strong><br />

expressaria o que se deve fazer ou evitar para se atingir certa meta-êxito, seja pela via formal,<br />

do trabalho, seja pela via alternativa, da viração, da malandragem. A crítica de Merton<br />

fundamenta-se na percepção de que enquanto as oportunidades de acesso aos meios formais<br />

que levariam à realização da meta são distribuídas de forma não equânime entre as classes e<br />

grupos sociais, a definição da meta (salvo particularidades) seria comum a todos na sociedade<br />

144 A favela vai abaixo. Francisco Alves; Sinhô, 1928<br />

145 A força do malandro. H. Cordovil, Jaime Tolomil, 1933.<br />

99


moderna urbanizando-se. Todos estariam constrangidos segundo um modelo comum de<br />

obtenção de recursos pecuniários, bens e prestígio expresso na base do pacto social 146 .<br />

BR:<br />

SD:<br />

Quem trabalha é que tem razão<br />

Eu digo e não tenho medo de errar<br />

O bonde de São Januário<br />

Leva mais um operário (otário, na versão não-censurada)<br />

Sou eu que vou trabalhar. 147<br />

Ele trabalha de segunda a sábado<br />

Com muito gosto sem reclamar<br />

Mas no domingo ele tira o macacão,<br />

E manda no barracão, põe a família pra sambar<br />

Lá no morro ele pinta o sete<br />

Com ele ninguém se mete<br />

Ali ninguém é fingido<br />

Ganha-se pouco, mas é divertido<br />

Ele nasceu sambista,<br />

Tem a tal veia de artista,<br />

Carteira de reservista<br />

Está legal com o senhorio...<br />

Não pode ouvir pandeiro, não<br />

Fica cheio de dengo<br />

É torcida do Flamengo<br />

Nasceu no Rio de Janeiro 148 .<br />

Eu fui num samba lá no morro de Mangueira<br />

Uma cabrocha me falou de tal maneira:<br />

“Não vai fazer como fez o Claudionor.<br />

Para sustentar a família foi bancar o estivador”.<br />

Oh, cabrocha faladeira que fez tu com a minha vida?<br />

Vai procurar um trabalho e corta essa língua comprida 149 .<br />

100<br />

146 Merton, teórico funcionalista da sociedade americana, observa que o desvio, ou anomia, ao<br />

contrário de Durkheim, não deve ser pensado como uma patologia pura e simples, como um refugo,<br />

subproduto da sociedade. Mas, isto sim, como uma produção de via alternativa, extra-oficial para se<br />

alcançar o mesmo fim, ou meta-êxito. Numa sociedade em que metas e meios se apresentam<br />

desequilibradas, isto é, onde, para um contingente considerável da população, a expectativa de<br />

alcance das metas encontra-se muito acima dos meios regulamentados disponíveis, a via alternativa<br />

é o suporte ao qual esse contingente adere no intuito de atingir a meta-êxito. A anomia, em Merton, é<br />

conceituada como uma estratégia em busca de aderência social e não como patologia.<br />

147 O bonde de São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1940). O trabalho como prática<br />

regeneradora do pobre, como elemento que transforma o malandro em operário, caracteriza-se nesta<br />

canção de forma exemplar. Há também referência à modernidade sugerida pelo bonde como sujeito<br />

disciplinador que integra a massa trabalhadora a caminho do trabalho.<br />

148 Ganha-se pouco mas é divertido. Wilson Batista, Ciro de Souza, 1941.<br />

149 Morro da Mangueira. Manoel Dias, 1925. A “cabrocha faladeira” não trabalha e fala mal de quem<br />

assim procede. A crítica aproxima a aversão ao trabalho da fofoca de vizinhança.


Toma-se tutorial como termo que deve compreender o código e a transgressão, o uso e o<br />

desuso, a norma e a anomia. Em outras palavras, propõe-se considerar que a construção<br />

discursiva das canções constitui-se como parte do processo de adesão, mas também de<br />

transgressão de códigos e valores caros aos interesses do poder que orienta de cima para baixo<br />

a forma desejada da sociedade brasileira. Seguir ou desobedecer aos códigos é uma questão de<br />

sobrevivência, principalmente, para os que se localizam a margem das conquistas objetivas e<br />

materiais de processos instituídos como civilizatórios, modernizadores e urbanizadores. Isto,<br />

porque, para o grupo desprivilegiado, a falta de habilidade no uso e desuso dos códigos e<br />

normas poderia ser fatal, qualquer erro poria em risco a própria sobrevivência, sob as novas<br />

condições em que a sociedade opera.<br />

RF:<br />

Enquanto existir o samba não quero mais trabalhar<br />

A comida vem do céu Jesus Cristo manda dar<br />

Tomo vinho tomo leite tomo a grana da mulher<br />

Tomo bonde e automóvel só não tomo Itararé<br />

A escola do malandro é fingir que sabe amar<br />

Sem elas perceberem para não estrilar<br />

Fingindo é que se leva vantagem isso sim que é malandragem<br />

Isso é conversa pra Doutor? 150<br />

Eu te chamo vagabundo porque não queres trabalhar<br />

E só vives na orgia sempre a me enganar<br />

Me iludiste com promessa e juramento<br />

Mas agora minha vida já ficou no esquecimento 151<br />

O mundo me condena e ninguém tem pena<br />

Falando sempre mal do meu nome<br />

Deixando de saber se eu vou morrer de sede<br />

Ou se eu vou morrer de fome.<br />

Quanto a você da aristocracia<br />

Que tem dinheiro mas não compra a alegria<br />

Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente<br />

que cultiva a hipocrisia 152<br />

Antigamente eu tinha tudo que queria sem pegar no pesado<br />

Andava sempre endinheirado<br />

Mas a coisa mudou, a morena se pirou e eu fiquei arruinado<br />

Quando eu me lembro daqueles tempos que eu anda alinhado<br />

Eu fico até apaixonado<br />

Lenço no pescoço, charumbuto na boca, chapenguel desabado<br />

Eu era mesmo respeitado<br />

Calça listada, chinelo Charlotte, violão afinado<br />

150 Escola de malandro. Ismael Silva, Noel Rosa, 1932.<br />

151 Vagabundo. Nabor Camargo, 1935.<br />

152 Filosofia, Noel Rosa, André Filho, 1933.<br />

101


SD:<br />

E a morena a meu lado que me obedecia<br />

E vinha todo dia me trazer uns trocados<br />

É.. mas agora ... eu sou forçado a fazer cara dura<br />

Pra defender o da gordura<br />

Se for preciso a foice e o machado sou capaz de pegar<br />

Só pra poder me endireitar 153<br />

Nessa última RF diz que vai pegar na foice e no machado para se endireitar, há aí alguma<br />

ilusão à foice e o martelo comunista? Será? Considerando a relativa liberdade política dos<br />

anos 50 pode até ser mesmo. Mas, e o BR? O que ele fala? Entendemos que o discurso BR,<br />

tutorial mais evidentemente sintonizado com o código, expressa-se quando faz apologia do<br />

trabalho, da moral, do respeito às leis e do agir segundo o enquadramento proposto por uma<br />

dada ordem urbana.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Vou a Penha rasgado pra pagar uma promessa<br />

Deixei de ser malandro porque tenho trabalhado<br />

Vou de chinelo Charlotte e terno de cimento armado<br />

Pois é o que a nota tem dado<br />

Tu foste embora, mas já estou conformado<br />

Pois é melhor viver só do que mal acompanhado<br />

Hoje eu trabalho tenho nota a beça.<br />

Mas vou a Penha rasgado pra pagar uma promessa. 154<br />

Pedro dos Santos vivia no morro do pedregulho<br />

Quebrando boteco fazendo barulho<br />

Até com a própria polícia brigou<br />

Vivia no jogo...<br />

Parece mentira Pedro endireitou<br />

Estelinha orgulho do morro (...) ao Pedro dos Santos deu seu grande amor<br />

E ele trocou o revolver que usava fingindo embrulho por uma marmita<br />

E sobe o Pedregulho de noite cansado do seu batedor 155<br />

Se a rádio patrulha chegasse aqui agora<br />

seria uma grande vitória ninguém poderia correr<br />

Agora que eu quero ver quem é malandro não pode correr<br />

Resistência e coragem não lhe ofereço<br />

Quando ela chega impondo respeito não merece preço 156 .<br />

Os assuntos podem variar de conselhos a como se comportar em público, como proceder nas<br />

festas de rua, lidar com vizinhos, com a família, com o patrão, às motivações cívicas de<br />

cumprir com o serviço militar ou apoiar o processo democrático comparecendo às urnas de<br />

votação, se possível, bem trajado.<br />

153 Malandro bombardeado. Moreira da Silva, Tancredo e David Silva, 1953.<br />

154 Vou a Penha rasgado. Braguinha, 1927.<br />

155 Pedro do Pedregulho. Geraldo Pereira, 1950.<br />

156 Radio patrulha. Silas de Oliveira, 1955.<br />

102


BR:<br />

SD:<br />

A polícia não quer barulho, a polícia não quer bebedeira.<br />

A polícia não quer barulho, a polícia não quer bebedeira.<br />

E viva a Penha, e viva a Penha, e viva a santa nossa santa padroeira.<br />

Quem fizer barulho vai pro xilindró, com a bebedeira vai ficar falando só.<br />

Pode ter batuque, pode até sambar, a nossa polícia só não pode ver brigar 157 .<br />

Já são dez horas no relógio da Matriz<br />

E o almoço, até agora ainda não fiz.<br />

Logo hoje que é dia de eleição<br />

Está custando cozinhar o meu feijão<br />

Ainda tenho que passar na costureira.<br />

Pra apanhar o meu vestido.<br />

Vou votar em Madureira. 158<br />

Nega, meu bem.<br />

Me passe o meu terno branco<br />

E me compre um par de tamancos<br />

Eu hoje vou votar<br />

E avise o pessoal do morro<br />

Que o homem é o Ademar. 159<br />

Patrão o trem atrasou por isso estou chegando agora.<br />

Trago aqui o memorando da Central o trem atrasou meia hora.<br />

O senhor não tem razão para me mandar embora 160 .<br />

A idéia expressa no que se denomina de turorial deve, a partir de agora, dialogar com os<br />

elementos que irremediavelmente freqüentam o campo do <strong>cancioneiro</strong>. Esses elementos são<br />

representados na forma de signos que se repetem arquitetando certo imaginário: o morro, o<br />

asfalto, o sertão, a cidade, o campo, o subúrbio, a Zona Sul, a estrada, o Centro boêmio, a<br />

fazenda, o cabaré, o bar, a casinha na serra, o malandro, o doutor, o caipira, o sertanejo, a<br />

polícia, o trabalhador, o patrão, a grã-fina, a cocotte, a mulata, o português, a boemia, a festa,<br />

o lar, a saudade, o êxodo, o retorno, o reencontro, o castigo, a vingança, a traição, etc. Em<br />

resumo, experimentar dessa pedagogia das canções, implica responder a imagens expressas<br />

numa arquitetura de canções que repercutem pistas ao <strong>brasileiro</strong> de como viver e sobreviver<br />

às exigências da urbanidade e da sociedade moderna: seja numa grande capital, seja nos<br />

rincões sertanejos que o rádio e suas cantoras alcançam.<br />

103<br />

157 Viva a Penha. Tuiú, 1928. O termo “barulho” expressa briga. A música se refere à famosa Festa da<br />

Penha que mobilizava um grande contingente policial.<br />

158 Vou votar em Madureira. Florinda Alves – Benedito Lacerda e Herivelto Martins, s.d..<br />

159 Eu hoje vou votar. Gentil Homem e Papito, s.d..<br />

160 O trem atrasou. Artur Vilarinho, Estanislau Silva, Paquito, 1940. O trabalhador constrangido pelo<br />

transporte público precário e pela vulnerabilidade da relação de trabalho.


BR:<br />

SD:<br />

Nós somos as cantoras do rádio<br />

Levamos a vida a cantar.<br />

De noite embalamos teu sono.<br />

De manhã nós vamos te acordar.<br />

Nós somos as cantoras do rádio.<br />

Nossas canções cruzando o espaço azul.<br />

Vão reunindo num grande abraço.<br />

Corações de norte a sul 161 .<br />

Como fenômeno de massa, a música <strong>popular</strong> produz na chamada era do rádio, que se estende<br />

entre as décadas de 30 e 50, movimentos de integração e homogeneização do consumo e do<br />

gosto musical do <strong>brasileiro</strong>, a partir da tutela da emergente classe média urbana, cuja<br />

reprodução relaciona-se com o crescimento da oferta de cargos no setor de serviços ligados às<br />

atividades burocráticas, técnicas e administrativas em organismos públicos e privados, das<br />

capitais do país. Tal homogeneização do consumo, em que a música participa como sujeito<br />

ativo, intencionalmente ou não, será ferramenta de muita serventia ao poder, considerando as<br />

preocupações com as recentes ameaças comunistas, as tentativas de golpes e os levantes<br />

separatistas ao longo dos anos 30 que, aos olhos do Estado, punham em risco a unidade<br />

nacional e a centralidade do Governo Vargas. Por outro lado, essa percepção da música como<br />

ferramenta estratégica para a manutenção da ordem também vai influenciar os discursos do<br />

campo da música, considerando as possíveis benesses de uma aliança com o Estado. A<br />

aproximação entre a música e o Estado conduzirá a certa orientação na escolha dos temas e no<br />

uso da linguagem do discurso musicado: a canção ufanista, de glória e guerra, retrata o<br />

espírito desse acordo.<br />

BR:<br />

Houve um comício em Mangueira<br />

O cabo Laurindo falou<br />

Toda Escola de Samba aplaudiu<br />

Toda Escola de Samba chorou<br />

Eu não sou herói<br />

Era comovente a sua voz<br />

Heróis são aqueles que tombaram por nós.<br />

Houve missa campal<br />

Bandeira a meio pau<br />

Toda a Escola de Samba rezou<br />

161 Cantoras do Rádio. João de Barro e Lamartine Babo, 1936. p4<br />

104


SD:<br />

Laurindo então lembrou os nomes<br />

dos sambistas que tombaram<br />

Mangueira tomou parte na vitória<br />

Mangueira mais uma vez na história 162<br />

Discursos ufanistas e patrióticos não se contam nessa época: Brasil 163 , 1939, “Gigante de um<br />

continente és terra de toda gente”. Brasil Pandeiro 164 , 1941, “Chegou a hora dessa gente<br />

bronzeada mostrar seu valor. Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros que nós<br />

queremos sambar”. Isso aqui o que é (Sandália de Prata) 165 , 1941, “É um pouquinho de<br />

Brasil iá-iá, desse país que canta e é feliz, feliz, feliz”. “Brasil, usina do mundo 166 ”, 1942,<br />

“Brasil usina do mundo, nova oficina de Deus onde homens de mãos calejadas trabalham<br />

cantando, ouve essa voz que o destino da pátria bendiz, é a voz do Brasil que trabalha<br />

cantando feliz”. Terra Boa 167 , 1942, “que terra boa pra se ganhar o pão, tem batucada tem<br />

luar tem violão, terra da liberdade onde o verso é um esporte, por esta terra dou meu peito a<br />

própria morte”. Tudo tem o Brasil 168 , 1940, o título dispensa comentários.<br />

BR:<br />

BR/RF:<br />

Brasil, meu Brasil <strong>brasileiro</strong>.<br />

Meu mulato inzoneiro.<br />

Vou cantar-te nos meus versos.<br />

O Brasil samba que dá para o mundo se admirar<br />

O Brasil do meu amor terra de Nosso Senhor (...)<br />

Esse coqueiro que dá coco,<br />

Onde amarro a minha rede<br />

Nas noites claras de luar.<br />

Essas fontes murmurantes<br />

Onde eu mato a minha sede<br />

E onde a lua vem brincar 169 .<br />

105<br />

162<br />

Comício em Mangueira. Germano Augusto e Wilson Batista, 1945. A aproximação de<br />

representações tão distantes como o sambista e o herói de guerra, assim como a Mangueira e a<br />

história oficial e bélica do país tornou-se crível porque o Estado Novo, fortemente interventor, agia<br />

como instância mediadora desses elementos, agregando-os sob a égide da nação e do trabalho. O<br />

chão da fábrica regenera o malandro da mesma forma que a guerra e ambos se colocam a serviço da<br />

nação.<br />

163<br />

Brasil. Benedito Lacerda e Aldo Cabral, 1939.<br />

164<br />

Brasil Pandeiro. Assis valente, 1941.<br />

165<br />

Isso aqui o que é (Sandália de Prata). Ary Barroso, 1941.<br />

166<br />

Brasil, usina do mundo, A. P. Vermelho e Braguinha, 1942.<br />

167<br />

Terra boa. Ataulfo Alves e W. Batista, 1942.<br />

168<br />

Tudo tem o Brasil. Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1940.<br />

169<br />

Aquarela do Brasil. (I) Silvio Caldas – (C) Ari Barroso, 1939. Ainda que, por estratégia<br />

metodológica, não nos interesse enfatizar os perfis biográficos dos compositores, sobre esse laço<br />

entre música e Estado, vale lembrar que Ary Barroso, além de compositor e radialista, possuía cargo<br />

de vereador.


SD:<br />

Yes nós temos bananas, bananas pra dar e vender<br />

Vai para a França o café para o Japão algodão<br />

Para o mundo inteiro, homem ou mulher banana para quem quiser<br />

Mate para o Paraguai não vai ouro do bolso da gente não sai<br />

Somos da crise se ela vier bananas para quem quiser 170<br />

Oi que terra boa pra se farrear, oi que terra boa pra se farrear.<br />

Minha terra tem loirinhas, moreninhas chocolat.<br />

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá<br />

Minha terra Bahia tem Ioiô e tem Iaiá<br />

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá<br />

Minha terra tem pitanga, cajá-manga e cambucá<br />

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá<br />

Minha terra tem um homem que ninguém sabe quem será 171<br />

Apesar do tom ainda ufanista das duas falas anteriores, a primeira já é marcada pela<br />

participação de RF quando assume como positividade a pecha de “República das Bananas”,<br />

termo estadunidense que ridiculariza governos latino-americanos. A segunda fala também<br />

expressa uma sensível rasurada do RF no discurso ufanista de BR considerando que mescla os<br />

signos contumazes de “palmeira e sabiá” à inscrição do clima de farra e instabilidade política<br />

às vésperas do golpe de 37. O enaltecimento da grandiosidade geográfica – matas, cascatas,<br />

rios, litorais – determinando a grandiosidade como povo e nação que o futuro nos reserva é<br />

estratégia repetida no discurso que, a reboque, apaga o conflito social gerado pelo<br />

desenvolvimento assimétrico entre as classes <strong>popular</strong>es, a classe média e a elite. A violência<br />

da desigualdade é amenizada pela natureza serena e dadivosa. Dissimulam-se as diferenças<br />

sociais e raciais nas cores de um país mulato e moreno. Ainda que “mulato inzoneiro” reze no<br />

Dicionário Aurélio como “sonso e mentiroso”, assim como “morena sestrosa” signifique<br />

“esperta e manhosa”. Um país que anuncia futuro tão fabuloso precisaria ser então defendido<br />

contra inimigos internos e externos. A união de todos seria imprescindível quando a guerra na<br />

Europa ameaça os ideais de liberdade e democracia que a ditadura Vargas, paradoxalmente,<br />

defenderia ao lado de Roosevelt.<br />

BR:<br />

106<br />

170 Yes, nós temos banana. (I) Almirante – (C) Alberto Ribeiro, Braguinha, 1937. República<br />

bananeira é um termo pejorativo para um país, normalmente latino-americano, politicamente instável,<br />

submisso a um país rico e com governo corrompido e ditatorial. O termo foi cunhado por O. Henry,<br />

um humorista e cronista estadunidense, referindo-se a Honduras na obra Cabbages and Kings, 1904,<br />

que continha contos curtos ambientados na América Central. A "República das Bananas" original<br />

seria Honduras, onde o termo inscreveu-se também devido à forte presença das empresas United<br />

Fruit Company e Standard Fruit, que dominavam o importante setor da exportação de bananas. A<br />

United Fruit Company, por exemplo, nunca escondeu participação na política - mesmo através do uso<br />

da força.<br />

171 Minha terra tem palmeiras. (I) Carmen Miranda – (C) Braguinha, Alberto Ribeiro, 1937.


Alô, Tio San! Zé Carioca já te deu nosso cartão<br />

O Pato Donald agora tem que dançar o nosso samba tico-tico no fubá...<br />

Zé Carioca papagaio infernal bate pandeiro toca flauta e lê jornal<br />

Zé Carioca no cinema tem cartaz eu quero ver alguém fazer o que ele faz 172 .<br />

Ai o Tio San quer ser sambista, ele tem um bom ritmista<br />

Vai aprender a sambar vai provar do mungunzá<br />

Vai ficar sabichão apenas com uma lição<br />

Vai deixar a boemia americana para freqüentar a praia de Copacabana<br />

Dessa vez vou me enriquecer eu vou me encher da grana<br />

Tenho que ensinar o português ao Tio San (...)<br />

Em Hollywood deixará seu fraque e cartola<br />

Vem diretamente ao Rio para a minha escola<br />

Para aprender a soletrar a nosso be-a-bá e não vai mais voltar prá lá 173 .<br />

Chegou o samba minha gente lá da terra do tio Sam com novidade<br />

E ele trouxe uma cadência que é maluca pra mexer toda a cidade<br />

O boogie-woogie, boogie-woogie, boogie-woogie<br />

A nova dança que balança, mas não cansa<br />

A nova dança que faz parte da política da boa vizinhança<br />

E lá na favela toda batucada já tem boogie-woogie<br />

Até as cabrochas já dançam, já falam do tal boogie-woogie<br />

E o nosso samba foi por isso que aderiu no amazonas, Rio Grande, São Paulo e Rio 174<br />

Como, lidar com paradoxos seria uma habilidade nata em um país moreno e mulato, lá se<br />

foram para a guerra o sambista, o malandro e até o caipira a guisa de defender interesses de<br />

um poder que em anos anteriores quando não os punha na cadeia, tapava o nariz para sua<br />

estética, sua ginga, sua fala.<br />

BR:<br />

Eu tenho um barraco no São Carlos<br />

Onde há paz e harmonia onde há samba noite e dia<br />

Eu tenho uma nega e um violão<br />

Um herdeiro que mais tarde ficará com o barracão<br />

Mas se a pátria precisar boto meu fuzil no ombro<br />

Largo tudo e vou brigar<br />

Vocês estão pensando que eu estou contando lorota<br />

Sou mulato patriota meu sangue nunca negou.<br />

Tem lá em casa um baú que por dinheiro nenhum eu dou.<br />

Dentro tem uma medalha que foi do meu bisavô<br />

Que em campanha ganhou... 175<br />

Infelizmente é notícia de última hora<br />

eu vou me embora<br />

E a minha fantasia, decidi<br />

Dê a meu mano mais velho<br />

que se divirta por mim<br />

172 Zé Carioca. Carlos Galhardo; Ari Monteiro, 1942.<br />

173 Tio San no samba. (I) Vocalistas tropicais – (C) Felisberto Martins, Zé Kéti, 1947.<br />

174 Boogie Woggie na favela. (I) Anjos do Inferno – (C) Denis Brean, 1947.<br />

175 Mulato Patriota. David Nasser e J. Batista, 1942.<br />

107


SD:<br />

A voz do dever me chama Lili.<br />

Mas levo na mochila um tamborim<br />

Vou passar o carnaval<br />

cantando samba em Berlim 176 .<br />

E o CM, não fala nada sobre a guerra?<br />

CM:<br />

SD:<br />

Sou caboclo calejado no sertão eu fui criado<br />

Tenho meu peito bronzeado de tanto sol me queimar<br />

Também já fui fuzileiro do pavilhão <strong>brasileiro</strong><br />

E lá na terra do estrangeiro voluntário eu fui lutar<br />

E o mundo pode ser belo<br />

Mas o meu verde amarelo está em primeiro lugar<br />

Lá nos campo italiano eu vi sangue derramando<br />

Eu vi <strong>brasileiro</strong> avançando no alto daquela serra<br />

É uma folha de glória no livro da nossa história<br />

E o preço dessa vitória paguemo caro na guerra<br />

Não me sai mais da lembrança o lugar onde descança<br />

Os heróis da minha terra 177<br />

Aí quando eu vim de minha terra<br />

Despedi da parentaia<br />

Eu entrei no Mato Grosso<br />

Dei em terras paraguaia<br />

Lá tinha revolução<br />

Enfrentei fortes bataia, ai, ai, ai 178<br />

108<br />

Sambas, marchas e canções de guerra se multiplicaram na ditadura varguista: “R.A.F. em<br />

Berlim 179 ”, 1943, trata-se de uma marcha com assustadores estalidos de metralhadora ao<br />

fundo. “Mocidade feliz 180 ”, 1943, marchinha que fala em “marchar sem temor pelo nosso<br />

país”. O V da vitória 181 , 1942, “terra querida és tu Brasil, ser <strong>brasileiro</strong> é a nossa glória, em<br />

nossas vidas está gravado o V da vitória... viva o Brasil, viva o Brasil”. Vitória, Vitória! 182 ,<br />

1944, diz ser “cada <strong>brasileiro</strong> um fuzil pra defender o Brasil”. Paris sorrirá outra vez 183 ,<br />

1942, lamenta a queda da cidade sob o jugo alemão, “Paris chora de dor ante os fuzis do<br />

invasor”, mas, preconiza a reviravolta no resultado final da Guerra, afinal, chegará o dia em<br />

que “Paris, sorrirá outra vez”. Voltemos à Viena 184 , 1944, fala de “Viena que saudade do<br />

amor e da liberdade... mas sei que a luz da vida muito em breve voltará”. Mia Gioconda 185 ,<br />

176<br />

Notícia de última hora. Benedito Lacerda e Darci de Oliveira, 1942.<br />

177<br />

Pracinha. Zico e Zeca, 1954.<br />

178<br />

Cuitelinho. Anônimo. Tema mato-grossense recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Carlos Xandó.<br />

(int) Pena Branca e Xavantinho, primeira gravação Inezita Barroso, 1957.<br />

179<br />

R.A.F. em Berlim. Benedito Lacerda e Darci de Oliveira, 1943.<br />

180<br />

Mocidade feliz. Carlos Maul e Martinez Grau, 1943<br />

181<br />

O V da vitória. Lamartine Babo, 1942.<br />

182<br />

Vitória, Vitória! José Rodrigues Alves, 1944.<br />

183<br />

Paris sorrirá outra vez. Oswaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1942.<br />

184<br />

Voltemos à Viena. Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1944.<br />

185<br />

Mia Gioconda. Vicente Celestino, 1946.


109<br />

1946, “Vejamos o destino de um pracinha <strong>brasileiro</strong> partindo para a Itália transformou-se num<br />

guerreiro. Vencido o inimigo que antes fora varonil recebeu da FEB ordem de embarcar para<br />

o Brasil”. A guerra acaba amanhã 186 , 1945, “Está terminando a tirania alemã, a guerra acaba<br />

amanhã... trocaremos as armas por violões”. As próximas duas canções fazem referência<br />

explícita a Hitler 187 : Bloco do Adolfo, 1943, “Adolfo o seu dia vai chegar... quem é do bloco<br />

do Adolfo não entra aqui não, não queremos gente estranha no nosso cordão”. A cara do<br />

Fuehrer, 1942, “é azedo pra limão, só serve pra alemão”. Se na Europa o clima é tenso, a<br />

canção clama: Calma no Brasil 188 , 1940, “Nós vivemos no melhor pedaço da terra, calma no<br />

Brasil que a Europa está em guerra”.<br />

BR:<br />

Adeus meu pai, adeus mamãe querida.<br />

Preciso ir pra terminar fronteira<br />

Só o clarim se toca em minha partida<br />

Garboso eu vou defender a bandeira<br />

Meu filho minha esposa amada<br />

Adeus amigos, adeus minha terra.<br />

O meu dever impõe essa jornada<br />

Adeus que eu vou partir pra guerra<br />

Eu vos prometo só voltar com glória<br />

Para rever o céu de minha terra<br />

E passaremos como heróis na História<br />

Quando acabar essa maldita guerra 189<br />

SD:<br />

A julgar pelo ano da canção, 1915, o BR deve estar alertando para o fato de que já na Primeira<br />

Guerra Mundial se faziam canções patrióticas de incentivo ao alistamento militar e à<br />

participação no combate.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Chegou a primeira escola de samba escola que não tem igual<br />

Pelo som da bateria até parece um batalhão naval<br />

Nesse mundo só há duas coisas que balançam o meu coração<br />

É a ginga da minha cabrocha e a cadência do meu batalhão 190<br />

A julgar pelo ano da fala anterior, essa aproximação entre o samba e as forças armadas parece<br />

ter se prolongado para além das duas Grandes Guerras. Pergunto se os signos de disciplina e<br />

institucionalidade que as forças armadas inscrevem/inspiram não podem ter despertado o<br />

interesse do discurso BR que inscreve signos Escola de Samba e favela ávidos por<br />

reconhecimento e institucionalidade frente o julgamento das elites. Fica a questão como<br />

possibilidade.<br />

186 A guerra acaba amanhã. (I) Francisco Alves – (C) Grande Otelo, Herivelto Martins, 1945.<br />

187 Bloco do Adolfo. (I) Gilberto Alves – (C) Ari monteiro, 1943.<br />

A cara do Fuhrer. Benedito Lacerda; Correia da Silva; Oliver Wallace, 1942.<br />

188 Calma no Brasil. Nássara, Frazão, 1940.<br />

189 Partida para a guerra. Florizel, Marinho de Oliveira, 1915.<br />

190 Marujo no samba. (I) Emilinha Borba – (C) Braguinha, 1949.


BR:<br />

Tire a camisa mane, tire a camisa seu Zé<br />

O homem feliz não usava camisa<br />

Tire a máscara da face pierrot<br />

Que o tempo do fascismo já passou<br />

Um novo sol no horizonte já brilhou<br />

Salve a paz salve o amor<br />

Dê a mão ao seu irmão e não brigue nunca mais<br />

Perante Deus todos nós somos iguais 191<br />

110<br />

SD:<br />

Boa, Barão da Ralé. Também havia falas democráticas, contrárias à guerra e aos<br />

totalitarismos, no caso aqui, contra as forças integralistas de Plínio Salgado, conhecidas como<br />

camisas verdes. De toda forma, não devemos analisar essa conjunção entre a guerra e<br />

ufanismo como mero apêndice, uma peculiaridade no discurso do <strong>cancioneiro</strong> que trata da<br />

urbanização e modernização elaboradas e anunciadas hegemonicamente pelo Estado Novo.<br />

Ao contrário, a guerra viria bem a calhar às intenções ideológicas do Governo visto que o<br />

discurso trabalhista de Vargas se mescla ao da responsabilidade cívica. Construir a pátria<br />

também é defender a pátria onde todos juntos lutam e trabalham em nome do mesmo ideal.<br />

Aliado do trabalhador, o soldado também se presta ao dever de regenerar o malandro e os que<br />

se recusam a aderir à moral trabalhista.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Laurindo voltou coberto de glória<br />

Trazendo pra todos no peito a cruz da vitória<br />

Salgueiro, Mangueira, Estácio, Matriz estão aqui.<br />

Para homenagear o bravo cabo Laurindo.<br />

As suas divisas que ele ganhou mereceu.<br />

Conheço os princípios que Laurindo sempre defendeu<br />

Amigo da verdade, defensor da igualdade<br />

Dizem que lá no morro vai haver transformação<br />

Camarada Laurindo, estamos a sua disposição 192 .<br />

Apesar de certo estranhamento se fazer notar na fala do BR, como se quisesse complicar<br />

nossa interpretação com as perigosas palavras transformação, igualdade e camarada, nos<br />

parece coerente assumir que o teor cívico da fala, expresso através de signo heróico-moralista<br />

– verdade, coragem, bravura, homenagem, glória – se coloca ainda em primeiro plano.<br />

BR/RF:<br />

As armas e os barões assinalaram vieram assistir o carnaval<br />

Cantando espalharei por toda parte, meu Porta estandarte vai ser Seu Cabral<br />

191 Tire a camisa. Antônio Almeida, Silvio Caldas, 1946.<br />

192 Cabo Laurindo. H. Lobo e W. Batista, 1945.


SD:<br />

Peri e Ceci de palhaço, Caramuru de arlequim<br />

Mandaram beijos e abraços pagaram chope pra mim<br />

O Pero Vaz de Caminha vem de pierrô puxador<br />

E traz na mão fechadinha uma cartinha de amor 193<br />

Quem foi que inventou o Brasil<br />

Foi seu Cabral no dia 21 de abril dois meses depois do carnaval<br />

Depois Ceci amou Peri, Peri beijou Ceci ao som do Guarani<br />

Do guarani ao guaraná surgiu a feijoada e depois o parati<br />

Depois Ceci virou Iaiá, Peri virou ioiô de lá pra cá tudo mudou<br />

Passou-se o tempo da vovó quem manda é a severa e o cavalo Mossoró 194<br />

Tudo bem. Faremos outra ressalva, assumindo que nem sempre o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> esteve a<br />

serviço do discurso nacionalista do Estado, contribuindo com a fixação dos signos pátria,<br />

História Nacional, civismo e glória. Mas, nessa última fala BR e RF poderiam ao menos ter<br />

acertado a data do descobrimento, 22 de abril, se bem que dada a interpretação irônica, pode-<br />

se dizer que foi uma vantagem para o discurso histórico não terem trocado a data para<br />

primeiro de abril. Já contando com a colaboração de BR, afirmamos que a estratégia de<br />

valorização da natureza no discurso nacionalista promovido pelo Estado Novo é notável. Se,<br />

na República Velha, o constructo natureza era expresso pela elite como empecilho, algo que<br />

se impunha corroendo o caráter e a força de vontade do povo, agora, o constructo: “natureza<br />

gigantesca e exuberante que se impõe sobre a civilização”, inverte-se. A natureza expressa a<br />

grandeza do país, orienta os humores do <strong>brasileiro</strong> e fornece elementos à nossa singularidade<br />

como povo-nação. No filme americano, Os Reis do Rio (1947), a experiência sensorial do<br />

amor se impõe sobre a cultural da palavra (FREIRE-MEDEIROS). Isso, à época, não precisou<br />

ser necessariamente ajuizado de forma pejorativa. Ao contrário, veio ao encontro da leitura<br />

hegemônica que a intelectualidade brasileira fazia do povo <strong>brasileiro</strong>, como sujeito governado<br />

pelo coração e pelas emoções, nos termos do homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda.<br />

Se há na tese de Sérgio Buarque uma crítica que se refere à resistência do <strong>brasileiro</strong> às<br />

formalidades e burocracias, há também a constatação de uma singularidade, uma<br />

personalidade do <strong>brasileiro</strong>, algo que o destaca como povo-nação. Logo no início do filme<br />

quando os personagens americanos rumam de navio para o Brasil, uma música é cantada<br />

como que explicando o que lhes aguarda em seu destino de férias na cidade do Rio de Janeiro:<br />

(Fala o primo americano do BR):<br />

Se você precisar tirar férias<br />

O Brasil é para onde você deve ir<br />

Você não entende o que eles dizem<br />

193 As armas e os barões. Almirante, Lamartine Babo, 1936. p5<br />

194 História… do Brasil… Almirante – Lamartine Babo, 1934. p4<br />

111


Você não consegue ler nenhuma placa<br />

Mas você não precisa saber a língua<br />

Com a lua no céu e uma garota em seus braços<br />

E aquele olhar no rosto dela<br />

Você não entende nada do que ela diz<br />

Você precisa de um intérprete<br />

Mas você não precisa saber a língua<br />

Se você não quiser dizer adeus 195<br />

112<br />

SD:<br />

Se a natureza já não era mais nossa inimiga, nem a cordialidade um empecilho ao<br />

desenvolvimento do país, tornar-se-ia necessário reelaborar o mito de origem de maneira a<br />

incorporar mestiçagem e natureza ao progresso. O mito de origem é reeditado de forma<br />

explicativa na canção Canta Brasil: a incompletude triste das vozes de índios, negros e<br />

brancos, é substituída pelas “preces da sertaneja” miscigenada que habita o interior do país.<br />

Isto é, o caminho para resolver os males da nação passa pelo reconhecimento e incorporação<br />

desse país distante, de pequenos lugarejos em comunhão com a natureza generosa: onde há<br />

“selvas e rojão”. O efeito final da união das três raças tristes, que evocam o “pranto”, com a<br />

natureza pródiga de um país continental caminhando rumo ao progresso, provoca a explosão<br />

da voz do samba, que de forma imperativa, ordena em euforia: “Canta, Brasil!”. A tristeza<br />

original das três raças separadas resolve-se na alegria do encontro da nação com a natureza.<br />

BR:<br />

SD:<br />

As selvas te deram na noite ritmos bárbaros<br />

Os negros trouxeram de longe reservas de pranto<br />

Os brancos falaram de amores em suas canções<br />

E dessa mistura de vozes nasceu o teu pranto...<br />

Mas agora o teu cantar meu Brasil quero escutar<br />

Nas preces da sertaneja, nas ondas do rio-mar.<br />

Oh, esse rio turbilhão, entre selvas e rojão,<br />

Continente a caminhar, no céu, no mar, na terra, canta Brasil! 196<br />

Mas me digam: toda essa conversa de natureza, de mata, de interiores e sertanejas não deveria<br />

chamar a atenção do Contente Magoado? Oh, CM, Porque estás tão pouco falante? Que tal<br />

entrares na conversa?<br />

195 Suppose you need a vacation/ Brazil is the place you should be/ So you can’t understand what they are<br />

saying/ You can’t read a sight that you see/ But you don’t have to know the language/ With the moon in the sky/<br />

And a girl in your arms/ and a look in your eyes/ You can’t understand what she is saying/ You need a<br />

interpreter’s skill/ But you don’t have to know the language/ If you don’t wanna say good-bye (FREIRE-<br />

MEDEIROS, 2005, p. 27, 28). A letra de “You dont have to Know the language” não poderia ser mais explícita<br />

ao reforçar a idéia de que, em locais exóticos como o Rio, a experiência sensual (no sentido literal do<br />

conhecimento através dos sentidos) cumpre um papel tão absoluto que a comunicação verbal pode ser suspensa<br />

(FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 27, 28).<br />

196 Canta, Brasil! David Nasser e Alcir P. Vermelho, 1941.


CM:<br />

SD:<br />

Serra da Boa Esperança, esperança que encerra<br />

No coração do Brasil um punhado de terra<br />

No coração de quem vai, no coração de quem vem<br />

Serra da Boa Esperança meu último bem<br />

Parto levando saudades, saudades deixando<br />

Murchas caídas na serra lá perto de Deus<br />

Oh minha serra eis a hora do adeus vou me embora<br />

Deixo a luz do olhar no teu luar, adeus 197<br />

Vai Azulão, Azulão companheiro vai<br />

Vai ver minha ingrata<br />

Diz que sem ela o sertão não é mais sertão<br />

Ah, voa, Azulão, Azulão, companheiro vai... 198<br />

Automóvel lá nem se sabe se é homem ou se é mulher<br />

Quem é rico anda em burrico quem é pobre anda a pé. 199<br />

Lá onde muito chove não tem automóvel<br />

E eu vivo melhor lá no riacho sereno<br />

tem peixe pequeno que dá no meu anzol 200<br />

Muito bem, CM! Considerando as elegias pastorais na fala de CM acima, assumimos, na<br />

perspectiva do jogo, que nem tudo é explosão cívica, festa ufana, naquele reencontro do<br />

<strong>brasileiro</strong> com a natureza. A mágoa da perda, natureza perdida, lugar perdido, tradição<br />

contaminada, êxodo, o retorno impossível ao espaço/tempo em que as coisas foram deixadas,<br />

o chão sob os pés movendo-se à força da modernidade, o rádio, o automóvel inscrevem-se<br />

como rasuras no discurso que inventa o Brasil do progresso em harmonia com a natureza<br />

exuberante.<br />

CM:<br />

Peguei um Ita no Norte e fui pro Rio morar<br />

Adeus meu pai minha mãe adeus Belém do Pará<br />

Vendi uns troços que eu tinha o resto dei pra guardar.<br />

Talvez eu volte pro ano. Talvez eu fique por lá<br />

Ai, ai, adeus, adeus Belém do Pará. 201<br />

Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia<br />

Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia<br />

"Bem, não vá deixar a sua mãe aflita<br />

197 Serra da boa esperança. (Int.) Francisco Alves, (Comp.) Lamartine Babo, 1937.<br />

198 Azulão. Jayme Ovalle, Manuel Bandeira, 1933.<br />

199 Sertão do Canindé. Luis Gonzaga, H. Teixeira, 1951. p5<br />

200 Peixe piranha. Nenete e Dorinho, 1960<br />

201 Peguei um Ita no Norte. Dorival Caymmi, 1941.<br />

113


SD:<br />

A gente faz o que o coração dita<br />

Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão"<br />

Ai, se eu escutasse hoje não sofria<br />

Ai, esta saudade dentro do meu peito<br />

Ai, se ter saudade é ter algum defeito<br />

Eu pelo menos, mereço o direito<br />

De ter alguém com quem eu possa me confessar 202<br />

Se aqui se pede um beijo, lá se diz me dá um cheiro.<br />

Lá se casa por amor e aqui pelo dinheiro.<br />

Não traga mulher pro Rio você vai ficar maluco<br />

Pois é o mesmo que levar melado pra Pernambuco. 203<br />

Felicidade foi se embora<br />

E a saudade no meu peito ainda mora<br />

E é por isso que eu gosto lá de fora<br />

Porque sei que a falsidade não vigora<br />

A minha casa fica lá detrás do mundo<br />

Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar<br />

O pensamento parece uma coisa à toa<br />

Mas, como é que a gente voa.<br />

Quando começa a cantar<br />

Na minha casa tem um cavalo tordilho<br />

que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem<br />

E quando pego meu cavalo e encilho<br />

Sou pior que limpa trilho e corro na frente do trem 204<br />

E a saudade da minha terra tornou-se um hino na voz do meu povo<br />

Porque quem deixou sua terra querida embora alcançando sucessos na vida<br />

Não há quem não queira revê-la de novo 205<br />

As relações de reprodução, trabalho, troca são transformadas a partir dos signos da urbanidade<br />

e da modernidade. Rural reconstruído como eco, discurso de contraponto que articula<br />

respostas à cidade. O campo contaminado pela modernidade é reinscrito pelo signo da perda,<br />

da saudade, da ausência, afirma-se pelo outro, pela negação do outro, experimentando,<br />

todavia, a contaminação, a umidade da máquina, do óleo, da lógica urbana que o redime, que<br />

o resgata, porém, sob a condição periférica. O Magoado, parte constituinte de CM, também se<br />

justifica. Responde. Resiste a essa condição. Finca o pé em seu quinhão para dizer da<br />

“qualidade de vida” no campo, do contato “saudável” com a natureza, das “tecnologias”<br />

agrícolas, do “progresso”, da “abundância” e “facilidades” da vida rural, da “tranqüilidade e<br />

da segurança” que não se tem na cidade, sem perceber o quanto já fala pela fala do outro.<br />

202 Saudade da Bahia, Dorival Caymmi, 1957.<br />

203 É pra rir ou não é. Luiz Gonzaga, Carlos Barroso, 1946. Increve o Estado de Pernambuco como<br />

um dos maiores produtores de cana de açúcar do país.<br />

204 Felicidade, Lupcínio Rodrigues, 1947.<br />

205 Gente da minha terra. Belmonte e Amarai, 1966.<br />

114


CM:<br />

SD:<br />

No Rancho Fundo<br />

Bem pra lá do fim do mundo<br />

Onde a dor e a saudade<br />

Contam coisas da cidade...<br />

Porque o moreno vive louco de saudade<br />

Só por causa do veneno das mulheres da cidade 206<br />

Minha vida é andar por esse país<br />

Pra ver se um dia descanso feliz<br />

Guardando as recordações<br />

Das terras por onde passei<br />

Andando pelos sertões<br />

E dos amigos que lá deixei.<br />

Chuva e sol, poeira e carvão<br />

Longe de casa sigo o roteiro<br />

Mais uma estação e “alegria” no coração.<br />

Mar e terra Inverno e verão<br />

Mostra o sorriso Mostra a alegria<br />

Mas eu mesmo não e a “saudade” no coração 207<br />

Da “tristeza” do meu carro tirava “alegria”<br />

Pois só vivia cantando com meu carro que gemia 208 .<br />

Mas, CM também é Contente por que vai à busca do novo, esperança de melhorar de vida na<br />

cidade, esperança de um retorno idealizado ao lugar de origem, esperança que o acompanha.<br />

Ou, também é Contente por “não morar na cidade”, por ser de comitiva, tropeiro, tangerino,<br />

por cruzar veredas sem fim, por caminhar estradas que cruzam sertões e tangenciam as<br />

periferias urbanas sem cair em suas armadilhas. Contentamento expresso na resistência da<br />

tradição contra os valores urbano/modernos.<br />

CM:<br />

Não podemos entregar pros homens<br />

de jeito nenhum amigo companheiro<br />

Não ta morto quem luta e quem peleja.<br />

Pois lutar é a marca do campeiro 209 .<br />

Uma chamarra, uma fogueira, uma chinoca uma chaleira<br />

Uma saudade um mate amargo<br />

E a peonada repassando o trago<br />

206 Rancho Fundo. Ary Barroso, Lamartine Babo, 1931.<br />

207 A vida do viajante. Luiz Gonzaga, Hervê Cordovil, 1953.<br />

208 Deixei de ser carreiro. Rolando Boldrin.<br />

209 Não podemos entregar pros homens. Leopoldo Rassier, 1980. (Folclore Gaúcho)<br />

115


SD:<br />

Noite cheirando à querência<br />

Nas tertúlias do meu pago 210<br />

Mando daqui das bandas do rural, lembranças,<br />

Vibrações da nova hora pra você que não ta aqui.<br />

A rádio agora está tocando Rancho Fundo<br />

Somos só eu e o mundo e tudo começa aqui 211<br />

Perda e falta seriam, dentro de uma perspectiva cânone e hegemônica aquilo – signo, alegoria,<br />

imagem – que discursivamente localizou a região, o povo e a cultura rural no mapa nacional<br />

em relação ao urbano/moderno do contexto destacado. Os signos da perda e da falta<br />

apoiaram-se, primeiramente, no sentido de que o processo de construção do discurso<br />

hegemônico da nacionalidade, principalmente, em sua elaboração no período referente à<br />

Primeira República, foi efetuado segundo perspectivas de ordem e progresso. Ideais<br />

iluministas de inspiração européia, a partir da conexão entre as cidades do Sudeste,<br />

basicamente, Rio de Janeiro e São Paulo.<br />

BR:<br />

Carioquíssima, animadíssima, renovadíssima, nacionalíssima<br />

Amaduríssima, valiosíssima, assanhadíssima, luxuosíssima<br />

Oh, que dama divinal ela se chama senhorita carnaval 212<br />

Cutuca Maroca com jeitinho cutuca a gente<br />

Machuca provoca a fuzarca já me pôs doente<br />

È moda na roda namoricos que não sejam pra casar<br />

Machuca meu amor cutuca, por favor, que eu quero sonhar 213<br />

Esta cidade maravilhosa foi Deus quem fez assim tão formosa<br />

Se tem pequenas no meu cordão a gente brinca e aproveita a ocasião<br />

Assim como essas pequenas que vivem sempre passeando<br />

E vão todo dia ao cinema e voltam pra casa chorando 214<br />

O modelo de orientação civilizatória buscava produzir um efeito de progresso e ordem, sob<br />

modernidade conservadora, a partir de uma nova ética urbana em conflito com valores mais<br />

tradicionais, preferencialmente localizados nas periferias rurais. Nesse sentido, na perspectiva<br />

do Estado, o rural seria se não excluído, no mínimo preterido territorialmente em relação à<br />

cidade, como região eleita e apta a produzir signos civilizatórios e progressistas. Como se a<br />

210 Tertúlia. Leonardo, 1987. (Folclore Gaúcho)<br />

211 Raízes. Renato Teixeira. 1979.<br />

212 Senhorita carnaval. Lamartine Babo, 1935.<br />

213 Cutuca Maroca. Silvio Caldas – Demerval Guimarães, Lamartine Babo, 1930.<br />

214 Esta cidade é um número. Miguel Guarnieri, 1937.<br />

116


uralidade, a exemplo de Portugal e Espanha, perdesse o fio da história e vivesse das glórias<br />

de um passado medievo, tradicional, há muito derrotado pelas luzes da modernidade e da<br />

ciência oitocentista. O discurso rural assume a condição da perda, não só no sentido material e<br />

econômico, mas, também, no sentido da exclusão e auto-exclusão participativa da construção<br />

do discurso cânone da identidade nacional que se reinventava moderna e urbana.<br />

CM:<br />

Já faz três noites que pro norte relampeia<br />

A asa branca ouvindo o ronco do trovão<br />

Já bateu asas e voltou pro meu sertão<br />

Ai, ai eu vou embora<br />

Vou cuidar da plantação<br />

A seca fez desertar da minha terra<br />

Mas felizmente Deus agora se lembrou<br />

De mandar chuva pra esse sertão sofredor<br />

Sertão de mulher séria de homem trabalhador 215<br />

117<br />

SD:<br />

Segundo Albuquerque Jr, essa característica sígnica da perda seria exclusiva do Nordeste.<br />

Para o autor, o Nordeste seria excluído, excluindo-se. Seria preterido, preterindo-se. A<br />

construção da perda e da falta dar-se-ía como fenômeno de mão dupla. Em outras palavras: se<br />

a construção dos signos nordestinos pouco participou da construção do discurso hegemônico<br />

da identidade nacional, no que diz respeito à própria construção dos signos nordestinos<br />

(instituída sob a perspectiva da perda), o nordestino seria em parceria com seu compatriota do<br />

sul, co-autor, inclusive por aferir nessa construção da perda, vantagens materiais –<br />

financiamentos, subsídios, empréstimos – e identitárias – a força, a capacidade de adaptação,<br />

a macheza, a lealdade, a tradição moral e familiar, a autenticidade cultural, a religiosidade,<br />

etc. Porém, na nossa perspectiva, essas mesmas características apontadas como específicas do<br />

sertanejo nordestino, poderiam ser ampliadas para todo o território sertanejo. O que<br />

compreende desde o sertão euclidiano, expresso como o Nordeste propriamente dito (Bahia,<br />

Alagoas, Sergipe, Paraíba, Ceará e Pernambuco) e rosiano, espalhado por entre zonas rurais<br />

das regiões Nordeste, Centro-Oeste e do Estado de Minas Gerais, incluindo os interiores do<br />

Estado paulista e da Região Sul, os pampas, as zonas de comitiva que extrapolariam até<br />

mesmo os limites nacionais chegando às fronteiras do Paraguai, Uruguai e Argentina.<br />

CM:<br />

Conheci no Mato Grosso a flor<br />

215 A volta da asa branca. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1950.


SD:<br />

mais linda do Paraguai<br />

Fiquei muito apaixonado<br />

Do pensamento ela não sai<br />

Na hora da despedida<br />

A minha querida ficou no cais<br />

Na triste separação meu coração já sofreu demais 216<br />

Índia a tua imagem<br />

Sempre comigo vai<br />

Dentro do meu coração<br />

Flor do meu Paraguai. 217<br />

Lá vai uma chalana<br />

Bem longe se vai<br />

Navegando no remanso<br />

Do rio Paraguai<br />

Oh! Chalana sem querer<br />

Tu aumentas minha dor<br />

Nestas águas tão serenas<br />

Vai levando meu amor 218<br />

Orelhano, <strong>brasileiro</strong>, argentino<br />

Castelhano, campesino, gaúchos de nascimento<br />

São tranças de um mesmo tempo, sustentando um ideal<br />

Sem sentir a marca quente, nem o peso do buçal<br />

Orelhano, ao paisano de tua estampa<br />

Não se pede passaporte, nestes caminhos do pampa 219<br />

Sob a perspectiva do CM o rural já não caberia na Casagrande, nos pampas, no sertão,<br />

comitivas, açoites, vaquejadas, no pastoreio, no chitãozinho, no rincão, na flor do Paraguai, na<br />

fronteira, no melaço, no “mundo véio”, no curtume, na roça, no celeiro, no arado, na foice, no<br />

engenho, na usina, no açude, no carro de boi e boiada, nas barragens, nos desmandos de<br />

coronéis, na força do cangaço contra a polícia e o exército, na lealdade dos jagunços, no<br />

nepotismo de políticos-proprietários de terras e votos, nas ligas, nas volantes, nas colunas, nas<br />

botinas e carabinas, farroupilhas, Contestado, Doze pares de França, sebastianismo, nos<br />

cordéis e repentes de inspiração medieva, nos reisados, nas folias, fandangos, violas, rabecas,<br />

sanfonas e gaitas, cocos, guerreiros, jaraguás, bumbas, baianadas, marujadas, maracatus,<br />

congados, tambores e cirandas, nas rendas, no couro, no poncho, na chimarra, no chicote,<br />

fuxicos, chitas, bordados, palhas, taipas e palafitas, nos acarajés e abarás, no mate quente e no<br />

pequi, nas romarias, nas rezas, benzedeiras, carpideiras e padres-santos, no berimbau, nas<br />

216 Porto do Adeus. Mococa, Moraçy, s.d.<br />

217 Índia. M. Ortiz Guerreiro, J. Asuncion Flores, 1950.<br />

218 Chalana. Mario Zan, Arlindo Pinto, 1954.<br />

219 Orelhano, Mário Eléu Silva. s.d. (Folclore Gaúcho)<br />

118


edes, na fogueira, na saudade, no caboclo, caipira, sertanejo, tropeiro, campeiro, nas<br />

jangadas, nos santinhos de barro, nas carrancas, na casa de farinha, no jumento, no pau-de-<br />

arara, na Itapemirim. Infinito rizoma de imagens que deslizam sem controle, sem rumo, sem<br />

esgotamento, sem origem. Mais que isso, assumimos (SD e CM) que o rural na perspectiva de<br />

CM é tudo isso e ainda mais. Para muito além da tradição, nada ou muito pouco lhe seria<br />

indiferente 220 .<br />

CM:<br />

SD:<br />

Nós estamos cantando, sorrindo prá não chorar.<br />

Nessa gaiola de ouro nós vivemos a cantar<br />

Nossa rádio é uma gaiola e o estúdio é um alçapão<br />

Onde nós canta sereno na mais fina educação<br />

O sertão é uma floresta São Paulo é o nosso ninho<br />

Nosso programa é um jardim onde cantam os passarinhos 221<br />

Dei-me o direito de guardar para esse momento do papo uma questão estrutural referente ao<br />

CM, considerando que para o autor/leitor/ouvinte (eu, orientador, banca e demais leitores) a<br />

alegoria CM já expressa contornos menos nebulosos. Essa questão diz respeito à pergunta:<br />

para quem, preferencialmente, o CM fala? Não descartamos a possibilidade do discurso do<br />

tipo CM responder a si mesmo (diálogo interno entre discursos do tipo CM). Porém,<br />

propomos que a pulsão doloprazerosa do discurso CM também se orienta em direção aos seus<br />

alteres internos do campo da música, RF e BR, localizados de maneira geral na cidade. E, por<br />

isso mesmo, contaminada pelo contexto urbano como já explicitado anteriormente.<br />

CM:<br />

No Rio está tudo mudado, nas noites de São João.<br />

Em vez de polca e rancheira o povo só dança e só pede o baião<br />

119<br />

220 Propomos que, diferente do movimento expresso no deslizamento dos discursos do tipo RF e BR<br />

que cedem centralidade ao discurso SD Revolucionário nos anos sessenta, o Contente Magoado<br />

produziria nas décadas seguintes uma aproximação/contaminação cada vez maior entre signos da<br />

ruralidade e da urbanidade. O rock forrozado e o forró universitário de migrantes e descendentes<br />

nordestinos em São Paulo e Rio de Janeiro, o reggae cirandado maranhense, a black music<br />

maracatuzada do manguebeat pernambucano, o axé-music baiano, o sertanejo country e romântico<br />

das duplas milionárias de Minas, Centro-oeste e interior paulista, o rock rural sulista e mineiro, o outro<br />

sertanejo sofisticadíssimo de modos renascentistas e eruditos desenvolvido em conservatórios e<br />

escolas de música de norte a sul do país. Ao rural contaminado pelo urbano o que é dito de fora (?) já<br />

não lhe seria indiferente nem estranho, seja pela facilidade de acesso, seja pelo barateamento das<br />

tecnologias de produção e difusão, o rural estaria <strong>deslocando</strong> um movimento que o localizou e fixou<br />

como território do pitoresco, do extraordinário, do exótico, do diferente, do atraso, da periferia,<br />

redirecionando esse movimento, não exatamente no sentido de abandonar tais caracteres, mas,<br />

incorporando o outro para si, aquele a este.<br />

221 Gaiola de Ouro. Canário, Passarinho, s.d.


SD:<br />

No meio da rua ainda é balão ainda é fogueira (...)<br />

É a dança da moda, pois dentro da roda só pedem baião 222 .<br />

Vim do Norte eu queimo em brasa<br />

Fogo e sonho do sertão e entrei na Guanabara com tremor e emoção<br />

Era um mundo todo novo diferente meu irmão<br />

Mas o Rio abriu meu fole e me apertou em suas mãos<br />

Eh Rio de Janeiro, do meu São Sebastião<br />

Pare o samba três minutos pra eu cantar o meu baião<br />

Ai meu São Sebastião te ofereço este baião<br />

No começo eu tive medo muito medo meu irmão<br />

Mas olhando o Corcovado assosseguei o coração<br />

Se hoje guardo uma saudade é enorme a gratidão<br />

E por isso Rio Amigo, te ofereço esse baião 223<br />

Afirmamos isso, considerando ser oportuno pensar para quem e porque o CM exalta o viver<br />

no campo, se não para atingir um interlocutor que ali não está. Afinal, haveria pouca serventia<br />

em ufanar-se se não para estabelecer a fronteira que distingue o que deve ser alvo de<br />

ufanismo, a beleza, pureza e riqueza do rural, e o que desperta sentimento de opróbrio, a<br />

maldade, falsidade, impessoalidade e mesquinharia urbana.<br />

CM:<br />

SD:<br />

Casinha de paia lá no ribeirão<br />

Uma linda cabocla e um cavalo bão<br />

Som de uma viola alegra a solidão<br />

Esse é o Brasil caboclo esse é o meu sertão 224<br />

Eu não troco a minha vida de pescador piraquara.<br />

A vida da cidade com a minha não se compara 225<br />

Contente Magoado e um conformado Barão da Ralé querem propor uma parceria em coro.<br />

CM/BR:<br />

Mato Grosso quis gritá, mas em cima eu falei<br />

Os home tá com a razão, nóis arranja outro lugar.<br />

Só se conformemo, quando o Joca falou<br />

"Deus dá o frio conforme o cobertô"<br />

E hoje nóis pega as paia na grama do jardim.<br />

E pra isquece nóis cantemo assim<br />

Saudosa maloca, maloca querida<br />

Dim dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida 226<br />

222 A dança da moda. Luiz Gonzaga, Zé Dantas, 1950.<br />

223 Baião de São Sebastião. Luis Gonzaga, 1973.<br />

224 Brasil caboclo. Tunico e Tinoco, 1964.<br />

225 Pescador caprichoso. Cacique e Pajé, s.d.<br />

226 Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa, 1951).<br />

120


SD:<br />

O RF fez sinal para os três cantarem juntos. Acho eu, que RF quer brincar ou por simpatia à<br />

idéia da parceria ou pelo gosto da batida de samba de roda que a canção inscreve.<br />

CM/BR/RF:<br />

SD:<br />

Quem vê admira e até suspira<br />

Uma viola no samba que há muito tempo é do catira<br />

E agora nesse samba ela chora pra valer<br />

Se você não acredita chegue perto e venha ver<br />

Viola nasceu na roça, na cidade fez morada.<br />

Não era bem conhecida, mas, desceu na disparada.<br />

Na evolução do tempo ela ficou afamada.<br />

E agora nesse samba está garantida a parada 227<br />

O dono da casa parou a orquestra e veio falar comigo em pleno salão<br />

Dizendo assim olha aqui pau de arara se a aula não for cara eu quero a lição<br />

Peguei a escura e fiz um traçado dancei um trocado numa perna só<br />

Falando assim parece brincadeira num instante a gafieira virou um forró 228 .<br />

Considerando os improvisos dos encontros acima, propomos uma aproximação entre RF, BR<br />

e CM. Aproximação que se efetua na semelhança de resposta à construção bi-polar que<br />

distingue de um lado o território da saudade referente à favela e ao rural e do outro o território<br />

do moderno referente ao urbano. Essa construção da saudade como valorização dos termos<br />

que expressam favela e rural mitigaria dores e reforçaria laços aos discursos que se inscrevem<br />

tanto pelo abandono do lugar inscrito como origem quanto pela sensação de ser abandonado<br />

pela suposta origem, isto é, ser anacronizado pela falência, extinção ou transformação de<br />

tradições que orientavam os códigos de identidade local. Para alguns autores, esse sentimento<br />

de periferia referente ao território rural parece expressar-se de forma mais nítida na Região<br />

Nordeste em que um sentido unificado de nordestinidade é reforçado sobremaneira.<br />

CM:<br />

227 Viola no samba. Cacique, Pajé, s.d.<br />

228 Forró na gafieira. Jackson do Pandeiro, 1959.<br />

121<br />

O Nordeste que reconhecemos, hoje, é em grande medida, uma invenção<br />

musical, ou, no mínimo, uma reinvenção ampliada, a partir da base original,<br />

do que se chamou Nordeste Oriental [Ceará, Rio grande do Norte, Paraíba,<br />

Pernambuco, Alagoas]. (...) Seus grandes demiurgos são Luiz Gonzaga,<br />

Humberto Teixeira e Zé Dantas, ancorados numa tradição <strong>popular</strong> ampla e<br />

profunda. (...) “Asa Branca” passou a ser a certidão de nascimento desse<br />

Nordeste unificado (OLIVEIRA, 2004, p. 128).


SD:<br />

Quando olhei a terra ardendo qual fogueira de São João<br />

Eu perguntei a Deus do céu, ai, por que tamanha judiação<br />

Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação<br />

Por falta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão<br />

Até mesmo a asa branca bateu asas do sertão<br />

Então eu disse adeus Rosinha, guarda contigo meu coração<br />

Hoje longe muitas léguas, numa triste solidão<br />

Espero a chuva cair de novo para eu voltar pro meu sertão<br />

Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação<br />

Eu te asseguro não chore não, viu, que eu voltarei, viu, meu coração 229 .<br />

Porém, como já experimentado pelo leitor/ouvinte, preferimos ampliar esse sentido de exílio,<br />

deslocamento e transformação a toda extensão do território rural contaminado pela umidade<br />

urbana. A música rural, expressando-se na capital pela voz de CM, reforça esse sentido de<br />

unificação com a suposta origem, seja para o sertanejo, seja para o caipira, seja para o<br />

campeiro. Esse sentimento, veremos adiante, não se distingue muito daquele que os discursos<br />

BR e RF expressam ao moverem-se entre os pólos cidade formal e favela. Consciente do risco<br />

de cair numa fenomenologia do acontecimento propõe-se, ainda assim, o sentimento de<br />

esgarçamento do laço comunitário experimentado na cidade para os da favela ou do rural.<br />

Esse sentimento orientaria o desejo de retorno ao lugar de origem do discurso <strong>cancioneiro</strong> que<br />

“inventa” esse lugar como Arcádia, como comunidade de pessoas oposta à impessoalidade da<br />

multidão na cidade. Assim, seja o discurso que desce a favela para cantar a viração diária na<br />

cidade formal, seja o discurso que migra a partir do rural, ambos reforçariam laços de origem.<br />

CM:<br />

SD:<br />

Quando a lama virou pedra<br />

E Mandacaru secou<br />

Quando arribação de sede<br />

Bateu asa e voou<br />

Foi aí que eu vim me embora<br />

Carregando a minha dor<br />

Hoje eu mando um abraço<br />

Pra ti pequenina<br />

Paraíba masculina,<br />

Muié macho, sim sinhô 230 .<br />

Não se pretende evitar a dor. A dor constitui o contentamento. E, sob o estigma, a marca, o<br />

phámakon (remédio e veneno) derridiano, aproximam-se os discursos CM, RF e BR que<br />

expressam lugar estabelecido entre (como distinção e confusão) o abandono (mágoa) e a<br />

229 Asa branca. Luiz Gonzaga, 1947. p5<br />

230 Paraíba. Luís Gonzaga, Humberto Teixeira, 1947.<br />

122


elegia (contentamento). A saudade, como sentimento de perda, retroalimenta a esperança do<br />

retorno estabelecido no entre do possível e do impossível lugar de origem. As fronteiras que<br />

distinguiam CM, BR e RF dissolvem-se numa miríade de canções que falam da mesma dor<br />

mitigada, do mesmo contentamento doído, da mesma pulsão doloprazeroza que, aos ouvidos e<br />

boca de Seu Doutor só (me/nos) restaria somar coro e citar algumas dessas falas de favela,<br />

subúrbio e sertão: Despedida de Mangueira 231 , 1939, “Em Mangueira meu coração ficou”.<br />

Vou voltar para Mangueira 232 , 1930, “fiz um juramento para voltar para o meu bairro<br />

preferido”. Exaltação a Mangueira 233 , 1955, “Mangueira teu cenário é uma beleza que a<br />

natureza criou, o morro com seus barracões de zinco quando amanhece que esplendor, todo<br />

mundo te conhece ao longe pelo som de seus tamborins e o rufar de seu tambor”. Morro de<br />

São Carlos 234 , 1933, fala da saudade de coisas prosaicas, “um gato, uma bananeira, um<br />

cigarro e um violão, chuva cantando no zinco e sonhos no coração”. Barracão de Zinco 235 ,<br />

1939, fala de um lugar em que o sujeito guarda coisas de apreço, como um museu sentimental<br />

e pessoal, “tenho no morro um barracão de zinco que é de minha estimação e dentro dele tem<br />

um segredinho, um retrato de meu primeiro amor e um esqueleto de uma viola de pinho”.<br />

Favela querida 236 , 1941, “Se eu for pra outro lugar na hora da despedida eu bem sei que vou<br />

chorar”. Voltei Favela 237 , 1940, “minha inspiração eu não pude suportar esta inspiração,<br />

voltei para rever a pequenina capela”. Saudosa Favela 238 , 1940, “Oi favela abençoado torrão,<br />

és a minha adoração, és os sonhos meus és minha inspiração, moras no meu coração... és um<br />

lindo recanto tradicional”. Sucursal do céu 239 , 1937, fala da cidade como “uma ilusão que<br />

logo terminou... volto pro morro outra vez que no moro não existe hipocrisia”. Subúrbio<br />

triste, 1953, “subúrbio triste quando te vejo me sinto criança, parece que o tempo passou só<br />

para mim”. Trem da Alegria 240 , 1943, “Lá vem o trem da alegria vamos todos embarcar,<br />

vamos lá pra Freguesia porque lá é bom lugar”. Minha cabrocha 241 , 1930, “Para fazer meu<br />

samba não tirei diploma cabrocha bonita que entra na roda tem aroma, quando vem da Igreja<br />

lá da Freguesia traz no olhar feitiçaria, vou ajuntar um dinheirinho para fazer uma casa lá no<br />

231 Despedida em Mangueira. (I) Francisco Alves – (C) Aldo Cabral, B. Lacerda, 1939 p0<br />

232 Vou voltar pra Mangueira. Vicente, 1930.<br />

233 Exaltação a Mangueira. (I) Jamelão – (C) Aloísio da Costa, Eneas da Silva, 1955 p0<br />

234 No morro de São Carlos. (I) Moreira da Silva – (C) H. Cordovil, Orestes Barbosa, 1933.<br />

235 Barracão de zinco. José Gonçalves, 1938.<br />

236 Favela querida. (I) Orlando Silva – (C) Cristóvão de Alencar, Silvio Pinto, 1941. p4<br />

237 Voltei Favela. (I) Carlos Galhardo – (C) Augusto Garcez, Ciro de Souza, 1940. p4<br />

238 Saudosa Favela. Araci de Almeida. Heitor dos Prazeres, 1940. p4<br />

239 Sucursal do céu. Carmem Miranda – Benedito Lacerda, Darci de Oliveira, 1937. t2<br />

240 Trem da Alegria. Antônio Almeida, Cristóvão de Alencar, 1943. p0<br />

241 Minha cabrocha. Braguinha, L. Babo, 1930.<br />

123


Campinho”. E o samba continua 242 , 1934, “Em Deodoro mesmo na rua onde eu moro tem<br />

um samba enfezado de pessoal matriculado e a lua espia do céu intrigada o passo da batucada<br />

em Deodoro é assim”. Suburbana 243 , 1937, “Zona Norte da cidade residência da saudade<br />

onde nasceu o teu cantor , teu cantor comovido que sonha com teu vestido e morre por teu<br />

amor”. Feitiço da Vila 244 , 1934, “Quem nasce lá na Vila nem sequer vacila em abraçar o<br />

samba que faz dançar os galhos do arvoredo e faz a lua nascer mais cedo, Lá em Vila Isabel<br />

quem é bacharel não tem medo de bamba, São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel<br />

dá samba”. Vila Isabel 245 , 1943, “bairro do samba lugar tradicional berço de gente bamba,<br />

independente, cidade tranqüila, sempre formaste na primeira fila eis aí a minha homenagem, ò<br />

Vila”. Madureira 246 , 1931, “todo samba que é feito em Madureira tem a zoada um que de<br />

feiticeira e até parece que o samba de lá traz a influencia daquele lugar”. Madureira<br />

chorou 247 “quando a voz do destino obedecendo ao Divino a sua estrela chamou, gente<br />

modesta gente boa do subúrbio que só comete distúrbio se alguém lhe menosprezar”. Sou de<br />

Madureira 248 , 1947, “Madureira agora é a capital do subúrbio da central, cabrocha faceira<br />

Madureira tem e o samba agora vem de lá também”. Festa da Penha 249 , s.d., “Levarei<br />

dinheiro pra comprar velas e ceras, quero levar flores para a santa padroeira só não subirei a<br />

escadaria ajoelhado pra não estragar o terno que foi emprestado”. São Cristóvão 250 , 1947,<br />

“Em São Cristóvão eu nasci e me criei de São Cristóvão eu nunca sairei”. Na Pavuna 251 ,<br />

1930, “Tem um samba que só dá gente reiúna, o malandro que só canta com harmonia,<br />

quando está metido em samba de arrelia, faz batuque assim, no seu tamborim, com o seu time,<br />

enfezando o batedor. E grita a negrada: Vem pra batucada que de samba, na Pavuna, tem<br />

doutor”. Eu vou comprar 252 , 1933, “Se Deus quiser eu vou comprar uma casinha em Bento<br />

Ribeiro pra você morar, e você mulher é que vai gostar da tranqüilidade que vai ficar em seu<br />

lar”. O samba do Ernesto 253 , 1955, “O Ernesto nos convidou prum samba, ele mora no Brás,<br />

nós fomos e não encontremos ninguém... você devia ter punhado um recado na porta”; Um<br />

242<br />

E o samba continua. Ary Barroso, Lamartine Babo, 1934. p4<br />

243<br />

Suburbana. Silvio Caldas, Orestes Barbosa, 1937. p4<br />

244<br />

Feitiço da Vila. (I) João Pétra de Barros – (C) Noel Rosa, Vadico, 1934. p0<br />

245<br />

Vila Isabel. Marçal, Bidê, 1943. p0<br />

246<br />

Madureira. Almirante – Homero Dornelas, 1931.<br />

247<br />

Madureira chorou. Joel de Almeida – Carvalhinho, Júlio Monteiro, 1957.<br />

248<br />

Sou de Madureira. Quatro ases e um coringa – Peter Pan, 1947.<br />

249<br />

Festa da Penha. Ari Cordovil – Cartola, s.d.<br />

250<br />

São Cristóvão. Moreira da Silva – Antenor Borges, S. Queima, 1947.<br />

251<br />

Na Pavuna. Almirante, Homero Dorneles, 1930,<br />

252<br />

Eu vou comprar. Moreira da Silva – Heitor dos Prazeres, 1933.<br />

253<br />

O samba do Ernesto. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1955.<br />

124


samba no Bexiga 254 , 1956, “No domingo nos fomos num samba no Bexiga na Rua Major, na<br />

casa do Nicola, a mesa não deu conta, saiu uma baita de uma briga era só pizza que avoava<br />

junto com as braxola... não fumo lá pra brigar, nós fumo lá prá comer”; Trem das 11 255 ,<br />

1955, “Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor mas não poder ser,<br />

moro em Jaçanã, se eu perder esse trem que sai agora as 11 horas, só amanhã de manhã”;<br />

“Sabiá 256 ”, 1951, fala da alma itinerante do nortista, “tu que andas pelo mundo, tu que sempre<br />

já voou”; “Própria 257 ”, 1951, “eu tenho que voltar, minha vida está todinha em Própria”;<br />

“Pau-de-arara 258 ”, 1952, fala da eminência do exílio, “só trazia a coragem e a cara viajando<br />

num pau de arara eu penei mas aqui cheguei”, “Adeus Rio de Janeiro 259 ”, 1950, fala do<br />

êxodo circular entre sertão e cidade, “eu vou me embora mas pro ano eu volto já”.<br />

CM/BR/RF:<br />

SD:<br />

Fui tropeiro e fui carreiro num Brasil que já crescia<br />

Cortando serra e baixada conheci a geografia<br />

As estradas do sertão foram minha academia<br />

Cismei de deixar o sertão eu troquei de moradia<br />

Estou morando em São Paulo terra da garoa fria<br />

Conheci uma paulista formada em filosofia<br />

Eu fiz um bom casamento um tesouro eu descobria<br />

Quando a viola não dava a paulista garantia<br />

Quando sai pelo mundo meu pai para mim dizia<br />

Meu filho vá devagar gato que caça não mia<br />

Meu burrão já está na sombra minha vida está macia<br />

Tem uma mina de ouro quem sabe fazer poesia 260<br />

O <strong>cancioneiro</strong>, atuando em sentido oposto, também não se furta a falar da miséria, do atraso,<br />

do isolamento, da carência e da distância do lugar de arqui-origem, origem inventada, como<br />

negatividades explícitas. Não se trata apenas do sertão edênico de São Saruê nem da<br />

favela/subúrbio como Arcádia. A percepção de estar fora, distante, excluído do mundo<br />

moderno pode ser construída também como opróbrio.<br />

BR:<br />

Se o doutor subir numa favela<br />

vai ver coisas de cortar o coração<br />

Barracos caídos crianças chorando<br />

pedindo um pedaço de pão<br />

254<br />

Um samba no Bexiga. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1956.<br />

255<br />

Trem das 11. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1955.<br />

256<br />

Sabiá. Luiz Gonzaga, Zé Dantas, 1951.<br />

257<br />

Propriá. Luis Gonzaga, 1951.<br />

258<br />

Pau de Arara. Luis Gonzaga, Guio de Moraes, 1952.<br />

259<br />

Adeus Rio de Janeiro. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1950.<br />

260<br />

Mina de Ouro. Dino Franco, Mouraí, 1972.<br />

125


CM:<br />

Que destino angustioso<br />

O drama da favela é doloroso<br />

Piedade senhor onipotente<br />

Seu Doutor tenha pena dessa gente 261<br />

Faço qualquer negócio com você cabrocha<br />

Tanto faz ser lá no Rocha ou Jacarepaguá<br />

Por um carinho teu eu vou até a Irajá 262<br />

Oh, comadre acabou a jirimum<br />

Bota água na canjica que chegou mais um<br />

Dá garapa e quentão pra essa gente beber<br />

Diz ao velho sanfoneiro que é pra não parar<br />

Pois enquanto a gente dança não pensa em comer 263 .<br />

126<br />

SD:<br />

Canções de desagravo ao lugar que se constrói em oposição à cidade moderna não se contam. Trem<br />

da Pavuna 264 , 1930, “Tem cuidado na virada com essa gente da Pavuna não queremos enrascada”. É<br />

de Bangu 265 , 1946, “aquela moça que é muito faladeira é de Bangu, aquele moço que só fala muita<br />

asneira é de Bangu, eu vejo que não dá sorte quem é de Bangu, ...quando alguém quiser entrar pra<br />

sambar, não pode ser de Bangu porque vem atrapalhar”. Sou feio e moro longe 266 , 1952, “quem é que<br />

vai me querer? Beleza não se fabrica, nem dinheiro cai do céu, nasci feio, nasci pobre e vivo de déu<br />

em déu”. Daqui se conclui que se o subúrbio é feio e pobre, por oposição, o centro, a cidade é bonita e<br />

rica. Lágrimas de barracão 267 , 1948, “eu passo a noite inteira tapando goteira no meu barracão, as<br />

telhas não tem beira, o teto é uma peneira ai meu Deus que judiação”. Marcha da Cantareira 268 ,<br />

1960, “Ta vendo como é que dói trabalhar em Madureira viajar na Cantareira e morar em Niterói, vou<br />

aprender a nadar, eu não quero me afogar”. Toureiro suburbano 269 , s.d., “O toureiro suburbano sai de<br />

casa todo ano madrugada meia luz, sua face está serena, mas caminha para a arena seu destino é Santa<br />

Cruz, no matadouro onde está o touro, vai o toureiro resolver sua missão, se fosse um touro no<br />

picadeiro, estava resolvida a questão, mas o toureiro está sem dinheiro e vai lutar com o touro no<br />

balcão, um pedaço de acém, não tem, um pedaço da pá, não há, a costela do boi, já foi, cadê o miúdo,<br />

foi tudo, cadê o miolo, deu bolo, a tourada é cruel o toureiro sente que vai entrar bem, apela para o<br />

golpe que é uma nota de cem, ganhou a parada levou a rabada, está terminada mais uma tourada, o<br />

toureiro continua até o golpe do filé, o toureiro suburbano que toureia todo ano, nesse dia terá o seu<br />

dia de Olé!”. Toureiro de Cascadura 270 , 1950, “sou um toureiro avacalhado, sou natural de<br />

261 Drama da favela. Milton de Oliveira, Mirabeau, s.d.<br />

262 Eu quero é rosetar. H. Lobo, Milton de Oliveira, s.d.<br />

263 Bota água na canjica. H. Lobo, M. de Oliveira, 1952.<br />

264 Trem da Pavuna. Casselli, 1930.<br />

265 É de Bangu. Carlos Armando, H. Sindô, 1946.<br />

266 Sou feio e moro longe. Mário Lago, 1952.<br />

267 Lágrimas de barracão. Roggieri, Osvaldo Cruz, 1948.<br />

268 Marcha da Cantareira. Gordurinha – Barbosa da Silva, Eloide Warthon, 1960.<br />

269 Toureiro Suburbano. Haroldo Barbosa, Luis Reis, 1962.<br />

270 Toureiro de Cascadura. (I) Oscarito – (C) Armando Cavalcanti, David Nasser, 1950.


Cascadura, se a tourada tem marmelada o chifre pega mas não fura, estou no gancho do açougueiro,<br />

estou na lista do bicheiro”.<br />

BR/CM:<br />

CM:<br />

SD:<br />

Bastião era meu filho, Dita era minha mulher,<br />

Que morava onde eu morava, no morro do Marapé,<br />

Mesmo num tendo dinheiro, nóis vivia tão feliz,<br />

Nisso chega um engenheiro, se vira pra nóis e diz,<br />

Vocês têm que se mudar porque, o morro vai desabar.<br />

Dita chorô, chorô, mais num se acovardô,<br />

Ela disse: Corrê, num corro, Onde é que nóis vai morá, Se num fô aqui no morro?<br />

Duas semana dispois, Eu saí pra trabalhá, Num sabendo, na vorta,<br />

O que eu ia encontrá: O barraco que tava lá em cima, Veio pará aqui no chão,<br />

E no meio dos destroço, Eu vi o paletó do Bastião...<br />

Fechei os óio pra num vê, Dispois saí a corrê,<br />

Só parei lá numa curva, Pra olha pra trás e dizê:<br />

Adeus Marapé, adeus Marapé, Que levô meu filho, E também minha mulhé,<br />

Adeus Marapé, adeus Marapé, Vô pra junto deles, Quando Deus quisé.... 271<br />

Tomei o trem em Dom Pedro saiu em toda carreira<br />

Chegou no Engenho de Dentro parou de qualquer maneira<br />

Na estação de Cascadura começou a fazer sujeira<br />

Levou mais de uma hora pra chegar em Madureira<br />

Na estação de Deodoro eu perdi minha caneta<br />

Em Ricardo de Albuquerque roubaram a minha maleta<br />

Vi a hora que eu morria sem chegar em Anchieta.<br />

Na estação de Olinda é que eu vi a coisa preta<br />

Na saída de Nilópolis eu suava pra chuchu<br />

Cheguei na estação do Boi cidade dos urubu<br />

Na cidade de Mesquita começou o sururu<br />

Pegaram uma briga feia foi até Nova Iguaçu<br />

Na estação de Morro Agudo roubaram a minha carteira<br />

E em Austim eu vi uma mulher de chuteira<br />

Tava indo pra Queimados pra mode de fazer a feira<br />

Mas errou a estação e foi pra Engenheiro Pedreira 272 .<br />

Por conseqüência, se o lugar de origem desperta sentimentos de opróbrio e tristeza, será a<br />

cidade, o centro, mais ainda o estrangeiro, centro do centro, Paris, que deve ter seu valor<br />

reconhecido no <strong>cancioneiro</strong>.<br />

BR:<br />

Eu não morro sem ver Paris é uma jura que há muito tempo eu fiz<br />

Paris, Paris, Paris minha gente eu quero ver o que todo mundo diz<br />

271 Adeus Marapé. Roggieri, O. Cruz, Dupla Ouro e Prata, 1948.<br />

272 Trem da Central. Garrancho e Graveto, s.d.<br />

127


SD:<br />

O americano é colossal inventou o telefone e a gilete<br />

Mas, o Frances é mais original inventando o perfume e a Susete<br />

Susete é a francesinha que faz qualquer um feliz<br />

Por isso minha gente eu não morro sem ver Paris 273<br />

Quem nesse mundo não quer la vie en rose<br />

La vie en rose sombra, água fresca, quelquer chose<br />

Uma casinha bem pertinho de la mer<br />

Moleza assim como essa quem não quer?<br />

Ter um chatô num boulevard lá em Paris<br />

Como é charmant tudo isso é trés jolies<br />

Comer a balda só marron glacê<br />

Comer lá em Pigalle uma renard-argnentée!<br />

Perfume de Bazin automóvel Citroen<br />

Moda Molineux vestidos de soiree<br />

Muito champanhe gordon rouge e caviar<br />

Com Jean Gabin me chamando de Mon coeur<br />

Um promenade toda a tarde no bois<br />

Moleza assim como essa quem não quer? 274<br />

Seja em Paris ou nos Brasis, mesmo distante somos constantes<br />

Tudo nos une que coisa rara é o amor nada nos separa 275<br />

Rio meu torrão <strong>brasileiro</strong>, Rio verde mar céu azul<br />

Rio de janeiro a janeiro tens a luz do Cruzeiro, meu Cruzeiro do Sul.<br />

Hoje em Niterói lá do outro lado adorando o Corcovado onde a fé no alto está<br />

Depois as Ilhas verdadeiras maravilhas cruz da Ilha dos Amores, cruz de Paquetá.<br />

Luzes pelas praias pedraria de formosas joalherias quanta pérola tão rara<br />

Lindos colares circulando a Guanabara na vitrine do Cruzeiro Rio de Janeiro 276<br />

Doutor em anedota e em champanhota,<br />

estou acontecendo no café soçaite.<br />

Só digo "a chanté", muito merci all right,<br />

troquei a luz do dia pela luz da light.<br />

Agora estou somente com outra dama de preto,<br />

nos dez mais elegantes eu estou também.<br />

Adoro River Side, só pesco em Cabo Frio,<br />

decididamente eu sou gente bem.<br />

Enquanto a plebe rude na cidade dorme<br />

eu janto com Jacintho que é também de Thormes.<br />

Teresa e Dolores falam bem de mim,<br />

já fui até citado na coluna do Ibrahin.<br />

E quando me perguntam como é que pode,<br />

papai de black tie dançando com Didu,<br />

eu peço mais uísque, embora esteja pronto.<br />

Como é que pode, Nina Chaves conta 277 .<br />

273 Não morro sem ver Paris. Alcir Pires Vermelho, Marques Jr. Roberto Roberti, s.d.<br />

274 Malandro em Paris. Blota Jr, Dennis brean, 1950.<br />

275 JouJoux e Balangandas. (I) Mariah, Mário Reis – (C) Lamartine Babo, 1939.<br />

276 Rio. Francisco Alves – Hervê Cordovil, L. Babo, 1936.<br />

277 Café Soçaite. Miguel Gustavo, 1955.<br />

128


O centro, a cidade, a metrópole é inventada como o lugar do moderno, da trasnformação<br />

inscrita na invenção de novos valores e hábitos que servem de referência tanto para a crítica<br />

de quem defende a tradição quanto como ideal de quem deseja o modo de vida metropolitano.<br />

BR:<br />

Aí!... Heim!...Pensas que eu não sei toma cuidado<br />

que um dia eu fiz o mesmo e me estrepei<br />

Sou camarada faz de conta que eu não sei<br />

Menina que chega em casa às quatro da madrugada<br />

E quanto mais a escada vai subindo, na boca do vizinho vai caindo<br />

Velhota dos seus sessenta na praia toda inocente<br />

Brincando com as crianças lá na areia vai pondo areia nos olhos da gente 278<br />

129<br />

SD:<br />

Já entendi, BR, afinal de contas, a sociedade metropolitana da praia e das noitadas inventada<br />

pelo <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> não seria assim tão moderna, considerando os mexericos e intrigas<br />

de vizinhança. Mas, de toda forma, estamos falando em termos hegemônicos.<br />

CM:<br />

SD:<br />

O caranaval carioca ja tem fama no estrangeiro<br />

A maior festa do ano que se faz no mundo inteiro<br />

Toda vida ouvi dizer que rei momo é <strong>brasileiro</strong><br />

E que tem o seu reinado aqui no Rio de Janeiro<br />

Vi muita mulher de homem e vi homem de mulher<br />

Que até eu me enganei e fui parar no quartel<br />

Casado ficou solteiro, solteiro ficou casado<br />

As mocinhas arranjam um noivo e as casadas namorado.<br />

Tinha carro muito lindo que sairam nesse ano<br />

Um congresso de Pierrot, tinha também feniano<br />

A Avenida Rio Branco estava apinhado de gente<br />

Que bateram muita palma para os Democrata e Tenente 279<br />

Enquanto jogamos com as alegorias através de falas e respostas, complementares, paradoxais,<br />

provocativas, BR, RF e CM falam/respondem juntos e, na condição de ouvinte participativo,<br />

Seu Doutor fala(mos) também. Fala(mos) já considerando que falar/descrever a música<br />

corresponderá sempre a um ato precário. Resta inventarmo-nos como escuta não passiva,<br />

como autorouvintes cuja escuta desencadeia metáforas de metáforas que nos auxiliam na<br />

escuta das falas de sujeitos discursivos, alegorias, autores, personagens, pessoas, nós mesmos<br />

(ainda valem essas diferenças?). Quando falamos em metaforização queremos dizer que, a<br />

exemplo de nossos parceiros, não pretendemos produzir nenhum tipo de efeito de<br />

convencimento para além da música e das possibilidades interpretativas que acreditamos<br />

278 Aí!... Hein!... Lamartine Babo, Paulo Valença, 1933. p4<br />

279 Carnaval carioca. Alvarenga e Ranchinho, 1938. p3


extrair do <strong>cancioneiro</strong>. O mesmo <strong>cancioneiro</strong>, que é música, e que encontra limites<br />

interpretativos em falas que se constroem como externas ao campo da música e que, por sua<br />

vez, ao mesmo tempo em que são orientados pela música, orientam a escuta e logo a<br />

ordenação/criação do limite do musical.<br />

130<br />

Será mais simples acreditar que pensamentos e imagens, musicais ou não,<br />

nascem conjuntamente nas impressões produzidas pela interseção entre<br />

nossas consciências e aquilo que julgamos perceber como exterior a nós.<br />

(Aceita-se) o fato da experiência da música – e também a do conhecimento<br />

não-diretamente-musical, misturar-se antes de tudo com modelos, moldes<br />

reconhecíveis, de sons de insetos, sapos, elementos da metereologia, sem<br />

ignorar os mais recentes das fábricas, aeroportos, etc. Modelos esses que,<br />

pela mente humana, invadiam a caverna de Nietzsche 280 , cujas causas físicas<br />

nem sempre eram vistas. Tinha-se, por essa razão a atenção desviada da<br />

própria causalidade, às vezes oculta pelo desconhecimento da origem causa.<br />

Ficava-se ali dentro com o medo já vencido – no intervalo entre o sono e a<br />

vigília à escuta de ritmos, texturas e granulações do mundo exterior<br />

(CAESAR, 2008, p. 46, 47).<br />

Esse ordenamento que também se deixa ordenar diz muito do que se pretende aqui como<br />

condição de escuta. Uma escuta que se quer inserida ativamente às parcerias experimentadas<br />

com BR, RF e CM. Considera-se que a percepção do que se constrói como externo, qualquer<br />

externalidade como outro campo, outro sujeito, um habitat, uma natureza, um meio, estaria<br />

contaminada por possibilidades rítmicas, cuja arqui-origem, origem de origem sem pré-<br />

determinação fixa, residiria em necessidades de ordenamentos que se expressam para além<br />

daquilo que se quer mesmo construir como exclusivamente humano, antropocêntrico,<br />

racional 281 . O texto, esse texto, pretende produzir nada mais do que marcas, efeitos<br />

desterritorializantes/reterritorializantes na/pela música, outros textos produziriam outras<br />

marcas a partir de outras entradas, constituintes ou não do mesmo feixe/rizoma no qual<br />

derivamos. A partir desta entrada inventada, fala este texto, ave canora. Não uma espécie, mas<br />

um indivíduo, cujo cantar o individualiza frente ao bando/espécie e a tudo que ele mesmo<br />

percebe como exterior a si. Texto passarinho. Mas, o individualiza ao mesmo tempo em que o<br />

lança na direção do outro, “o outro possível como estrutura. A música como estrutura outrem”<br />

(Queiroz, p.27, 2006). O indecidível animot derridiano – animoux/animal + mot/palavra – o<br />

animal que logo sou sob ordenamento de ave canora.<br />

CM:<br />

280 O ouvido esse órgão do medo só alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas<br />

obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio (...). Na claridade do dia o<br />

ouvido é menos necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da<br />

penumbra ( NIETZSCHE apud CAESAR, p.45, 2008).<br />

281 Para além do racional antropocêntrico considerando tantos outros animais que utilizam de recurso<br />

fônico para delimitar/ordenar impressões de espaço-tempo.


SD:<br />

Eu sou que nem sabiá<br />

Que quando canta é só tristeza<br />

Desde o galho onde ele está<br />

Nesta viola eu canto e gemo de verdade<br />

Cada toada representa uma saudade 282 .<br />

Ô, meu conterrâneo, CM, como te agradeço pelo oportuno sabiá que agora mesmo<br />

territorializa do galho onde está. E digo da marca que orienta uma fronteira interpretativa,<br />

uma possibilidade de ordenamento fônico textual. Não se pretende, claro, nada além dessa<br />

possibilidade de parceria interpretativa que a condição da escuta participativa sugere:<br />

autorouvinte. Concordando ou não, aceitando-a como marca, rasura, condição da<br />

possibilidade de uma verdade contingente como o territorializar do sabiá no galho,<br />

possibilidade de verossimilhança, ou rechaçando-a como charlatanismo, expressão de um sub-<br />

produto pretensamente litero-acadêmico, ao leitor, simultaneamente, autorouvinte, (grupo o<br />

qual nos incluímos) cabe dizer-nos que não nos é pretendido nada além dessa marca, dessa<br />

parceria, dessa possibilidade interpretativa que a nossa escuta participativa permite. Ordenar-<br />

se a partir do outro simultaneamente permitindo o outro ordenar-se a partir de si. Texto<br />

passarinho, pássaro textualizando. Se, nos termos foucaultianos para a episteme moderna já<br />

não se reservaria uma possibilidade de análise isenta de crítica, uma pureza analítica que a<br />

outra episteme clássica sugeria alcançar, diríamos que em nossa condição de ouvintes/leitores<br />

participativos já não é possível uma escuta sem escrita 283 , audição sem texto, ouvir sem<br />

simultaneamente falar, responder, cantar. Interessa-nos perscrutar o sentimento sugerido por<br />

outro neologismo referente à almatéria música, algo que propõe dissolver contornos entre a<br />

materialidade do logos expressamente físico, epistêmico e a alma ecumênica. Não muito<br />

diferente da almatéria musical que o bem-te-vi entoa agora mesmo da janela lá de casa para<br />

ordenar percepções, não só para além do homem/logos, mas, para além do medo que, muitas<br />

vezes, bichos/bichos e bichos/homens transcendem cantando 284 . Percepções que apelariam às<br />

muitas emoções que se expressam para além do medo como propunha Nietzsche em sua<br />

caverna. De fato, pode-se sugerir inverter o movimento nietzschiano propondo que o homem<br />

131<br />

282 Tristeza do Jeca. (I) Pena Branca e Xavantinho – (C) Angelino de Oliveira, 1918.<br />

283 A complexidade da escuta musical evidenciada com a música eletroacústica leva ao entendimento<br />

de que na verdade, não há análise sem crítica, assim como não haverá uma escuta sem escrita<br />

(CAESAR, p. 84, 2008).<br />

284 Mesmo lá, onde percebemos grunhidos de animais devemos ver-ouvir cantos, por exemplo, das<br />

onças e dos macacos, que cada qual nas suas “aldeias”, dança, festeja, troca afetos e cumplicidades<br />

amorosas (QUEIROZ, p.26, 2008).


só se permitiu ir à caverna, a floresta, a escuridão porque o musical, o sonoro, lhe<br />

possibilitava a ordenação confortadora. Mas, essa origem não nos interessa.<br />

132<br />

Essa escuta não lida necessariamente somente com sinais ou indícios<br />

ameaçadores identificados à luz do dia, mas realiza ou se confunde com a<br />

superação de um medo, celebrando o seu fim. A exploração do aforisma não<br />

pretende tematizar a escuta da música como sendo um ato motivado pelo<br />

receio, mas que ela pode sim ser uma conquista sobre ele, mantendo com<br />

essa emoção um vínculo muito estreito (CAESAR, p. 89, 2008).<br />

Sendo assim, a percepção musical se expressa na forma de uma experiência em que não seria<br />

possível separar o que é de ordem emocional-subjetiva e o que é formal/espacial-objetiva: o<br />

distancial não se separa facilmente do emocional (idem, p. 93).<br />

A percepção musical não se limita a ser um exercício de segmentação<br />

analítica. Pode muito mais ser a experiência de um todo que contém uma<br />

especificidade musical (e aqui retorna a pergunta como separar percepção de<br />

experiência como um todo, ou ainda como delimitar o que é meramente<br />

sonoro do que é musical?) Isto nos traz até o umbral de uma hipótese; a de<br />

que não há níveis, camadas, segmentações ou qualquer outro procedimento<br />

analítico capaz de dar conta do fato musical (ibidem, p. 93).<br />

Concordamos que estabelecer esse limite entre um campo musical e um todo seria sempre um<br />

ato arbitrário.<br />

CM:<br />

Zé Canário na viola, andorinha no ganzá<br />

Sabiá improvisando pra cabroeira dançar<br />

Quando falta uma rima ao bom improvisador<br />

É mesmo que um coração quando falta o amor<br />

O poeta não tem viola, o vaqueiro não quer gibão<br />

Retirante não tem sacola, a mulher não tem coração<br />

Sabiá não vive cantando, o jardim não tem uma flor<br />

Quando a rima está faltando ao poeta improvisador<br />

A cozinha não tem um pote, uma casa não tem pilão<br />

Jararaca perde o seu bote, o cachorro não quer pirão<br />

Mulher rica fica sobrando, moça nova não quer amor<br />

Quando a rima está faltando ao poeta improvisador 285 .<br />

SD:<br />

Obrigado de novo CM, por mais uma canção passarinho territorializando. Mas, como dizia,<br />

não haveria parte da música sem mundo, parte de mundo sem música, ou mesmo princípios<br />

ordenadores, de suposta origem antropocêntrica ou não, sem participação musical, sonora e<br />

vice-versa. De novo, resta-nos escutar/ler rastros, marcas e já simultaneamente ir produzindo-<br />

os no entre do subjétil música: subjétil derridiano que não seria nem um mero suporte, nem<br />

um campo, mas, efeito de brizura que articula e distingue sujeito e objeto Brizura que permite<br />

dizer sujeito e objeto e articulá-los no subjétil, como um suporte que fala por letra e melodia,<br />

285 O bom Improvisador. Luís Gonzaga, Nelson Valença, 1973.


sujeito/objeto constituído de poesia e música. Aliás, letra e melodia, sob essa perspectiva,<br />

sugerem outro efeito de brizura, indecidível derridiano, que articula e separa os dois<br />

elementos não de forma dialética, mas desautorizando o contraste. A brizura no entre<br />

letra/melodia que se por um lado permite percebe-las como distintas, por outro, permite a<br />

sensação de que a simples soma de ambas não expressaria o discurso-canção. Por isso o efeito<br />

de brizura: aquilo que permite atomizar as partes, ao mesmo tempo em que as articula e, sem<br />

constituir terceiro termo, mas uma umidade que se manifesta como fronteira e como<br />

contaminação em ambas, deixa entrever que a canção expressa um discurso de articulação<br />

entre sons e palavras que alcança mais do que a soma ou análise dos componentes: almatéria<br />

música que desautoriza/estabelece o contraste provocando o deslizamento da diferença em<br />

efeito de diferança. Por isso subjétil, papel falante que fala também por esse corpus, texto que<br />

da almatéria música se aproxima e quer se assemelhar e, nesse intuito, se nos apresenta em<br />

discursos de RF, BR, CM e SD.<br />

CM:<br />

SD:<br />

Não se aprende nas escolas<br />

O tocar da viola e os desembaraços<br />

Veja só quanta beleza<br />

É por natureza o cantar dos pássaros<br />

Amigo cante direito e note os defeitos que você tem 286<br />

E foi CM quem, mais à vontade, primeiro interrompeu o longo aparte do Seu Doutor dando<br />

prosseguimento ao jogo. Sim, não pretendemos esconder nossos defeitos e muito menos<br />

propor que os limites da música corresponderiam aos da academia. Justamente, o que<br />

propomos antes diz respeito a essa impossibilidade de riscar fronteiras estáveis. Como se a<br />

música sempre esgarçasse o que se quer fixar em análises, em ordenamentos, em taxionomias<br />

qualitativas/quantitativas. Mas, também aquilo que a quer ecumênica, sagrada, no sentido de<br />

pertencer a outro mundo, círculo elevado de inspirações e dons inatos que contempla poucos<br />

felizardos. Como dito, a distância entre o laboratório, o gabinete, o templo, a escrivaninha, o<br />

conservatório e o oratório diluem-se em um mesmo mundo nem laico nem sacro, almatéria<br />

música.<br />

CM:<br />

286 Rei sem coroa. Tião Carreiro, Sebastião Victor, 1963.<br />

133


SD:<br />

Ó Deus salve o oratório<br />

Ó Deus salve o oratório<br />

Onde Deus fez a morada<br />

Oiá, meu Deus, onde Deus fez a morada, oiá<br />

Onde mora o calix bento<br />

Onde mora o calix bento<br />

E a hóstia consagrada<br />

Óiá, meu Deus, e a hóstia consagrada, oiá<br />

De Jessé nasceu a vara<br />

De Jessé nasceu a vara<br />

E da vara nasceu a flor<br />

Oiá, meu Deus, da vara nasceu a flor, oiá<br />

E da flor nasceu Maria<br />

E da flor nasceu Maria<br />

De Maria o Salvador<br />

Oiá, meu Deus, de Maria o Salvador, oiá 287<br />

As separações, jamais imunes aos deslocamentos, não conseguem se fixar. O rural se redime<br />

de toda a culpa, perda, liberta-se do espelho que o projeta no urbano. Religião, religiosidade,<br />

redenção de ganzá, viola e sanfona na mão, galinha, cachaça e dinheiro para os foliões de Reis<br />

e Jesus, José e Maria. Procissão de uma Igreja profana, ciência <strong>popular</strong>, ou nada disso,<br />

almatéria que suspende fronteiras desde o asfalto, o trânsito, sertões e veredas.<br />

CM:<br />

BR:<br />

SD:<br />

Cavalo marinho<br />

dança no terreiro<br />

Que a dona da casa<br />

Tem muito dinheiro<br />

Cavalo marinho<br />

dança na calçada<br />

Que a dona da casa<br />

Tem galinha assada 288 .<br />

A estrela D´alva no céu desponta e a lua anda tonta com tamanho esplendor<br />

E as pastorinhas prá consolo da lua vão cantando nas ruas lindos versos de amor<br />

Linda pastora morena da cor de Madalena<br />

tu não tem penas de mim que vivo tonto com o teu olhar<br />

Linda criança tu não me sais da lembrança<br />

meu coração não se cansa de sempre te amar 289<br />

Como esse último BR pastoral que diz campo e cidade que diz sacro e profano, procissão e<br />

carnaval. Que diz dessa morena da cor de Madalena, pastora que é criança mas que deixa o<br />

287 Calix Bento. Tema <strong>popular</strong>, adaptação de Tavinho Moura.<br />

288 Cavalo marinho. Tema <strong>popular</strong>, adaptação de Luciano Pimentel, Fernando Filizola.<br />

289 Pastorinhas. Silvio Caldas – Braguinha, Noel Rosa, 1950. p5<br />

134


cantor tonto só de olhar 290 . Fica então entre nós (Seus Doutores) acertado que não se crê nas<br />

separações pré-definidas e definitivas, mas, ainda assim vamos adiante com nossas sugestões<br />

interpretativas jogando entre acordos e polêmicas com BR, RF, CM. e, entre nós mesmos,<br />

Seus Doutores.<br />

CM:<br />

SD:<br />

Brasil, Meu Brasil tu vais prosperar tu vais vais crescer ainda mais com a Petrobrás.<br />

Agora a coisa vai mudar o sangue da terra vai jorrar<br />

porque o nacional monopólio nos deu o nosso rico petróleo.<br />

Somos assim dono de um grande país o povo forte, futuroso e bem feliz<br />

Petroleiros conduzindo pelo mar o ouro negro para o meu Brasil refinar<br />

Assim Mataripe e Cubatão o óleo do Brasil destilarão<br />

Candeias, Maceió e Nova Olinda os campos de nossa riqueza infinda<br />

Terão de dar produção para o Brasil e nossa terra não será só ouro-anil<br />

No conselho mundial entre as nações, nós, <strong>brasileiro</strong>s, temos de ser campeões 291 .<br />

É, CM, entendo que essa tua fala entrou assim de supetão como um sinal de alerta lembrando-<br />

nos que devemos também perceber como arbitrariedade determinar os limites do<br />

enquadramento de teus discursos pela dimensão da perda, do êxodo, da saudade. Precisamos,<br />

outrossim, contemplar outras tecituras em teu discurso que, inclusive, te aproximam mais<br />

ainda de BR e RF. Por exemplo, você também produziu discursos ufanistas e também<br />

desfrutou das benesses de uma aproximação com o Estado. E aí, toda aquela conversa lá<br />

detrás que especificavam estratégias, principalmente, em falas de BR e RF respondendo a<br />

interlocutores localizados no Estado e demais instâncias de poder, também se aplicam a tua<br />

fala. Apelando à paciência dos demais interlocutores, entendemos a necessidade de CM<br />

retornar aos termos ufanismo e internacionalização permitindo rasurar a condição de perda, de<br />

Contente Magoado, da forma como inscrevemos aqui.<br />

CM:<br />

Delmiro deu a idéia Apolônio aproveitou<br />

135<br />

290 Aliás, trata-se aqui de uma versão da década de cinquenta visto que em 1934 quando a canção foi<br />

lançada, sofreu censura da Igreja Católica que obrigou trocar o nome “Pastorinhas” por “Linda<br />

Pequena” e substituir os versos que faziam alusão às pastoras. A versão censurada ficou assim: “A<br />

Estrela D ´Alva no céu desponta e a lua anda tonta com tamanho esplendor e as moreninhas pra<br />

consolo da lua vão cantando na rua lindos versos de amor, linda pequena, pequena que tens a cor<br />

morena...”. Esse caráter sacro-profano do Pastoril, já na década de vinte, foi percebido pelo<br />

pesquisador Mário de Andrade em suas incursões pelo Nordeste: “Guardado da rua, no sítio do<br />

coronel Cascudo (Câmara Cascudo), as meninas bailam no Pastoril. São umas deliciosas de<br />

canhatãs, desacompanhadas de piano e violino, com tanta graça, tanta desenvoltura no gesto que o<br />

futuro da pátria aqui está. A maior não terá doze anos porém dançam com um ar de frevo, num<br />

mexido sensual tão inconsciente como a fatalidade. Umas defendem o cordão encarnado. Outras o<br />

azul. No meio a Diana, caçadora sem nenhuma Grécia, celebra com gostosura o nascimento de<br />

Jesus, menina linda, graça esplêndida, estrelinha nos cabelos, pandeiro prateado na mão” (Mário de<br />

Andrade. Turista aprendiz, p.218, 2002).<br />

291 Marcha da Petrobrás. Luis Gonzaga, Nelson Barbalho, J. Augusto, 1959.


Getúlio fez o decreto e Dutra realizou<br />

O presidente Café a usina inaugurou<br />

E graças a esse feito de homens que tem valor<br />

Meu Paulo Afonso foi sonho que já se concretizou<br />

Olhando pra Paulo Afonso eu louvo nosso engenheiro<br />

Louvo o nosso cossaco caboclo bom verdadeiro<br />

Oi! Vejo o nordeste erguendo a bandeira<br />

De ordem e progresso a nação brasileira<br />

Vejo a indústria gerando riqueza findando a seca<br />

Salvando a pobreza<br />

Ouço a usina feliz mensageira dizendo na força da cocheira<br />

O Brasil vai, o Brasil vai o Brasil vai, o Brasil vai 292 .<br />

O baião saiu do Rio com sotaque de espanhol<br />

De Paris correu o mundo foi cair lá no Tirol<br />

A moçada lá dos Alpes que é uma turma de Skol<br />

Transformou nosso baião em baião do Tirol 293 .<br />

Ontem eu sonhei que estava em Moscou.<br />

Dançando pagode russo na boate Cossacou<br />

Parecia até um frevo naquele cai e não cai<br />

Parecia até um frevo naquele vai e não vai<br />

Vem cá cossaco, cossaco dança agora<br />

Na dança do cossaco, não fica cossaco fora 294<br />

Juntei dinheiro quase um ano inteiro, entrei pra escola para ser chofer.<br />

Dessa maneira, sem fazer besteira, tirei a carteira, botei meu boné.<br />

Batendo pino sigo o meu destino caminhando para onde Deus quiser<br />

A vida passa, eu vou fazendo a praça. Primeira, segunda, pisa e marcha ré.<br />

Se o freguês reclama que eu sou vagaroso que meu carro é velho e faz muita fumaça<br />

Eu não me zango, não faço arruaça. Sou bem educado, sou chofer de praça,<br />

Ai, ai, não nego a minha raça. Ai, ai, eu sou chofer de praça<br />

Para casamento tenho um terno branco. Para batizado tenho um terno azul.<br />

Tiro o boné se vou pra zona norte, boto o boné se vou pra zona sul.<br />

Se apanho um casal, pros lados do Leblon, Sei que vou parar na Gruta da Imprensa,<br />

Viro o espelho, não fale, não veja, Vou dá meu cortejo, espero a recompensa<br />

-O senhor não leva a mau doutor, mas pra onde é que o senhor vai hein?<br />

-Vou pra Jacarepaguá. -Tá doido. -O senhor vai pagar a ida e a volta. -Pois não, doutor. -<br />

Vamos nós! -Doutor, trabalho a quilometro, tenho oito filho pra sustentar doutor<br />

-Vamos nós doutor, o senhor foi mandado de Deus, "vamo simbora". 295<br />

Lá no arraiá das coruja formaro dois cumbinado,<br />

O time do quebra-dedo, e o time do pé-rapado.<br />

A bicharada reuniu, formaro logo seu quadro,<br />

Nóis fumo vê esse jogo, por sê um jogo faladu.<br />

A bicharada pediu pro jogo sê irradiadu,<br />

Na estação du lugá, PRJ-Bichadu,<br />

O "ispriqui" era o jumento, rapaizinho apreparadu,<br />

As quinze hora da tarde o jogo foi cumeçado.<br />

O time do quebra-dedo tinha fama de campeão,<br />

292 Paulo Afonso. Gonzaga, Zé Dantas, 1955.<br />

293 Baião no Tirol. Trigêmeos vocalistas – (C.) Rodrigues, Stauber e Martelli, 1952.<br />

294 Pagode Russo. Luís Gonzaga, 1946.<br />

295 Chofer de praça. (I) Luis Gonzaga – (C) Evaldo Rui, Fernando Lobo, 1950.<br />

136


Sapo jogava no gol, béqui de espera o leão,<br />

Cavalo o béqui de avanço, o arco esquerdo preá,<br />

Veado de center-arco, arco direito o gambá.<br />

A linha tava um perigo, na meia jogava o rato,<br />

No centro jogava o tigre, na otra meia o macaco,<br />

Na esquerda jogava o bode, direita jogava o gato,<br />

E pra atuá di juiz, foi convidado o lagarto.<br />

(Boa tarde senhoras e senhores. Ai que bicharada gorda, barbaridade)<br />

O tigre deu a saída, coelho foi pra tirá,<br />

O tigre passô pru bode, mais quando ele foi chutá,<br />

Puxaro a barba do bode, o bode foi recramá,<br />

Juiz falô que num viu, cachorro já quis brigá.<br />

A cabra muié do bode, xingô o juiz de ladrão,<br />

Torcida do quebra-dedo fizéro recramação,<br />

A capivara e a cotia chegaro a xingá o leão,<br />

Preguiça dava risada, de vê o sapo de carção.<br />

Largato que era o juiz, na hora dele apitá,<br />

Tinha engulido o apito, num pôde o jogo pará,<br />

A torcida entrô no campo, de pau, de faca e punhá,<br />

O pau cumeu direitinho, mataro trêis no lugá.<br />

O bode ficô ferido, mataro o béqui leão,<br />

Rasgaro a saia da cobra, cavalo quebrô a mão,<br />

O sapo saiu correndo, jogou-se no riberão,<br />

Por que na hora da briga ele ficô sem carção.<br />

O jogo num terminô, pur isso ficô empatado,<br />

Agora nóis vai falá, do center-arco veado.<br />

Nervoso ele dizia, entre suspiros e ais:<br />

Ai meu Deus do céu qui jogo bruto, meu Deus, que estupidez.<br />

Assim num jogo, num jogo, num jogo mais... 296<br />

137<br />

SD:<br />

Nos enunciados acima, além da internacionalização da fala regional que vai aos Alpes e a<br />

Moscou, CM dialogiza com pelo menos três elites, o Estado de Getúlio a Dutra, a classe<br />

média urbana que anda de taxi e a imprensa esportiva do rádio que rasura o campo a partir da<br />

lenda dos bichos que falam. Agora, falando mais diretamente de Seu Doutor para Seu Doutor,<br />

mas, se RF, CM e BR quiserem interferir não faremos objeção, o que se propõe aqui diz<br />

respeito à própria fragilidade do constructo, qualquer constructo que, via de regra,<br />

corresponde à arbitrariedade de um pensamento, de uma idéia, cuja fronteira, limite, estará<br />

sempre logo ali desafiando suas pretensões de síntese e totalidade. Prometemos, ainda no<br />

Lado A, não fazer referência a nenhum compositor específico. Mas, ferindo também essa<br />

regra, especificamente aqui, tomemos, por exemplo, o conjunto de falas referentes ao<br />

compositor Dorival Caymmi que constitui, segundo as análises tradicionais do <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong>, um conjunto coeso e fechado. A fala é marcada como tipicamente baiana, logo<br />

regional, por isso CM. Mas sua estrutura é metropolitana, acordes jazzísticos, ritmo de samba<br />

296 Futebol da bicharada. Raul torres, 1930.


urbano que vai inclusive inspirar a bossa nova anos depois, por isso RF/BR. A fala inscreve<br />

figuras folclóricas e míticas do “Abaeté”, por isso CM, mas, também inscreve uma<br />

urbanidade de sacadas de sobrado da velha “São Salvador” e de donzelas do tempo do<br />

Imperador, inclusive, anterior à urbanidade de Rio e São Paulo, por isso BR/RF. Contempla a<br />

dicção da “Saudade da Bahia”, por isso CM, mas diz também de um comércio de rua no<br />

“Tabuleiro da baiana”, por isso BR/RF. Essa impossibilidade de determinar fronteiras<br />

inquestionáveis não propriamente invalida o jogo, considerando que não se pretende<br />

jogar/propor nada além de novas possibilidades interpretativas que possibilitem novas e<br />

outras relações e percepções do autor/leitor com as falas do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> que<br />

responde e propõe, a seu modo, inscrições de signos urbano, moderno, rural, tradicional no<br />

constructo identidade nacional.<br />

CM:<br />

Seu doutô, os nordestino têm muita gratidão.<br />

Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão<br />

Mas doutô uma esmola a um homem qui é são<br />

Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão<br />

É por isso que pidimo proteção a vosmicê<br />

Home pur nóis escuído para as rédias do pudê<br />

Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê<br />

Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cumê<br />

Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage<br />

Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage<br />

Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage<br />

Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage<br />

Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão<br />

Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação!<br />

Nunca mais nóis pensa em seca, vai dá tudo nesse chão<br />

Como vê nosso distino mercê tem nas vossa mãos 297<br />

138<br />

SD:<br />

Depois, CM responderia ao seu próprio discurso produzindo aproximação ainda maior com a<br />

elite localizada no Estado.<br />

CM:<br />

Nos anos 53, 54 houve uma seca da moléstia no sertão nordestino<br />

O Brasil ficou cheio de arapucas: ajuda teu irmão!<br />

Uma esmola pro flagelado nordestino qualquer coisa serve.<br />

Dinheiro, roupa velha, sapato velho, camisa velha, tudo serve.<br />

Eu e Zé Dantas protestamos e gritamos bem alto:<br />

Seu doutô os nordestino têm muita gratidão<br />

Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão<br />

Mas doutô uma esmola a um homem qui é são<br />

Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão<br />

Um deputado do povo bradou do Parlamento Nacional:<br />

297 Vozes da seca. Luis Gonzaga, Zé Dantas, 1953.


Seu Presidente, esse baião de Gonzaga e Zé Dantas vale por mais de cem discursos.<br />

Agora eu louvo o nome daquele que criou a SUDENE: Obrigado Juscelino.<br />

Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage<br />

Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage<br />

Livre assim nóis da ismola, que no fim dessa estiage<br />

Lhe pagamo inté os juru sem gastar nossa corage 298 .<br />

139<br />

SD:<br />

Mais uma vez apelamos à compreensão de autorouvintes, já desculpando-nos pelo movimento<br />

brusco que o jogo executa e dissemina a partir de agora, momentaneamente, não mais<br />

sociedade do trabalho, nem belle-epoque, nem o período referente aos golpes da ditadura<br />

militar, 64-68. Porém, avança décadas, quando o <strong>cancioneiro</strong> afirmaria, parafraseando<br />

discursos psicanalíticos, que “todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome que<br />

tem de viver, todo homem sabe que essa fome é mesmo grande até maior que o medo de<br />

morrer, mas a gente nunca sabe mesmo o que que quer uma mulher 299 ”. E vai apenas para<br />

voltar – foi dito que era momentâneo – com mais pertinência à especificação do contexto<br />

rasurado, khôra, que inventa como entrada, arqui-origem, a sociedade do trabalho. Entre os<br />

temas mais presentes no repertório do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> eleito encontra-se o das relações<br />

pessoais em que, mais especificamente, elabora-se o signo personagem mulher em contexto<br />

estruturado no dissídio que se estabelece no entre dos signos do moderno, do urbano, da<br />

transformação, da emancipação e dos signos da tradição, do rural, do conservadorismo, do<br />

patriarcalismo.<br />

RF:<br />

SD:<br />

Vem, vem que eu dou tudo a você, menos vaidade.<br />

Tenho vontade, mas é que não pode ser.<br />

O amor é o do malandro, meu bem.<br />

Melhor do que ele ninguém.<br />

Se ele te bate é porque gosta de ti<br />

Porque bater em quem não se gosta eu nunca vi 300<br />

Se eu lhe arranjo trabalho ele vai de manhã de tarde pede a conta<br />

Eu já estou cansada de dar murro em faca de ponta<br />

Ele disse pra mim que está esperando ser presidente tirar patente<br />

Do sindicado dos inimigos do batente 301 .<br />

298 Vozes da Seca (ao vivo). Luis Gonzaga, Zé Dantas. s.d.<br />

299 Pecado original. Caetano Veloso, 1978.<br />

300 Amor de malandro. Ismael Silva, Francisco Alves, Freire Junior, 1929.<br />

301 Inimigos do batente. Germano Augusto, Wilson Batista, 1940.


Esse lugar moderno/conservador de onde verte parte do discurso do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

inscreve um possível constructo interpretativo de imagens que deslocam o signo personagem<br />

mulher na sociedade brasileira. O signo é inscrito em um repertório no qual a personagem<br />

mulher constrói-se ora como a insensível que abandona a casa, a família, o homem, ora como<br />

a promíscua, a interesseira, a materialista que desatina na vida e leva o homem à bancarrota e<br />

a decadência moral, ora como a submissa que faz as vontades de seu companheiro aceitando<br />

passivamente suas exigências, maus tratos, pancadarias, vadiagens e orgias.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Lá no Largo do Estácio eu conheci o Juca do pandeiro<br />

Dava gosto a gente ver tocava por prazer não tocava por dinheiro<br />

Tinha alma de artista era um malabarista com o pandeiro na mão<br />

Cherche la femme, sempre a mulher na vida do homem<br />

Por ela deixou o pandeiro quase não tem o nome na historia<br />

Esse Juca que eu falo hoje tem cabelo branco<br />

Não tem um centavo no banco, mas tem uma mulher na memória 302 .<br />

Você sabe o que é ter um amor meu senhor<br />

Ter loucuras por uma mulher<br />

E depois encontrar esse amor meu senhor<br />

Nos braços de um tipo qualquer<br />

Você sabe o que é ter um amor meu senhor e por ele quase morrer<br />

E depois encontrá-lo em um braço que nem um pedaço do teu pode ser. 303<br />

Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar<br />

E que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar<br />

Só existe uma e sem ela eu não vivo e paz<br />

Emília, Emília, Emília, eu não posso mais 304 .<br />

Músicas que enquadram a personagem da mulher em imagens específicas não nos faltam: A<br />

mulher é o diabo de saia 305 , de 1904, o título fala por si e a letra segue afirmando que “a<br />

mulher é perversa para o homem... antes morrer de febre amarela do que pensar em ser<br />

marido”. A mulher sapeca 306 de 1907, diz que a mulher “é pior que as cobras... antes quero<br />

ter febre amarela que casar com mulher faladeira”. A mulher é um anjo 307 , de 1907, aponta<br />

para a outra imagem paradigmática afirmando que “a mulher é sempre submissa ao homem<br />

302 O Juca do pandeiro. Augusto Garcez, Wilson Batista, 1943.<br />

303 Nervos de aço. Lupcínio Rodrigues, 1947.<br />

304 Emília. Haroldo Lobo, Wilson Batista, 1941.<br />

305 A mulher é o diabo de saia. Mário Pinheiro, 1907.<br />

306 A mulher sapeca. Bahiano, 1907.<br />

307 A mulher é um anjo. Cadete, 1907.<br />

140


por amor e dever”. Em Caprichos de mulher 308 , 1921, o homem reclama dizendo “mulher és<br />

caprichosa e orgulhosa tudo o que eu pedia tu não fazias como eu queria”. Em Mulher de<br />

cueca 309 , 1925, ironiza-se a liberdade que a modernidade proporcionava à mulher, “a mania<br />

da mulher é imitar o homem dos pés até a cabeça... a mulher já sai de casa com a cueca do<br />

marido... no progresso em que estamos a mulher vai andar de tanga”. A polícia já foi lá em<br />

casa 310 , 1929, fala de violência explícita e submissão, “eu dou o meu dinheiro todo a você...<br />

não sei o que vou fazer para te pagar pelas pancadas que você me dá”. Mulher exigente 311 ,<br />

1930, “como toda mulher tu nunca estás contente e o pobre do teu marido que agüente” Em<br />

Mulher de malandro 312 , 1931, afirma-se que “há um ditado muito certo: pancada de amor<br />

não dói... quanto mais apanha, a ele tem amizade, longe dele tem saudade”. Em A mulher<br />

nunca fala a verdade 313 , 1934, constata-se que “assim como Deus não mente, a mulher<br />

nunca fala a verdade”. Bebida, mulher e orgia 314 , de 1936, “bebida, mulher, orgia é a lei do<br />

vagabundo, sem mulher e sem orgia não há prazer nesse mundo”. Em Mulher sem dono 315 ,<br />

1938, esclarece-se, “eu encontrei essa mulher na rua, toda mulher em abandono é do samba e<br />

não tem dono”. Cuidado com essa mulher 316 , de 1940, “porque ela vai te abandonar”. Deixa<br />

a mulher sossegada 317 , 1941, “falam tanto das mulheres, parece até prevenção... quem é que<br />

faz nosso café e de manhã já está de pé”. Mulher de luxo 318 , 1942, “tu hoje é mulher de luxo<br />

tens bangalô com repuxo, criada, leiteiro e pão, tens quarto cheio de enfeites e eu às vezes<br />

roubo leite do teu portão”. A mulher de trinta anos 319 , 1942, “eu gosto mais da mulher de<br />

trinta anos porque ela sabe suportar os desenganos”; Salve a mulher brasileira 320 , 1942,<br />

trata-se de uma pérola ufanista e ao mesmo tempo debochada com imagem fálica cheia de<br />

segundas intenções, “ofenderam a nossa bandeira e a mulher brasileira também teve opinião,<br />

nós seremos enfermeiras e se for preciso manejamos o canhão”, o canhão com duplo sentido,<br />

claro; O diabo da mulher 321 , 1942, o título diz tudo. A mulher do diabo 322 , 1952, mais uma<br />

308 Caprichos de mulher. J. Fonseca Costa, 1921.<br />

309 Mulher de cueca. Eduardo Souto, 1925.<br />

310 A polícia já foi lá em casa. Júlio Cristóbal, Olegário Mariano, 1929.<br />

311 Mulher exigente. Almirante, 1930.<br />

312 Mulher de malandro. Francisco Alves, 1931.<br />

313 A mulher nunca fala a verdade. (I) Almirante – (C) André Filho, 1934.<br />

314 Bebida, mulher e orgia. Aniz Mrad, Luiz Pimentel, Manoel RAbaca, 1936.<br />

315 Mulher sem dono. J. Piedade, Torres Homem, 1938.<br />

316 Cuidado com essa mulher. Antonio Almeida, Ataulfo Alves, 1940.<br />

317 Deixa a mulher sossegada. Sá Dóris, Francisco Alves.<br />

318 Mulher de luxo. Edelir Gameiro, Milton teixeira, 1942.<br />

319 A mulher de trinta anos. Cristóvão de Alencar, J. Batista, 1942.<br />

320 Salve a mulher brasileira. Rubens Campos, Sebastião Lima, 1942.<br />

321 O diabo da mulher. C. Monteiro, Benedito Lacerda, 1942.<br />

322 A mulher do diabo. Antonio Almeida, 1952.<br />

141


vez o título dispensa comentários. O jantar está na mesa 323 , 1942, “até agora ela não chegou<br />

não há razão pra isso, há muito tempo que a fábrica apitou”, fala da mulher que trabalha na<br />

fábrica e não volta pra casa, em outras palavras, afirma que a mulher que trabalha fora não é<br />

confiável. Agora agüenta a mulher 324 , 1943, “casamento não é só lua de mel, quem mandou<br />

você fazer esse papel”; Vaidade da mulher 325 , 1944, “trabalho como um louco, ela ainda<br />

acha que é pouco, tudo que eu ganho ela quer gastar”. Quer ver sua mulher sorrir? 326 , 1945,<br />

afirma sem falso moralismo “dê carinho a ela, dê vestido novo, dê perfume, jóia e dinheiro<br />

pra gastar”.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Vai orgulhosa querida<br />

Mas aceita esta lição<br />

No câmbio incerto da vida<br />

A Libra sempre é o coração 327 .<br />

Quando o apito, da fábrica de tecido.<br />

Vem ferir os meus ouvidos eu me lembro de você.<br />

Você no inverno sem meias vai pro trabalho<br />

Não faz fé no agasalho nem no frio você crê<br />

O que você não sabe é que enquanto você faz pano<br />

Faço junto do piano esses versos pra você 328 .<br />

Como vemos, o BR está concordando conosco. Uma rara exceção é Trabalha mulher 329 ,<br />

1946, “trabalha mulher, é o progresso, deixa falar quem quiser, a mulher é mulher no lar e na<br />

repartição”. Mas, a fala de BR em Bolinha de Papel 330 , 1945, já desdiz a anterior quando<br />

promete: “tiro você do emprego, lhe dou amor e sossego, vou ao banco e tiro tudo pra gente<br />

gastar”. Mulher sem nome 331 , 1950, “mulher sem nome punhal da falsidade... mulher que<br />

bebe com seus coronéis”. Mulher falsa 332 , 1952, trata-se de uma mulher promíscua que deixa<br />

o homem sem calça na praia e sem ter como voltar para casa, “não para nenhum lotação, eu<br />

de calção como é que vai ser, o povo que passa o que vai dizer”. A mulher que é mulher 333 ,<br />

323<br />

O jantar está na mesa. Moreira da Silva – Felisberto Martins, 1942.<br />

324<br />

Agora agüenta a mulher. Antonio Almeida, 1943.<br />

325<br />

Vaidade de mulher. Geraldo Augusto, Valfrido Filho, 1944.<br />

326<br />

Quer ver sua mulher sorrir? Benedito Lacerda, Haroldo Lobo, 1945.<br />

327<br />

Positivismo, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1933.<br />

328<br />

Três Apitos. Noel Rosa.<br />

329<br />

Trabalha, mulher. Benedito Lacerda, Herivelto Martins, 1946.<br />

330<br />

Bolinha de papel. Anjos do Inferno – Geraldo Pereira, 1945.<br />

331<br />

Mulher sem nome. Teddy Vieira, Zé arreiro, 1950.<br />

332<br />

Mulher falsa. Claudionor Cruz, Pedro Caetano, 1952.<br />

333<br />

A mulher que é mulher. Armando Cavalcante, Klécius Caldas, 1953.<br />

142


1953, essa mulher, “se o homem errar perdoa”. Volta pra casa Emília 334 , 1942, continuação<br />

da mesma “Emília” de 1941, já citada, “Quando eu visto um terno amarrotado tenho que me<br />

lembrar... hoje não tenho família, não tenho lar nem amor, volta pra casa Emília, se não eu<br />

morro de dor”; Se acaso você chegasse 335 , 1938, um amigo fala pro outro que agora vive com<br />

sua ex-mulher, “de dia me lava a roupa de noite me beija a boca e assim nós vamos vivendo<br />

de amor”; Acabou a sopa 336 , 1940, mulher promíscua que “sem me pedir foi ao baile, isso<br />

não se faz... pode arrumar a mala acabou a sopa”; “Bateu cinco horas 337 ”, 1937, mesmo<br />

tema, “o relógio bateu cinco horas foi a hora que ela chegou... vou lhe mandar embora é o<br />

castigo que você merece”; Sem banana macaco se arranja 338 , 1952, “não tenho cafuné, café<br />

ou mulher que arrume minha roupa”; se a mulher resolve trabalhar, cai nas garras do patrão<br />

em Comerciaria 339 , 1950, “como ave prisioneira dos caprichos do patrão... se acaba no<br />

balcão”; “Marcha das mulheres 340 ”, 1952, “mulher devia ser vendida em loja, como outra<br />

coisa qualquer, quem tivesse mais dinheiro e fosse mais ligeiro, comprava mais mulher”, Meu<br />

nome é mulher 341 , 1953, “eu não quero mais carinhos, quero jóias quero luxo pra minha<br />

satisfação”; A mulher ficou na taça 342 , 1945, “E no seio da desgraça encho mais a minha<br />

taça para afogar a visão, quanto mais bebida eu ponho mais cresce a mulher no sonho, na taça<br />

e no coração”<br />

BR/RF:<br />

SD:<br />

Você só pensa em luxo e riqueza<br />

Tudo o que você vê, você quer<br />

Ai, meu Deus, que saudade da Amélia<br />

Aquilo sim é que era mulher<br />

Às vezes passava fome ao meu lado<br />

E achava bonito não ter o que comer<br />

Quando me via contrariado<br />

Dizia: "Meu filho, o que se há de fazer!"<br />

Amélia não tinha a menor vaidade<br />

Amélia é que era mulher de verdade 343<br />

334 Volta pra casa Emília. J. Batista, Antonio Almeida, 1942.<br />

335 Se acaso você chegasse. Felisberto Martins, Lupcínio Rodrigues, 1938.<br />

336 Acabou a sopa. Augusto Garcez, Geraldo Pereira, 1940.<br />

337 Bateu cinco horas. Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1937.<br />

338 Sem banana macaco se arranja. Braguinha, 1952.<br />

339 Comerciaria. Carvalhinho, Mário, Rossi, H. de Carvalho, 1950.<br />

340 Marcha das mulheres, José Batista, Peter Pan, 1952.<br />

341 Meu nome é mulher. Paulo Mayer, 1953.<br />

342 A mulher ficou na taça. Francisco Alves – Lamartine Babo, 1945.<br />

343 Ai, que saudades da Amélia. Ataulfo Alves, Mário Lago, 1941.<br />

143


Se Amélia perdoasse 344 , 1942, continuação da “Amélia” mulher de verdade com o mesmo<br />

pedido de perdão, “a Amélia sabe que sou um bom rapaz”. Não bate nele 345 , 1946, aqui se<br />

pede para não bater no “bom” rapaz que só bate mesmo na mulher, “o cara é bom moço, esse<br />

rapaz tem fama de valente é porque bate sempre na sua mulher”. Ex-filha de Maria 346 , 1952,<br />

trata da mulher que cai na orgia, “essa pobre mulher desviou-se hoje anda em lugares tão<br />

feios”. Ele é do samba 347 , 1939, violência explícita, “moro com ele no morro e apanho pra<br />

cachorro, mas gosto dele assim... o barraco é um quadro de felicidade”. O cinzeiro da<br />

Zazá 348 , 1953, moralista, fala do apartamento da Zazá que não fuma, mas, o cinzeiro está<br />

sempre cheio de cinzas e guimbas de cigarro dos homens que recebe. Amélia na Praça<br />

Onze 349 , 1937, outra referência a Amélia que passa fome. A cozinha é teu lugar 350 , 1938, “a<br />

empregada quer ser melhor que a patroa” essa consegue ser triplamente preconceituosa,<br />

ofende o negro, o pobre e a mulher. Que pequena levada 351 , 1928, falso moralismo machista,<br />

“todos me acham levadinha com a boca pintadinha... vou passear à beira mar”. Pode matar<br />

que é bicho 352 , 1949, “Quando a mulher é boa o homem deve ter cuidado e capricho, mas,<br />

quando ela é feia, muito feia, pode matar que é bicho”. A mulher e o trem 353 , 1929, “se<br />

namora no escuro esse trem não é seguro, se namora homem casado é um trem descarrilado.<br />

A mulher e o relógio 354 , 1941, “mulher divorciada deixa o homem confuso, é relógio sem<br />

mola e sem parafuso”. Gosto que me enrosco 355 , 1928, “Deus nos livre das mulheres e hoje<br />

em dia, desprezam o homem só por causa da orgia”. Se você jurar 356 , 1931, “A mulher é um<br />

jogo difícil de acertar e o homem como um bobo não se cansa de jogar”, “Desacato 357 ”, 1933,<br />

“diga porque você me deixa a casa e vai pra orgia, me desobedece neném, perca essa mania”.<br />

Oh! Seu Oscar 358 , 1939, “Cheguei cansado do trabalho, logo a vizinha me falou que está<br />

fazendo meia hora que a tua mulher foi embora e um bilhete deixou, o bilhete assim dizia, não<br />

posso mais eu quero é viver na orgia”. Pergunte à vizinha do lado 359 , 1939, dialoga com<br />

344<br />

Se a Amélia perdoasse. Gomes Filho, Juraci Araújo, 1942.<br />

345<br />

Não bate nele. Lourenço Pereira, Zé Fechado, 1946.<br />

346<br />

Ex-filha de Maria. Roberto Silva – (C.) Lupcínio Rodrigues, 1952.<br />

347<br />

Ele é do samba. Célio Ferreira, Ciro Monteiro, 1939.<br />

348<br />

O cinzeiro da Zazá. Nássara, Wilson Batista, 1953.<br />

349<br />

Amélia na Praça Onze. Linda Batista, Cícero Nunes, Herivelto Martins, 1942.<br />

350<br />

A cozinha é teu lugar. Paulo Barbosa, Oswaldo Santiago, 1938.<br />

351<br />

Que pequena levada. F. Alves, Rosa Negra – Francisco de Freitas, L. Babo, 1928.<br />

352<br />

Pode matar que é bicho. H. Lobo, M. de Oliveira, 1949.<br />

353<br />

A mulher e o trem. Stefano de Macedo, 1929.<br />

354<br />

A mulher e o relógio. César Nunes, 1921.<br />

355<br />

Gosto que me enrosco. Sinhô, 1928.<br />

356<br />

Se você jurar. Ismael Silva, Francisco Alves, Nilton Bastos, 1931.<br />

357<br />

Desacato. Wilson Batista, P. Vieira, M. Caldas, Francisco Alves, 1933.<br />

358<br />

Oh! Seu Oscar. Ataulfo Alves, Wilson Batista, 1939.<br />

359<br />

Pergunte à vizinha do lado. Patrício Teixeira; Eloi de Assis, Valdemar Silva, 1939.<br />

144


“Seu Oscar”. “Se queres saber a verdade pergunte a vizinha do lado, a hora que a minha<br />

mulher chegou, eu já estava me aprontando pro trabalho, perguntei aonde andou, ela não me<br />

disse nada e fingiu contrariada, eu me aprontei, peguei a roupa do trabalho e nunca mais<br />

voltei, mulher que é da orgia não serve...” Sem compromisso 360 , 1944, “Você só dança com<br />

ele diz que é sem compromisso, é bom acabar com isso eu não sou nenhum Pai João, quem<br />

trouxe você fui eu não faça papel de louca, pra não haver bate boca dentro do salão”. Flor da<br />

Lapa 361 , 1952, “Estão vendo aquela mulher bebendo, bebendo de mesa em mesa, já flor a flor<br />

da Lapa, a rainha da beleza, os homens brindava, seu corpo bebendo champanhe, hoje acaba o<br />

cabaré ela não tem quem lhe acompanhe”. Trapo de gente 362 , 1953, “Fui buscá-la na triste<br />

miséria de um barracão para as noites boêmias de Copacabana esse mundo de sonho e<br />

fascinação, saia comigo, bebia comigo depois se entregava a um amigo, trapo de gente sem<br />

alma e sem coração”. Vai mulher da orgia 363 , 1936, “Vai eu não sou culpado de você me<br />

abandonar, o destino de toda mulher da orgia é pena”. O amor é um bichinho 364 , 1931, “que<br />

roi roi roi, no coração ele faz um buraquinho que dói dói dói esse bichinho é terrível... pois<br />

deixa o homem sem nota, deixa a mulher sem vergonha”Chofer de Fogão 365 , 1963, “Diz a<br />

todo mundo fazer mesmo parte da sociedade ...percorre a cidade dizendo a todos falar o<br />

inglês, mas infelizmente não conhece nada não tem projeção e todos já sabem ela é chofer de<br />

fogão”. Cassino 366 , 1937, acredito no destino, nas roletas de um cassino e até na felicidade só<br />

não creia que as mulheres amem com sinceridade”. Deusa do Cassino 367 , 1961, “ninguém<br />

foge do destino por isso num cassino eu vim a te conhecer, como louca borboleta volúvel<br />

como a roleta deusa do luxo e do prazer”. Sete e meia da manhã 368 , 1945, “estou atrasada e<br />

se não for para o batente ele vai me dar pancada”. Arranha-céu 369 , 1937, “Cansei de esperar<br />

por ela toda a noite na janela vendo a cidade a luzir, nesses delírios nervosos dos anúncios<br />

luminosos que são a vida a mentir e cada vez que subia o elevador não trazia essa mulher<br />

maldição... esquece aquela desgraça, esquece aquela mulher”. Essa listagem ficaria ainda<br />

mais extensa se não tivéssemos omitido um tipo específico de signo mulher, a mulata. Optou-<br />

360 Sem compromisso. Geraldo Pereira, Nelson Trigueiro, 1944.<br />

361 Flor da Lapa. César Brasil, W. Batista, 1952<br />

362 Trapo de gente. Ary Barroso, 1953.<br />

363 Vai mulher da orgia. Roberto Martins, Guarnieri, 1936.<br />

364 O amor é um bichinho. Braguinha, 1931.<br />

365 Chofer de fogão. Luis Carlos Vieira, N. Figueroa, S. Neves, 1963.<br />

366 Cassino. Moreira da Silva, Manoel Fernandes, 1937.<br />

367 Deusa do Cassino. Orlando Silva; Newton Teixeira, Torres Homem, 1961. p3<br />

368 Sete e meia da manhã. Dircinha Batista; Claudionor Cruz, Pedro Caetano, 1945. p4<br />

369 Arranha-céu. Silvio Caldas, Orestes Barbosa, 1937 p4<br />

145


se por relacionar as construções do signo mulata junto às canções que tratam das questões<br />

raciais mais adiante;<br />

BR:<br />

O meu coração não me engana eu quero uma sereia de Copacabana.<br />

A francesa me chamou de “mon cherie” eu senti um frenesi.<br />

Atrás de uma espanhola eu quase fui a Madrid.<br />

Uma cachopa em Lisboa me cantou a Madragoa, ai, quase morri. 370<br />

Carioca, carioca, que seria desta vida sem você<br />

Quando o sol sorri nas flores pout pout ri dos teus amores<br />

Eu te adoro não queiras saber porque.<br />

Orgulhosa majestosa nesta terra da beleza sem igual<br />

Essa terra da alegria cor de carne que inebria tua vida é só perfume e carnaval 371<br />

146<br />

SD:<br />

È claro que depois dessa minha exegese de exemplos e comentários sobre a construção da<br />

mulher no <strong>cancioneiro</strong>, um de vocês três tinha que entrar falando alguma coisa sobre o mesmo<br />

tema que não tivesse nada a ver com o que eu vinha desenvolvendo. Tudo bem, vale<br />

acrescentar então que o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> também se ocupou em muitas falas de elogiar a<br />

mulher carioca, a brasileira, principalmente em comparação com as mulheres de outros países.<br />

RF/BR:<br />

Quem olha da cidade alta pra cidade baixa o que é que vê<br />

Vê uma baiana queimada tostada da cor do azeite de dendê<br />

Ela tem felicidade tem simplicidade e é bondosa<br />

Por ai a agente vê que a baiana tem tudo e não tem prosa<br />

Tem beleza no andar tem chamego no pisar tem perfume de matar<br />

Um sorriso que provoca seu olhar é feiticeiro<br />

Que faz qualquer carioca lhe dar todo o seu dinheiro 372<br />

Hindu minha linda hindu que nasceu em Calcutá<br />

È melhor ser minha esposa que ser escrava de um rajá<br />

Eu não tenho palácio eu não tenho tesouro<br />

Minha janta é um prato de arroz<br />

Eu sou um pobre paria, mas tenho uma cabana que chega pra nós dois 373 .<br />

Ela nasceu em Bagdá e era a favorita do sultão<br />

Porém o rajá em nome de Aláh jurou conquistar seu coração<br />

Ela sorrindo respondeu o meu coração já era seu 374<br />

Certa noite em Pequim eu peguei meu violão<br />

E fiz uma serenata blão blão blão<br />

Mas a linda chinezinha ao ouvir me disse assim<br />

370 Sereia de Copacabana, Nássara, W. Batista, 1950. t3<br />

371 Carioca. Castro Barbosa, 1931. p3<br />

372 Cidade alta. Zé, Zilda; José Gonçalo, Oldemar Magalhães, 1949.<br />

373 Minha linda Hindu. Nássara, W. Batista, 1952.<br />

374 Favorita do sultão. José Batista, Nássara, 1948.


SD:<br />

Gosto bem mais do flautim do meu chim que faz pim pim pim 375<br />

Cadê Mimi, o meu bibelô Japonês?<br />

Que ainda espero encontrar e amar<br />

Amar mais uma vez 376<br />

Chiquita bacana lá da Martinica se veste com uma casca de banana nanica<br />

Não usa vestido nem usa calção, inverno pra ela é pleno verão<br />

Existencialista com toda razão. Só faz o que manda o seu coração 377<br />

Estas últimas falas, provocações do BR que nem vou me dar ao trabalho de responder, são<br />

ótimos exemplos de traição do subjétil. Mas afinal, retornando ao que se falava antes, o samba<br />

não era ambiente freqüentado pelas moças das famílias burguesas. Se certos intelectuais e<br />

representantes da elite, como Prudente de Moraes, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto<br />

Freyre mantinham contato próximo com o grupo de compositores e músicos formado por<br />

João da Baiana, Patrício, Donga e Pixinguinha como descrito por Vianna 378 , às referidas<br />

moças, tal aproximação era terminantemente proibida. A aproximação da classe média ao<br />

universo do samba e do morro só ocorreria de forma significativa nos anos 60, com o<br />

crescente interesse pelos desfiles de carnaval das Escolas de Samba.<br />

SD Orientador:<br />

SD:<br />

147<br />

Interesse que emergiu em função do deslocamento de parte dessa classe média à<br />

esquerda do espectro político, o que possibilitou nela certa valorização do <strong>popular</strong><br />

urbano: operariado, samba, favela, escola de samba.<br />

Enquanto fervia-se o cadinho cultural do samba, resultado do cruzamento de múltiplos<br />

discursos, as “moças de família”, nas primeiras décadas do século XX, permaneceram em<br />

casa, preferencialmente ao piano, também no acordeom, tocando Chopin, quando muito,<br />

tangos, polcas ou a música ligeira do repertório de modinhas do século XIX.<br />

Tocar piano, cantar duetos e árias, dançar valsas e quadrilhas francesas são<br />

qualidades atribuídas às personagens românticas. Como afirma Raymond<br />

Sayers, “entre as prendas das heroínas dos romances urbanos uma das mais<br />

apreciadas é o talento musical, que é quase tão importante quanto a beleza<br />

física e a juventude”. (FONSECA, P.74).<br />

375 Serenata chinesa. Nuno Roland – Braguinha, 1948.<br />

376 Cadê Mimi? Almirante, Braguinha, Julio Casado, 1931.<br />

377 Chiquita bacana. (I.) Emilinha Borba – (C.) Braguinha, 1948.<br />

378 No diário de Gilberto Freyre em visita ao Rio de Janeiro, em 1926, ficou registrado o encontro do<br />

grupo de intelectuais com os compositores do samba (...): “Sérgio e Prudente conhecem de fato<br />

literatura inglesa moderna, além de francesa. Ótimos. Com eles saí de noite boemiamente. Também<br />

com Villa Lobos e Gallet. Fomos juntos a uma noitada de violão, com alguma cachaça e com os<br />

brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício, Donga” (FREYRE apud VIANNA, 1995, P. 19).


A cizânia entre uma música de valor, representada pelo piano e o salão, e outra<br />

desclassificada, representada pelo violão e o botequim, perdurou pelas primeiras décadas do<br />

século XX. Para a mulher burguesa a presença em ambientes <strong>popular</strong>es era vetada, salvo em<br />

raras exceções, quando, por exemplo, certa elite política e intelectual freqüentou o salão das<br />

casas das tias baianas. Para a mulher pobre as relações de lazer e trabalho implicaram outras<br />

questões.<br />

RF/BR:<br />

SD:<br />

Se é de mim podem falar, se é de mim podem falar<br />

meu amor não tem dinheiro não vai roubar para me dar<br />

Quando a polícia vier e souber, quem paga a casa pra homem é mulher.<br />

No tempo que ele podia me tratava muito bem<br />

Hoje está desempregado não me dá porque não tem<br />

Quando eu estava mal de vida ele foi meu camarada<br />

Hoje dou casa e comida dinheiro e roupa lavada<br />

Quando a polícia vier e souber quem paga a casa pra homem é mulher 379 .<br />

Depois que ele desceu do morro passa fome pra cachorro<br />

E ofereço meu socorro e ele diz que não quer...<br />

Diz que não depende de favores de mulher (...)<br />

Pra viver na cidade atirado nas ruas como um cão<br />

Ele que volte pro morro e venha viver no meu barracão 380 .<br />

Para a mulher do morro, pobre, negra, ou para a suburbana que viajava de trem de Bangu para<br />

o centro do Rio, trabalhar, era uma questão de sobrevivência.<br />

BR/RF:<br />

Lata d’água na cabeça lá vai Maria, lá vai Maria.<br />

Sobe o moro e não se cansa, pela mão leva criança, lá vai Maria.<br />

Maria lava roupa lá no alto lutando pela pão de cada dia.<br />

Sonhando com a vida do asfalto que acaba onde o morro principia 381 .<br />

SD:<br />

Ensaboa mulata ensaboa, ensaboa to ensaboando.<br />

Ensaboa mulata ensaboa, ensaboa to ensaboando<br />

To lavando a minha roupa, lá em casa tão me chamando, dondon.<br />

Ensaboa mulata ensaboa, ensaboa to ensaboando 382 .<br />

Longe de ser uma postura libertária ou feminista, a mulher pobre trabalhava para completar a<br />

renda da casa em que o salário do homem mostrava-se insuficiente.<br />

379 Quando a polícia vier. João da Baiana, 1915.<br />

380 Volte pro morro. Adenilde Fonseca; Benedito Lacerda, Darci de Oliveira, 1942.<br />

381 Lata d’água. Luís Antônio e J. Júnior, 1952.<br />

382 Ensaboa. Cartola, 1975.<br />

148


149<br />

Apesar de encontrarmos algumas mulheres trabalhando em casas de<br />

comércio ou como operárias, o serviço doméstico era o principal reduto<br />

ocupacional das mulheres pobres. A tabela de profissões do Distrito Federal<br />

de 1906 indica que, do total de 117.904 pessoas que se declararam<br />

empregadas em serviço doméstico, 94.730, eram mulheres e apenas 23.174<br />

eram homens. O trabalho remunerado da mulher pobre, portanto, era, em<br />

geral, uma extensão de suas funções domésticas, sendo realizado dentro de<br />

sua própria casa ou na casa da família que a empregava. Sendo assim, era<br />

relativamente fácil para essas mulheres arrumarem uma colocação como<br />

lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, etc. Muitas ainda se dedicavam a<br />

fazer doces e salgadinhos em casa, indo depois para a rua vendê-los junto<br />

com os filhos mais crescidos (CHALHOUB, 1986, P.137).<br />

A possibilidade de arrumar trabalho doméstico com alguma facilidade colocava a mulher<br />

pobre numa posição de relativa independência em relação a seu homem (CHALHOUB, 1986,<br />

p.137). Porém, esse lugar de importância dentro do ambiente conjugal não livrou a mulher da<br />

violência de seus companheiros, ao contrário, quanto menos a mulher se colocava no lugar de<br />

submissão e passividade, mais era vítima de agressões domésticas.<br />

RF:<br />

SD:<br />

Na subida do morro me contaram<br />

Que você bateu na minha nêga<br />

Isso não é direito<br />

Bater numa mulher que não é sua 383 .<br />

Vale afirmar ainda que o discurso que constrói o signo mulher urbana, inclusive a da favela,<br />

como traiçoeiro ou submisso às pancadas do homem (justificadas pelo mesmo discurso),<br />

retro-alimenta outra construção do signo mulher em relação à roça e ao subúrbio, no que diz<br />

respeito à Arcádia que as duas sínteses territoriais inscrevem. Assim, em Mulher Boêmia 384 ,<br />

1928, como estratégia de defesa à maldade das mulheres da cidade, a fala afirma: “vou me<br />

esconder lá no sertão” – sugerindo que lá as mulheres seriam mais honestas do que na cidade.<br />

Em Até hoje não voltou 385 , 1946, também se inocenta a mulher da roça que só se desvirtua<br />

quando conhece os prazeres da cidade grande: “eu fui buscar uma mulher na roça que não<br />

gostasse de samba e nem gostasse de troça, uma semana depois que aqui chegou mandou<br />

esticar os cabelos e a unha dos pés pintou, foi dançar na gafieira e nunca mais voltou”. Essa<br />

construção positiva do signo mulher da roça/subúrbio em relação ao signo mulher da cidade,<br />

que aí se confunde com a favela, parece ajuizar-se de forma hegemônica no <strong>cancioneiro</strong>.<br />

CM:<br />

Eu vou voltar que não agüento.<br />

383 Na subida do morro. Moreira da Silva; Ribeiro Cunha.<br />

384 Mulher Boêmia. L. Barbosa e Pixinguinha, 1928.<br />

385 Até hoje não voltou. Geraldo Pereira, J. Portela, 1946.


O Rio de Janeiro não me sai do pensamento.<br />

As mulheres na areia se deitam de todo o jeito<br />

Que o coração do sujeito chega a mudar a pancada<br />

E muitas delas vestem um tal de biquíni.<br />

Se o cabra não se previne dá uma confusão danada 386<br />

Zé matuto foi a praia, só pra ver como é que é<br />

Mas voltou ruim da bola de ver tanta rabichola nas cadeira das muié<br />

Zé matuto matutou, matutou e escreveu pra Clodovil<br />

Ele logo respostou, e atacou, isso é atraso do Brasil<br />

Uma tanga, minitanga, tão pequena, pititinha, miudinha não precisa amarrar...<br />

Ora pomba ora bolas, jogue fora a rabichola e deixa a tanga voar... 387<br />

Vou mudar para a cidade vou deixar o meu sertão<br />

Eu gosto de novidade no sertão não encontro não<br />

A moda que mais me prende é a moda da cidade<br />

Saia curta e perna grossa morena de qualidade<br />

Moça bonita cheia de tanta vaidade<br />

Deixa a gente bem tantan com tanto balangandâ 388<br />

Certa veiz tive um "desejo"<br />

de prová um mér de um bejo<br />

da boquinha de vancê.<br />

Lá no trio da baixada<br />

pertinho da encruziada<br />

debaxo de um pé de ipê.<br />

Mas o destino é traiçoero<br />

e me deixô na solidão.<br />

Foi-se embora pra cidade<br />

me deixou triste saudade<br />

neste pobre coração 389 .<br />

Me deixaste no sertão abandonado<br />

Tua casinha lá no alto da montanha<br />

Agora é tão estranha tem mesmo a cor da saudade<br />

Me desprezaste por um outro da cidade 390<br />

Deixa a cidade formosa morena<br />

Linda pequena e volta ao sertão<br />

Volta pra vida serena da roça<br />

Naquela palhoça no alto da serra 391<br />

Quando eu me alembro de deixar Copacabana<br />

E as morenas que eu tenho visto por cá<br />

Eu fico triste, sinto frio, sinto medo<br />

E fico me achando todo azedo e com vontade de chorar<br />

386 Xote de Copacabana. Jackson do Pandeiro, 1956.<br />

387 Deixa a tanga voar. Luís Gonzaga; João Silva.<br />

388 A moda da cidade. Antenógenes Silva, Antoninho de Moraes, 1940.<br />

389 Pé de Ipê. Tonico e Tinoco, 1963.<br />

390 Cabocla. Tonico e Tinoco, 1958.<br />

391 Chuá, Chuá. Pedro de Sá Pereira, Ary Pavão, Marques Porto, 1925.<br />

150


SD:<br />

Mas mesmo assim, adeus, o morena dengosa<br />

Me desculpe, mais a Rosa tá em primeiro lugar 392<br />

Moça se vestir de cobra<br />

E dizer que é distração<br />

Vocês cá da capital<br />

Me desculpem esta expressão<br />

No Ceará não tem disso não 393<br />

Já não se usa mais meia que é pra fazer economia<br />

Pinta a cara que parece porta de tinturaria<br />

Passo o dia lá na cidade eu parei pra ver até<br />

Agora já ta na moda pintar as unhas do pé<br />

Até os corte de cabelo que nos homens é natural<br />

Há tempos pegou nas moças e nas velhas foi parar 394<br />

Depois dessa exegese discursiva do CM, (que parece cada vez mais a vontade no jogo) já deu<br />

para o Seu Doutor, perceber que nem sempre as opiniões coincidem no que diz respeito às<br />

qualidades da mulher da roça e da mulher da cidade. Aliás, se as opiniões sobre as diferenças<br />

entre urbano e rural já não coincidem entre nós, Seus Doutores, porque haveriam de coincidir<br />

entre CM, BR e RF? Não coincidem no sentido de que a qualificação da mulher da roça como<br />

séria, honesta e tradicional muitas vezes é invertida na construção daquela que abandona a<br />

roça e vai para a cidade. Por outro lado, a mulher da cidade na fala de CM, por vezes, é<br />

inscrita como a mais atraente e interessante, mesmo, para o homem da roça. Mas, se o dissídio<br />

não deve, nem pretende, chegar ao consenso, faz avançar o campo temático para novos<br />

diálogos e debates. Faz mover o jogo. Assim, a questão urbano/rural que outra vez se abre<br />

para encontros e diferenças, diz respeito ao do sentimento da saudade presente nos polos<br />

dicotômicos subúrbio/cidade, favela/cidade e roça/cidade. Apesar de já referenciado<br />

anteriormente vale a pena retornarmos a eles, enfatizando o signo de Arcádia como forma<br />

preferencial de expressão da origem inventada favela/subúrbio/roça.<br />

BR:<br />

Favela ô, Favela, Favela que trago no meu coração.<br />

Ao recordar com saudade a minha felicidade<br />

Favela do sonho de amor e do samba-canção<br />

Hoje tão longe de ti se vejo a lua surgir<br />

Relembro a batucada eu começo a chorar<br />

Favela das noites de samba, berço dourado dos bambas.<br />

Favela é tudo o que eu posso falar<br />

Minha Favela querida onde eu senti minha vida<br />

392 Adeus, Rio. Luís Gonzaga, Zé Dantas, 1953.<br />

393 No Ceará não tem disso não. Luís Gonzaga, Guio de Moraes, 1950.<br />

394 As modas femininas Florenço, Raul Torres, 1944.<br />

151


Presa a um romance de amor numa doce ilusão<br />

Em uma saudade bem rara na distância que nos separa.<br />

Eu guardo de ti esta recordação 395 .<br />

A noite lá no morro é tão bonita que parece uma aquarela<br />

Deslumbrante fantasia no cenário do luar<br />

A vida agitada das ruas de asfalto não deixa um momento pra gente sonhar<br />

Quem sonha prefere viver lá no alto mais perto do céu e por cima do mar 396<br />

No meu barraco não tenho mobília<br />

Porque mobília é futilidade<br />

Também não tenho brigas de família<br />

Não ter família é que é felicidade<br />

No meu barraco a comida é pouca<br />

Não tem quitutes nem variedades<br />

Porém se come com uma fome louca<br />

Comer com fome que felicidade...<br />

Lá não tem gás nem eletricidade<br />

Não pago a luz não pago imposto 397 ...<br />

152<br />

SD:<br />

O signo favela, como cantado no <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, principalmente, a partir dos anos 30,<br />

expressa o sentido de Arcádia, comunidade de pessoas, palco de solidariedades e<br />

reciprocidades que contradiz o discurso da modernidade impessoal signo que reverbera<br />

hegemonicamente no signo cidade. A essa construção discursiva corresponde um processo de<br />

transformação na maneira de se inscrever e sentir o signo favela, construído a partir de falas<br />

internas e externas ao território. Alimentando e retroalimentado por práticas lúdicas e relações<br />

de vizinhança entre sujeitos internos, assim como, entre sujeitos internos e externos ao<br />

território delimitado pela permanente construção do signo favela.<br />

BR:<br />

Nossas roupas comuns dependuradas<br />

Na corda, qual bandeiras agitadas<br />

Pareciam estranho festival!<br />

Festa dos nossos trapos coloridos<br />

A mostrar que nos morros mal vestidos<br />

É sempre feriado nacional<br />

A porta do barraco era sem trinco<br />

Mas a lua, furando o nosso zinco<br />

Salpicava de estrelas nosso chão<br />

Tu pisavas os astros, distraída,<br />

395 Favela. (I) Francisco Alves – (C) Roberto Martins e Waldemar Silva, 1936.<br />

396 Fantasia. Dunga, Mario Rossi, 1945.<br />

397 Meu barraco. Dilu Melo, Duque, 1946.


SD:<br />

Sem saber que a ventura desta vida<br />

É a cabrocha, o luar e o violão 398<br />

Barracão de zinco sem telhado<br />

Sem pintura, lá no morro<br />

Barracão é bangalô<br />

Lá não existe felicidade de arranha-céu<br />

Pois quem mora lá no morro<br />

Já está pertinho do céu<br />

Tem alvorada tem passarada alvorecer<br />

Sinfonia de pardais anunciando o amanhecer<br />

E o morro inteiro no fim do dia<br />

Reza uma prece Ave-Maria. 399<br />

Às vezes, o sentimento de Arcádia, que a despeito da carência material persiste como valor<br />

positivo, diz respeito mais ao tempo passado do que ao lugar que resiste a modernidade.<br />

Ainda assim, é possível sentir o lugar atuando de forma inseparável à ação que a fala inscreve.<br />

SD:<br />

Garoto da rua que anda rasgado,<br />

Com bolso pesado de bolas de gude,<br />

Que estuda sem livros a filosofia,<br />

Buscando alegria num fardo tão rude.<br />

Garoto da rua que corre na frente<br />

Da turma valente que tasca balão,<br />

Na bola de meia é craque afamado.<br />

É rei coroado cravando pião.<br />

Garoto da rua que é bamba da zona<br />

Que pega carona melhor que ninguém,<br />

Ao vê-lo, relembro saudosa quimera,<br />

Do tempo que eu era garoto também 400 .<br />

Teco-teco-teco-teco na bola de gude era o meu viver<br />

Quando criança no meio da garotada com a sacola do lado só jogava pra valer<br />

Não fazia roupas de bonecas nem tampouco comidinhas<br />

Com as garotas do meu bairro que era natural<br />

Subia em poste, soltava papagaio<br />

Até meus quatorze anos era esse o meu mal 401<br />

Considerando-se as múltiplas falas do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> é óbvio que certo discurso de<br />

exaltação propondo uma cidade maravilhosa, uma cidade do progresso, uma cidade de<br />

153<br />

398 Chão de estrelas. Orestes Barbosa, Silvio Caldas, 1950.<br />

399 Ave-Maria do morro, Trio de ouro; Herivelto Martins, 1942. A atmosfera sacra que inspira a canção<br />

aproxima o morro do monastério, talvez mais, do próprio paraíso que se descortinaria aos olhos dos<br />

moradores da favela ao entoarem o cântico acompanhado da sinfonia que verte do assovio dos<br />

pardais. Os sentidos de pureza, virtude, solidariedade, congraçamento e beleza convergem na<br />

beatitude do canto.<br />

400 Garoto de rua. René Bittemcourt, 1946.<br />

401 Teço-teco. Ademilde Fonseca, 1950.


amores, flores e belezas sem igual, objeto de afetos e orgulho proliferou em canções por todo<br />

o Brasil. Esse espírito exaltado do signo citadino não deve ser omitido em nosso jogo.<br />

BR:<br />

Cidade de amor e aventura que tem mais doçura que uma ilusão<br />

Cidade mais bela que o sorriso, maior que o paraíso melhor que a tentação<br />

Cidade que ninguém resiste na beleza triste de um samba-canção<br />

Cidade de flores sem abrolhos que encantando nossos olhos prende o nosso coração<br />

Cidade notável, Inimitável, Maior e mais bela que outra qualquer.<br />

Cidade sensível, Irresistível, Cidade do amor, cidade mulher.<br />

Cidade de sonho e grandeza que guarda riqueza na terra e no mar<br />

Cidade do céu sempre azulado, teu Sol é namorado da noite de luar<br />

Cidade padrão de beleza, foi a natureza quem te protegeu<br />

Cidade de amores sem pecado, foi juntinho ao Corcovado que Jesus Cristo nasceu 402<br />

Cidade do arranha-céu e da garoa também<br />

Quem vive pertinho mil felicidades tem<br />

Terra das morenas terras das loirinhas<br />

Oitava maravilha céu das andorinhas<br />

Terra qeu Deus abençoou meu São Paulo da garoa<br />

Terra do sorriso berço da nobreza<br />

Terra da canção céu da natureza<br />

És a rainha entre as mil paraíso do Brasil 403<br />

Aonde estão teus sobrados de longos telhados e teus lampiões<br />

E os moços da academia... e as sinhazinhas delgadas? (...)<br />

O tempo tudo mudou mas não apagou a tua poesia<br />

A garoa cai a toa pra guardar a tradição<br />

São Paulo num so minuto é o Brás, Tietê, viaduto,<br />

Barraca de flores e a multidão.<br />

Os pardais em madrigais o sol rasgando a cerração.<br />

E a noite com seus pintores<br />

Apagando e acendendo em cores teu nome no meu coração 404 .<br />

Olinda, cidade heróica, monumento secular da velha geração...<br />

Olinda! Seras eterna e eternamente viveras no meu coração!<br />

Quisera ver teu passado, Olinda,<br />

Quando era ainda cheia de ilusão,<br />

Para contemplar a tua paisagem<br />

Para olhar teus mares, ver teus coqueirais...<br />

Pular na rua com a meninada,<br />

Brincar de roda e de cirandinha...<br />

Depois subir a ladeira do mosteiro,<br />

Rezar a Ave Maria E nada mais...<br />

Olinda! Eterna! 405<br />

Eu ando pelo recife, noites sem fim, percorro bairros distantes sempre a escutar<br />

Luanda, luanda, onde está? É alma de preto a penar<br />

Recife, cidade lendária de pretas de engenho cheirando a banguê<br />

Recife de velhos sobrados, compridos, escuros faz gosto se ver<br />

402 Cidade mulher. Orlando Silva; Noel Rosa, 1936.<br />

403 Cidade do arranha-céu. Orlando Silva; Alvarenga, Edgard Cardoso, Ranchinho, s.d.<br />

404 Perfil de São Paulo. Silvio Caldas – (C.) Francisco de Assis, Bezerra de Menezes, 1954. p5<br />

405 Olinda, cidade eterna. Capiba, 1950 p3<br />

154


CM:<br />

Recife teus lindos jardins recebem a brisa que vem do alto mar<br />

Recife teu céu tão bonito tem noites de lua pra gente cantar<br />

Recife de cantadores vivendo da glória, em pleno terreiro<br />

Recife dos maracatus dos tempos distantes de pedro primeiro<br />

Responde ao que eu vou perguntar: Que é feito dos teus lampiões?<br />

Onde outrora os boêmios cantavam suas lindas canções 406<br />

Bahia, Bahia, é com lágrimas nos olhos que eu me despeço até um dia<br />

Adeus senhor do Bonfim adeus Bahia bonita que sambou pra mim<br />

Bahia cidade velha cheia de recordações<br />

És pra aí um calendário do passado, tradições<br />

Tantos sambas tantos versos já fizeram prá você<br />

Mas, não conseguem dizer o que você é, porquê? 407<br />

São Salvador, Bahia de São Salvador a terra de Nosso Senhor<br />

Pedaço de terra que é meu<br />

São Salvador, Bahia de São Salvador a terra do branco mulato<br />

A terra do preto doutor<br />

São Salvador, Bahia de São Salvador a terra do Nosso Senhor<br />

Do Nosso Senhor do Bonfim<br />

Oh Bahia, Bahia cidade de São Salvador Bahia oh, Bahia cidade de São Salvador 408<br />

Nas sacadas dos sobrados<br />

Da velha São Salvador<br />

Há lembranças de donzelas,<br />

Do tempo do Imperador.<br />

Tudo, tudo na Bahia<br />

Faz a gente querer bem<br />

A Bahia tem um jeito,<br />

Que nenhuma terra tem! 409<br />

Chego até ficar maluco com o rasqueado apaixonado<br />

Essa musica penetra no meu peito amargurado<br />

Faz lembrar do Paraguai essa boa terra irmã<br />

Faz lembrar Porto Esperança faz lembrar Ponta-porã<br />

Meu prazer seria ouvir rasqueado a vida inteira<br />

Faz lembrar as noites lindas que eu passei lá na fronteira<br />

Lembro então Porto Motim, Bela Vista e Corumbá<br />

Tres Lagoas, Campo Grande, Aquidauana e cuiabá 410<br />

Ai que saudade lá de Pernambuco (...)<br />

Quando eu me lembro dá vontade de chorar<br />

Daquelas pontes do Capibaribe das caçadas em bibiribe e das noites de luar<br />

Dos valentões com peixeira na cinta e um punhal de sobreaviso e a rasteira a vadiar<br />

Em Pernambuco tudo é diferente como é boa aquela gente<br />

Quem vai lá não quer voltar 411<br />

406 Recife, cidade lendária. Capiba, 1950. p3<br />

407 Cidade velha. Dircinha Batista; Grande Otelo, Herivelto Martins, 1942.<br />

408 São Salvador. Dorival Caymmi, 1950. p3<br />

409 Você já foi a Bahia? Dorival Caymmi, 1941. p5<br />

410 Cidade de Matogrosso. Trio Marabá; Arlindo Pinto, Mário Zan, 1952. p3<br />

411 Saudade de Pernambuco. Luis Gonzaga – Micelli, Rosendo, s.d. p5<br />

155


SD:<br />

Porém, convivendo com “Cidade Maravilhosa 412 ” ou “Valsa de uma cidade 413 ”, há um<br />

discurso que inscreve o signo favela/subúrbio/roça como lugar que desperta saudades por<br />

quem o trocou pela cidade. O signo favela/subúrbio/roça é experimentado pela inscrição de<br />

sentimentos nobres, genuínos, em oposição ao signo cidade, território do orgulho, da<br />

falsidade, do sarcasmo e do vício.<br />

BR/RF:<br />

O morro começa ali onde o sambista sorri ao choro dos violões<br />

O morro só principia onde acaba a hipocrisia que domina nos salões<br />

O morro é diferente todo mundo é inteligente embora sem instrução<br />

Há perfume pela mata castelos feitos de lata onde não mora a ambição<br />

Ali no morro começa uma vida que não cessa de nos dar lições de amor<br />

O morro começa ali onde o sambista sorri perto do Nosso Senhor 414<br />

Lá no morro todo caixote é cadeira todo colchão é de esteira<br />

Vela acesa, iluminação (...).<br />

Rico é visita no meio da gente, pedra arrumada é fogão bem eficiente.<br />

Ir lá no morro é saber da verdade não há fingimentos como há na cidade<br />

Tudo no morro é tão diferente todo vizinho é amigo da gente<br />

Há um batuque, nossa maravilha, toda cabrocha pertence à família.<br />

Tudo no morro é melhor que na cidade tanto na dor quanto na felicidade<br />

Quando a cidade adormece sonhando o morro penetra na noite cantando. 415<br />

BR/CM:<br />

Cidade do interior tem a sua estação de trem<br />

Um clube a matriz um jardim e um baile mensal familiar<br />

Tem um cinema modesto e um pequeno jornal<br />

Que sai todo domingo e quando é feriado nacional<br />

Cidade do interior tem um grupo escolar também<br />

E um rio que passa cantando espelhando o luar<br />

E o ideal que todos têm no interior é crescer e casar para saber o que é o amor 416<br />

CM:<br />

Vamos passar o São João no Barro Preto<br />

Pular fogueira e brincar lá no coreto<br />

Comer biscoito de polvilho saboroso<br />

Tomar quentão bem quentinho e gostoso 417<br />

SD:<br />

Músicas idealizando o morro como “Arcádia” parecem não ter fim. Eu vivia no morro 418 ,<br />

1936 “ao som do lamento do meu violão, mas um dia vim pra cidade onde vivo chorando em<br />

412 Cidade maravilhosa. Aurora Miranda; André Filho, 1937. p3<br />

413 Valsa de uma cidade. Lúcio Alves; Antonio Maria, Ismael Neto, 1954. p3<br />

414 O morro começa ali (Custódio Mesquita e Heber de Boscoli, 1941) p4<br />

415 Vida no morro. Odete Amaral (Hanibal Cruz, 1942). P4<br />

416 Cidade do interior. Araci de Almeida; Marino Pinto, Mario Rossi, 1947.<br />

417 São João no Barro Preto. Linda Batista – Grande Otelo, 1944. t0<br />

418 Eu vivia no morro. Sonia Carvalho; Assis Valente, 1936. p4<br />

156


vão a minha saudade... eu não sabia que na cidade só tem mentira e falsidade”. Quando eu<br />

desço lá do morro 419 , 1940, “Ela sabe que eu sou pobre até demais e diz a todo mundo que<br />

sou um bom rapaz, não acredito e quero a confirmação se ela troca um palacete pelo meu<br />

barracão”. Palacete de malandro 420 , 1933, “Meu barracão é um palácio na minha<br />

imaginação, nem por todo o dinheiro do mundo vou morar em outro lugar”. Gosto mais do<br />

Salgueiro 421 , 1943, “Não posso sair do Salgueiro, estamos em fevereiro, você me levar pra<br />

Copacabana quer me ver toda bacana, mas já tenho um pandeiro”. Exaltação ao Salgueiro 422 ,<br />

s.d., “és a natureza em flor, um ninho de amor tu és a paz, terra adorada dos sambistas<br />

imortais”. Mundo de madeira 423 , 1955, “Lá na barreira do Vasco eu também tenho um<br />

barracão pra repousar meu casco, lata de banha furada é fogão, barril cerrado no meio é<br />

banheira, luz da Light é lampião, tudo é diferente naquele mundo de madeira”. Subi o<br />

morro 424 , 1943, “vi as cabrochas requebrando as cadeiras como ninguém tem, vi um tipo de<br />

mulato esquisito que com seu apito chamava a atenção e a cuíca na velha marcação e logo<br />

uma cabrocha grita esquidô, esquidô evolução”. Luar do morro 425 , 1937, “a lua lá no morro<br />

já brilhou, clareando o barracão e o malandro que perdeu o seu amor faz o samba da saudade<br />

que ele tem no coração”. Não deixarei o morro 426 , 1937, “pois a mim não seduziram as<br />

belezas da cidade”. Eu nasci no morro 427 , 1945, “Num pobre barracão de caixão, vida de<br />

cachorro, pé no chão sem tostão, depois segui meu caminho eu sozinho conheci o luxo a<br />

vaidade lá da cidade, meus amores não duravam mais que um dia, lugar melhor não encontrei,<br />

no morro nasci e no morro morrerei”. Melodia do morro 428 , 1955, “Lá no morro a tristeza<br />

não tem jeito nem tem hora é o samba quem manda com certeza toda a tristeza embora”.<br />

Assim é o morro 429 , 1955, “O morro é assim á tudo diferente amanhece a batucar, anoitece a<br />

cantar um samba comovente que mexe com a gente”. Favela Morena 430 , 1943, “Minha favela<br />

morena das noites de batucada toda vestida de chita e de sandália encarnada favela das<br />

serenatas berço do samba dolente da melodia amarela que fere a alma da gente”. Na favela 431 ,<br />

1932, “tem um samba onde se quebra a canela, foi onde nasceu minha bela”. Exaltação da<br />

419 Quando eu desço lá do morro. Patrício Teixeira; Augusto Garcez, Ciro de Souza, 1940. p4<br />

420 Palacete de malandro. Custódio Mesquita, 1933.<br />

421 Gosto mais do Salgueiro. Germano Augusto, Wilson Batista, 1943. t3<br />

422 Exaltação ao Salgueiro. Éden Silva, hAnibal Silva, Nilo Moreira, s.d. t3<br />

423 Mundo de madeira. Jorge de Castro, Wilson Batista, 1955. t3<br />

424 Subi o morro. Odete Amaral; João de Deus, Sebastião Figueiredo, 1943. p4<br />

425 Luar do morro. Odete Amaral; Valfredo Silva, 1937. p4<br />

426 Não deixarei o morro. Odete Amaral; Juraci Araújo, A. Pimentel, 1937. p4<br />

427 Eu nasci no morro. Déo; Ary Barroso, 1945. p4<br />

428 Melodia do morro. Ataulfo Alves, Luis de França, Nelson Bastos, 1955. p4<br />

429 Assim é o morro. Hélio Chaves; Zé Kéti, 1955. p4<br />

430 Favela Morena. Odete Amaral – Estanislau Silva, João Peres, 1940. p4<br />

431 Na Favela. Moreira da Silva. Getulio Marinho, 1932. p4<br />

157


Favela 432 , 1936, “quando a cidade a seus pés dorme o sono cansada, o pinho geme no morro<br />

anunciando o cantor, qual vaga-lume no céu a lua ilumina a alvorada, uma casa de zinco onde<br />

mora o seu amor”. Sem exagero, é possível cobrir páginas e páginas com exemplos iguais a<br />

estes. Nessa profusão de vozes convergentes sobre a idealização da favela, deve-se considerar,<br />

como colocado, que muitas delas não emergiam necessariamente da favela, mas, da cidade.<br />

Isso pode ser interpretado como um território de consenso, entre vozes do morro e do asfalto<br />

no que diz respeito à valoração do signo morro.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Já percorri os morros da cidade pra ver se era verdade o que dizem por aí<br />

E ver de perto o sambista bamba que é quem faz o bom samba e vejam só o que eu vi<br />

Vi coisa que não foi sopa vi muita tina de roupa vi muito aluguel barato<br />

A gente logo percebe que água que o boi não bebe lá no morro é mato<br />

Vi muita coisa engraçada vi em cada encruzilhada um feitiço uma muamba<br />

Eu vi gato e vi cachorro e sabe o que eu não vi? Samba 433<br />

Poxa, mas será que nem o signo do morro/samba vocês vão respeitar? Pelo menos concordam<br />

que o morro é o lugar da pobreza, assim, historicamente construído, não é?<br />

BR:<br />

SD:<br />

Há um morro na cidade de São Sebastião onde o samba não vai, não vai, não vai não.<br />

Esse morro é o morro de Santa Tereza onde o bonde a 80 centavos<br />

E o samba não pode fazer essa despesa, pandeiro, tamborim e violão,<br />

Lá não tem cotação, morro de grã-fino o samba não vai não, mas eu vou 434 .<br />

Está bem concordo com mais esse contra-exemplo de vocês, mas estou falando de forma<br />

hegemônica, assim não dá, tudo que eu digo sempre pode ser negado por vocês. Assim, minha<br />

fala vai ficar cheia de furos.<br />

BR:<br />

SD:<br />

De tanto levar frechada do teu olhar meu peito até parece sabe o que?<br />

Tálbua de tiro ao Álvaro, não tem mais onde furar... 435<br />

Vou fazer de conta que não entendi a piada. Como dizia, claro que contra-exemplos também<br />

existiram, mas, a construção do signo favela como Arcádia era hegemônica, e tão presente<br />

quanto o discurso ufanista nacionalista cuja expressão mais evidente “Aquarela do Brasil” foi<br />

432<br />

Exaltação da favela. Irmãs Pagãs – Custódio Mesquita, 1936. p4<br />

433<br />

Lenda do morro. Quatro ases e um coringa; Afonso Teixeira, Peterpan, 1944. p4<br />

434<br />

Morro de Santa Tereza. (I) Quatro ases e um coringa – (C) Herivelto Martins, 1949. p4<br />

435<br />

Tiro ao Álvaro. Adoniran Barbosa, 1950.<br />

158


devidamente apropriada pelo discurso de construção do signo favela em “Aquarela do<br />

Morro”, exaltando as virtudes e belezas da favela.<br />

BR:<br />

CM:<br />

BR:<br />

SD:<br />

Noite majestosa.<br />

Mulata dengosa no terreiro a gingar.<br />

Sambistas apaixonados cantando.<br />

Tocando pandeiro pra ela sambar.<br />

Ó que melodia diferente sua poesia é tão bela.<br />

O morro que fez o samba entrar no coração da gente.<br />

Também tem a sua aquarela 436 .<br />

No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra,<br />

Não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.<br />

Juriti não suspira, inhambú seu canto encerra.<br />

Não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.<br />

Acauã, bem no alto do pau-ferro, canta forte,<br />

Como que reclamando sua falta de sorte.<br />

Asa branca, sedenta, vai chegando na bebida.<br />

Não tem água a lagoa, já está ressequida 437 .<br />

Negras redondas de gordas levando a comida dos negros suados,<br />

Dos negros cansados de capinar; bate o monjolo a cadência do milho socado.<br />

Moleque, olha o gado, inda está no curral. Põe prá pastar!<br />

Roda o engenho de cana, de cana caiana É de manhãzinha...<br />

A vida começa, na Fazenda da Barrinha<br />

Minas Gerais, ó meu Minas Gerais,<br />

Se eu pudesse voltar a trinta anos atrás tocava os meus bois,<br />

Fumava escondido entre os cafezais. Ó tempinho bom, que não volta mais!<br />

Em Minas Gerais, tem ferro, tem ouro, tutu, tem gado Zebú,<br />

Tem também, umas toadas, alma sonora das quebradas...<br />

Encantos das noites de luar...<br />

E a história do Brasil tem muitas páginas heróicas, imortais<br />

Escritas, com sangue mineiro, salve, o meu estado de Minas Gerais! 438<br />

Haja aquarela e lápis de cor! O CM resolveu se manifestar com sua “Aquarela Nordestina”,<br />

que a meu ver me parece mais anti-aquarélica, visto que insiste na dicção da perda/falta como<br />

especificado anteriormente e o BR, para não fazer por menos mandou sua Aquarela Mineira.<br />

Mas, sem descuidar dessa outra dicotomia estabelecida entre a roça e a cidade, gostaria que<br />

insistíssemos um pouco mais na tensão entre os signos favela/cidade.<br />

BR:<br />

436 Aquarela do morro. A. Canegal, V. Silva, 1952. P4<br />

437 Aquarela Nordestina. Luís Gonzaga, Rosil cavalcanti, 1947.<br />

438 Aquarela Mineira. (I) Francisco Alves – (C) Ary Barroso, 1950. (buscar)<br />

159


SD:<br />

O sino da capela está batendo, Favela também tem religião<br />

Favela tem madame no bangalô, Favela tem cabrocha de pé no chão<br />

Favela fica perto da Gambôa, Favela de sete coroas<br />

Favela sempre teve tradição eu morei lá no tempo do Lampião<br />

Minha cabrocha do lado eu parecia um bom moço<br />

Tinha um chinelo Charlotte e um lenço no pescoço. 439<br />

BR apresenta uma “História da Favela” que se inspira em princípios próximos daqueles que<br />

norteiam discursos oficiais encarregados de inventar “Histórias” para o país, para o povo, para<br />

as regiões, para a Capital Federal e demais cidades a partir da invenção de um passado de<br />

glória, em que se destacam episódios e personagens importantes. Sobre essa invenção com<br />

base no reforço de signos que objetivam despertar orgulho do lugar gostaríamos agora de<br />

convidar outro sujeito discursivo ainda tratando do binômio cidade/favela. Trata-se de um tipo<br />

próximo do Seu Doutor, mas, que anda pelas quebradas da malandragem com menos<br />

distanciamento que o SD da Academia. É o jornalista, cronista, bom de copo que não se furta,<br />

depois de umas e outras, a arriscar uns versos de improviso nos botecos e rodas de samba que<br />

o percebem como outro, porém, com menos reverência e mais simpatia. Vejamos o que ele<br />

diz dessa construção polarizada entre os signos favela e cidade.<br />

SD cronista:<br />

160<br />

Só indo lá mesmo. E é preciso acabar com essa história de que o morro é<br />

terra de malandro. Eu, já fui várias vezes a vários morros e já morei vários<br />

meses em Copacabana, sou capaz de jurar que nos apartamentos da areia há<br />

mais malandros que nas casinhas de lata velha lá por cima. A grande maioria<br />

da população do morro é de trabalhadores, sujeitos que pegam no duro todo<br />

dia, que vivem suando. A malandragem existe mais no samba que na<br />

realidade. O batente é o mais comum. Malandros não teriam, por exemplo,<br />

capacidade para organizar uma escola de samba. Para isso é preciso ter<br />

espírito, a disciplina, a força de vontade de um trabalhador. E os morros<br />

estão cheios de escolas onde pode haver cachaça, mas há muita alegria,<br />

bastante respeito e, às vezes uma disciplina quase militar. (...) Quando falo<br />

que nas escolas de samba há muita alegria, não quero que se confunda<br />

alegria com bagunça. Ali não há cerimônia, mas também não há gandaia<br />

solta. (...) O cavalheiro que se dispõe a ir ao morro, mesmo com sua senhora,<br />

irmã, noiva, namorada, tia ou bisavó, não necessita levar uma metralhadora<br />

nem uma pistola de gás lacrimogêneo. A sua bolsa e a sua mulher não<br />

correm tanto perigo. A sua mulher, pelo menos, na sua descida do morro lhe<br />

dirá que foi tratada infinitamente com mais respeito do que quando passava<br />

pela Avenida, sábado de tarde. Um amigo meu foi há tempos a um morro.<br />

Havia bebido demais (...) Em pleno caos alcoólico deixou de saber o que<br />

estava fazendo.Acordou no dia seguinte numa cama ao lado de um mulato e<br />

uma mulata que o haviam rebocado até ali por caridade e ainda lhe deram<br />

café e dinheiro para o ônibus que o conduziria ao seu luxuoso apartamento<br />

em Ipanema. Vamos, portanto, para o morro ouvir as primeiras cuícas do<br />

carnaval do ano que vem. Não precisamos levar armas. Levemos ouvido e<br />

coração, para ouvir e para sentir. Não aprenderemos música. Mas sentiremos<br />

439 História da Favela. Nássara, Wilson Batista, 1953.


161<br />

coisas que são tristes e belas e que é bom sentir. Aprenderemos sentimento.<br />

(O morro não é dos malandros. BRAGA, 1936. In: Rio Artes, p. 28, 2003).<br />

(E continua em outra fala de algumas décadas depois)<br />

SD:<br />

Um domingo, mas não apenas algumas horas, todo um domingo, Lamartine<br />

Babo contaminou a Mangueira com sua alegria alvoroçante, comunicativa.<br />

Convidado para saborear uma muqueca que seria preparada pela D.Zica,<br />

companheira do famoso Cartola (Angenor de Oliveira) em homenagem a<br />

Marcel Camus, o cineasta francês chegado ao Rio para aqui realizar o Orfeu<br />

do Carnaval, o Lalá acedeu prontamente. Teria não só a grata oportunidade<br />

de visitando o decantado morro reencontrar uma de suas figuras mais<br />

expressivas e que tem o seu nome ligado à vitoriosa Estação Primeira (a<br />

aplaudida escola de samba dos suntuosos desfiles de nosso carnaval). Iria, ao<br />

mesmo tempo, conhecer um estrangeiro interessado em dar toda a<br />

autenticidade ao seu filme que, embora vivendo uma lenda mitológica, ia ter<br />

como ambiente o morro com seus barracos e sua gente. E pairando sobre<br />

tudo isso, a música simples e espontânea que ali nasce. Pouco depois, na<br />

roda que se formou antecedendo ao almoço, na qual havia tocadores de<br />

violão, de pandeiro, de tamborins, todos convocados por Cartola, Lamartine<br />

cantava suas composições empolgando um auditório numeroso e que ia<br />

aumentando continuamente. (...) Cartola entoava também os seus sambas. O<br />

morro e o asfalto cantando juntos e embevecendo Camus que, pela primeira<br />

vez, via e ouvia o ritmo <strong>brasileiro</strong> em várias de suas nuances e numa<br />

exibição pura, emoldurada por um cenário exato. Findo o almoço, formou-se<br />

novamente a roda e então, mais animada, a mostra das canções do morro e<br />

do asfalto prosseguiu empolgante na interpretação de duas figuras<br />

exponenciais: Cartola e Lamartine Babo. Desse domingo festivo, de gala<br />

para a música <strong>popular</strong> brasileira, ficou uma recordação muito grata entre a<br />

gente da Mangueira desejosa de uma nova visita do querido compositor da<br />

cidade que com ela comungou casando sua música com a do sambista dali,<br />

do morro. Esse reencontro, a volta de Lamartine ao morro, não deixará de<br />

ser cumprido por sua morte. Ele voltará, não somente num domingo, mas<br />

sempre que alguma de suas composições, ali se fizer ouvir, tornando-o<br />

presente numa evocação saudosa e amiga (EFEGÊ. “O morro e o asfalto<br />

cantando juntos”, p.72, 1968).<br />

Aqui, faz-se necessário pôr um sinal de alerta mais direcionado aos Seus Doutores do que a<br />

BR, RF e CM, porém, sintam-se livres para opinar também. Ainda que se considerem as<br />

condições sociais e políticas construídas de forma reflexiva por sujeitos discursivos, da<br />

literatura, imprensa ou certa produção da sociologia que, em diálogo com o <strong>cancioneiro</strong>,<br />

produziram dialogismo, vale como alerta de ordem epistemológica, não supor a urbanidade<br />

brasileira como um real dado do qual o <strong>cancioneiro</strong> (através do discurso de sujeitos<br />

discursivos) constituiria representação. Deve-se, isso sim, pensar o <strong>cancioneiro</strong>, como um<br />

domínio reflexivo que se expressa através de um tipo de discurso singular: a música. Como


tal, é capaz de constituir e classificar objetos, produzir interpretações e juízos e sugerir modos<br />

e formas de ação. O <strong>cancioneiro</strong> não constitui uma representação de algo designado como<br />

urbanidade, construída autonomamente. O <strong>cancioneiro</strong>, através de sujeitos discursivos,<br />

constitui para si uma urbanidade. Não negamos o processo de uma construção hegemônica de<br />

urbanidade da qual o <strong>cancioneiro</strong> participa reafirmando-a, negando-a ou ignorando-a. Signos<br />

da urbanidade, da ruralidade, do poder, da política se constituem no interior do próprio campo<br />

rasurado ou subjétil ou suporte falante da música <strong>popular</strong> que, como visto, sofre<br />

contaminações enquanto contamina à revelia.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Ia-Iá me deixa subir essa ladeira<br />

Eu sou do bloco que pega na chaleira.<br />

Lá vem o cordão dos “puxa-sacos”<br />

Dando vivas aos seus maiorais<br />

Quem está na frente é passado pra trás<br />

E o cordão dos puxa sacos cada vez aumenta mais<br />

Vossa excelência, vossa eminência.<br />

Quanta reverência nos cordões eleitorais.<br />

Mas, se o doutor cai do galho e vai ao chão.<br />

A turma toda evolui de opinião.<br />

E o cordão dos “puxa-sacos” cada vez aumenta mais 440 .<br />

Essa contaminação entre o campo rasurado da música e da política strictu sensu se expressa<br />

de forma bastante nítida na<br />

BR:<br />

162<br />

apropriação da letra do samba “Com que roupa?”, de Noel Rosa, pelo<br />

parlamentar, Maurício de Lacerda, cuja tentativa de desvendar o sentido da<br />

revolução de 1930, em um contexto em que não estavam claros os caminhos<br />

que a nova ordem republicana imporia ao país, indagou: “... com que roupa?<br />

Fascista, comunista ou socialista?” (CARVALHO, p.50, 2004).<br />

Com que roupa eu vou ao samba que você me convidou? 441<br />

Eu prometo feijão! Não!<br />

Eu prometo carne! Não!<br />

Mas o que vocês querem?<br />

Nós queremos cacareco<br />

Ai Ai Ai Ai que confusão que fizeram com cacareco<br />

Ele passou de mão em mão hoje é um gostosão 442 .<br />

440 Cordão dos “puxa-sacos”. E. Frazào e Roberto Martins, 1945. A ironia aumenta ao recordamos<br />

que o tema da canção faz referência à marcha carnavalesca “No bico da chaleira” que satirizava a<br />

mesma troca de favores no cenário político de 1907. Talvez, a história se repita para além da farsa, a<br />

despeito de Marx.<br />

441 Com que roupa? Noel Rosa, 1930.


Pode haver eleição lá no morro que o nosso presidente continua<br />

O presidente da nossa escola de samba tem trabalhado pra ver a turma sambar<br />

Mas como sempre há meia dúzia de fatos que,<br />

atrapalhando, não deixa o homem trabalhar.<br />

Não adianta oposição, estamos com o presidente, e ele está com a razão 443 .<br />

Voar, voar pra bem distante até Versalles<br />

Onde duas mineirinhas valsinhas dançam.<br />

Como debutante, interessante.<br />

Mandar parente a jato pro dentista<br />

Almoçar com tenista campeão<br />

Também poder ser um bom artista exclusivista.<br />

Tomando com Dilermano umas aulinhas de violão<br />

Isso é viver como se aprova, é ser um Presidente Bossa Nova 444 .<br />

Arranjo emprego pra quem está desempregado<br />

Arranjo água pra quem tem cano furado (...)<br />

Eu sou protetor de quem é fraco e oprimido<br />

Eu nunca fui fingido como alguns amigos meus<br />

A minha capa preta não tem medo de careta<br />

Não dispenso para nem por nada neste mundo<br />

Se alguém folga comigo me avexe eu perco a linha<br />

Aí, eu taco o dedo no gatilho da lurdinha que tosse que é uma belezinha 445<br />

Varre, varre, varre, varre, varre vassourinha<br />

Varre, varre a bandalheira<br />

Que o povo já está cansado<br />

De sofrer desta maneira<br />

Jânio Quadros é a esperança<br />

Desse povo abandonado 446<br />

Meu Brasil segue em frente vamos na onda moçada<br />

J-J foi a maior barbada<br />

O que passou, passou vamos trabalhar<br />

Vamos tirar petróleo do solo belo<br />

Salve o pendão verde e amarelo 447 .<br />

Gêgê, Juju, Janjão, Rua do Catete não tem placa no portão<br />

163<br />

442 Aí vem o cacareco. Lupe Ferreira, Raguinho, 1959. O voto cacareco: Itaboraí Martin, jornalista do<br />

Estado de S. Paulo e da Rádio Eldorado, desiludido com a baixa qualidade dos nomes a vereador<br />

nas eleições paulistas de 1959, comentou entre os amigos jornalistas que votaria em Cacareco. A<br />

brincadeira foi levada a sério. Itaboraí e seus colegas saíram pichando a cidade: “Cacareco para<br />

vereador”. E logo o paquiderme, rinoceronte, caiu nas graças da mídia e saltou aos olhos dos<br />

eleitorados. Entretanto, três dias antes da eleição, armaram contra a mais inusitada revelação do<br />

cenário político. Cacareco seria “exilado”: embarcaram-no num caminhão que o levaria de volta ao<br />

Rio de Janeiro. Na partida, um rio de gente deu adeus àquele que seria o maior nome do pleito<br />

municipal com estimados 90 mil votos.<br />

443<br />

Nosso Presidente continua. Aroldo Lobo, Wilson Batista, 1944. T3<br />

444<br />

Presidente Bossa Nova. Juca Chaves, 1960.<br />

445<br />

Bamba de Caxias. Moreira da Silva, Ribeiro Cunha, 1954. Fala de Tenório Cavalcante, deputado e<br />

pistoleiro do subúrbio de Caxias. T1<br />

446<br />

Varre varre vassourinha. Eldias de Castro, João da Terra, 1960.<br />

447<br />

Marcha do J-J. J. Goulart, Wilson Batista, 1955.t3


SD:<br />

Gêgê, Juju, Janjão quem será o homem para governar a pensão.<br />

Gegê, Juju, mon couer quem sabe se esse homem dessa vez vai ser mulher<br />

Tem café pro Gege Tem feijão pro Janjão, tem churrasco ao Juju no menu da pensão.<br />

Coma quem quiser se não os outros comem seja mulher ou seja homem 448 .<br />

Meu bem pra me livrar da matraca<br />

Da língua de uma sogra infernal<br />

Eu comprei um trem blindado pra poder sair no carnaval<br />

Mulata quando eu te vi logo pedi anistia<br />

Pois os teus olhos lançavam terrível fuzilaria<br />

E pra ninguém aderir ao nosso acordo amoroso<br />

Botei na porta de casa um canhão misterioso 449<br />

A despeito desse jeito todo particular de falar da Revolução de 32 e do trem blindado que<br />

supostamente seria usado pelas forças constitucionalistas em território paulista para atacar as<br />

forças do Governo Provisório de Getúlio, considero que o discurso BR teve êxito pelo menos<br />

ao colaborar na difusão da Revolução que, mesmo tratada com gravidade pela imprensa,<br />

passava um tanto despercebida para boa parte da população, aliás, como a maioria dos signos<br />

políticos que pareciam produzir conflitos apenas entre alas antagônicas das burguesias e do<br />

oficialato militar. Simultaneamente às notícias e crônicas de jornais e revistas, o <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong> elege e constitui seu próprio escopo de acontecimentos e assuntos muitas vezes<br />

desconstruindo ou ignorando a versão oficial o que enriquece e anima sobremaneira o debate<br />

político e politizador. O <strong>cancioneiro</strong> vai constituir suas próprias inscrições de uma miríade de<br />

signos – signo de signo – como guerras mundiais, história do Brasil, futebol, relações de<br />

vizinhança, trabalho, cidade, roça, celebridades públicas, política e poder dos quais explora<br />

assuntos variados – a Política da Boa-vizinhança estadunidense, as campanhas presidenciais, a<br />

repressão do Estado (polícia), o voto feminino, o voto de analfabetos, o populismo, o<br />

nepotismo, os favorecimentos privados à custa do erário público e a compra de votos em<br />

currais eleitorais.<br />

RF:<br />

Tenho saudades do terreiro e da Escola<br />

Eu sou do tempo do Cartola, Velha Guarda, o que que há?<br />

Eu sou do tempo que o malandro não descia<br />

Mas a polícia no morro também não subia 450 .<br />

Barulho no morro foi que houve no arrasta-pé<br />

Quando o Pedro deu um beijo na cabrocha do José<br />

448 Pensão do Catete. Jaime de Brito; Lamartine, Milton Amaral, 1937. p3<br />

449 Trem blindado. Braguinha, 1932.<br />

450 Saudades da Mangueira. H. Martins, 1953. A alteridade entre o malandro e a polícia é reforçada<br />

pela oposição entre a tradição do morro e o progresso da cidade. P0<br />

164


BR:<br />

CM:<br />

Enquanto eles brigavam todo mundo assistia<br />

Foi preciso que a polícia desse fim na valentia 451<br />

Bota o retrato do velho, bota no mesmo lugar.<br />

O sorriso do velhinho faz a gente trabalhar 452 .<br />

Só mesmo com Revolução graças ao rádio e ao parabelo<br />

Nos vamos ter transformação nesse Brasil verde e amarelo, Getúlio.<br />

Certa menina do Encantado cujo papai foi senador<br />

Ao ver o povo de encarnado sem se pintar mudou de cor, Getúlio 453 .<br />

AI Gêgê que saudade que nós temos de você<br />

O feijão subiu de preço o café subiu também<br />

Carne seca anda por cima não se passa pra ninguém,<br />

Tudo sobe, sobe, sobe, no cartaz<br />

Só o pobre do cruzeiro cada dia desce mais 454 .<br />

Eu agora vou cantar peço prestar atenção<br />

A política está forte na cidade e no sertão<br />

Tem uma grande diferença entre o pobre e o barão<br />

Rico tem tudo na vida, pobre não tem nada não 455 .<br />

Meu patrão eu voto e sou eleitor, meu patrão, eu voto no senhor<br />

Eu voto por muito pouco, digo agora pro senhor<br />

E grito até ficar rouco, já ganhou, já ganhou!<br />

Quero roupa, quero sapato, camisa fina demais<br />

Quem não conhece o A.B.C. será que pode votar?<br />

Porque se puder atole o pé e voto no meu patrão, eu voto 456 .<br />

165<br />

SD:<br />

A especificação territorializante do subúrbio, da favela e da roça como lugar próximo que<br />

inspira sentimento de conforto, de segurança, de tradição, lugar familiar em que se amparam<br />

práticas de coletividade e pertencimento tem por contraste o signo cidade especificado como<br />

território do progresso, do desconforto, do desconhecimento, do perigo. Alegria/tristeza da<br />

favela, como um devir CM em RF e BR, contrasta com a outra alegria/tristeza da cidade.<br />

BR/RF:<br />

Se a turma lá do morro fizer greve e não descer<br />

A cidade vai ficar triste carnaval vai morrer<br />

Todos os morros querem saber qual é a ordem que vai prevalecer<br />

Se as escolas não tiverem liberdade<br />

carnaval vai ser no morro ninguém desce pra cidade 457<br />

451<br />

Barulho no morro. Isaura Garcia; Roberto Martins, 1945. p4<br />

452<br />

Retrato do Velho. Haroldo Lobo, Marino Pinto, 1950.<br />

453<br />

Seu Getúlio. Almirante – L. Babo, 1931. p4<br />

454<br />

Ai Ge Ge! Jorge Goulart – Braguinha, José Maria de Abreu, 1950. p5<br />

455<br />

Rico e pobre. Gilverto e Gilmar.<br />

456<br />

Comício do mato. Joaquim Augusto, Nelson Barbalho, 1957.<br />

457<br />

Se o morro não descer. Araci de Almeida. Darci de Oliveira, Herivelto Martins, 1936. t2


SD:<br />

Apesar da construção polarizada morro x cidade, na fala anterior, é claro que alguma<br />

contaminação também se produzirá entre essas percepções na construção dos signos<br />

referentes ao rural/favela/subúrbio e à cidade.<br />

CM:<br />

BR:<br />

RF:<br />

Sr. réporter já que tá me entrevistando<br />

va anotando pra botar no seu jornal<br />

que meu Nordeste tá mudado<br />

publique isso pra ficar documentado<br />

Qualquer mocinha hoje veste mini-saia<br />

já tem homem com cabelo crescidinho<br />

O lambe-lambe no sertão já usa flashe<br />

carro de praça cobra pelo reloginho<br />

Já tem conjunto com guitarra americana<br />

já tem hotel que serve whisky escocês<br />

e tem matuto com gravata italiana<br />

ouvindo jogo no radinho japonês 458<br />

A minha prima lá do Piauí<br />

Deixou de fazer renda só pra ver novela<br />

A minha prima lá do Piauí<br />

Não bebe mais garapa: vai de coca-cola<br />

Luz de Candeeiro não se usa mais<br />

Luz artificial substitui o gás<br />

Calça de couro, alvorada e brim<br />

Deram o seu lugar pra uma tal calça lee<br />

A minha prima escreveu pra mim<br />

E não fala "venha cá", só fala "come here" 459<br />

O cinema falado é o grande culpado da transformação<br />

Dessa gente que sente que um barracão prende mais que um xadrez<br />

Lá no morro se eu fizer uma falseta, a Risoleta<br />

Desiste logo do francês ou do inglês.<br />

A gíria que o nosso morro criou<br />

Bem cedo a cidade aceitou e usou<br />

Mais tarde o malandro deixou de sambar dando pinote<br />

E só querendo dançar o fox-trot.<br />

Essa gente hoje em dia que tem mania de exibição.<br />

Não se lembra que o samba<br />

Não tem tradução no idioma francês.<br />

Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia.<br />

É <strong>brasileiro</strong>, já passou do português (...) 460 .<br />

Eu sou diretora do Estácio de Sá<br />

E felicidade maior nesse mundo não há<br />

458 Nordeste pra frente. Luiz Gonzaga, Luiz Queiroga, 1968.<br />

459 From United States of Piauí. Luis Gonzaga, 1972.<br />

460 Não tem tradução (Cinema falado). Noel rosa, 1933.<br />

166


CM:<br />

SD:<br />

Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema<br />

Ser estrela é bem fácil<br />

Sair do Estácio é que é o “X” do problema 461 .<br />

Não pretendo ser famoso nem quero ser milionário<br />

Moro longe da cidade num ranchinho solitário<br />

Não sou patrão de ninguém também não sou operário<br />

O sertão me dá de tudo não preciso de salário<br />

Pra vender colheita não tenho intermediário<br />

Não sou inteligente mas também não sou otário 462<br />

Por esse caminho interpretativo, apesar da resistência expressa nas duas últimas falas, o signo<br />

de Arcádia passa a ser contaminado pela possibilidade de mudança assumida como progresso<br />

transformador, independentemente do juízo de valor negativo ou positivo que o discurso<br />

produza. De toda forma, podemos assumir que muitas vezes o discurso do <strong>cancioneiro</strong><br />

expressa, em maior ou menor grau, um sentido de resistência crítica que pode manifestar-se<br />

de forma irônica ou como um alerta em relação aos perigos dessa contaminação.<br />

RF/BR:<br />

Eu só boto bebop no meu samba<br />

Quando o Tio Sam tocar um tamborim<br />

Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba<br />

Quando ele aprender que o samba não é rumba.<br />

Aí eu vou misturar Miami com Copacabana<br />

Chiclete eu misturo com banana<br />

E o meu samba vai ficar assim 463<br />

Não posso mais, ai que saudade do Brasil<br />

Ai que vontade que eu tenho de voltar<br />

Adeus América, essa terra é muito boa<br />

Mas não posso ficar porque<br />

O samba mandou me chamar<br />

O samba mandou me chamar<br />

Eu digo adeus ao boogie woogie, ao woogie boogie<br />

E ao swing também<br />

Chega de rocks, fox-trotes e pinotes<br />

Que isso não me convém<br />

Eu voltar pra cuíca, bater na barrica<br />

Tocar tamborim<br />

Chega de lights e all rights, good nights e fullfights<br />

Isso não dá mais pra mim<br />

Eu quero um samba feito só pra mim 464<br />

461 O X do problema. Noel Rosa, 1936.<br />

462 Caboclo centenário. Dino Franco e Mourai<br />

463 Chiclete com banana. (I) Jackson do Pandeiro – (C) Gordurinha e Almira Castilho, 1959.<br />

464 Adeus América. Os cariocas – Geraldo Jacques, Haroldo Barbosa, 1948. p4<br />

167


SD:<br />

Eu quero ver você ficar de cachecol<br />

Sem cavaquinho sem pandeiro e violão<br />

Eu quero ver você sem ver a luz do sol<br />

Cantar um samba nas montanhas do Tirol<br />

Não é vantagem fazer samba no terreiro<br />

Com cabrocha com pandeiro com luar e violão<br />

Eu quero ver é fazer samba na suíça<br />

Onde a nossa moto enguiça vira gelo, picolé<br />

Sou <strong>brasileiro</strong> e do samba sou freguês<br />

Vou cantando como posso nem que seja em tirolês 465<br />

Onde anda meu samba tão <strong>brasileiro</strong><br />

Estão tocando o meu samba com sotaque estrangeiro<br />

Quero ouvir o meu samba que é o primeiro<br />

Meu maestro toca um samba de cuíca e pandeiro 466<br />

Porém, também pode expressar consenso, conciliação com o movimento de transformação do<br />

território referente ao signo de Arcádia. Essa conciliação manifesta-se desde uma atitude<br />

submissa em relação ao discurso do poder (elites do Estado, do capital, do trabalho, da<br />

academia) até a concretização de expectativas relativas à obtenção de vantagens resultantes<br />

dessa aproximação com os discursos contaminadores.<br />

BR<br />

Eu sou o samba a voz do morro sou eu mesmo sim senhor<br />

Quero mostrar ao mundo que tenho valor eu sou o rei dos terreiros<br />

Eu sou o samba sou natural daqui do Rio de Janeiro<br />

Sou eu quem leva a alegria para milhões de corações <strong>brasileiro</strong>s<br />

Mais um samba queremos samba<br />

Quem está pedindo é a voz do povo do país<br />

Viva o samba vamos cantando esta melodia pro Brasil feliz 467<br />

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor<br />

Eu fui à Penha fui pedir à padroeira para me ajudar<br />

Salve o Morro do Vintém, Pindura-saia, eu quero ver<br />

Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro Para o mundo sambar<br />

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada<br />

Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato<br />

Vai entrar no cuscuz, acarjé e abará<br />

Na casa branca já dançou a batucada de ioiô i iaiá<br />

Brasil, esquentai vossos pandeiros iluminai os terreiros<br />

Que nós queremos sambar 468<br />

BR/RF:<br />

Ai, a quem eu vou pedir socorro?<br />

Estão botando abaixo o morro e eu não tenho onde morar<br />

Se eu fosse sozinho não ligava<br />

465 Um samba na Suíça. Bob Nelson – Haroldo Barbosa , Janet de Almeida, 1946. p4<br />

466 Onde anda o meu samba. Linda Batista – Ari monteiro, Luiz Antônio, 1956. p5<br />

467 A voz do morro. Jorge Goulart; Zé Kéti, 1955. p4<br />

468 Brasil pandeiro. Assis Valente, 1940.<br />

168


Mas a Maria e as crianças onde é que vão ficar? 469<br />

Papai Noel não sobe na favela, no morro também tem garotada<br />

Eu deixei o meu sapato na janela e de manhã não tinha nada<br />

Patinete lá no morro é um cabo de vassoura com tampa de goiabada<br />

E é assim que vai crescendo o cidadão vendo morrer ilusão sobre ilusão<br />

Você condena sem pedir perdão ao céu é triste o garoto pobre crescer sem Papai Noel 470<br />

Seu Doutor não bote abaixo, tem pena do meu barracão,<br />

Seu Doutor me compreenda, o progresso é necessário,<br />

Mas, Seu Doutor pense um pouco no operário.<br />

Meu barracão é todo o meu patrimônio,<br />

Por favor, não bote abaixo o morro de Santo Antônio 471 .<br />

Minha cabocla a favela vai abaixo quanta saudade tu terás deste torrão<br />

Da casinha pequenina de madeira que nos enche de carinho o coração<br />

Que saudades ao nos lembrarmos das promessas que fizemos constantemente na capela<br />

Pra que Deus nunca deixe de olhar por nós da malandragem e pelo morro da Favela<br />

Vê agora a ingratidão da humanidade, o poder da flor sumítica, amarela.<br />

Que sem brilho vive pela cidade impondo o desabrigo dessa gente da Favela 472<br />

O comitê do morro vai reclamar<br />

Falta água luz e um grupo escolar<br />

E um jardim pra criança também um clube de dança<br />

Pra quando o povo quiser sambar<br />

Como é bonito ver o morro bem vestido<br />

Os moradores clamam esse ideal<br />

Eu acredito que ele há de ser ouvido<br />

E depressa resolvido para o nosso bem geral<br />

Salve Mangueira salve Favela<br />

E salve outros morros do meu torrão natal 473<br />

Foi com surpresa que vieram anunciar<br />

Que o nosso samba não pode continuar<br />

Vai ter comício o morro vai protestar<br />

Nós queremos sambar!<br />

Tudo agora é diferente já que podemos brincar 474 :<br />

SD Orientador:<br />

169<br />

Uma questão: depois que BR, RF e CM estão rasurados, mostram-se retorcidos, em<br />

retorcência melhor dizendo, em direção a seus outros, a designação de cada um desses<br />

sujeitos eleitos por seu nome próprio se torna problemática porque pode remeter o<br />

leitor ao que já não é, ou nunca foi, cada uma dessas figuras. Talvez, a partir de certo<br />

momento, pudesse ser assumido um “sujeito <strong>cancioneiro</strong>”, expressão de uma voz ao<br />

469<br />

Velho morro. César Brasil, Valter tourinho, 1955. p4<br />

470<br />

Patinete na favela. Marlene; Luís Antônio, 1954. p4<br />

471<br />

Morro de Santo Antônio. Trio de Ouro; Benedito Lacerda, H. Martins, 1950.<br />

472<br />

A Favela vai abaixo. Sinhô, 1927.<br />

473<br />

Comitê do morro. Totó; Valdomiro Lobo, Victor Simon, 1945.<br />

474<br />

Nós queremos sambar. Max Bulhões, Mário de Oliveira, 1945.


SD:<br />

170<br />

mesmo tempo BR, RF e CM (e quem sabe ainda SD, pelas contaminações também por<br />

aí), ou seja um sujeito BR/RF/CM/SD. Do jeito que está, pode muito bem ficar. Mas<br />

foi algo que pensei e que pode ser levantado por algum sujeito prévio banca, por<br />

exemplo.<br />

Calma, Seu Doutor Orientador, até o fim do jogo corre o risco de algo próximo a isso<br />

acontecer. Vamos seguir jogando. Pelas falas das canções acima essa aproximação entre<br />

samba e poder não foi suficiente ou não pretendia transformar as condições dos morros e<br />

subúrbios. Mas, retornando, o samba urbano/rural e os ritmos rurais/regionais que vinham<br />

também se urbanizando (melhor seria assumir o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> como amálgama<br />

diferanciado) expressam dialogismos com o discurso do poder por estratégias de cooptação,<br />

assimilação e/ou enfrentamento, distinção. Essas estratégias são orientadas à medida que<br />

orientam falas que especificam o samba, a palavra, o signo (e o mesmo serve para outros<br />

ritmos <strong>popular</strong>es, especificados por palavras-signos) como sujeito/objeto que desliza no entre<br />

de múltiplas identidades. Dependendo das relações circunstanciais que se apresentam, a fala<br />

pode adotar estratégia de enfrentamento ou cooptação ou ainda um híbrido em que é possível<br />

ler as duas forças operando simultaneamente. O samba acima se coloca nesse lugar híbrido.<br />

Ao mesmo tempo em que fala em protesto e comício, práticas políticas de enfrentamento e<br />

organização, afirma que agora tudo é diferente, imagina-se, diferente de um tempo em que o<br />

samba era criminalizado. E o faz, no contexto em que o samba, pelo menos o urbano<br />

veiculado pelas grandes rádios, desfruta, mais do que da simpatia do poder, da valorização de<br />

sua fala e gesto ao ser incorporado pelo Estado Novo como signo participativo e atuante dos<br />

discursos de integração nacional e produção de signos cívicos e trabalhistas.<br />

BR:<br />

Levou meu pandeiro levou meu dinheiro<br />

E até carregou meu tan-tan<br />

Deixou um bilhete que foi pro Catete sambar<br />

E só volta amanhã de manhã<br />

Levou o meu terno de linho novinho<br />

Sambando é capaz de rasgar<br />

Estou só pensando amanhã de manhã<br />

Com que roupa que eu vou trabalhar 475<br />

SD:<br />

O samba acima fala desse sambista regenerado que tem pandeiro e tan-tan e terno de linho e<br />

trabalho, em oposição àquele que carrega suas coisas, podendo estragar tudo. Aquele, sem<br />

475 Levou minha roupa. Haroldo Lobo, Milton Oliveira, 1951.


terno e sem trabalho, bem poderia ser o Rapaz Folgado resistindo a ser enquadrado pela<br />

sociedade trabalhista, segundo o discurso cooptado e civilizador do samba.<br />

SD:<br />

Já o RF faz ironia dessa aproximação samba/trabalho que o sambista regenerado, BR, tenta<br />

articular, propondo-se como o novo paradigma. RF toma o samba como profissão e não há<br />

lugar para outro trabalho em seu ethos.<br />

RF:<br />

SD:<br />

Quem foi que disse que eu não brilho mais<br />

E procurou manchar o meu cartaz<br />

Fala diretoria da Mangueira toda profissão tem férias<br />

Não é segredo pra ninguém<br />

Sabe o que acontecia em Mangueira<br />

Os sambistas da escola estavam em férias também 476 .<br />

BR articula uma resposta em que a convivência do samba com o trabalho formal conta com a<br />

boa vontade do poder – Estado, patrão, polícia etc.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Hoje, amanhã e depois eu não vou trabalhar chega já fui escravo o ano inteiro<br />

Mas quando chega fevereiro eu quero é sambar<br />

Quando a fábrica apitar, eu quero estar na orgia.<br />

O patrão já sabe que eu em fevereiro faço a greve da alegria 477 .<br />

Vale acrescentar que esse lugar privilegiado ao qual o samba e o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> em geral<br />

foram catapultados pelo poder, torna-os o subjétil (som/papel) preferencial para lidar com<br />

questões expressas em khôra que recebe signos <strong>popular</strong>es como futebol, jogo do bicho,<br />

corrida de cavalos, roletas e loterias, brigas, polícia, transporte público, arengas de<br />

vizinhança, os costumes e a moral pequeno burguesa, a vida regrada pelos pólos do trabalho<br />

regular e do lazer de fim de semana e das festividades previstas e enquadradas no calendário<br />

oficial. Canções que lidam com os caracteres <strong>popular</strong> e público da vida contaminadas pela<br />

modernidade, dizia a gíria da época, no rádio é mato. Euzébio perdeu nas corridas 478 , 1946,<br />

“AI, Euzébio jogou nas corridas no Matungo e perdeu veja só o palpite era dele, mas o<br />

dinheiro era meu... só sei que hoje vai ter barulho aqui no chatô”. Bonde do Caju 479 , 1946,<br />

“A gasolina já chegou não ouço mais o faz favor do condutor adeus o banco do bonde do<br />

Caju, tu és barato, mas machuca pra chuchu”. E o 56 não veio 480 , 1944, “será que ela não veio<br />

476 Mangueira em férias. Nuno Roland – Alcir Pires Vermelho, Pedro Caetano, 1948.<br />

477 Greve de alegria. Arlindo Marques, Roberto Roberti, Wilson Batista, 1954.<br />

478 Euzébio perdeu nas corridas, Haroldo Lobo, M. de Oliveira, 1946.<br />

479 Bonde do Caju, Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1946.<br />

480 E o 56 não veio. H. Lobo, W. Batista, 1944. t3<br />

171


porque se zangou, ou o bonde alegria descarrilhou”. Deixa o cabrito berrar 481 , 1956, “Se a<br />

vizinha está brigando, deixa a vizinha brigar, se o marido está entrando deixa o marido<br />

apanhar, o cabrito não é meu, deixa o cabrito berrar, não importa se o Juca fala fino quando<br />

sai à rua sempre dá o que falar”. Passarinho do relógio 482 , 1939, “cuco, cuco, cuco, o<br />

passarinho do relógio está maluco, ainda não é hora do batente ele fica impertinente<br />

acordando toda a gente”. Tem galinha no bonde 483 , 1942, “galinha e outro bichos não podem<br />

viajar daqui a pouco o Juca traz o galo garnisé e isso até ta parecendo a Arca de Noé”. Olha o<br />

quitandeiro 484 , 1939, “Olha a laranja seleta eu sou o quitandeiro e só vendo a dinheiro se por<br />

acaso encontro uma dona boa qualquer eu fio tudo o que ela quer”. Que bonde pau 485 , 1950,<br />

“Se você vai pra cidade no Piedade eu vou a pé que é melhor”. Triste Pierrot 486 , 1939,<br />

Desiste Pierrot não cantes assim o tempo mudou, não há mais Arlequim, a colombina já não é<br />

mais aquela, toca tamborim e mora na favela... e é francamente do samba”. Coisas da<br />

moda 487 , 1926, “A moda são vestidos curtinhos, que horror, as pernas já não sentem mais<br />

frio, só calor, cabelos que usavam a la garçonne agora carequinhas, a la raspone”. Se a moda<br />

pega 488 , 1927, minha querida não queres outra vida, para ter o meu cabelo cortado procurei<br />

um barbeiro mui gentil que me olhava de todos os lados pela frente, por trás e de perfil, a la<br />

garçonne... me coçava com jeito o pescoço, a la raspone”. Dança da moda 489 , 1950, “No Rio<br />

ta tudo mudado, nas noites de São João, em vez de polca e rancheira o povo só dança e só<br />

pede baião”. Turco Malandro 490 , 1953, trata de arengas do comércio <strong>popular</strong>, “eu saí vestido<br />

mas o terno encolheu porque choveu, voltei queimado e fui a ele reclamar, me disse assim,<br />

você estava pequenininho, jurava a Deus você cresceu... mete esse turco no xadrez seu<br />

prontidão”, Malandro medroso 491 , 1930, fala de um malandro que não vai encarar o pai da<br />

moça, “nesse momento eu saudoso me retiro pois teu velho é ciumento e pode me dar um<br />

tiro”. Não sou Manuel 492 , faz piada com os portugueses, “O telefone tocou pro Manuel e ele<br />

saiu armado pra Niterói, mas na consciência nada lhe dói, não sou Manuel, não sou casado, eu<br />

481 Deixa o cabrito berrar, Airton Amorim, Mirabeau e M. de Oliveira, 1956.<br />

482 Passarinho do relógio. Haroldo Lobo, M. de Oliveira, 1939.<br />

483 Tem galinha no bonde. Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1942.<br />

484 Olha o quitandeiro, Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, 1939.<br />

485 Que bonde pau. M. de Oliveira e Haroldo Lobo, 1950.<br />

486 Triste Pierrot. Benedito Lacerda e D. de Oliveira, 1939.<br />

487 Coisas da moda. Romeu Silva, 1926.<br />

488 Se a moda pega. José Luís de Moraes, 1927.<br />

489 Dança da moda, Luis Gonzaga, 1950.<br />

490 Turco Malandro. Cícero Nunes, Reis Saintclair, 1953.<br />

491 Malandro medroso. Noel Rosa, 1930.<br />

492 Não sou Manuel. Roberto Martins, Wilson Batista, 1945.<br />

172


sou Joaquim o que é que eu vou fazer em Niterói”. A feira 493 , 1929, fala das várias línguas e<br />

da cultura de imigrantes da cidade, “outro dia fui passear na feira, as donas e o movimento<br />

apreciar”. E o juiz apitou 494 , 1942, “o Flamengo perdeu pro Botafogo, amanhã vou trabalhar,<br />

o patrão é vascaíno e de mim vai zombar”. Vingamos o Maracanã 495 , 1958, “assim que o<br />

Brasil mostrou o que é futebol o que é bola na rede”. O encarregado do meu edifício 496 “é o<br />

maior suplício, toma conta do amor e do elevador, é noite dia na portaria, ai, ai, ai, tomando<br />

nota de quem entra e sai”. Cala a boca Etelvina 497 , “apaga a luz que amanhã vou trabalhar,<br />

vou me levantar de manhã cedo, mas eu tenho medo de perder o trem deixa-me dormir por<br />

caridade pois o trem da Piedade não espera por ninguém quando vem”. Funciona como<br />

resposta a Acertei no milhar 498 , Etelvina! (o que é, Morengueira?) Acertei no milhar! Ganhei<br />

quinhentos contos não vou mais trabalhar você dê toda roupa velha aos pobres e a mobília<br />

podemos quebrar”. Mamãe lá vem o bonde 499 , 1942, “o bonde vamos nesse mesmo que é<br />

bom um dia desse eu vi seu Chico bem frajola de cartola viajando no estribo do Leblon, lá<br />

vem o bonde trazendo o pessoal, em traje de passeio ou traje de rigor uns vens da gafieira<br />

outros do Municipal e a nossa terra cada vez mais infernal”. Lá vem o Ipanema 500 , “o bonde<br />

que nunca viaja vazio, trazendo as mais lindas cabrochas do Rio”. Oito em pé 501 , 1942, “Sobe<br />

seu José que ainda cabem oito em pé, eu viajei em pé da cidade a Catumbi e quando então<br />

completou o lotação ainda vem o trocador chutando nossas canelas”. Madureira 502 , 1946, “o<br />

bonde do horário não se move e o trem das sete e quinze chega sempre dez pras nove (...)<br />

como é bom morar em Madureira todo dia tem festa todo dia tem feira”. O bonde do horário<br />

já passou 503 , 1940, “e a Rosalina não me acordou, mais de cinco dias que eu não vou<br />

trabalhar... já não tenho mais desculpa para dar ao meu patrão”. O sorriso do cobrador 504 ,<br />

1942, “Fim do mês ai que horror já tenho que ensaiar pra enfrentar o cobrador, hoje não pode<br />

ser venha na terça quarta ou quinta feira”. Flor do asfalto 505 . fala do fim de um “romance de<br />

amor no arranha-céu”, já em 1931, “meu telefone vive mudo e o dela em comunicação”.<br />

493 A feira. Batista Junior, 1929.<br />

494 E o juiz apitou. Antônio Almeida, J. Batista, 1942.<br />

495 Vingamos o Maracanã. Denis Brean, Osvaldo Guilherme, 1958.<br />

496 O encarregado do meu edifício. Luiz Januzzi, Marília Batista, s.d.<br />

497 Cala a boca Etelvina. Antônio Almeida, Wilson Batista, 1950.<br />

498 Acertei no milhar. Moreira da Silva; Wilson Batista, Geraldo Pereira, 1950.<br />

499 Mamãe lá vem o bonde. Araci de Almeida – Haroldo Lobo, Milton de Oliveira, 1942.<br />

500 Lá vem o Ipanema. A. Marques, Roberto Roberti, Marina Batista, 1947.<br />

501 Oito em pé. Araci de Almeida – H. Lobo, M. de Oliveira, 1942.<br />

502 Madureira. Emilinha Borba – Jorge de Castro, Peter Pan, 1946.<br />

503 O bonde do horário já passou. H. Lobo, M. de Oliveira, 1940.<br />

504 O sorriso do cobrador. Araci de Almeida. H. Lobo, M. de Oliveira, 1942.<br />

505 Flor do asfalto. J. Thomaz, Orestes Barbosa, 1931.<br />

173


Marcha do Ibrahim 506 , 1955, “O Ibrahim bota o meu nome no jornal eu quero ser também<br />

metida a gente bem dependurada na coluna social, bota um retrato meu junto do teu e diz que<br />

estou chegando agora vinda de Paris”. O drama do chofer 507 , 1948., fala da violência urbana.<br />

“A sina do chofer é muito dura e numa noite escura viu dois homens acenar, os dois entraram<br />

um deles disse toca pra Santo Amaro... meu Deus do céu, pra que ele foi parar... era chofer de<br />

pobre e de granfino, hoje todos me perguntam, onde está o Francelino? foi cumprir o seu<br />

destino”. Chofer de Praça 508 , 1950, “para casamento tenho um terno branco, para batizado<br />

tenho um terno azul, tiro o boné se vou pra Zona Norte, boto o boné se vou pra Zona Sul, se<br />

apanho um casal pros lados do Leblon sei que vou parar na gruta da imprensa, tiro o espelho,<br />

não falo, não vejo, vou dar meu bordejo espero a recompensa”. Sou motorista 509 , 1951, “do<br />

Rio de Janeiro ando seco por dinheiro e trabalho pra chuchu (...) estaciono perto de<br />

Copacabana meu carro é bacana e só conhece a Zona Sul”. Cariocadas 510 , 1929, “cá na<br />

cidade só se vê bobagem, só tem farofa, só se vê vantagem, esse mocinhos fogem da Avenida<br />

quando as pequenas vendem margarida, cá no Rio é um cotovelo o namorado que quer morrer<br />

sai no Correio, no País, na Gazeta, no Fon-Fon e na Careta o fato que é prá se ler”. Cena<br />

carioca 511 , 1931, “amendoim torradinho está quentinho... sorvete Iaiá é de côco da Bahia...<br />

olha a laranja seleta, olha a boa laranja lima olha a tangerina... Olha A Noite olha O Globo!”.<br />

Vasco X Flamengo 512 , 1955, fala da rivalidade de um casal, mulher flamenguista e homem<br />

vascaíno, “olá garota não faz farol, só no flamengo que se joga futebol, os vascaínos são<br />

gargantas da cidade, ainda assim a cruz de malta é uma verdade”. .Copa Roca 513 , 1943, “Eu<br />

fui a São Paulo assistir uma partida da famosa Copa Roca (...). O Diamante Negro confirmou<br />

o seu cartaz que é craque de verdade (...) pondo em pânico a defesa pulando um metro e meio<br />

fez um gol de bicicleta”. O nosso dia chegou 514 , 1958, “Garrincha, Didi, Mazzola, Vavá e<br />

Zagalo, oi que time infernal, campeão, campeão, campeão mundial”. Marcha dos campeões<br />

do mundo 515 , 1958, vencemos o mundo inteiro maior no futebol é o <strong>brasileiro</strong>, salve a CBD,<br />

jogadores, diretores, salve raça varonil, campeão do mundo Brasil”. Alto-falante 516 , 1930,<br />

“Os tais de alto-falantes são piores do que injeção, não sei quem foi o autor de tal suplício eu<br />

506 Marcha do Ibrahim. Miguel Gustavo, 1955.<br />

507 O drama do chofer de taxi. Miguel Roggieri, Osvaldo Cruz, Dupla Ouro e Prata, 1948.<br />

508 Chofer de Praça. Luiz Gonzaga; Evaldo Rui, Fernando Lobo, 1950.<br />

509 Sou motorista. Moreira da Silva – Altamiro Carrilho, Atila Nunes, 1951.<br />

510 Cariocadas. Francisco Alves; Hekel Tavares, Lamartine Babo, 1929.<br />

511 Cena carioca. Francisco Alves; Braguinha, 1931.<br />

512 Vasco X Flamengo. Linda Marival, Murilo Caldas; Francisco Malfitano, 1955.<br />

513 Copa Roca. Moreira da Silva – Henrique Gonçalves, 1943.<br />

514 O nosso dia chegou. Alfredo Borba, Osvaldo Rodrigues, 1958.<br />

515 Marcha dos campeões do mundo. Alfredo Borba, Osvaldo Rodrigues, 1958.<br />

516 Alto-falante. Laura Suarez; Lamartine Babo, 1930. p4<br />

174


juro que foi gente lá do hospício, os tais de auto-falantes não param seus berrantes nem<br />

mesmo pra tomar café, vejam só é verdade esse tal de alto falante é uma praga na cidade”.<br />

Dona Light 517 , s.d., “O carnaval a noite no escuro pra muita gente vai dar futuro, Dona Light<br />

pra que tanta economia no carnaval nos precisamos de energia ... vou bancar o vagalume<br />

dentro do salão”. Catumbi encheu 518 , 1953, “quando chove em catumbi é um chuá só sai de<br />

casa quem souber nadar”. Lola 519 , s.d., “Hoje eu li um anuncio no jornal, anuncio muito<br />

interessante um rapaz alegre e jovial procura uma mulher constante, para se evitar qualquer<br />

engano diz o moço que tem um bangalô e um bom piano automóvel também, hoje em dia só<br />

vale quem tem”. Notícia de jornal 520 , 1961, “tentou contra a existência num humilde<br />

barracão, Joana de tal por causa de um tal João depois de medicada retirou-se pro seu lar, aí a<br />

notícia carece de exatidão, o lar não mais existe... a dor da gente não sai no jornal”.<br />

Anúncio 521 , 1940, “Aluga-se uma casa com dois quartos uma sala uma cozinha um banheiro<br />

um bom quintal que tenha uma varanda e um jardim plantadinho de jasmim que só serve pra<br />

casar... precisa-se juntar dois corações num bangalô a beira mar” Vou vender jornal 522 , 1933,<br />

“pra me defender, esta crise esta deixando o mundo inteiro atrapalhado na Alemanha já se<br />

conta 6 milhões desempregados, Tio San o rei do ouro sempre viveu na abonança com a crise<br />

mundial ele também entrou na dança, até a Dona Esterlina já está usando chita mas lhe<br />

assenta muito bem por ser uma mulher bonita, o carioca reclama que a crise é muito seria mas<br />

chegando o carnaval ninguém mais chora miséria... olha nós, olha O Globo”. Iracema 523 ,<br />

1956, “eu nunca mais eu te vi, Iracema eu sempre dizia cuidado ao atravessar essas ruas,<br />

Iracema você atravessou contra-mão... você atravessou a São João... e hoje ela vive no céu,<br />

ela vive pertinho do nosso senhor, de lembrança guardo somente suas meias e seus sapatos,<br />

Iracema eu perdi o teu retrato, Iracema meu grande amor foi você”. Canção do trolley 524 ,<br />

1945, “Ela passou e quis sentar eu num estante ofereci o meu lugar... ela sorriu, eu não caí<br />

porque não sei... aiaiai no meu peito qualquer coisa parou quando a vi levantar pra descer,<br />

quis falar sem poder... ela olhou me fitou pôs a mão sobre a minha e foi ao fim da linha”. No<br />

tempo da minha avó 525 , 1938, “mulher gostava de um só, usava trança e cocó e não havia<br />

xodó... Hoje está tudo mudado vai-se de braço dado namorar no cinema, vê-se de maiô na<br />

517 Dona Light. Orlando Silva – Bola 7, Helio Malta, Pereira Matos, s.d. t2<br />

518 Catumbi encheu. Emilinha Borba – Norival Reis, Rutinaldo, 1953. t2<br />

519 Lola. Eliana; Lamartine Babo, s.d. p4<br />

520 Noticia de Jornal. Elizeth Cardoso – H. Barbosa, Luiz Reis, 1961. p4<br />

521 Anúncio. (I.) Gaúcho, Joel – (C.) Alberto Ribeiro, E. Frazão, 1940. p5<br />

522 Vou vender jornal. Moreira da Silva, Benedito Lacerda, 1933. t0<br />

523 Iracema. Demônios da Garoa – Adoniran Barbosa, 1956.<br />

524 Canção do Trolley. Quatro ases e um coringa – H. Martins, H. Barbosa, R. Balne, 1945. p4<br />

525 No tempo da minha avó. Almirante – Osvaldo Santiago, Paulo Barbosa, 1938. p4<br />

175


piscina a mocinha grã-fina, carioca da gema”. Menina internacional 526 , 1935, “Eu vi você no<br />

posto 3 namorando um japonês e depois no posto 2 com um alemão e mais seis, dessa<br />

maneira menina dominando tantos corações você vai parar na China ou na Liga das Nações”.<br />

Menina do regimento 527 , 1938, “toma cuidado ô cabecinha de vento pois já te apelidaram<br />

menina do regimento, hoje um tenente, e depois um capitão dizem que até um sargento<br />

comanda o teu coração... se continuas a namorar tanta gente sem respeitar a divisa sem<br />

respeitar a patente, devido a tal saliência, a garotada da rua vai te fazer continência”. Seu<br />

Libório 528 , 1941, “Seu Libório tem três vizinhas ninguém sabe o que elas fazem, porém todo<br />

mundo diz que Seu Libório é quem manda ah como o Libório é feliz, usam todas um V8 que<br />

lhes deu um coronel, tem vestidos de alto preço e perfumes a granel”. Camisa amarela 529 ,<br />

1939, “Encontrei o meu pedaço na Avenida de camisa amarela cantando a Florisbela,<br />

convidei-o a voltar pra casa em minha companhia exibiu-me um sorriso de ironia e<br />

desapareceu no turbilhão da galeria... foi por aí cambaleando se acabando num cordão com<br />

reco-reco na mão”. Alô... Alô... 530 , s.d. “responde se gostas de mim de verdade... continua a<br />

não responder e o telefone cada vez chamando mais, é sempre assim não consigo ligação meu<br />

bem, indiferente não se importa com meus ais”.<br />

O jogo segue e os discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> se aproximam inadvertidamente, isto é,<br />

sem pudores cietífico-acadêmicos de questões relativas ao discurso urbano-regional: seja do<br />

planejamento urbano, na fala do urbanista Alfred Agache, convidado pelo prefeito Prado<br />

Júnior para remodelar o Rio de Janeiro, seja do planejamento regional, no discurso<br />

hegemônico que justifica Brasília e a ocupação do Brasil central, seja ainda dos debates sobre<br />

disputa de uso e ocupação do solo urbano por grupos sociais heterogêneos. Nesse tópico o<br />

<strong>cancioneiro</strong> contempla a questão da moradia nas favelas, regras de uso do mobiliário e<br />

equipamento público-urbano, convivência nos espaços públicos. O debate relativo ao<br />

dialogismo interno ao campo do <strong>cancioneiro</strong> estabecece-se entre RF e BR considerando suas<br />

posições ou estado de sujeito em relação aos poderes externos ao campo, ainda que tudo isso<br />

incorra numa metafísica já questionada no corpus. A novidade momentânea é que no lugar de<br />

pré-estabelecer quem diz o que, deixa-se a cargo do ouvinte, deslizar entre as duas alegorias,<br />

imaginar qual fala corresponde a um discurso do tipo BR ou RF. Porém, não se trata de outro<br />

jogo. É só outra forma de jogar. Vamos ao repertório de falas que deve interessar<br />

526 Menina Internacional. Almirante – Alberto Riberio, Braguinha, 1935. p5<br />

527 Menina do regimento. Aurora Miranda – Alberto Ribeiro, Braguinha, 1938. p5<br />

528 Seu Libório Vassourinha – Alberto Ribeiro, Braguinha, 1941. p5<br />

529 Camisa amarela. Araci de Almeida – Ary Barroso, 1939. p5<br />

530 Alô... Alô... (I.) Carmem Miranda, Mário Reis – (C.) André Filho, s.d. p5<br />

176


sobremaneira leitores urbanistas ao mesmo tempo em que aproxima o corpus das<br />

problemáticas ippurianas 531 . Seu Agache 532 , 1927, “já chegou o Seu Agache quem quiser que<br />

fale mal, vai fazer dessa cidade uma linda capital, seu Agache anda solto e preparado quem<br />

for feio fuja dele pra não ser remodelado, encontrei na prefeitura uma velha encarquilhada<br />

procurando o seu Agache para ser remodelada”. Decreto 422 533 , 1908, “o prefeito não quer<br />

mais que a gente cuspa no ônibus... já não cospe o cidadão, exigência do prefeito, pois a multa<br />

está sujeito”. Bom dia, Avenida 534 , 1943, “Lá vem a nova Avenida remodelando a cidade<br />

rompendo prédios e ruas os nossos patrimônios e saudades é o progresso e o progresso é<br />

natural, a União das Escolas de Samba respeitosamente faz o seu apelo, três e duzentos de<br />

selo, requereu e quer saber se quem viu a Praça Onze acabar tem direito a Avenida em<br />

primeiro lugar, nem que seja depois de inaugurar”. Eu dei bom dia 535 , 1944, “eu dei bom dia<br />

e você não respondeu com certeza não ouviu ou então não entendeu você tão jovem ainda não<br />

sabe o que quer e ainda tem seus caprichos, vaidade de mulher, mas fica um abraço da Escola<br />

de Samba do Estácio que já vive há tanto tempo e ainda quis viver, a Escola de Samba assistiu<br />

a cidade nascer, aquele requerimento que o nosso chefe mandou a escola inteira de samba<br />

endossou pedimos deferimento e ninguém ligou por isso a Escola de Samba não sambou, mas<br />

esse ano a escola parece que vai sair, se você Avenida consentir”. Placa de bronze 536 , 1947,<br />

“eu vou mandar na parede daquele edifício pregar uma placa de bronze para render a minha<br />

homenagem a Praça Onze...na placa eu quero três nomes consagrar Herivelto, Cartola e o<br />

saudoso Noel, que sempre defenderam os nomes de morro e de Vila Isabel, salve a Praça<br />

Onze teus nomes vão ficar gravados no bronze”. Abaixo assinado 537 , 1959, “Doutor os<br />

abaixo assinado com a sua licença vem a presença do senhor, nos quer tirar samba lá no bairro<br />

do bexiga, e toda noite nois tem samba mas nois briga é o vizinho que não gosta de batuque,<br />

quer acabar com o nosso samba a muque, doutor delegado vem pedir diferimento os que<br />

assina cinco cruz no dicumento, que já está estampiado, nos que pruvidença”. Mangueira,<br />

não 538 , 1943, “Acabaram com a praça onze, demoliram praça de rua que eu sei, derrubem<br />

todos os morros, derrubem meu barracão, silenciar a Mangueira, não”. Praça Onze 539 , 1942,<br />

531<br />

Relativo ao IPPUR, instituto de planejamento e pesquisa urbano e regional da <strong>UFRJ</strong> ao qual este<br />

corpus está formalmente vinculado.<br />

532<br />

Seu Agache. Ary Kerner Castro, 1927.<br />

533<br />

Decreto 422. Mário Pinheiro, 1908. t6.<br />

534<br />

Bom dia, Avenida. Herivelto Martins, Grande Otelo, 1943.<br />

535<br />

Eu dei bom dia. Herivelto Martins, 1944.<br />

536<br />

Placa de Bronze. J. Costa, 1947.<br />

537<br />

Abaixo assinado. (I) Demônios da garoa – (C) Elzo Augusto, 1959.<br />

538<br />

Mangueira não. Grande Otelo, H. Martins, 1943.<br />

539<br />

Praça Onze. Grande Otelo, H. Martins, 1942.<br />

177


“Vão acabar com a Praça Onze, não vai haver mais escola de samba, chora o tamborim, chora<br />

o morro inteiro, guardai os vossos pandeiros guardai, porque a Escola de Samba não sai”.<br />

Obrigado general 540 , 1946, “o morro inteiro sabia que a Praça Onze voltava, voltou, já se<br />

ouve o som do tamborim anunciando que vai haver carnaval, a cidade agradece, obrigado<br />

general”. Laurindo 541 , 1943, “Laurindo sobe o morro gritando não acabou a Praça Onze<br />

vamos esquentar os nossos tamborins..., e quando a escola de samba chegou na Praça Onze<br />

não encontrou mais ninguém, não sambou, Laurindo pega o apito, apita evolução mas toda a<br />

escola de samba largou bateria no chão e foi embora”. Se o morro não descer 542 , 1936, “se a<br />

turma lá do morro fizer greve e não descer a cidade vai ficar triste carnaval vai morrer, todos<br />

os morros estão querendo saber qual é a ordem que tem que prevalecer, se as escolas não<br />

tiverem liberdade carnaval vai ser no morro ninguém desce pra cidade”. O samba não<br />

morre 543 , 1944, “Eu vi a Favela desaparecer, eu vi a Lapa se transformar eu vi morrer a Praça<br />

Onze, eu vi tudo isso sem reclamar, mas felizmente com o samba ninguém pode acabar pois<br />

nele existe uma lembrança singela da Praça Onze, da Lapa e da Favela”. Venderam o<br />

morro 544 , 1945, “eu soube que venderam o morro de mangueira que bobagem que asneira,<br />

ficou sem teto a gente lá do barracão, nem respeitaram a velha tradição”. Bica nova 545 , 1955,<br />

“o morro todo comprou uma lata nova pra inaugurar uma bica lá no asfalto cortaram a fita que<br />

discurseira e quando acaba não tem água na torneira, só vendo a cara que ficou o claudionor,<br />

foi o cabo eleitoral do doutor vereador que ganhou as eleições com o voto de Mangueira veio<br />

inaugurar a bica não tem água na torneira”. Velho morro 546 , 1955, “Ai a quem eu vou pedir<br />

socorro, estão botando abaixo o morro e eu não tenho onde morar se eu fosse sozinho eu não<br />

ligava, a Maria e as crianças onde é que vão ficar?”. A Favela vai abaixo 547 , 1928, “Minha<br />

cabocla a favela vai abaixo quanta saudade tu terás desse torrão, da casinha pequenina de<br />

madeira que nos enche de carinho o coração, vê agora a ingratidão da humanidade e o poder<br />

da flor somítica amarela, quem sem brilho vive pela cidade impondo o desabrigo ao nosso<br />

povo da Favela”. Por favor, seu doutor 548 , 1947, “Ai seu prefeito da cidade, por favor, não<br />

leve a mal, nós pedimos com muito respeito seu auxílio para o nosso carnaval, o carioca passa<br />

mal o ano inteiro, mas nesses dias quer bater o seu pandeiro, nessa festa que alivia a nossa<br />

540 Obrigado general. B. Lacerda; H. Martins, 1946.<br />

541 Laurindo. Herivelto Martins, 1943.<br />

542 Se o morro não descer. Darci de Oliveira, Herivelto Martins, 1936.<br />

543 O samba não morre. Arlindo Marques junio, Mario Pinto, 1944.<br />

544 Venderam o morro. Herivelto Martins, 1945.<br />

545 Bica nova. (I) Jamelão – (C) D. Palma, Luís Antônio, 1955.<br />

546 Velho morro. (I) Carlos Figueiras – (C) César Brasil, Valter Tourinho, 1955.<br />

547 A Favela vai abaixo. Francisco Alves – (C) Sinhô, 1928.<br />

548 Por favor seu doutor. F. Marques, Antenor Borges, 1947.<br />

178


dor, por favor, seu doutor”. Marcha da Cantareira 549 , 1960, “ta vendo como é que dói,<br />

trabalhar em Madureira viajar na Cantareira e morar em Niterói, vou aprender a nadar eu não<br />

quero me afogar”. Vagalume 550 , 1954, “Rio e Janeiro cidade que me seduz de dia falta água<br />

de noite falta luz”. Samba de Brasília 551 , 1960, “Brasília mundo novo que eu vi nascer em<br />

teu seio há de florescer a esperança de uma raça a quem Deus deu a graça de nessa terra viver,<br />

tens todo o encanto da mulher de meu país nas linhas sensuais dos pilotis”. Me leva, seu<br />

presidente 552 , 1958, “Brasília é um mundo novo você precisava ver JK falando ao povo, vou<br />

me embora e não levo saudade da Guanabara vou me embora pra Brasília pois Brasília é uma<br />

jóia rara”. Não vou prá Brasília 553 , 1959, “Eu não sou índio nem nada, não tenho orelha<br />

furada nem uso argola pendurada no nariz. Não uso tanga de pena e a minha pele é morena<br />

do sol da praia onde nasci e me criei feliz. Não vou pra Brasília, nem eu nem minha família,<br />

mesmo que seja pra ficar cheio da grana, a vida não se compara, mesmo difícil, tão cara, eu<br />

caio duro, mas fico em Copacabana”. Zé Pereira 554 , s.d., “Viva o Zé Pereira. Viva o Zé<br />

Pereira, viva o carnaval. Viva o Zé Pereira, pois que a ninguém faz mal, viva a bebedeira, nos<br />

dias de carnaval”. O grito de guerra do entrudo oitocentista estanca momentaneamente as<br />

questões urbanistas e regionais do jogo que já desliza para outras rasuras.<br />

BR:<br />

Não há mais preconceito de cor<br />

È lei o presidente assinou<br />

È lei o preconceito acabou<br />

Depois do 13 de maio o 3 de julho chegou.<br />

Para completar a abolição<br />

Deus que proteja o chefe da nação.<br />

Que livrou uma raça de tamanha humilhação. 555<br />

Vocês quando falam em samba<br />

Trazem a mulata na frente<br />

Mas tem muito branco que é bamba<br />

Que no samba é renitente<br />

Não me falem mal do samba<br />

Pois, a verdade eu revelo.<br />

179<br />

549 Marcha da Cantareira. Gordurinha – Barbosa da Silva, Eloide Warthon, 1960.<br />

550 Vagalume. Fernando Martins, Vitor Simon, 1954.<br />

551 Samba de Brasília. (I) Roberto Silva – (C) Carvalhinho, Geraldo, 1960.<br />

552 Me leva, seu Presidente. (I) Jorge Veiga – (C) José Rosas, 1958.<br />

553 Não vou prá Brasília. Billy Blanco, 1959.<br />

554 Zé Pereira. Em 1846, registra-se o aparecimento do "Zé Pereira" (tocador de bumbo). Para alguns<br />

historiadores, esse era o apelido dado ao cidadão e folião português José Nogueira de Azevedo Paredes,<br />

supostamente, introdutor no Brasil do hábito português de animar a folia carnavalesca ao som de bumbos,<br />

zabumbas e tambores, anarquicamente tocados pelas ruas. A tradição se espalhou rapidamente e o sucesso do<br />

"Zé Pereira" tomou as ruas até ser visto como problema público, segundo a leitura do Governo. A brincadeira do<br />

entrudo sobreviveu até a primeira década do século XX. Ainda em 1900, uma companhia teatral resolveu utilizar<br />

a marcha do Zé Pereira numa paródia da peça "Les pompiers de Nanterre" intitulada "Zé Pereira Carnavalesco",<br />

na qual o comediante Francisco Correia Vasquez cantou a quadrinha famosa.<br />

555 Três de julho. Benedito Lacerda e Herivelto Martins, 1951.


SD:<br />

O samba não é preto, o samba não é branco<br />

O samba é <strong>brasileiro</strong> é verde e amarelo 556<br />

O jogo segue. Quando inscreve a questão racial, o discurso da música <strong>popular</strong> assume, em<br />

geral, duas estratégias. Ou reproduz a fala da democracia racial, apaziguando diferenças e<br />

eventuais injustiças, ou adota uma postura irônica, fazendo piadas de preconceito velado<br />

(algumas nem tão veladas assim) que desqualificam negros, mestiços, povos indígenas e<br />

descendentes. Considerando-se que boa parte dos discursos do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> emerge de<br />

um ethos negro e mestiço, caberia perguntar que benefício contemplou-se nessa postura de<br />

auto-sabotagem racial. As boas relações com as elites valeriam tanto assim?<br />

BR:<br />

SD:<br />

Pega o ferro de engomar, meu feijão vai cozinhar.<br />

Mete a cara na cozinha, ó, nega que a cozinha é teu lugar.<br />

A empregada lá em casa é muito boa<br />

Quer até ser melhor do que a patroa 557<br />

Mas que nego alinhado mas que nego bacana<br />

Tem escritório e dá audiência uma vez por semana<br />

Não é formado, mas tem muito valor (...)<br />

Quando nego passa gritam bem alto, bom dia Doutor (...)<br />

Isso tudo acontece porque a nega baiana cozinha pra outro que é senador 558<br />

Segundo essa perspectiva pecuniária, vai ver que valem mesmo...<br />

BR:<br />

Oh, loira porque tu zombas de mim?<br />

Um preto nobre não se maltrata assim.<br />

Lamento é a vida que tu andas ai minha santa<br />

E eu sou teu pretinho de alma branca<br />

Mulher tu podias ser mais feliz<br />

Mas não soubeste amar quem te quis 559<br />

Eu nasci num clima quente<br />

Você diz pra toda gente<br />

Que eu sou moreno demais<br />

Não maltrate o seu pretinho,<br />

Que te dá tanto carinho<br />

E que no fundo é um bom rapaz.<br />

556 Verde e amarelo. Orestes Barbosa e J. Thomas, 1932.<br />

557 A cozinha é teu lugar. Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, 1938. Essa canção consegue ser<br />

triplamente preconceituosa porque faz ironia do negro, da mulher e do pobre.<br />

558 Preto alinhado. Caco Velho, 1948.<br />

559 Preto de alma branca. Buci Moreira, 1930.<br />

180


SD:<br />

Você tem um palacete<br />

Eu nasci num barracão<br />

Sapo namorando a lua<br />

Numa noite de verão.<br />

Eu vou dizer a ela que coração não tem cor 560 .<br />

Mas o consolo do preto deixa falar quem quiser<br />

É que Deus fez ele branco<br />

Mas foi na sola do pé 561 .<br />

Samba de negro não se pode freqüentar<br />

Só tem cachaça e no melhor da festa vamos todos pro xadrez 562<br />

Eu sei de um mulato que não gosta da cidade,<br />

Diz que isso aqui por baixo não é pra ele não<br />

Prefere o morro, dispensa o cinema, mulheres de Fox-trot, é do samba canção<br />

No carnaval diz que desceu fantasiado e foi mal interpretado pelos brancos de cá<br />

Hoje ele vive no morro onde há samba pra cachorro e o povo é mais igual 563 .<br />

Você não conhece o nego Olegário, no Estado do Rio diz que é comissário.<br />

Tipo esquisito, igual, eu nunca vi, num terno vermelho parece um saci.<br />

É todo metido a namorar só branca diz que preta com ele não bota mais banca 564 .<br />

O teu cabelo não nega mulata porque és mulata na cor<br />

Mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero o teu amor 565 .<br />

O seu Maneco quando veio era marreco<br />

E arranjou uma crioulinha com quem fora se casar<br />

Mas a catinga da morena era serena<br />

Que o Maneco era peitudo, mas não pode suportar 566 .<br />

Preto não é bom tanto que eu digo<br />

Preto nesse mundo gosta de inimigo<br />

Conheci essa mulata filha de um preto doutor<br />

Que dizia não gostar de todo homem de cor<br />

É bem fácil de ter razão ninguém pode duvidar<br />

Pois eu nunca vi na terra preto de preto gostar 567 .<br />

Êta nego gozado é o nego fogão<br />

Ele faz um roleio lá na praça de São João<br />

Ele não pode ver branca,<br />

Quando vê uma loira começa a sorrir<br />

Ih, Ih, Ih Ele diz está pra mim 568 .<br />

560<br />

Preconceito. Marino Pinto, Wilson Batista, 1941.<br />

561<br />

Preto e branco. (I) Carmem Miranda – (C) A. Vassur; Luis Peixoto, Marques Porto, 1939.<br />

562<br />

Samba de negro. Pixinguinha, 1928.<br />

563<br />

Mulato anti-metropolitano. (I) Carmem Miranda – (C) Laurindo de Almeida, 1939.<br />

564<br />

Nego Olegário. Risadinha, 1952.<br />

565<br />

O teu cabelo não nega. Lamartine Babo, 1932.<br />

566<br />

Agüenta Maneco. Angelino de Oliveira e Cornélio Pires, 1930.<br />

567<br />

Preto não é bom. Augusto Vasseur, Chocolate, 1925.<br />

568<br />

Nego Fogão. Aidran Carvalho, Zé Pitanga,<br />

181


O signo da tolerância ou democracia racial sustenta-se hegemonicamente ao longo do século<br />

XX, produzindo apagamento de conflitos e diferenças, Apóia-se em discursos segregadores,<br />

às vezes envergonhados, outras nem tanto, mas que teriam como maior mérito não permitir a<br />

construção de uma ponte aproximando a percepção de alteridade negro/mestiço à condição<br />

social de pobre ou classe <strong>popular</strong>. No lugar da alteridade sob signos sócio-raciais emerge da<br />

condição do dominado, a figura híbrida do malandro motivado por desejo de luxo e poder.<br />

Antes de adentrarmos o universo do malandro propondo pistas à esquizofrenia racial que,<br />

inclusive, o ethos negro/mestiço reproduziu nas canções <strong>popular</strong>es, apelo à paciência do leitor<br />

para tangenciarmos o pensamento de Gilberto Freyre no que diz respeito à inversão do valor<br />

da mestiçagem cultural na contabilidade do progresso da nação – do bom selvagem<br />

rousseauniano ao bom crioulo, preto de alma branca.<br />

BR/SD:<br />

SD:<br />

Mordendo na sola<br />

Empunha o martello<br />

Não queiras com brancos<br />

Metter-te a tarelo.<br />

Que o branco é mordaz<br />

Tem sangue azulado<br />

Se boles com ele<br />

Estás embirado<br />

Sciências e lettras<br />

Não são para ti<br />

Pretinho da Costa<br />

Não é gente aqui 569<br />

Mulato esfolado,<br />

Que diz-se fidalgo,<br />

Porque tem de galgo<br />

O longo focinho;<br />

Não perde a catinga,<br />

De cheiro falace,<br />

Ainda que passe<br />

Por bráseo cadinho 570 .<br />

E chamo a atenção do leitor (SD) para essa estranha parceria ente Seu Doutor e Barão da<br />

Ralé. Parceria válida se pensarmos que tais trovas já em meados do século XIX buscavam<br />

utilizar-se de elementos eruditos e <strong>popular</strong>es fundindo-os a partir do ethos de escravo forro,<br />

569 Pedes um canto na lira. Luís da Gama, 1859.<br />

570 Pacotilha. Luís da Gama, 1859.<br />

182


negro liberto e letrado. O caminho inverso também se resolve em canções <strong>popular</strong>es que<br />

falam a partir de um repertório/compositor erudito.<br />

BR/SD:<br />

SD:<br />

Lá vai o trem com o menino lá vai a vida a rodar<br />

Lá vai ciranda e destino cidade noite a girar...<br />

Nossa vida vive, nossa alma vibra<br />

Nosso amor palpita na canção do samba 571 .<br />

Quando da brisa no açoite a frô da noite se curvo<br />

Fui s´imbora com a Maroca meu amo 572<br />

Essas tres últimas falas expressam essa confusão da fronteira <strong>popular</strong>/erudito, a primeira pelo<br />

título que diz dessa fusão: Samba Clássico. A segunda por ser enunciada por dois Seus<br />

Doutores ilustres: Villa Lobos, também autor da primeira, e Mário de Andrade. Retornando<br />

ao que o hibridismo racial propõe, o signo <strong>brasileiro</strong> seria aquele que já carrega os [seus]<br />

contrários dentro de si. Expressando-se como “o branco de alma negra”, Vinícius de Morais,<br />

ou o “mulato de alma branca”, Machado de Assis. O <strong>brasileiro</strong> celebra sua singularidade, cuja<br />

origem inventada constrói-se repousada e inquestionável na própria condição excepcional do<br />

português, também inventado como mestiço por sua herança moura. Origem mestiça mítica<br />

que se perde no tempo histórico antigo quase bíblico. Essa base ideológica inventa tanto a<br />

essência híbrida da brasilidade freyreana, pelo menos para efeito de encontros de caráter<br />

sócio-raciais entre diferentes, quanto, a essência cordial que, segundo Sérgio Buarque,<br />

inscreve o <strong>brasileiro</strong> movido, generosamente, por caracteres violentos e apaixonados a partir<br />

do que manda o coração. Toda essa argumentação funda-se na ideologia mítica de que o<br />

encontro cultural é sempre bom, no que pese as estratificações e injustiças sociais<br />

cordialmente construídas.<br />

BR:<br />

183<br />

O hibridismo cultural aqui é festejado em si (...): a crença de que toda cultura<br />

específica encerra possibilidades incomensuráveis de realização das<br />

potencialidades humanas e que, portanto, o encontro cultural é enriquecedor<br />

por definição. (...) É difícil imaginar ideologia mais eficaz no nosso país. Ela<br />

hoje faz parte da nossa identidade. Já não é mais uma questão de se isso é<br />

verdade ou mentira. Todos nós gostamos de nos ver desta forma, a ideologia<br />

adquire um aspecto emocional insensível à ponderação racional, e tem-se<br />

raiva e ódio de quem problematiza essa verdade tão agradável aos nossos<br />

ouvidos (SOUZA, Jessé, 2004, p. 44).<br />

571 Trenzinho do caipira. Heitor Villa-lobos, 1950.<br />

Samba clássico (ode). Heitor Villa-Lobos, 1950.<br />

572 Viola quebrada. Mário de Andrade, Heitor Villa-Lobos, 1929.


SD:<br />

Samba do partido-alto só vai cabrocha que samba de fato<br />

Só vai mulato filho de baiana e a gente rica de Copacabana.<br />

Doutor formado de anel de ouro Branca cheirosa de cabelo louro 573<br />

O malandro funciona como imagem síntese dessa ideologia. O sentido hegemônico do signo<br />

malandro, BR ou RF, já pressupõe a perda de foco das diferenças e das fronteiras sociais. A<br />

figura do malandro, claramente inspirada nas classes <strong>popular</strong>es e utilizando-se de um<br />

simulacro de indumentária e práticas burguesas, expressaria uma espécie de tipo social<br />

híbrido que em última análise propõe a dissolução dos contornos que instituem/separam<br />

classes sociais e que consequentemente instituiriam/possibilitariam conflitos. O signo<br />

malandro se expressa no entre da cultura <strong>popular</strong> e da cultura de elite e, por isso mesmo,<br />

especifica a ideologia do hibridismo, como um fundamentalismo singular e original do<br />

<strong>brasileiro</strong> que, frente outras culturas nacionais, pode produzir estranhamento tal qual o que<br />

sentimos sobre os fundamentalismos dos outros: patriotismo americano, a moral e a tradição<br />

muçulmana e judaica, a rigidez inglesa.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Quem condena a batucada dessa gente bronzeada não é <strong>brasileiro</strong><br />

Nada mais bonito que um corpo de mulher a sambar no terreiro<br />

Já falaram que o samba no morro não tem cotação<br />

Só se fala em navalha e cabrocha e até parati<br />

É bem fácil acabar com essas coisas do samba canção<br />

Mas eu só quero ver acabar com os malandros que tem por aí 574<br />

184<br />

A noção do malandro, essa é a minha hipótese, passa a ser uma espécie de<br />

materialização transfigurada dessa brasilidade exótica, indiferenciada e<br />

autocomplacente na dimensão da vida cotidiana e da cultura <strong>popular</strong>. Uma<br />

imagem que serve ao apagamento das diferenças e ao propósito cimentador<br />

típico das ideologias. (...)Ele se veste como o burguês, sendo uma espécie de<br />

seu arremedo na aparência, desfrutando de uma condição de vida que lhe<br />

permite, no entanto, livrá-lo dos constrangimentos da disciplina burguesa.<br />

Ele é portanto ambiguamente mais esperto que o burguês. Ao mesmo<br />

tempo, o malandro faz uso em seu meio das mesmas artimanhas do burguês,<br />

pelo menos como este é percebido pelo imaginário do personalismo, como<br />

estratégia de garantia de privilégios. O egoísmo sem peias, o uso<br />

estrategicamente emocional do outro, a troca de favores, a corrupção, seriam<br />

as precondições de seu sucesso, do mesmo modo que seriam as pré<br />

condições do sucesso do burguês (idem, p. 45).<br />

573 Samba de fato. Pixinguinha e Baiano, 1932.<br />

574 Quem condena a batucada. Carmem Miranda – Nelson Rodrigues, 1938.


Uma vez especificadas as singularidades relativas às construções de alteridade social e racial<br />

no Brasil, a figura gingada e morena do malandro surge como paradigma imagético-<br />

ideológico em movimento de corpo, signo mais visível da ideologia do hibridismo.<br />

BR:<br />

SD:<br />

185<br />

A partir das décadas de 1920 e 1930, o malandro consolida-se,<br />

especialmente com a crescente penetração do samba carioca e do carnaval,<br />

numa espécie de protótipo do <strong>brasileiro</strong>. È precisamente essa transfiguração<br />

negadora das diferenças, por meio de uma figura ambígua, mas, levemente<br />

positiva e irônica, que me parece refletir a maneira como os <strong>brasileiro</strong>s se<br />

compreendiam e se compreendem até hoje (ibidem, p. 46).<br />

Moço, olhe o vexame<br />

O ambiente exige respeito<br />

Pelos estatutos da nossa gafieira<br />

Dance a noite inteira, mas dance direito<br />

Aliás, pelo artigo 120<br />

O distinto que fizer o seguinte:<br />

Subir nas paredes dançar de pé pro ar<br />

Morar na bebida sem querer pagar<br />

Oi, abusar da umbrigada de maneira folgazã<br />

Prejudicando hoje o bom crioulo de amanhã 575<br />

Pode-se localizar o ethos da malandragem como território de produção da estratégia de luta e<br />

sobrevivência, onde, o enfrentamento, é substituído pela prática de pensar com a cabeça do<br />

“outro”. Mas, não devemos supor daí atitude de covardia ou submissão. Mas, pensar como<br />

essa estratégia é lida do ponto de vista não do dominador, mas do dominado ativo que<br />

desenvolve seus mecanismos de convivência e luta contra o meio social antagônico, que,<br />

historicamente, impôs barreiras econômicas, culturais e políticas a reprodutibilidade do grupo<br />

étnico ou classe <strong>popular</strong>.<br />

Os espaços de aldeia na cidade moderna (terreiro e seus desdobramentos<br />

litúrgico-festivos) caminham no sentido da transação ou do “acerto” (termo<br />

bastante comum entre os antigos dos terreiros baianos), como estratégia<br />

<strong>popular</strong>. Em vez de questionar ou brigar, negocia-se, faz-se um acordo. Não<br />

se trata da negociação monetária entronizada pelo universo burguês, onde<br />

todas as coisas se submetem ao princípio do valor de troca e se dissolvem<br />

num equivalente universal, mas da instituição da troca sem finalidades<br />

absolutas, em que qualquer ente é suscetível de participar. Negocia-se com<br />

os deuses, as coisas, os animais, os homens com tudo capaz de alimentar a<br />

força 576 . [Dessa forma], quando os negros faziam ou fazem coincidir as suas<br />

575 Estatutos da gafieira. Billy Blanco, 1954.<br />

576 O conceito de força está ligado ao conceito de “ser”, mesmo no pensamento mais abstrato sobre a<br />

noção de ser. Diferentemente do pensamento judaico-cristão, que entende o ser como algo estático,<br />

como aquilo que é, o pensamento banto equipara ser a força. A força não é um atributo do ser, mas o<br />

próprio ser, encarado como perspectiva dinâmica (e não estática, tal como se dá na ontologia judaicocristã):<br />

o mundo não é; o mundo se faz, acontece. (...) Deuses, homens vivos e mortos, plantas,<br />

animais, minerais são seres-força diferentes. Por exemplo: a força dotada de vontade e inteligência<br />

chama-se muntu (e esta palavra pode ser traduzida como pessoa) enquanto a força sem razão, sem<br />

vida, chama-se bintu (coisa). A força não existe fora de um suporte concreto, é da ordem do visível,


BR:<br />

SD:<br />

186<br />

celebrações litúrgicas com as datas de determinadas festividades cristãs, ou<br />

quando permitiam a associação de alguma de suas divindades com análogos<br />

católicos, na verdade procediam a essa lógica transacionista do “acerto”. Dáse<br />

por aí uma apropriação antropofágica que em vez de questionar intelectual<br />

ou militarmente o sistema explorador, aproveita-se dele. Este<br />

aproveitamento implica uma troca, uma coordenação analógica de<br />

oportunidades. A reciprocidade e a parataxe contornam as leis de<br />

subordinação que o grupa hegemônico procura impor (SODRÉ, 2002, p.113,<br />

114).<br />

O muito preto também é gente<br />

Quem não gosta do muito preto<br />

Não está sob o consciente<br />

Deus quando fez o mundo não definiu raça nem cor<br />

Por isso que o muito preto tem coração tem amor<br />

Todos sabem que muitos pretos já foram grandes guerreiros<br />

Além de muitas coisas foram também <strong>brasileiro</strong>s 577<br />

A mania dessa gente que vive sempre a cantar<br />

Exaltar constantemente as morenas do lugar<br />

No entanto as moreninhas cheias de graciosidade<br />

São produtos das negrinhas, fruto da brasilidade<br />

Quem foi que ninou o Brasil<br />

Quem mais padeceu docemente<br />

Portanto no nosso país, negro também é gente 578<br />

Rico é gente bem, pobre é gente muda<br />

Champanhota de pobre é uma preta barriguda<br />

Pobre não tem café soçaite, nem champanhe para beber<br />

Sua vida é o samba e o Flamengo pra torcer 579 .<br />

Menina oxigene o teu cabelo preto virou marrom glacê<br />

Teus olhos meu bem mudaram de carro e de formato também<br />

Ficaram azuis teu namorado azulou e nunca mais voltou 580<br />

E não poderíamos interpretar a partir dessa análise que o negro propôs um novo jogo? Que o<br />

negro fez deslizar a lógica, mais do que simplesmente inverter um sistema de dominação<br />

escravista dos mais cruéis e sufocantes? Se pensarmos, por exemplo, no sincretismo religioso,<br />

e na apropriação dos “santos guerreiros”, originalmente católicos, pela cultura negra, cujo<br />

discurso está hegemonicamente localizado no candomblé, diríamos que o exercício da<br />

mas não pode ser percebida diretamente pelos sentidos (SODRÉ, 2002, p.93). Assim, sem a força ou<br />

axé (Yorubá) a existência estaria paralisada. Negocia-se então em nome do movimento da dinâmica<br />

da existência que permite o acontecer e o devir (SODRÉ, 2002, p.94). Ao mesmo tempo garante-se a<br />

presença permanente e diferenciada, ou em movimento, do axé.<br />

577 O muito preto. Mutt, 1946.<br />

578 Negro também é gente. Ary Barroso, De Chocolat, 1934.<br />

579 Rico é gente bem. A. Rebelo, Ari Monteiro, J. Rupp, 1955.<br />

580 Menina Oxigene. Almirante – Hervê Cordovil, L. Babo, 1934.


dominação não foi capaz de manifestar-se em esferas fundamentais do discurso dominado.<br />

Não por resistência do dominado ou por limite de força do dominador, mas, pela não<br />

capacidade deste em perceber a mudança na regra do jogo que diz da adaptação e assimilação<br />

antropofágica de signos do dominador transformando-os em signos do dominado.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Ai, meu Deus, que bom seria<br />

Se voltasse a escravidão<br />

Eu pegava a escurinha<br />

Prendia no meu coração<br />

E depols a pretoria<br />

É quem resolvia a questão 581<br />

187<br />

Da parte dos negros, o poder coordenante implicado no axé difere da<br />

monopolização da violência ou da “força contra”, (...) o axé não implica<br />

“lutar contra alguma coisa”, mas dar autoridade ao grupo, ao povo. Ao invés<br />

de uma força reativa, tem-se aí uma orientação no sentido de como o grupo<br />

deve conduzir-se para obter um perfil próprio (SODRÉ, 2002, p. 114).<br />

Amei a mulatinha, amei a moreninha em trinta e dois e trinta e três<br />

A loira namorei um mês agora eu fico com a melhor das três<br />

Só porque o cabelo não negava toda gente falava na Mulata original<br />

E a mulata foi para o supremo tribunal foi ver seu pai e de lá não sai<br />

Em seguida veio a moreninha que a final foi a rainha com cabelo regular<br />

E por preocaução o pai tratou de colocar uma estanquilha no nariz da quilha<br />

No terceiro ano em disparada veio a loira enciumada ser a rainha da canção<br />

Ela disse logo pra evitar a confusão meu pai morreu minha mãe sou eu 582<br />

Dessa forma, em lugar de configurar uma voz negra ou mestiça em franca oposição à voz<br />

branca, a voz <strong>popular</strong> adere aos estratagemas apaziguadores dos discursos da brasilidade<br />

híbrida e cordial (pessoal), para, a partir daí, tirar proveito, nas brechas do sistema. Infiltra-se<br />

nas festividades pela força de seu ethos, de seu ritmo para, aos poucos, acessar espaços sociais<br />

que, a priori lhe seriam proibidos.<br />

Os lugares criados pelo ritmo eram pequenos espaços de “acerto” e<br />

“transação” onde as classes e etnias subalternas tanto se esforçavam pela<br />

apropriação de alguma parte do produto social (empregos, pequenos<br />

negócios) como por uma apropriação polimorfa do espaço social (ou seja,<br />

aproveitar por mil “jeitinhos” os interstícios das relações sociais de<br />

produção), em busca de um lugar próprio, de uma identidade. O carnaval, o<br />

futebol, as festas religiosas foram espaços que os negros tomaram aos<br />

portugueses para constituir lugares de identidade e transação social<br />

(SODRÉ, 2002, p. 114).<br />

581 Mulata assanhada. Ataulfo Alves.<br />

582 A melhor das três. Francisco Alves – Alcir P. Vermelho, L. Babo, 1935.


Afinal, o silêncio do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> que pouco soltou o verbo de denúncia contra o<br />

racismo e as manobras patronais de espoliação e segregação do pobre, ao longo do século XX,<br />

poderia ser lido como estratégia de convivência com um poder que de antemão não podia ser<br />

enfrentado, a não ser pela astúcia, o drible, a ginga.<br />

RF:<br />

SD:<br />

Festa de branca sempre acaba em arrelia<br />

Se vai de barriga cheia e sai com ela vazia<br />

Eu não me passo pra essas festas de chiquê<br />

Por causa de uma branca já quiseram me prender 583 .<br />

Apesar de estarmos falando da valorização hegemônica do hibridismo sob o disfarce de um<br />

discurso que extrapolaria a tolerância para expressar reverências à mulata, ao neguinho, a fala<br />

de BR, RF e até de CM até aqui, não sem alguma provocação ao SD (nós), tem sido de um<br />

racismo mal disfarçado, quando não, desavergonhado. Ainda que nossos interlocutores<br />

proponham esse jogo provocativo, consideramos que hegemonicamente o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

tratou e reforçou os signos étnicos como sendo de “preferência nacional” ou, mais do que<br />

isso, como aquilo que nos conferia a nacionalidade.<br />

CM:<br />

BR:<br />

SD:<br />

Chão caboclo, chão vermelho como o sangue sertanejo do caboclo <strong>brasileiro</strong><br />

Chão que nunca ta cansado que ta sempre preparado pra dar pão ao mundo inteiro 584<br />

Samba meu Brasil moreno<br />

Ouve quanta harmonia<br />

Vai no batuque no sereno meu Deus<br />

Samba o o... Samba o o...<br />

Bate o teu pandeiro<br />

Nesta canção toda de sol e luar<br />

Brasil, grande como o céu e o mar! 585<br />

Parece que o BR, possivelmente influenciado pelo CM, resolveu parar com as provocações e<br />

colaborar um pouco com o SD (conosco). Canções de exaltação à morena, à mulata, ao<br />

mulato, ao caboclinho, ao neguinho, ao crioulinho, à pretinha, não nos faltam. Mesmo<br />

marcando a fronteira dessas gradações dentro de uma escala de embranquecimento,<br />

considerando aí alguma influência do discurso naturalista oitocentista, a valorização geral das<br />

etnias, acaba dando um tratamento pouco diferenciado entre, por exemplo, a moreninha, a<br />

583 Festa de branco. Pixinguinha, 1928.<br />

584 Chão caboclo. Sulino, Moacir dos Santos, s.d.<br />

585 Brasil moreno. Ary Barroso, luiz Peixoto, 1941.<br />

188


mulatinha ou a pretinha, o que pode ser interpretado como um movimento duplo, ao mesmo<br />

tempo de marcação e de isonomia dessas categorias. Já em 1902 em A Mulata da Bahia 586 o<br />

BR falava “sossega o tamanco que bate no chão que eu quero descanso pro meu coração”. A<br />

mulata da roça 587 , “não há dinheiro que pague o preço de uma mulata” e Nunca mais te<br />

deixo mulata 588 ,1907, falavam dessa mesma elegia à mulher negra. Vem cá mulata 589 , 1904,<br />

teve enorme sucesso nos primórdios da gravação de músicas no Brasil, entre as primeiras<br />

músicas gravadas no Brasil, “ao povo damos sempre alegria e batalhamos pela folia, vem cá<br />

mulata sou democrata de coração”. Mulata 590 , 1904, “por ela o feitor de dia cantava perdido<br />

de amor”. Mulata carioca 591 , 1910, “quando vai a Avenida só faz moda no costureiro”.<br />

Mulata nacional 592 , “pela mulata da nossa terra o Brasil inteiro declara guerra”. Mulata<br />

fuzileira 593 , Mulata brasileira, fuzileira da orgia é da nossa companhia”. Salve a mulata 594 ,<br />

“quando ela passa cheia de graça, fecha o comércio e dá confusão”. Mulata 595 ”, 1945,<br />

“mulata se eu canto meu samba, rainha do meu carnaval, mulata se tu fosses minha mesmo<br />

queimadinha não fazia mal, já desprezei uma loirinha bonita, já desprezei uma morena<br />

infernal. A mulata é a tal 596 , “branca é branca.... mas, a mulata é a tal”. A mulata é que é<br />

mulher 597 , “Nesse negócio de amor o papai não se importa com a cor”. Da cor do pecado 598 ,<br />

“esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem”. Nega do cabelo duro 599 , “quando tu<br />

entras na roda meu corpo todo bamboleia” (tentem encontrar um rock´n´roll americano ou um<br />

folk australiano dos anos 50 falando isso para uma negra ou uma aborígene do cabelo duro).<br />

Bronzeada 600 , “essa pequena que não sai da praia os olhos dela são da cor do mar”. Produto<br />

Nacional 601 , “a morena gemeu se apresenta a servir meu Brasil tem os dentes de risos<br />

requebra feitiços que outras não tem”. Moreninha da praia 602 , 1933, que “anda sem meia em<br />

plena avenida”. Deixa falar 603 , “você pensou que o caboclinho fosse nego de senzala pra se<br />

586<br />

A mulata da Bahia. Bahiano, 1902.<br />

587<br />

A mulata da roça. Senhorita Diva, 1907.<br />

588<br />

Nunca mais te deixo mulata. Isaura, Eduardo das Neves, 1907.<br />

589<br />

Vem cá mulata. Mário Pinheiro, Pepa Delgado – Arquimedes de Oliveira, 1904.<br />

590<br />

Mulata. Geraldo Magalhães, Gonçalves Crespo, 1904.<br />

591<br />

Mulata carioca. Neco, 1910.<br />

592<br />

Mulata nacional. J. B. Carvalho, Manoel Ferreira, 1939.<br />

593<br />

Mulata fuzileira. Hervê Cordovil, Paulo Neto de Freitas, 1933.<br />

594<br />

Salve a mulata. Antonio Almeida, Braguinha, 1952. t6<br />

595<br />

Mulata. (I) Gaúcho – (C) Felisberto Martins, Pereira Matos, 1945.<br />

596<br />

A mulata é a tal. Antonio almeida, João de Barro, 1947.<br />

597<br />

A mulata é que é mulher. (I) Araci de Almeida – (C) Joel de Almeida, 1958.<br />

598<br />

Da cor do pecado, Bororó, 1939.<br />

599<br />

Nega do cabelo duro. David Nasser, Rubens Soares, 1942.<br />

600<br />

Bronzeada. Moisés Friedman, Pedro Paraguassú, 1935.<br />

601<br />

Produto nacional. Pedro de Sá Pereira, 1929.<br />

602<br />

Moreninha da praia. Almirante – Braguinha, 1931.<br />

603<br />

Deixa falar. (I) Ary Barroso, Carmem Miranda – (C) Nelson Petersen, 1938.<br />

189


deixar comprar”. Margot 604 , 1956, faz crítica a quem nega a identidade nacional “a conheci<br />

morena, loirinha você ficou seu nome é Madalena agora a chamam Margot, só quer passar<br />

por francesa, e não quer ser brasileira, Madalena eu a conheço lá de Madureira”. Exaltação à<br />

cor 605 , “o samba é apenas o pisar de uma mulata que machuca mas não mata, o samba é o<br />

canto de uma raça cheia de melancolia que tem a pele cor da noite mas tem a alma cor do<br />

dia”. Moreninha carioca 606 , 1949, “moreninha carioca sai da toca por favor e não fujas desse<br />

sol que só espera te dar beijos com calor, quem vai a Copacabana, Ipanema ou Leblon dá<br />

maior valor ao Rio acha tudo muito bom”. Escurinha 607 , 1952., “Escurinha tu tem que ser<br />

minha de qualquer maneira”. Mathilde no samba 608 , 1930, “Essa cabocla é um colosso tem<br />

remelexo até no pescoço”. Casaco de Mulata 609 , 1921, “O mulata feiticeira teu perfume de<br />

alecrim que perfuma a terra inteira eu te quero só prá mim... vem cá mulata... não vou lá não...<br />

vou já vestir o meu casaco a prestação”. Uma andorinha só não faz verão 610 , 1934, vem<br />

moreninha vem tentação, não andes assim tão sozinha que uma andorinha não faz verão... o<br />

povo anda dizendo que essa luz do teu olhar a Light vai mandar cortar”. Cor de Prata 611 ,<br />

1931, “A lua vem saindo cor de prata que saudade da mulata, minha mulata foi se embora da<br />

cidade vejam só que crueldade, foi pra longe e me deixou”. E... elas voltaram 612 , 1950,<br />

“Loirinha e morena formosa em toda a parte nascem também, porém a mulata cheirosa é só<br />

meu Brasil que tem”. O teu cabelo não nega 613 , 1932, “mulata porque és mulata na cor, mas<br />

como a cor não pega mulata, mulata eu quero o teu amor”.<br />

BR:<br />

Loirinha, loirinha<br />

Dos olhos claros de cristal<br />

Desta vez em vez da moreninha<br />

Serás a rainha do meu carnaval<br />

Loura boneca<br />

Que vens de outra terra<br />

Que vens da Inglaterra<br />

Ou que vens de Paris<br />

Quero te dar<br />

O meu amor mais quente<br />

604 Margot. Milton de Oliveira, Mirabeau, 1956.<br />

605 Exaltação à cor. Ataulfo Alves, J. Audi, 1953.<br />

606 Moreninha carioca. Ronaldo Lupo, Alberto Ribeiro, 1949.<br />

607 Escurinha. Geraldo Pereira, 1952.<br />

608 Mathilde no samba. Caramuru – (C.) J. Niccolini, 1930.<br />

609 Casaco de mulata. Bahiano, Maria Marzulo; Careca, 1921.<br />

610 Uma andorinha só não faz verão. Mário Reis; Braguinha, Lamartine Babo, 1934.<br />

611 Cor de prata. Braguinha -, Lamartine Babo, 1931.<br />

612 E... elas voltaram. Carlos Galhardo – L. Babo, Roberto Roberti, 1950.<br />

613 Teu cabelo não nega. L. Babo, 1932. Há um complexo jogo de repulsa e atração nesse discurso<br />

que ao mesmo tempo exalta a mulata e segrega a cor.<br />

190


SD:<br />

Do que o sol ardente<br />

Deste meu país 614<br />

Nossas paladinos sujeitos discursivos não nos dão moleza. Sempre prontos para nos<br />

contradizer, colocando o Seu Doutor em lugar de desconforto. Se bem que essa lourinha bem<br />

podia ser interpretada como marca de nossa democracia racial em que se chama a moreninha,<br />

a mulata e a lourinha de rainhas do carnaval. Não é isso BR? Apanhei-te cavaquinho?<br />

RF:<br />

SD:<br />

O rei Zulu, o rei Zulu<br />

Não paga casa<br />

Nem comida e anda nu<br />

Pode não ter dinheiro pra gastar<br />

Mas tem mulher pra chuchu<br />

Rei Zulu, não precisa<br />

De dinheiro pra viver<br />

Tem casa pra morar<br />

Comida pra comer<br />

Mulher pra namorar<br />

Atrás do murundu<br />

Vamos saravá, minha nega?<br />

Salve o rei Zulu! 615<br />

Esse é o mito da preguiça funcionando em conjunto com o mito da democracia racial. Fala<br />

que todo o povo <strong>brasileiro</strong> – todo, segundo o mito da democracia racial que afirmaria sermos<br />

todos miscigenados e afro-descendentes do Rei Zulu – sonha em ter casa, comida e carinho,<br />

sem precisar trabalhar, não é mesmo RF?.<br />

BR:<br />

Seu Presidente, sua Excelência mostrou que é de fato.<br />

Agora tudo vai ficar barato, agora o pobre já pode comer.<br />

Seu Presidente, pois era isso que o povo queria.<br />

O Ministério da Economia parece que vai resolver<br />

Seu Presidente, graças a Deus não vou comer mais gato.<br />

Carne de vaca no açougue é mato com o meu amor eu já posso viver<br />

Eu vou buscar a minha nega pra morar comigo<br />

Pois já vi que não há mais perigo ela de fome já não vai morrer<br />

A vida estava tão difícil que eu mandei a minha nega bacana.<br />

Meter os peitos na cozinha da madame em Copacabana.<br />

Agora vou buscar a nega porque gosto dela pra cachorro.<br />

E os gatos é que vão dar gargalhadas de alegria lá no morro 616 .<br />

614 Linda Loirinha. (I.) Silvio Caldas – (C.) Braguinha, 1933.<br />

615 Rei Zulu. Antônio Almeida e Nássara, 1950.<br />

616 Ministério da Economia. Geraldo Pereira, Arnaldo Passos, 1951.<br />

191


SD:<br />

Na maioria das vezes no discurso <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>, as questões relativas à raça<br />

apresentam-se estreitamente vinculadas às de classe social expressando o lugar do dominado,<br />

do expropriado, do sob risco. Como a condição de dominado se apresenta invariavelmente em<br />

relação à de um dominador, cabe acrescentar que as categorias de classe e raça expressam<br />

orientações de ordem política. Por esse viés, o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> expressaria questões de<br />

raça, classe sob condição política expressa na relação dominador/dominado. Por exemplo, na<br />

canção anterior, signos de classe e raça sob orientação política são inscritos expressando a<br />

condição de dominado do pobre e de sua nega, em contraste com a condição de dominador<br />

dos patrões e do Estado. Abaixo do pobre, só mesmo os gatos.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Eu saio às quatro horas de Bangu<br />

Vou pro trabalho defender o meu tutu<br />

Ai Rosalina você não sabe como é triste a minha sina<br />

No fim do dia cansado de trabalhar<br />

Eu pego o trem vou pra casa descansar<br />

Mas o expresso quase sempre se atrasa<br />

E quando eu chego em casa está na hora de voltar 617 .<br />

Eu moro numa casa que não tem conforto também pelo aluguel não pode ser melhor<br />

Eu venho do trabalho e chego semimorto a vida para mim não pode ser pior<br />

Eu tiro a minha roupa e visto o meu pijama e pego no jornal para me distrair<br />

Depois apago a luz e deito em minha cama, mas fico a noite inteira sem poder dormir<br />

Porque a gataria lá na vizinhança promove um barulho que é um inferno<br />

E bem do outro lado tem uma criança que chora e berra do verão até o inverno<br />

E tem na casa em frente a filha de um Belchior que num velho piano a noite se exercita<br />

E desde que nasceu estuda a “Cumparsita” e a toca na verdade cada vez pior<br />

Passando duas casas numa gafieira uma charanga infame desafia o sono<br />

No sábado domingo e toda quinta feira gemendo toda noite como um cão sem dono<br />

Tem um boteco perto que é um horror que só desliga o rádio quando o pau come<br />

Sai tiro e sai facada e sai cada nome que dá prá encabular qualquer carregador 618<br />

Assim, canções relacionadas à conjugação raça e classe social não se contam: Deusa do<br />

asfalto 619 , 1958, “Um dia sonhei um porvir risonho e coloquei o meu sonho num pedestal bem alto,<br />

não devia e por isso me condeno, sendo do morro e moreno, amar a deusa do asfalto, um dia ela casou<br />

com alguém lá do asfalto também”. Amanhã eu volto 620 , 1942, “você tem mania de ser granfina<br />

617 Meu tutu. Antônio Almeida e Nilo Barbosa, 1960. p5<br />

618 Boa vizinhança. Almirante; Francisco Matoso, Nono, 1939. p4.<br />

619 Deusa do Asfalto. (I.) Nelson Gonçalves, (C.) Adelino Moreira, 1958. p5<br />

620 Amanhã eu volto. Antônio Almeida, Roberto Martins, 1942. p5<br />

192


e só diz asneira, diz que tem pavor da gente de cor lá da gafieira, eu sou cabrochinho, sou<br />

queimadinho, porém altivo...”; Você nasceu pra ser granfina 621 , 1939, “o samba exige tal<br />

simplicidade é justamente o que você não tem eu desejava que você soubesse que o samba é a<br />

prece do João ninguém, ...o samba é outra bossa é pra nego de choça que não fala inglês”;<br />

“Pescador grã-fino 622 ”, 1955, “só conta lorota que vai pra pescaria de caniço e champanhota<br />

que vai pra Cabo Frio e vai pra Sepetiba e passa o dia inteiro dando banho na minhoca”; Nego<br />

bamba 623 , 1940, “Esse nego bamba cheio de orgulho sabe tirar samba e também é do barulho,<br />

veio do Salgueiro sem dinheiro, muito bem recomendado, na roda de samba ele é bem<br />

respeitado, (hoje) tem bom automóvel e cavalo de corrida, diz a todo mundo que ele agora é<br />

boa vida”, O samba da Gamboa 624 , 1945, Mandei fazer a baiana da patroa pra ir comigo<br />

sambar lá na Gamboa, eu recebi o convite do diretor da Escola, não é preciso ir de fraque nem<br />

tampouco de cartola...” Quem conta um conto 625 , 1935, “jogando a sorte com uma certa loira<br />

fui assinar o ponto na central, seu delegado isso é mentira dela, ela não tinha o ponto<br />

principal”. Corta jaca 626 , 1904, “Essa dança é buliçosa, tão dengosa todos querem dançar não<br />

há ricas baronesas e marquesas que não queiram requebrar, esse passo tem feitiço, tal ouriço<br />

faz qualquer homem coió, não há velho carrancudo, nem sisudo que não caia em trololó”. Eu<br />

não tenho onde morar 627 , 1960, “é por isso que eu moro na areia”. Alegria na casa de<br />

pobre 628 , 1941, “não me incomodo em ser pobre não senhor o que eu quero é muito samba<br />

pra cantar pro meu amor”. Samba não pode faltar 629 , 1947, “o samba pro povaréu é prato<br />

que vem do céu, o morro não pediu nem reclamou jantar, o morro quer é só sambar”. O<br />

samba agora vai 630 , 1946, “vai ter passagem de avião o samba agora vai se despedir do<br />

barracão, hoje em dia já tomou juízo já anda até de cabelinho liso e já não fala mais em pão<br />

com banana, só se passa pra Miami de Copacabana, mexe com ele que tu vais até em cana”;<br />

Sabor do samba 631 , 1935, “Desde o subúrbio a cidade o samba é novidade quem canta samba<br />

é doutor, peço licença para dizer que hoje em dia o samba lá no morro também tem sua valia,<br />

193<br />

621<br />

Você nasceu pra ser granfina. Carmem Miranda – (C.) Laurindo de Almeida.<br />

622<br />

Pescador grã-fino. Emilinha Borba - Braguinha, 1955. p5<br />

623<br />

Nego Bamba. (I) Lolita França – (C.) R. Marques, S. Rodrigues, V. Silva, 1940. p5<br />

624<br />

O samba da Gambôa. Moreira da Silva – Alexandrino, Ciro de Souza, R. Marques, 1945. p0<br />

625<br />

Quem conta um conto. Carlos Galhardo – (C.) Rodrigues, Patane, Niccolini, 1935. p5<br />

626<br />

Corta jaca. Considerando todo o rebuliço que causou a execução da peça no Palácio da República<br />

pela primeira dama Nair de Teffé, vale lembrar que o termo “jaca” à época fazia alusão ao órgão<br />

sexual feminino e que a dança do “corta jaca” evoluía pelo salão com as pernas do casal<br />

enganchadas roçando a virilha da mulher nas coxas do homem. Chiquinha Gonzaga, 1904.<br />

627<br />

Eu não tenho onde morar. Caymmi, 1960.<br />

628<br />

Alegria na casa de pobre. Abel Neto, Ataulfo Alves, 1940.<br />

629<br />

Samba não pode faltar. Osvaldo Santiago, Saint Clair Sena, 1947.<br />

630<br />

O samba agora vai. Pedro Caetano, 1946.<br />

631<br />

Sabor do samba. Germano Augusto, Kid Pepe, 1934.


eu fui ao samba na alta sociedade vendo um sambista de smoking eu me senti a vontade”.<br />

Tava na roda de samba 632 , 1932, “quando a polícia chegou, vamos acabar com esse samba<br />

que seu delegado mandou, vamos agüentando negrada que o samba é de arrelia e quem não<br />

tiver coragem que apele pra correria”. Samba 633 , 1942, “samba diplomata sonoro do meu<br />

país, samba és do <strong>brasileiro</strong> a sinfonia <strong>popular</strong>, levas contigo a cadência tropical, vai meu<br />

samba com teu ardor nacional. Sua excelência o samba 634 , 1951, “O samba diplomata<br />

eminente que atravessa o continente é Brasil onde estiver, não deixem falar do samba”.<br />

Samba no Rocha 635 , 1930, “mas que samba esse que tem no Rocha, samba escuro que só tem<br />

cabrocha, samba de arrelia só dá gente bamba, a pancadaria faz parte do samba”. Se o samba<br />

é moda 636 , 1930, “o samba era original dança dos pobres, no entanto hoje vive nos salões<br />

mais nobres, ainda há quem diga que o samba não tem valor, mas lá se encontra o deputado e<br />

o senador”. Traz o meu pandeiro 637 , 1950, “entra branco e tem preta e tem mulata, todo<br />

mundo é democrata quando quer situação eu quero ver seu chiquê balançar seu dedinho cair<br />

vendo as cadeiras da nega bulir”. Quero um samba 638 , 1943, “sou brasileira tenho a pele da<br />

cor do sapoti, gosto do samba porque faz meu corpo sacudir”. O samba está com tudo 639 ,<br />

1961, “se vou em festa que um amigo me convida não me interessa se a festa é de granfino se<br />

tem solo de violino virtuoso pra tocar, eu quero samba pra brincar com todo mundo porque o<br />

samba num segundo faz a turma se esquentar”. Favela Amarela 640 , 1958, “Ironia da vida,<br />

pintem a favela passem aquarela na miséria colorida, vamos ter no melhoramento, a dor como<br />

tema de ornamento, procure compreender, Seu Doutor, a felicidade não tem cor”; Pedreiro<br />

Waldemar 641 , 1948, “você conhece o pedreiro Waldemar, não conhece, mas eu vou te<br />

apresentar de madrugada toma o trem da circular faz tanta casa e não tem casa pra morar, leva<br />

a marmita embrulhada no jornal se tem almoço nem sempre tem jantar, o Waldemar que é<br />

mestre no ofício constrói um edifício e depois não pode entrar”. AI! Favela 642 , 1956, “favela<br />

abandonada por aí, somente o samba se lembra de ti, favela tão pequena é a distância, de ti<br />

para a cidade feiticeira favela onde não sobe ambulância, favela sofredor a vida inteira”.<br />

632 Tava na roda de samba. Salvador Correia, 1932.<br />

633 Samba. Benedito Lacerda, darci de Oliveira, 1942.<br />

634 Sua excelência o samba. (I.) Os cariocas – (C.) Januzzi, Leal Silva, Mutt, 1951. t4<br />

635 Samba no Rocha. Teobaldo Marques, 1930.<br />

636 Se o samba é moda. Josué de Barros, 1930.<br />

637 Traz o meu pandeiro. Ruy Rey – (C.) Antonio Almeida, Pedro Caetano, 1950. p5<br />

638 Quero um samba. Waldemar Gomes, Wilson Batista, 1943. t4<br />

639 O samba está com tudo. Denis Brean, Osvaldo Guilherme, 1960. t4<br />

640 Favela Amarela. Araci Costa – Jota Jr. Oldemar Magalhães, 1958. p4<br />

641 Pedreiro Waldemar. Blackout – Wilson Batista, Roberto Martins, 1948.<br />

642 Ai! Favela. Trio de Ouro – Brazinha, Paulo Medeiros, 1956.<br />

194


Falsa grã-fina 643 , “de Copacabana que vem a cidade no fim da semana, já sinto no passo um<br />

andar diferente, pisando macio mexendo com a gente. Falsa grã-fina como é divertido você<br />

nesse traje de seda banal dizer pra gente que não sai da praia, mas sempre a encontro num tem<br />

da central, você faz distúrbio no velho subúrbio mostrando as anquinhas de modo fatal”.<br />

Babá de Copacabana 644 , 1952, “você passa por mim todo dia com sapato novo no pé... eu<br />

bem te conheço em Copacabana você é babá”.<br />

BR:<br />

SD:<br />

Mangueira, Portela e Estácio de Sá<br />

traz teu samba bem gostoso tão <strong>brasileiro</strong> e convida o Salgueiro<br />

Como é bonito ver o morro no asfalto sambando partido alto<br />

porque a turma é verdadeira<br />

È preto é branco, todo mundo se mistura, samba pobre, samba rico,<br />

do Leblon a Cascadura 645<br />

O discurso de aproximação e até apagamento das distâncias sociais esteve presente no<br />

repertório do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> em geral e no samba, particularmente em questões de ethos<br />

urbano. Essa aproximação tanto apaziguava os ânimos frente desproporções e desigualdades<br />

sociais quanto fixava certa estandardização do gosto, implantando elementos <strong>popular</strong>es,<br />

devidamente lapidados, no leque de consumo da classe média urbana. O samba de smoking,<br />

os cantores do rádio, as revistas femininas e as chanchadas da Atlântida configuraram-se<br />

como o carro chefe do cardápio. A <strong>popular</strong>ização do gosto médio era inventada em paralelo a<br />

invenção da crítica à estética elitizada.<br />

BR:<br />

Não sei que doença deu na Risoleta<br />

Que agora só gosta de ouvir opereta<br />

Cheia de prosa, cheia de orgulho<br />

Cheia de chiquê<br />

E faz fricote como o quê<br />

Não canta mais samba<br />

Só quer imitar Lucienne Boyer<br />

Parle moi d'amour<br />

Só quer l'argent, l'argent toujours<br />

Ela não sabe nem ler<br />

E já quer gastar o francês<br />

E diz que despreza<br />

Quem só fala português 646<br />

Você não perde a mania de construir castelos no ar<br />

Dizendo todo dia que o Presidente comigo vai se casar<br />

643 Falsa grã-fina. Moreira da Silva, Alberto Costa, Oldemar Magalhães, 1953.<br />

644 Babá de Copacabana. Chiquinho Silva, Francisco Neto, 1952.<br />

645 Do Leblon a casacadura. Gilda de Barros – Arnaldo Moraes, Elias Ramos, s.d.<br />

646 Menina Fricote. H. Batista, Marília Batista, 1940.<br />

195


SD:<br />

Que eu vou ter apartamentos vou ser madame e residir a beira mar<br />

Que eu vou ter radio e geladeira e uma empregada pra lavar e cozinhar<br />

E por falar em casamento você já sabe quanto custa um quilo de feijão<br />

Um quilo de açúcar, farinha, manteiga, banha e o pão<br />

Já que essa vida está tão cara não adianta fazer orçamento<br />

Você não pode se casar ganhando dezessete e setecentos 647 .<br />

Poxa, nem acredito que BR, RF e CM não cometeram ironias contra minha fala. Considerando essa<br />

trégua, vou seguir então falando para meus pares SD. Atenção, demais Seus Doutores, por favor não<br />

concluam que essa inscrição relativa às categorias raça e classe seria especificidade do samba ou dos<br />

ritmos urbanos ou dos discursos RF e BR. De fato, nem sei porque o CM ainda está calado. Pôxa, o<br />

BR com essa história de dezessete e setecentos te deu uma deixa danada pra você entrar falando. E aí?<br />

Cadê?<br />

CM:<br />

SD:<br />

Mas se eu lhe dei vinte mil réis<br />

Prá pagar três e trezentos<br />

Você tem que me voltar<br />

Dezessete e setecentos!<br />

Mas dezessete e setecentos?<br />

Dezesseis e setecentos!<br />

Dezessete e setecentos?<br />

Dezesseis e setecentos!...<br />

Sou diplomata freqüentei academia<br />

Conheço geografia sei até multiplicar<br />

Dei vinte mango prá pagar três e trezentos<br />

Dezessete e setecentos você tem que me voltar 648<br />

E de tabela CM ainda deu uma caçoada na Academia, não é mesmo, Seus Doutores (nós<br />

mesmos)? Mas, voltando ao que dizia antes, da mesma forma que o conjunto de categorias<br />

raça e classe sob condição política é inscrito pelos discursos RF e BR, também o é pelo<br />

discurso CM. O peão e o ricaço 649 , fala do encontro de um peão num burro e de um ricaço<br />

em um carro importado no qual o peão encarnando a esperteza do Jeca se sai melhor. “Surgiu<br />

atrás do peão um homem rico importante. Ele vinha dirigindo um cadilac possante. Pediu<br />

caminho pro peão num gesto deselegante. Tocando a mão na busina e businava a todo<br />

instante. O peão apertava o burro pra ele correr bastante. Mas só pode dar passagem num<br />

desvio bem adiante”. Ladrão de terra 650 , “Vou matar ladrão de terra dentro da minha razão,<br />

647 Castelos no ar. Elesário teixeira e Max bulhões, 1947.<br />

648 Dezessete e setecentos. Calango, 1947.<br />

649 O peão e o ricaço. Sulino, Moacyr dos Santos, 1958.<br />

650 Ladrão de terra. Jacó, Jacozinho, 1962.<br />

196


negar terra pros caboclo é negar pão pros nossos filhos, é tirar o Brasil dos trilhos”, espécie de<br />

faroeste <strong>brasileiro</strong>, não sem alguma crítica social. Terra roxa 651 , “perguntar se esse preto tem<br />

troco é deixar o caboclo muito envergonhado” fala de um preto que enriqueceu plantando<br />

café; 13 de maio 652 “é um dia muito bonito a congada se alevanta pra saudar São Benedito”,<br />

fala do fim da escravidão; Gente garganta 653 , faz oposição campo x cidade com crítica moral<br />

e social. “Meu pai foi velho tropeiro e não devia patrão, para mim não há dinheiro que me<br />

compre o coração, eu vejo aqui na capital é só garganta e carnaval, o canto da sucurina no<br />

sertão lá de tardinha vale mais que a cocaína que seduz os almofadinhas”.<br />

CM/BR/RF/SD:<br />

Eu vim pequeno de Minas Gerais<br />

Criei-me aqui hoje sou rapaz<br />

E até já dizem que eu sou bacana<br />

Mas é porque eu tenho bolso e ando bom de banho<br />

Dou um banquete todo ano no palácio do meu mano<br />

Criei-me na Lapa no meio da boemia<br />

Freqüento a academia e moro em Copacabana<br />

Juro por Deus que nunca vi trabalho<br />

Mas sempre tenho um galho que me defende a grana<br />

Eu faço um terno por semana 654 .<br />

SD:<br />

A fala vem de Minas Gerais, como o caipira CM e freqüenta a academia e mora em<br />

Copacabana como o SD e nunca viu trabalho como o malandro RF, mas é também bacana e<br />

faz um terno por semana como o BR. Nessa última fala, resolvemos nos juntar, possivelmente<br />

para arruinar com a própria diferença inventada. Ou mesmo propor o cansaço do jogo que já<br />

expressa devir em outro lugar.<br />

♪♪♫♫<br />

Propomos agora outro jogo em que a pecha de Seu Doutor desloque-se afinal, não mais como<br />

alegoria entre alegorias do <strong>cancioneiro</strong>, mas, como alguma coisa que sofre e ama e sente e que<br />

por entre todo sentimento experimentado ele (nós) já não caberia (mos) nos limites dos termos<br />

de um Doutor seja para quem e sob que relações com outros, qualquer outro. Mesmo quando<br />

precisa (mos) ser Doutor (ou Seu Doutor) já caberiam e vão entrando ali inúmeras notas de<br />

percurso, ligaduras, rupturas, expansões, bloqueios, questionamentos, interferências, ruídos,<br />

movimentos, rasuras, rastros que contaminam a experiência de ser Doutor/Seu Doutor. O<br />

651 Terra roxa. Tião Carreiro, Pardinho, 1961.<br />

652 13 de maio. Congado anônimo, s.d.<br />

653 Gente Garganta. Américo Paes Leme, 1921.<br />

654 Mineiro sabido. Moreira da Silva, Cícero Nunes, 1938.<br />

197


movimento, por outro lado não fixa um possível, não-Doutor, apenas não permite que este se<br />

complete como presença em si objetivada em termos explicitamente acadêmicos, aqueles que<br />

se aproximam de um logos racional, blindado a toda adjetivação que os sentidos tomados<br />

como não racionais contaminam, em geral, a partir do coração. E, é necessário afirmar, essa<br />

incompletude expressa-se mesmo em um ambiente favorável à metafísica da presença em si<br />

do Doutor, como , por exemplo numa banca de defesa, numa sala de aula num seminário.<br />

Falemos do jogo. O jogo não se fixa (não pretende fixar-se) nem nos limites de um subjétil<br />

literário nem de um subjétil acadêmico, deslizando no entre ciência/ficção, História/crônica.<br />

Sem abrir mão de ambas as possibilidades, produz movimento que faz erguer uma terceira<br />

margem que diz das duas, pode-se vê-la nas duas, mas não é exatamente a soma das duas,<br />

nem diz de uma área de interseção das duas, como dito, a terceira margem se expressa nesse<br />

entre, ao mesmo tempo possibilidade de diferença, possibilidade de desenhar a fronteira que<br />

distingue, e de confusão, considerando que se pode perceber a terceira margem atuando dos<br />

dois lados. Por isso diz de um efeito, não de uma coisa, objeto ou palavra, conceito, mas um<br />

efeito, movência, a possibilidade de movimento que toda “coisa”, “palavra” e mesmo a<br />

separação que permite a distinção entre coisa/palavra carrega desde já. O movimento de jogar<br />

o jogo corresponde a deixar o jogo jogar considerando as possibilidades de movimento de<br />

cada participante respeitando ou anarquizando estratégias, mas, a medida do possível,<br />

sofrendo os efeitos que os movimentos inscrevem: meus/nossos movimentos, movimentos das<br />

canções/rádio e do próprio jogo/papel. Consideramos que essa esquizofrenia/fragmentação<br />

inerente ao jogo deve ser lida como pista e possibilidade de articulações entre os participantes,<br />

não como veneno da falta de método a espera da cura logocêntrica, nem como cura<br />

renovadora ao veneno da blindagem acadêmica. O labirinto já estava presente e nunca houve<br />

a opção de não estar nele. Podemos fingir e pretender um mundo estruturado, reificado à<br />

semelhança das distinções que nos são confortáveis, nada mais que isso.<br />

198


CONFETES E CONFLITOS DE UMA BELA ÉPOCA<br />

Pensamentos Crônicos em Isaura sob interferência do rádio e do papel.<br />

Cheguei cansado do trabalho, logo a vizinha me falou... 655<br />

Na escuridão do quarto no segundo piso da casa de cômodos, o corpo afundado na cama, o<br />

travesseiro engolindo a cabeça, o pensamento permanece nela, ingrata. O rádio, lá da<br />

recepção, martela ouvidos com esse samba indecente.<br />

Está fazendo meia hora que a sua mulher foi embora e um bilhete deixou, meu Deus que<br />

horror, e o bilhete assim dizia: - não posso mais eu quero é viver na orgia.<br />

A cabeça afunda mais no travesseiro, embalada pelas doses da orgia, bas-fond que se estende<br />

da Carioca à Praça Tiradentes. Pensa nela, a ingrata. O rádio, incoerentemente alegre, não<br />

perdoa os ouvidos.<br />

Fiz tudo para ser seu bem estar, até no cais do porto eu fui parar....<br />

A revista espera para amanhã de manhã o artigo. A argumentação, a pesquisa de época, os<br />

personagens, entrevistas, mas, há de haver coerência em todos os aspectos. Como retornar ao<br />

trabalho, à máquina, desafiar o papel que reclama, e remeter-me ao clima, aos ares, às<br />

impressões de uma Bela Época, quando se leva o peito sangrado pela ausência ruge carmim<br />

dos lábios de Isaura que a essa altura sabe-se lá por onde andariam?<br />

Martirizando o meu corpo noite e dia, mas qual o que ela é da orgia.<br />

Como se mergulha no espírito de uma Bela Época quando dela nada se experimenta? Como<br />

disciplinar-se ao trabalho? Como escrever um mísero parágrafo que seja quando se tem Isaura<br />

na cabeça? A cabeça submersa no travesseiro. O rádio adivinha meus pensamentos e toca<br />

outra canção, coincidência quixotesca para me por de joelhos, rindo de mim mesmo. O que<br />

me serviu de consolo, enquanto o rádio introduzia os primeiros compassos, foi outra canção<br />

que anos mais tarde vai dizer. “Ali onde eu chorei qualquer um chorava 656 ”.<br />

Ai, ai, ai, Isaura, (Isaura não, Isaura não) hoje eu não posso ficar, se eu cair nos teus<br />

braços não tem despertador que me faça acordar, eu vou trabalhar 657 .<br />

O corpo salta da cama atendendo ao despertador da canção. Encaro a máquina de escrever<br />

enquanto a cabeça gira anabolizada pela ressaca da imprecisa combinação de absinto,<br />

fermentados e outros derivados da noite anterior. Mais mortal que a combinação é o<br />

655 Oh! Seu Oscar. Wilson Batista, Ataulfo Alves, 1939.<br />

656 Volta por cima. Paulo Vanzolini, 1962.<br />

657 Isaura. Herivelto Martins, Roberto Roberti, 1944.<br />

199


pensamento em Isaura, o mais perigoso dos vícios, um jeito de ser ambíguo que provoca o<br />

ócio 658 , dirá outra canção muitos anos depois.<br />

Ai, ai, ai, Isaura, hoje eu não posso ficar...<br />

Retorno às anotações antigas, páginas já escritas, entrevistas com personalidades da época,<br />

Bela Época. Mas, também com uns tipos menos aristocráticos como Pedrinho do Largo,<br />

famoso vendedor de modinhas 659 que Luís Edmundo imortalizou em O Rio de Janeiro do meu<br />

tempo.<br />

O trabalho é um dever, todos devem respeitar, ô Isaura me desculpe, amanhã eu vou<br />

voltar.<br />

Sem Isaura nos braços, mas com Isaura nos ouvidos, investigo qual bela época seria essa. Dos<br />

1900 de Bertolucci 660 aos loucos anos 20 do pós-centenário, da pós-moralidade, da pós-<br />

revolução. Anos 20 do pós-tudo? O artigo já teria título? “Retalhos belle-époquianos”. Algum<br />

método? Talvez, uma tentativa de fazer contrastar por fragmentos os dizeres do bas-fond e do<br />

palácio. Justaposição de retalhos como efeito que orienta o leitor por labirinto que se estende<br />

entre a decadência do art nouveaux e os passos do shimmy. Paredes, passagens e corredores<br />

como o método das caricaturas que distorce delicadezas e reinscreve brutalidades que o rosto<br />

quer omitir.<br />

Teu carinho é muito bom, ninguém pode duvidar, se você quiser, eu fico, mas vai me<br />

prejudicar, eu vou trabalhar.<br />

A caricatura de um clown, um pierrot de máscara dividida entre a metade negra e outra<br />

branca: a ralé e a fidalguia, a favela e o palácio, o terreiro e o salão. Retalhos de experiências,<br />

notícias, pequenos dramas, doces recordações, relatos da rua, de salões, de cafés, confeitarias,<br />

botequins, anotações de diário, livro de receitas caseiras, notas e manuais de etiqueta,<br />

folhetins. Retalhos atirados para o alto são confetes que pousam aleatoriamente sobre o papel<br />

escrevendo-me o artigo. O papel escreveria o artigo? E procederia assim apostando na<br />

desordem, no fora da ordem. O caminho direcionado se espalha como musgo, umidade no<br />

concreto crescendo para qualquer direção. Ordem/desordem, luz/sombra. Bavcar 661 , o<br />

200<br />

658 Capitu. Luiz Tatit, 2000.<br />

659 O vendedor de modinhas era de modo geral pobre, fosse branco, negro ou mestiço. Sua prática<br />

consistia em comprar com desconto folhetos de modinhas aos editores e vender os exemplares<br />

cantando seu conteúdo em logradouros públicos estrategicamente escolhidos para atrair seu<br />

público:grandes avenidas, praças, mercados. Para Tinhorão (1976), tais artistas de rua atuavam<br />

como menestréis modernos que viviam da música alheia com a comissão que tiravam da venda dos<br />

folhetos.<br />

660 1900. Filme. Bernardo Bertolucci, 1976 (título original: Novecento).<br />

661 Evgen Bavcar . Seminário: Muito além do espetáculo. Rio de Janeiro: Maison de France, 2003.


fotógrafo cego, dirá que a luz sem sombra, cega. O rádio atento e já de papo responde em<br />

cima com outro samba de amargar.<br />

A luz negra de um destino cruel ilumina um teatro sem cor onde estou desempenhando o<br />

papel de palhaço do amor 662 .<br />

O calendário que não permitir estação orgiástica, pagã, Sabá, fogo, será amaldiçoado. O<br />

civilizado que evitar o bárbaro rasgará a fantasia atrás do trio elétrico 663 . Escrever por esses<br />

binômios ordem/desordem, moral/orgia, civilizado/bárbaro escrever como colcha de retalhos,<br />

fragmento, bricolagem, jogo, combinação entre infinitas combinações que a Bela Época<br />

dissemina.<br />

O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada<br />

a semente, o amor será eterno novamente 664 .<br />

Falar do orgiasmo, do bas-fon, dos loucos anos 20 quando se traz o coração emudecido pelo<br />

misantrópico impulso de aprender a ser só. Atormenta-me a companhia inevitável do rádio<br />

que insiste em responder meus pensamentos. Escrever a metade branca da máscara do<br />

palhaço, a alta sociedade, a Capital Federal, os políticos, doutores e bacharéis, madames,<br />

mademoiselles, modern-girls e coquettes, os manuais de conduta e etiqueta, os diários das<br />

candongas, a politesse, os smartismos, os voyerismos e arrivismos, as transações políticas e<br />

financeiras, mercados, ações, commodities, recepções, cerimônias, palácios, salões, dancing,<br />

flirt, footing, maisonnette, chás, xerez, bomboniéres, cafés. E depois a metade negra, o<br />

lúgubre casario dos becos, colonial medievo, saltimbancos, pandeiristas, vendedores de<br />

modinhas, pretalhonas quituteiras, a pancadaria das rodas de samba, capoeiristas, pedintes,<br />

engolidores de espada, boxers, peixeiros, cocainômanos, trapeiros, carvoeiros, barbeiros,<br />

parasitas, malandros, polacas, cáftens, mucamas, terreiros, batuques, favelas, cortiços,<br />

Pequena África, tias baianas, botequins, quiosques enlameados no cais do porto, a estiva<br />

diária que rebenta o peito e a cachaça que amortece. O papel transita no entre de duas metades<br />

que vão se encontrando aqui e adiante. O “no entre” sambista/bacharel, o amálgama preto<br />

doutor, Escola de Samba, mestre-sala, rainha do maracatu. Antropofagia que fagocita<br />

enquanto se deixa fagocitar pelo outro. Lança-se ao outro e antes disso não havia samba, nem<br />

Escola de samba, nem rainhas, nem reis momos. Não havia sequer a máscara clara e escura. A<br />

lágrima clara sobre a pele escura 665 .<br />

662 Luz Negra. Nelson Cavaquinho, 1966.<br />

663 Atrás do trio elétrico. Caetano Veloso, 1968.<br />

664 Juízo Final. Nelson Cavaquinho, 1973.<br />

665 Desde que o samba é samba. Caetano,1993.<br />

201


Nasci no Estácio fui educado na roda de bambas, fui diplomado na Escola de Samba,<br />

sou independente conforme se vê 666 .<br />

Talvez não tão independente assim... respondo ao rádio que já não incomoda.<br />

Aqui no Estácio, não posso mudar minha massa de sangue, você pode crer, palmeira do<br />

Mangue não vive na areia de Copacabana.<br />

Já não incomoda. Pelo menos, não como o pensamento em Isaura, a favorita das cabrochas de<br />

alta classe que brincam o carnaval. Isaura que me disse adeus alegando incompatibilidades.<br />

Não, não me diga adeus, pense nos sofrimentos meus, se alguém lhe dá conselhos pra<br />

você me abandonar.... Não devemos nos separar, não vá me deixar 667 .<br />

O destino caçoa quando impõe o trabalho ao abandono de Isaura. Morena, sandálias de prata,<br />

da cor do pecado, da orientalidade banta de essências balsâmicas e cítricas perfumando<br />

mistérios em sua pele clara/escura.<br />

Morena boa que me faz sonhar bota a sandália de prata e vem pro samba sambar 668 .<br />

Morena de uns braços que me abriam pórticos de cidade oculta, ruas estreitas, calçamentos<br />

irregulares a brotar matinhos entre as pedras coloniais, natureza forçando passagem sob a<br />

civilização mal assentada, chão ainda assombrado por fantasmas pré-diluvianos, o olor dos<br />

óleos de baleia queimando em lamparinas cujas sombras bruxuleantes menos revelavam do<br />

que escondiam histórias de barões, conquistadores, mascates, aventureiros, soldados,<br />

sonhadores, poetas, piratas, donzelas, mucamas, feitores e negros de quilombos e senzalas. O<br />

cheiro das conservas de damasco e do marrasquino de Zara, dos marmelos em quartos e das<br />

frutas dormindo em aguardente ou avinagradas em grandes potes de vidro. Uma cidade que o<br />

ausente corpo de Isaura já não me permite mais.<br />

Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso que você tem é um corpo delgado da cor do<br />

pecado que me faz tão bem, esse beijo molhado escandalizado que você me deu tem um<br />

sabor diferente que a boca da gente jamais esqueceu 669 .<br />

O destino caçoa finalmente quando, em estado de abandono, é preciso falar de mistérios e<br />

roçagares de corpos, olhares fortuitos, passantes incógnitas e fugidias, galanteios nos bondes e<br />

cafés, a alegria explosiva dos carnavais, ainda sob reminiscências do entrudo medievo, mas,<br />

havia os corsos, ranchos, blocos, a boemia dos bares e botequins em que Sérgio Buarque,<br />

Prudente de Morais e o recém chegado dos Estados Unidos, Gilberto Freyre, compartilharam<br />

666 O X do problema. Noel Rosa, 1936.<br />

667 Não me diga adeus. Paquito, Luis Soberano, J. Corrêa da Silva, 1948.<br />

668 Isto aqui o que é? (Sandália de prata). Ary Barroso, 1942.<br />

669 Da cor do pecado. Bororó, 1943.<br />

202


generosas doses de cachaça, prosaicas confabulações e gloriosos sambas e choros que iam<br />

sendo feitos ali mesmo por Pixinguinha, Patrício, João da Baiana, Donga e Sinhô.<br />

Rir, não se ri de quem padece. Sofre, meu coração sabe dizer 670 .<br />

Enquanto as lamúrias se prolongam, o papel tece seu desafio – “Preencha-me logo!” Mas o<br />

rádio/canções não se cala e quer participar como cronista, assim como o papel/crônica. Os<br />

“Retalhos belle-époquianos” também querem se jogar, são confetes desses loucos anos e não<br />

querem saber da ausência de Isaura. Ambos exigem em tom mais que imperativo –<br />

Comecemos logo esse jogo! O jogo de uma bela época do qual participo eu, por pensamentos<br />

com/sem Isaura, o papel por fragmentos e as canções pelo rádio.<br />

RETALHOS BELLE-ÉPOQUIANOS<br />

Comemorava-se o fim da Primeira Guerra Mundial (até então a única), a<br />

ameaça da Internacional Socialista ficara restrita às lonjuras geladas da<br />

Rússia, a burguesia balançava suas pérolas no dancing do Palácio<br />

Guanabara à Rua Paissandu. Ia-se ao footing na Avenida Central e na Rua<br />

do Ouvidor. Donzelas entregavam-se aos flirts nos jardins alcoviteiros dos<br />

palacetes. Porém, ao fecharem os olhos já não se viam ali. Imaginavam-se no<br />

mais novo dancing de Montmartre, caminhando nos Campos Elísios ou ainda<br />

sucumbindo à cinematografia dos prazeres de Paris ou da Nova Iorque de<br />

arranha-céus para se ver de maca, dirá Tom Jobim anos depois.<br />

Heaven, Heaven, Im Im in in heaven heaven and and my my heart heart beats beats so so that that I I can can hardly speak and and I<br />

seem seem to to find find the the happiness happiness I I seek seek when when were were out out together together dancing dancing cheek cheek to<br />

to<br />

cheek<br />

cheek<br />

cheek 671 .<br />

Década de 20, apogeu da Belle-Époque carioca. Que mistérios? Que sabores?<br />

Que aromas? Que ritmos? Para Benjamin Costallat, o ritmo era o jazz que<br />

não perdoa os ouvidos modernos e os martiriza até o amanhecer. Aqui como lá,<br />

no Moulin-Rouge da Praça Tiradentes ou no Moulin-Rouge de Montmartre o<br />

ritmo era o Jazz. Sempre o jazz, como um imenso hospício aos berros, entre mil<br />

670 Rir. Vadico, Noel Rosa, 1934.<br />

671 Cheek to cheek. Irving Berlin, 1935.<br />

203


luzes estonteantes dos restaurantes noturnos, tornitroa e explode, em<br />

homenagem infernal às sacudidelas histéricas e lúbricas no shimmy. Mas, os<br />

pares ainda se entrelaçam e nos braços um do outro desperdiçam juras<br />

eternas e fugazes como o aroma de um puro cubano.<br />

Quand Quand il il me me prend prend dans dans ses ses ses bbras,<br />

b ras, il me parle tout bas je je vois vois la la vie vie en en rose, rose, il<br />

il<br />

me me dit dit des des mots mots d'amour d'amour das das mots mots de de tous tous les les jours, jours, et et ça ça me me fait fait quelques<br />

quelques<br />

choses<br />

choses<br />

choses 672 .<br />

Porém, para Gilberto Freyre, recém chegado da francófona Nova Orleans, o<br />

ritmo é o samba. Um samba que vem se aburguesando sob as influências do<br />

jazz americano e das danças de salão, mas, que também guarda raízes no<br />

lundu e no maxixe.<br />

Se Se você você jurar jurar que que me me me tem tem amor amor eu eu posso posso me me regenerar<br />

regenerar<br />

Mas Mas se se é é para para fingir, fingir, mulher, mulher, a a orgia orgia assim assim não não vou vou deixar deixar<br />

673<br />

Após uma estada generosa em Nova Orleans, berço do jazz americano, Freyre<br />

desembarcou no Rio curioso pelo bas-fond local, não exatamente a cidade da<br />

aristocracia burguesa, do Café Paris ou das orquestras de Charleston no<br />

Palácio Guanabara. Na companhia de outros intelectuais, Freyre queria<br />

conhecer a outra metade da máscara. E descreve em seu diário o encontro entre<br />

sambistas e acadêmicos: “Com eles (Sérgio Buarque, Prudente de Morais)<br />

saí de noite boemiamente. Também com Villa-Lobos e Gallet. Fomos juntos a<br />

uma noitada de violão, com alguma cachaça e com os brasileiríssimos<br />

Pixinguinha, Patrício e Donga” 674 .<br />

O O O Chefe Chefe da da Folia Folia pelo pelo telefone telefone manda manda avisar<br />

avisar<br />

Que Que com com alegria alegria não não não se se questione questione para para se se brincar brincar. brincar<br />

O O chefe chefe chefe da da polícia polícia pelo pelo telefone telefone manda manda avisar<br />

avisar<br />

Que Que na na Carioca Carioca tem tem uma uma roleta roleta roleta para para se se jogar<br />

jogar 675<br />

672 La vie em rose. Edith Piaf, Louis Louiguy, 1946.<br />

673 Se você jurar. Ismael Silva, Francisco Alves, Nilton Bastos, 1930.<br />

674 Vianna apud Freyre, 1995, p. 19.<br />

675 Pelo telefone. Donga, 1917.<br />

673 .<br />

204


A canção inscreve a contaminação entre as metades clara e escura da<br />

máscara, ordem e folia. A burguesa da Rua do Ouvidor que Machado de<br />

Assis apelidou de “via dolorosa dos maridos pobres”. Casario imponente, lojas<br />

sofisticadas e preços proibitivos. O papel lança fragmentos: Notre Dame,<br />

Casa Clark, Torre Eiffel. Casas de chá e cafés: Paris, Deroche, Provence,<br />

Colombo e Menères. Clubs para cavalheiros com smoking room e mesas de<br />

poker. Palácio, palacete, garçonnièrre e maisonnette. O Hotel Avenida e o<br />

Frères Provenceaux, “meublé, tapissé, ridauné a La mode de Paris”. Pensions<br />

d´artistes, finos bordéis da Rua do Ouvidor. A casa Edison e a Garson onde se<br />

encontram os novos “discos electros veroton”. O elã das condutas, etiquetas e<br />

toilletes, luvas de pelica, bengalas com punho de madrepérola, casacas,<br />

cartolas e coletes, gargantilhas para senhoras, lenços vermelhos de Rouen,<br />

sedas da fábrica de Chantilly, peles, plumas, xales de cassa bordados de<br />

prata e ouro, chapéus guarnecidos, musselina, casimira, cetim e veludo.<br />

Maria, Maria, última última moda, moda, vive vive feliz feliz recebe recebe mensalmente mensalmente os os figurinos figurinos de de Paris Paris<br />

676<br />

O papel por fragmentos também diz da outra metade: dos pés descalços, dos<br />

muquifos, mafuás, feiras livres, zungas, estalagens e casas de cômodos. Dos<br />

subúrbios que o trem alcança, da Favela, do morro de Santo Antônio, do<br />

morro do Castelo. A metade dos despejados e dos espaços proibidos, das<br />

sombras, da escuridão das ruas estreitas, dos terreiros da Pequena África. A<br />

metade da valentia, das pancadarias e dos muitos amores do malandro que<br />

caminha de tamancas, sorrateiro e prosa, lenço branco no pescoço, chapéu de<br />

lado, navalha no bolso e pandeiro na mão. A cidade do bilhar, do “dadinho”,<br />

do “bicho”, das apostas, da cabritada, da roda de samba, capoeira e<br />

candomblé, das cuspidelas de cachaça, dos quiosques, da estiva portuária, do<br />

cafetismo, dos prostíbulos e das pensões alegres, das coristas e cortesãs.<br />

Mas Mas o o pobre pobre não não tem tem dinheiro dinheiro tem tem que que dormir no chão chão. chão<br />

Não Não tiveram tiveram pena pena (...) jogaram jogaram jogaram meus meus cacarecos cacarecos no no chão chão chão<br />

677<br />

676 Maria última moda. Elzo Augusto, Wilson Salles, s.d.<br />

677 .<br />

676 .<br />

205


As duas metades da máscara veneziana, clara/escura, mesclam-se uma por<br />

cima da outra quando a noite faz acender na cidade a chama de Dioniso. Os<br />

rígidos contornos perdem nitidez nos cafés-concerto e confeitarias<br />

aristocráticos freqüentados pelo universo licencioso das “modern girls”,<br />

cocottes e coquettes, meninas ambiciosas que a exemplo de Aimée, o “diabinho<br />

loiro” machadiano do Cabaré Alcazar, alegram políticos, proprietários e<br />

investidores, além dos malandros, cáftens, vendedores de ópio e cocaína. A<br />

visão dual novamente perde contornos quando literatos e intelectuais<br />

encontram-se com poetas, músicos e compositores do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>.<br />

Doutor Doutor de de anedota anedota e e de de champanhota champanhota es estou es tou acontecendo acontecendo no no café café soçaite soçaite ssó<br />

s ó digo<br />

enchanté, enchanté, muito muito merci, merci, all all right right troquei troquei a a luz luz do do dia dia pe pela pe la luz luz da da Light. Light.<br />

Light.<br />

Enquanto Enquanto Enquanto a a plebe plebe rude rude na na cidade cidade dorme dorme eu eu jant janto jant o com Jacinto que que é é de de Thormes. Thormes.<br />

Teresas Teresas e e Dolores Dolores falam falam bem bem de de mim mim já já fui fui até até citado citado na na coluna coluna do do Ibrahim Ibrahim<br />

678<br />

Se o smartismo e o snobismo da metade burguesa não esgotam a curiosidade<br />

da intelectualidade vanguardista, atraída pelo “exótico-<strong>popular</strong>”, pela via<br />

inversa, as vozes da cultura <strong>popular</strong> sentem-se seduzidas pela ambience dos<br />

salões da aristocracia apropriando-se de elementos da elite que interferem<br />

profundamente em suas inscrições. As construções do sambista-bacharel, Noel<br />

Rosa, do preto-doutor, Dorival Caymmi, e da própria instituição Escola de<br />

Samba – recheada de referências da cultura de elite como mestre-sala, rei e<br />

rainha do carnaval, Acadêmicos do Salgueiro, comissão de frente – inscrevem<br />

a contaminação entre a cultura dos palacetes e a cultura <strong>popular</strong> de morros e<br />

subúrbios.<br />

Lá Lá em em Vila Vila Isabel Isabel quem quem é é bacharel bacharel não não tem tem medo medo de de bamba.<br />

bamba.<br />

São São Paulo Paulo dá dá café, café, Minas Minas dá dá leite leite e e a a Vila Vila Isabel Isabel dá dá samba samba<br />

679<br />

João do Rio comparou o compositor de modinhas aos vendedores ambulantes,<br />

tatuadores, cartomantes, coletores de sapatos e botas velhas, ratoeiros,<br />

677 Cacarecos. (I) Dupla Ouro e Prata – (C) Miguel Roggieri, Osvaldo Cruz, s.d.<br />

678 Café Soçaite. (I) Jorge Veiga – (C) Miguel Gustavo, 1955.<br />

679 Feitiço da Vila. Noel Rosa, Vadico, 1934.<br />

679 .<br />

678 .<br />

206


trapeiros e caçadores de gatos vadios, desqualificando o compositor <strong>popular</strong>.<br />

Porém, esse mesmo João também seria um dos primeiros literatos a circular<br />

com desembaraço pelos terreiros <strong>popular</strong>es, insistindo que a máscara deveria<br />

ser desenhada pelo amálgama de seus matizes contrastantes, contaminando-se<br />

um pelo outro. O cronista vai ao mundo dos cavalheiros e modern girls,<br />

cocottes e demi-mondaines. Vai ao mundo do Teatro Lírico e do Teatro<br />

Municipal sob os pés de Isadora Duncam e refestela-se na vida vertiginosa<br />

que anuncia para breve, nas grandes capitais do mundo, um serviço regular<br />

de bondes aéreos denominados de aerobus, prenúncio dos vôos comerciais e<br />

aeroportos. Mas, o cronista vai também ao mundo das estalagens, dos<br />

“zungas”, da estiva portuária, das rinhas de galo, dos terreiros de candomblé,<br />

dos book-makers, dos cocheiros, dos sambistas e mendigos.<br />

Em Em mil mil e e novecentos novecentos a a gente gente vivia vivia a a cantar cantar e e todo todo mundo mundo ssentia<br />

s entia prazer em<br />

dançar. dançar. Mas, Mas, hoje hoje em em dia, dia, a a vida vida é é vazia vazia não não tem tem mais mais o o mesmo mesmo sabor, sabor, ó ó que<br />

que<br />

saudade saudade que que eu eu eu tenho tenho tenho de de mil mil novecentos, novecentos, amor amor<br />

680<br />

O papel se agita. Gesticula. Quer dizer que não é só isso. Não, não é só isso. A<br />

máscara da bela época se desdobra para além da favela e do asfalto. Quando<br />

alguém olhou pra trás afirmando que houve ali uma bela época, mesmo sem<br />

saber, já dizia de algo mais, algo que dissemina e já vai reterritorializando<br />

para além da dicotomia ou dialética proposta, algo que atravessa favela e<br />

asfalto, algo que vem debaixo do barro do chão. E assim dito, o papel já nos<br />

carrega para uma pequena vila, pedaço de chão de terra e poeira, prefeitura,<br />

praça e igreja, polígono, recôncavo, seara do sertão de parabelo na mão e<br />

poesia na corda, carência que tudo quer, mas quase nada encontra, além de<br />

menino magro e cachorro com nome de peixe. Quixabeira, fauna rasteira,<br />

cobras e calangos, feijão catado, taperas de sapé, caibros e palha de pindoba.<br />

Algumas bananeiras se elevam do resto da vegetação miúda, o sol vai se pondo<br />

rubro e majestoso na barra, horizonte cerrado de nuvens que escurecem,<br />

680 Em 1900. Alberto Ribeiro, Roberto Roberti, 1942.<br />

680 .<br />

207


escurecem, mas cabulam o sagrado ofício de chover. Mas, é noite de festa, São<br />

João, carnaval, fim de Quaresma, Reis, congado ou coisa igual. Lampiões,<br />

candeeiros, lanternas coloridas, bandeiras e fitas, sanfoneiro, pifo, tambores,<br />

repentes, cantores. Vinho do buriti, doces de juçara, carne de sol e charque,<br />

arroz doce e de velho, feijão verde e de corda, tapioca, cuscuz de mandioca, bolo<br />

de carimã, cocada, beiju, canjica, pamonha, manuê, milho assado, bolo de<br />

milho, pirão, içá torrado, pão sovado, quentão, xinxim, garapa de tamarino,<br />

jerimum, buchada, sarapatel, cachaça destilada da borra do melaço, caiana,<br />

caxirim, quebra-goela, januária, jurubita, doce como alegria que verte do canto<br />

e dos pés das caboclas, do branco das camisas de gala, das cores vivas dos<br />

vestidos, dos bordados, estandartes, fantasias, palhaços, malabaristas,<br />

baião, pé de serra, samba de roda, arrasta-pé, forrobodó, cavalo marinho,<br />

bumba e personagens – o boi, a ema, o capitão, o boca-mole, o arlequim, a<br />

catirina, a caipora e até o diabo. E a festa ecoou tamanha que se aos ouvidos<br />

lhe chegassem, abadessas de convento, sisudos de salão e até defuntos do<br />

cemitério, perderiam a rigidez e cairiam na farra da beberagem e dança. Num<br />

canto a parte, protegidos pela sombra do matagal, bruxas, curandeiros,<br />

catimbozeiros, preto-velhos atendem às mazelas de queixosos e a curiosidade<br />

dos curiosos. Uma neta de escravos lê sobre pedras e conchas catadas do<br />

fundo do Velho Chico, um bruxo cego confecciona bonecos de pano, uma velha<br />

cigana, guarda diabinhos num vidro que respondem por ela durante as<br />

consultas. Quebrantos, encantos, sortilégios, caruaras, mandingas, erva que<br />

se bebe, que se masca, que se fuma, sacrifício de bicho, benzeduras, puçangas,<br />

figas, patuás, relicários, fitinhas de três nós. Mães bentas, pajés e magos<br />

sob sincrética liturgia. Orixás, caboclos, santos e anjos beberrões se<br />

aproximam – Santo Antônio, São Benedito, São Brás, São Gerônimo, Santa<br />

Bárbara a provar dos quitutes e licores ofertados. Um ou outro santo se<br />

excedia na carraspana e ia dançar em volta da fogueira esquecendo os<br />

lazarentos ou distribuindo milagres a granel. E pula o aleijado, e o cego joga<br />

208


peteca, a viúva passa de namorado e o casório é confirmado entre o noivo fujão<br />

e a filha do delegado, enquanto as solteiras cantam – “Ai meu São João, dai-<br />

me um noivo ou namorado antes que o dia apague a lua cheia do cerrado”.<br />

Adornadas por miçangas, colares e búzios trazidos do litoral, chinelinhas e<br />

rosário à mão. E o feitiço se faz entre busca-pés, balões, foguetes que alcançam<br />

o céu e acordam mais um santo para a algazarra na Terra.<br />

Como estamos distantes da Favela, do botequim, da Lapa, do Palácio e da<br />

Colombo e ainda é Bela Época. São Jorge cruza com sua lança a besta da<br />

solidão e convida corações sem ninguém às artes dos encontros, dos beijos e<br />

dos carinhos, o sanfoneiro ataca, o forró pega fogo e a moçada já não quer<br />

mais parar. Caiporas, sacis e boitatás rondam a mata pondo em transe<br />

pacas, tatus, cotias, bacorinhos, bodes, jumentos e os cavalos da colcheia.<br />

Foi quando a lua já quase se apagava no céu azulando que o papel se<br />

aproximou do coletivo de magos e benzedeiras, que, percebendo sua presença, já<br />

encerravam os trabalhos embrulhando a alquimia dos feitiços e a liturgia dos<br />

santos que retornavam ao céu, alguns aos tropeços visivelmente embriagados.<br />

Calam-se tambores, sanfonas, violas e cantores, o papel faz um sinal para nos<br />

aproximar-mos, toma o vidro da velha cigana e liberta os juruparis, diabinhos<br />

da mata, ali dentro escravizados, os bichinhos chifrudinhos de rabo e garras<br />

desaparecem no alvorecer do sertão, o papel lança um olhar de censura à velha<br />

bruxa. Da mesma forma que chegamos, partimos de volta deixando para trás<br />

a forte chuva criadora que afugenta bêbados, fiéis e foliões perdidos no<br />

caminho de casa. O papel pergunta: Onde está agora a máscara da tua Bela<br />

Época? E, no entanto, era tão confortável pensá-la como duas metades<br />

complementares.<br />

Fica cada vez mais complexo caminhar pelos fragmentos. Afinal, tudo à época<br />

seria Bela Época? O camafeu de porcelana sobre o criado mudo no quarto da<br />

madame, assim como o Santo Antônio de barro sobre tosco pé de madeira<br />

grudado à parede do fundo do armazém de “secos e molhados”? Que<br />

209


mistérios? Que aromas? Que ritmos? É possível que a gente da aristocracia<br />

brasileira, ao desfilar sua mais fina indumentária de fraque e cartola,<br />

chapéus de seda floridos e vestidos da Galerie Lafayette pelos bulevares de<br />

Paris, degustando as madelaines proustianas, fosse atacada por um<br />

incontrolável desejo de comer os “quindins de iá-iá”. É possível que os “Oito<br />

Batutas” de Pixinguinha embarcando – possivelmente no mesmo navio Arlanza<br />

que embalou rumo a Europa os desejos nefastos de Mademoiselle Cinema 681 –<br />

fossem seduzidos, não só pelo reconhecimento da elite européia, mas, também<br />

pelos “ares civilizatórios” da capital francesa. Oito batutas seduzidos tal por<br />

imagens erotizantes qual pelo discurso evolucionista, herança eurocêntrica do<br />

século XIX ainda tão presente entre nós. E é possível também não haver nada<br />

disso. Nenhuma Bela Época, como alerta o papel, além das paredes de taipa,<br />

casas caiadas, cercas, mourão, pega de bois entre os espinhos da caatinga,<br />

furto de terra e gado, conflitos de coronéis oitocentistas emergentes de<br />

capitanias e sesmarias disseminadas em Canudos e Cangaços que não<br />

dispensam os botões de prata, os adornos no chapéu de couro, a água de cheiro<br />

e um Cavalo Branco tomado no gargalo.<br />

Vai Vai boiadeiro boiadeiro que que que a a noite noite noite já já vem<br />

vem<br />

Pega Pega o o teu teu gado gado e e vai vai ppra<br />

p pra<br />

ra junto junto junto de de teu teu bem bem bem<br />

682<br />

Ou ainda a força messiânica que vem de baixo do barro do chão que assenta<br />

coronéis, governadores e padres santos umedeça e contamine o chão por baixo<br />

das capitais reformadas a Lá Paris, o arco embandeirado e o coreto acusam<br />

festa religiosa, crianças à moda do santo para pagar promessas, a silhueta<br />

do arcanjo São Miguel, em folha de Flandres. A Sé no alto do Castelo guarda<br />

o túmulo de Estácio de Sá, a ladeira da Misericórdia, ainda hoje presente, o<br />

chafariz de Mestre Valentim, o Seminário de São José, Capuchinhos de São<br />

Francisco, a casa da cabocla de Machado de Assis e a macumba do preto<br />

681 Mademoseille Cinema. Benjamin Costallat, 1999.<br />

682 Boiadeiro. Luis Gonzaga, 1950.<br />

210


João Gambá de Luís Edmundo. Sincretismos e preconceitos a parte, lá se iam<br />

engravatados e distintas senhoras a guisa de conselhos.<br />

No meio, no entre, Catulo da Paixão Cearense declama versos de cordel no<br />

Palácio da República para o presidente Hermes da Fonseca antecipando em<br />

1914 um movimento que Luís Gonzaga daria prosseguimento transitando no<br />

Palácio do Catete de Vargas, Dutra e Juscelino.<br />

Fim.<br />

Rio de Janeiro, Junho, 1960.<br />

Quanto a você da aristocracia que tem dinheiro, mas não compra alegria, há de viver<br />

eternamente sendo escrava dessa gente que cultiva a hipocrisia 683 .<br />

O rádio toca com toda a força alcançando os cômodos da pensão. Junto com a música, a<br />

incômoda lembrança de Isaura. Mas, também, à hipótese de que, se na Europa a separação<br />

entre a cultura <strong>popular</strong> e a erudita sempre se mostrou mais rígida. Por aqui, mais do que uma<br />

concessão das elites, mais do que a postura paternalista, de achar curioso o analfabeto<br />

poetizando “sabedorias de roça e botequim”, mais do que relações de mera tessitura cordial,<br />

para ambos os lados haveria a necessidade orgiástica da constante ocorrência desse encontro<br />

apaixonado (para o bem e para o mal, ora violento ora amoroso) entre dois universos que se<br />

imbricam e se bicam, mas não se largam.<br />

O mundo me condena e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome. Deixando<br />

de saber se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome. A filosofia hoje me auxilia<br />

a viver indiferente assim.<br />

A simbiose do clássico e do <strong>popular</strong>, do rural e do urbano, do arcaico e do moderno, poderia<br />

ser a resposta, a invenção que parte da sociedade brasileira (considerando a abstração que se<br />

aplica ao termo sociedade brasileira), localizada em setores tanto da elite quanto das classes<br />

<strong>popular</strong>es, tem encontrado para, diante de condições/contradições históricas e contingentes<br />

conviver e reinventar-se mesmo quando em condição material ou política adversa. Significa<br />

pensar que as lutas e conflitos de nossa sociedade não deveriam ser pensados à luz de<br />

paradigmas que emolduraram as análises das lutas e conflitos da Europa, ainda que soframos<br />

constrangimentos aproximados, principalmente no que tange relações de exploração do<br />

capital sobre o trabalho. Penso que esta seria uma idéia interessante a ser explorada, porém,<br />

683 Filosofia. Noel rosa, André Filho, 1933.<br />

211


tendo em vista o dever cumprido, o artigo pronto, a cabeça torna a afundar no travesseiro<br />

abstraindo-se inteira e completamente em Isaura.<br />

Meu bem, este teu corpo parece, do jeito que ele me aquece, amendoim torradinho 684 .<br />

E por onde andaria Isaura agora? Por que caminhos? Quem sabe está bebendo com seus<br />

amigos de copo no botequim do Manuel na Rua da Gamboa onde, semana passada Paschoal<br />

matou Zé Galego por causa da amásia Júlia 685 ? Ou pior, quem sabe não encontrou um ricaço,<br />

em um café qualquer da Carioca, que seduzido, momentaneamente, pelo mistério de sua pele,<br />

está a cobri-la de miçangas, champanhe e promessas vãs, falsas como o brilhante que lhe<br />

enfeita o dedo anular? Quem sabe não chora lágrimas verdadeiras, copiosamente<br />

arrependidas, borrando o rosto com o ruge carmim que antes lhe pintava a boca, mas que<br />

agora a faz parecer com um palhaço de um circo sem futuro? Quem sabe onde andará Isaura?<br />

Quem sabe está na casa de Laurinda, de Santa Tereza, a alegrar seus convivas, com riso farto<br />

e lábios generosos, entre jornalistas, modernistas e líricos do Municipal? Quem sabe está na<br />

companhia de Geraldo Pereira, o rei da Lapa, cantando “Bolinha de papel” acompanhado de<br />

seu violão?<br />

Quero Seu Amor Minha Santinha<br />

Mas Só Não Quero Que Me Faça<br />

De Bolinha De Papel 686<br />

Isaura, mesmo que não saiba, inscreve o orgiasmo da cidade, roçando mundos distantes que<br />

pelas deambulações de seu corpo se atritam, se coçam e se ungem do bálsamo benigno de<br />

fontes pré-colombianas, cuja nascente, em noites mornas de verão, deixa revelar, aos olhos<br />

dos que amam e odeiam, a figura escandalosa de Dioniso derramando seu néctar.<br />

Samba do partido alto só vai cabrocha que samba de fato, samba de partido alto só vai<br />

mulato filho de baiana e a gente rica de Copacabana, doutor formado de anel de ouro,<br />

Branca cheirosa de cabelo loiro 687 .<br />

Se o bonde de Santa Tereza avança sobre a floresta, se os trilhos marcam a terra como uma<br />

cicatriz que a modernidade vai deixando sobre a natureza, em sentido oposto, o corpo<br />

misterioso de Isaura evolui pelos salões da burguesia. Sorriso frouxo e quadris indóceis<br />

chocando-se contra a cerimônia dos cavalheiros de negócio e a rígida politesse das damas de<br />

salão, colorindo de ruge carmim o cinza de uma cidade, cuja vocação tropical interdita o<br />

projeto modernista. A modernidade impõe seus jardins, parques e caramanchões e adestra a<br />

684<br />

Amendoim torradinho. Augusto Garcez, Ciro de Souza, 1955.<br />

685<br />

CHALHOUB, Sidney, 1986.<br />

686<br />

Bolinha de papel. Geraldo Pereira, 1945.<br />

687<br />

Samba de fato. Pixinguinha, Cícero de Almeida, 1932.<br />

212


natureza às necessidades de uso do homem urbano, os navios que adentram a baía de<br />

Guanabara já não trazem aventureiros garbosos nem relatos de bestas e tempestades marinhas,<br />

além das notícias do Grão-vizir às terras do Vice-Rei. Os vapores da modernidade carregam o<br />

ar entediado, o espírito blasé, dândis de uma burguesia abastada que transformara a aventura<br />

em turismo, o mistério em rotina, viagens de negócios sob os ares civilizatórios da Europa.<br />

Bilac costumava embeber-se de “parisiense”, o elixir da ambience de Paris, toda vez que se<br />

hospedava por lá. Em homenagem à França em ocasião da Primeira Guerra, Laurinda,<br />

mecenas de Santa Tereza que morreu pobre de dar dó, não tirava do dedo três anéis: uma<br />

safira, um diamante e um rubi – era o seu bleu, blanc e rouge (Machado, 2002:114).<br />

Paris! Paris! Teu rio é o rio Sena. Paris! Paris! Tens loura, mas não tens morena<br />

Que lindas mulheres de olhos azuis! Tu és a Cidade Luz!<br />

Paris, Paris je t´aime, mas eu gosto muito mais do Leme 688 .<br />

A melhor resposta ao eurocentrismo basbaque de parte do discurso da elite e burguesia<br />

caberia ao rádio mesmo dar.<br />

A gíria que o nosso morro criou bem cedo a cidade aceitou e usou. Mais tarde o<br />

malandro deixou de sambar dando pinote e só querendo dançar o fox-trote. Essa gente<br />

hoje em dia que tem a mania de exibição não se lembra que o samba não tem<br />

tradução 689<br />

Sem tradução, talvez fosse essa Bela Época, entre o fin de siècle e os loucos anos 20, em que<br />

circularam pelas ruas da cidade falas que inventaram transformações dantes nunca<br />

experimentadas. Mas, seria também mera invenção. Pois, alguém lá na frente, também vai<br />

olhar para essa outra época a qual pretendo ou pareço estar vivendo, agora, e vai chamá-la de<br />

“anos dourados” ou “trinta gloriosos”, não sei por que, não sei pra quem.<br />

Me vejo ao teu lado te amo, não lembro, parece dezembro de um ano dourado. Parece<br />

bolero, te quero te quero, dizer que não quero teus beijos nunca mais 690 .<br />

Suaves passos pisam a escada de madeira em direção ao meu quarto. Um passo assim tão<br />

suave só poderia pertencer a ela. Segundos de tensão. Paralisa-me o pensamento enquanto o<br />

rádio lá embaixo já toca o que pode ser o prenúncio de infortúnio anunciado.<br />

Nada consigo fazer quando a saudade aperta, foge-me a inspiração sinto a alma<br />

deserta 691 .<br />

688 Paris. Alcyr Pires Vermelho, Alberto Ribeiro, 1938.<br />

689 Não tem tradução. Noel Rosa, 1933.<br />

690 Anos dourados. Chico Buarque, Tom Jobim, 1986.<br />

691 Peito vazio. Cartola, Elton Medeiros, 1974.<br />

213


Mau presságio ou tudo não passaria de coincidência e seria Isaura, de fato, ela mesma, que me<br />

abre a porta do quarto e libera as dores do peito. Ela mesma, com seus braços machadianos e<br />

seus infinitos tons de dourado-marrom. Ela mesma, salvo conduto a mão, convidando-me<br />

mais uma vez a transpor os portais da cidadela misteriosa, escura e medieva. Mais uma vez as<br />

essências cítricas e o sabor de tamarindo, o hálito de romã e os ruídos do fundo escuro de uma<br />

selva, várzea, sertão que começa logo ali, ao fim da Rua Direita, colado ao trapiche de Aleixo<br />

Manuel, onde se pesava o açúcar, equivalente de troca dos cariocas seiscentistas na falta das<br />

moedas de cobre.<br />

Um vazio se faz em meu peito e de fato eu sinto em meu peito um vazio, me faltando as<br />

tuas carícias, as noites são longas e eu sinto mais frio.<br />

Os passos continuam subindo lentamente a escada. De súbito o som interrompe. Ouço vozes<br />

confabulando. Imagino ser alguém conhecido da pensão. Acho que conversa com a pobre<br />

Alda. Alda, personagem da crônica, “Penélope” de João do Rio. Se a história não estivesse no<br />

fim, abriria um parêntese para contar como a aristocrata Alda Guimarães, casta e fiel à sua<br />

viuvez, depois de se engraçar por um mancebo de 18 anos, vendedor de voilettes na Ouvidor,<br />

acabou seus dias de luxo e riqueza nessa modesta pensão do Catete.<br />

Procuro afogar no álcool a tua lembrança, mas noto que é ridícula a minha vingança.<br />

Vou seguir os conselhos de amigos e garanto que não beberei nunca mais, e com o tempo<br />

essa imensa saudade que eu sinto se esvai.<br />

O rádio momentaneamente silencia, a conversa acaba e os passos tornam a subir a escada.<br />

Ouço-os agora estalando de leve o assoalho do corredor. A porta de meu quarto escuro se<br />

abre. Mas, mal consigo decifrar a silhueta que se desenha na penumbra da contraluz de uma<br />

lâmpada do corredor que me ofusca os olhos. A luz brilha exatamente por detrás do contorno<br />

misterioso, sombra parada à minha porta. A voz sai fraca, debilitada de emoção e cansaço.<br />

- Isaura, é você?<br />

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ<br />

Desperta a cidade o sol no céu flutua ele é a mocidade a saudade é a lua<br />

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ<br />

A felicidade promete, mas não vem, só vem a saudade, saudade é querer bem<br />

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ<br />

Chega o dia desaparece a tristeza fica alegria pela própria natureza<br />

Aurora vem raiando anunciando o nosso amor ÔÔÔÔÔÔ 692<br />

692 Ao romper da aurora. Francisco Alves, Lamartine Babo, Ismael Silva, 1932<br />

214


♪♪♫♫<br />

Quem sabe a canção portuguesa dos anos 2000 não viria nos redimir de Isaura, do rádio-<br />

canção e do papel falante, doloprazerosa ausência/presença da canção que cumpre um<br />

percurso de 500 anos de deriva em rizoma? Efeito ritornelo da própria canção que agora<br />

repercute no tempo daquele que me escreve escrevendo Isaura. E dada essa disseminação<br />

sujeito/tempo/espaço, o que isso realmente importa? Falo de um eu inventado no futuro que<br />

através de mim me reinventa na canção portuguesa dos anos 2000? Falo por uma canção<br />

portuguesa que escuto por aquele que me escreve? Canção que repercute como peças de um<br />

jogo de armar trazido desde a primeira caravela e levado desde o último e-mail enviado pela<br />

internet? Cânticos, danças, versos, instrumentos, o sistema harmônico tonal, a imprecisa<br />

sincopa ibérica que a poliritmia e o sistema modal africano, a meio caminho do caminho para<br />

as Índias de ragas, bhajans, e mantras, contribuíram para torná-la mais imprecisa. Ainda havia<br />

as rodas infantis, as danças dramáticas, Pastoris, a Nau Catarineta e o Reisado Lusitano que<br />

dissemina na Folia de Reis e no Bumba-meu-boi. A moda, o acalanto e o fado de tantos<br />

interfluxos urbanos entre a província e a corte. As formas líricas e poéticas declamadas na<br />

casa-grande sob a interferência do batuque da senzala e do eco não tão distante da voz do<br />

muezim que do alto da mesquita chama os fiéis ao encontro do profeta, tradição que<br />

transpassa o Nordeste freyreano pela luz vazada dos muxarabis que protegem a janela do<br />

quarto das candongas. A viola ibérica, o pandeiro árabe, o machete, a marimba, o tambor, a<br />

flauta, a sanfona, o ganzá. Goa, Angola, Portugal, Brasil, Moçambique, Timor, Índia, Espanha<br />

e Marrocos disseminam-se como tempo, espaço e sujeitos. E, se todos esses argumentos para<br />

justificar a presença de uma canção portuguesa no <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> não forem<br />

suficientes, eu diria que seria ela, essa canção que, no momento, apresenta-se para traduzir,<br />

dizer e dar a melhor solução ao impasse de Isaura, ao impasse que todas as Isauras, Amélias e<br />

Emílias provocam nos corações que amam e dominam. Canção-passarinho no papel falante<br />

que agora canta o ninho como ninguém, mas, tudo pode passar em um desencanto seguinte e a<br />

vida não acabará por isso, pelo menos não por isso, como jurou de pé junto, por décadas a fio,<br />

a nossa não menos risível teledramaturgia folhetinesca, já considerando o quanto é risível,<br />

agora, o parnasiano gesto das canções que morrem de amor. Delas o fado reinventado faz<br />

troça.<br />

Eu tenho um melro que é um achado de dia dorme, à noite come e canta o fado.<br />

E, lá no prédio, ouvem cantar... já desconfiam que escondo alguém para não mostrar.<br />

Eu tenho um melro, lá no meu quarto. Não anda à solta porque se voa cai sobre os gatos.<br />

Cortei-lhe as asas para não voar. E ele faz das penas lindos poemas para me embalar.<br />

215


Melro, melrinho, e se por acaso alguém te agarrar,<br />

diz que não andas sozinho que és esperado no teu lar.<br />

Melro, melrinho e se, por acaso, alguém te prender,<br />

não cantes mais o fadinho, não me queiras ver sofrer.<br />

E não me voltes mais que estas janelas não as abro nunca mais.<br />

Eu tenho um melro que é um prodígio.<br />

Não faz a barba, não faz a cama, descuida o ninho...<br />

Mas canta o fado como ninguém. Até me gabo que tenho um melro que ninguém tem.<br />

Eu tenho um melro... (Que é um homem?) Não é um homem. (E quem há-de ser?)<br />

É das canoras aves aquela que mais me quer.<br />

(Deve ser homem!) Ah, pois que não! (Então é mulher) Há de lá ser!?<br />

É só um melro com quem dá gosto adormecer.<br />

Melro, melrinho, e se por acaso alguém te agarrar,<br />

diz que não andas sozinho que és esperado no teu lar.<br />

Melro, melrinho e se, por acaso, alguém te prender,<br />

não cantes mais o fadinho, não me queiras ver sofrer.<br />

E não me voltes mais, que a tua gaiola serve a outros animais 693 .<br />

♪♪♫♫<br />

A invenção e o cansaço do jogo: considerando que para bom entendedor, boa parte das vezes,<br />

meia palavra não basta.<br />

O jogo foi inventado com o objetivo e o desejo de expressar um debate entre alegorias,<br />

sujeitos discursivos estabelecidos por relações sociais, logo por relações de troca, parcerias,<br />

poder e dominação que ocorrem preferencialmente no que se convenciona pré-denominar de<br />

campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong>, considerando circunstâncias dos contextos e<br />

participantes externos, não exatamente como subjacentes ou periféricos ao debate, mas como<br />

forças presentes, capazes de produzir mais do que interferências, determinações nas<br />

estratégias de nossos paladinos alegóricos, Rapaz Folgado, Contente Magoado, Barão da Ralé<br />

e Seu Doutor que, nunca é demais lembrar, em parte somos nós mesmos. A forma de jogar diz<br />

respeito a permitir que o subjétil som/papel através das falas das alegorias interfira, corrija e<br />

enlouqueça, traia e colabore com o que a fala das alegorias se esforça para dizer. Entre as<br />

quatro alegorias há uma diferença preliminar que o jogo em seu decorrer faz deslizar. Seu<br />

Doutor tem um “dizer sobre” o <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> que provoca reações em seus ouvintes,<br />

autorouvintes, alegorias, inclusive nele próprio. Essas reações expressam-se dada a<br />

possibilidade da alegoria/autorouvinte assumir de forma contingente certo lugar, caractere,<br />

valor: seja pelo teor do debate, considerando que o tema expressa, sempre em relação<br />

socialmente construída, este ou aquele valor, esta ou aquela importância como signo que<br />

693 Eu tenho um melro. (I) Ana Bacalhau – (C) Pedro da Silva Martins, 2003.<br />

216


estabelece signos de poder, de hierarquia social, etc. seja pela consideração de qual ou quais<br />

participantes assumem, sempre circunstancialmente, que lugar, que caractere, por exemplo,<br />

conservador, transgressor, ambos ou nenhum dos dois. Considera-se ainda a interferência<br />

constante que contexto 694 (rasurado pela idéia de khôra) e participantes externos<br />

(considerando o deslocamento da polaridade dentro/fora), Governo, polícia, Academia,<br />

imprensa, patrão, proprietários provocam nos debates circunscritos ao <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

<strong>brasileiro</strong>, repercutindo em estratégias, tomadas de posição das alegorias. Joga-se o jogo a<br />

partir de certo repertório de falas de BR, RF, SD e CM, não só preexistente ao jogo, mas<br />

contaminado por inúmeras influências analíticas, interpretativas e dialógicas produzidas<br />

anteriormente sob a invenção de valores e necessidades que relações sociais estabelecem<br />

como práticas de sobrevivência, dominação, insubordinação, convivência, ascensão etc. O<br />

jogo, ainda que considere a interferência do contexto, é jogado de forma anacrônica rompendo<br />

com a linearidade e mesmo com a circunscrição das falas à época em que foram enunciadas.<br />

Considera-se que as forças que elegem falas não seriam específicas nem estariam contidas a<br />

um determinado contexto, mas, respondendo a devires e recalques que atuam no calor do<br />

momento recomeçando sempre aqui. Por exemplo, o samba trabalhista da mesma forma que<br />

se deixava cooptar pelo discurso varguista, expressava ali mesmo não só os anos de<br />

criminalização e segregação que sofrera entre as duas primeiras décadas do século, mas a<br />

possibilidade de produzir micro-poderes capazes, a partir da contaminação e aproximação dos<br />

signos sambista e trabalhador, de transformar condições sociais, minimizando percepções de<br />

exclusão, preconceito, mitigando dores e abrindo possibilidades de ascensão e re-qualificação<br />

em dimensão material, ideológica e axiológica. Ali mesmo, no samba trabalhista, seja no<br />

discurso de adesão BR ou no de insubordinação RF, estava vivamente presente esse<br />

deslizamento, rasura, arqui-origem temporal contaminando o discurso trabalhista com as<br />

dores e esperanças que dizem de outra temporalidade, aquém/além do Estado Novo. No<br />

roçagar do jogo sendo jogado, busca-se deixar as alegorias falar entre si colaborando ou<br />

traindo o que a outra constrói como interpretação contaminada por inúmeras outras<br />

interpretações e análises.<br />

217<br />

694 Apesar de sofrer contaminações ao longo do jogo, ainda seria possível pensar em contexto como<br />

algo um tanto amplo e obscuro, mas que permitiria experimentar a sensação perceptiva de certo<br />

clima, espírito que diz respeito desde a assunção/produção de signos hegemônicos relativos, por<br />

exemplo, à moda, costumes, práticas de consumo, valores, preconceitos, tecnologias, moral até a<br />

leitura histórica, senso-comum científico, que discursos contemporâneos/constituidores do próprio<br />

contexto, produzem de si, tomando por base a constituição, invenção, de uma herança e de um devir,<br />

conscientemente ou não.


Ainda que a determinação de um contexto fechado deslize, existe a percepção de um feixe,<br />

khora, labirinto rizomático que se expande, às vezes se contrai, em geral, sempre se move.<br />

Uma vez estabelecido o jogo, os participantes, as relações de poder entre si, os caracteres e<br />

estratégias menos variáveis de cada participante, o negócio é deixar os quatro falarem. Deixá-<br />

los interferir e contaminar a fala um do outro experimentando mais do que polifonia uma<br />

miríade de sentidos, nem como razão que quer apontar qual o sentido dessa fala, nem como<br />

sentimento, o sentido que é despertado quando se diz/ouve essa fala, mas como um “no<br />

entre”, efeito de diferança que é fronteira e confusão e que permite separar e perceber o que<br />

há em comum ente os dois elementos da oposição e por isso mesmo articulá-los percebendo a<br />

lógica que estabelece a oposição, para por fim ser possível, não diria superá-la, mas permitir<br />

ao labirinto crescer paredes, passagens e corredores para além dela. Talvez, essa seja a<br />

pretensão do jogo. Jogar o jogo diz desse exercício lúdico/racional, sem especificar os dois<br />

aspectos e a oposição, de fazer mover peças que se reconfiguram em um tabuleiro que<br />

também se move, possivelmente para nos afirmar que nem a terra foi quadrada nem as naus<br />

caíram num abismo depois de ultrapassar a suposta fronteira do oceano desconhecido.<br />

Joga-se o jogo operando e sendo operado por um repertório de canções, falas, que se<br />

apresentam ao debate, deixando-se cooptar ou insubordinando-se. Apresentam-se como fala<br />

que ouve um ouvido falante. O jogo se aproxima da estrutura de certos sonhos em que se<br />

exerce controle sobre parte da ação e dos elementos, outra parte opera a revelia ora<br />

conspirando a favor ora contra o desejo e o medo de quem sonha, a ponto desse sujeito<br />

sonhador já não se perceber como tal, mas como mais um elemento entre os que já operam e<br />

os que podem surgir no decorrer do sonho. A fala das canções se apresenta a partir de um<br />

repertório que parecia já corresponder a um corpo fechado e lógico sobre o qual se operava<br />

com total controle, porém no decorrer do jogo o repertório foi expandindo-se e contraindo-se,<br />

movendo-se entre falas e respostas relativas aos diálogos e dialogismos estabelecidos e<br />

rasurados entre as alegorias. A sensação de controle e mesmo o desejo pelo controle como<br />

necessidade metodológica torna-se questionável, o derrubamento e deslocamento da<br />

hierarquia sujeito/objeto passa a ser o alvo de atenção epistemológica operando sob a massa<br />

amorfa e rizomática de falas e escutas. Essa fala/escuta, uma vez apresentando-se para<br />

exercício de comunicação e troca entre alegorias, opera antecipando-se as tentativas de<br />

controle que, principalmente, a alegoria Seu Doutor estaria predisposta a exercer. Digo<br />

principalmente porque em certas horas ninguém se furta ao desejo e ao poder de dizer o que a<br />

coisa é: o samba é..., o Brasil é..., a roça é... As respostas e falas vão se montando e<br />

218<br />

desmontado a partir de um repertório que também se monta e desmonta. Elegem-se e


desabilitam-se falas e respostas, questões e grupos de questões em que o debate sinaliza não o<br />

limite, mas possibilidades, devires, que a discussão enceta. É para além do possível que se<br />

deve liberar a fala dos participantes. Assim devem funcionar os quatro repertórios – SD, RF,<br />

BR e CM – respeitando uma única e definidora ética do jogo: não preestabelecer prevalência<br />

ou poder de fala ou alegoria, aquém ou além da própria lógica do jogo. Todos falam entre si,<br />

porém, deixando atuar a própria lógica do jogo, já se assume o estranhamento que o Seu<br />

Doutor provoca como alegoria que invade o suposto campo do <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong>. Seu<br />

Doutor que afinal invade o campo do <strong>popular</strong>, considerando que a princípio não se especifica<br />

sambista, caipira, dançarino nem brincante, mas alguém que os denominou de <strong>popular</strong>es,<br />

estabeleceu-os como folclore em oposição à sua outra/própria fala erudita, fala da elite, mas<br />

que também já fez deslocar essa diferença e já se aproxima e se deixa contaminar tanto quanto<br />

contamina. Considerando enfim o duplo movimento de estranhamento e aproximação, não é<br />

de se surpreender que as falas e respostas direcionadas ao Seu Doutor prevaleçam. Porém,<br />

isso não significa que as demais alegorias não debatam ente si nem que assumam diferentes<br />

posicionamentos ou estratégias dependendo da circunstância que o jogo apresenta. Quando o<br />

Seu Doutor interpreta/constrói o signo mulher da maneira como ele é inscrito pelo <strong>cancioneiro</strong><br />

<strong>popular</strong>, as outras alegorias podem trair sua interpretação expressando falas que entrem em<br />

choque, paradoxo, obrigando o SD a fazer ressalvas sobre ressalvas ou simplesmente desistir<br />

de enfrentar as provocações das alegorias. Mas, vale a pergunta, porque as alegorias<br />

sabotariam a interpretação relativa ao signo mulher? Possivelmente, e isso vale para a maioria<br />

das provocações, porque não querem se deixar enquadrar por uma estrutura ou lógica<br />

construtivista totalitária que encerra o signo mulher inscrito pela fala <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong><br />

numa relação polarizada na oposição dominador/dominado: ora o signo mulher se deixa<br />

subordinar ora subjuga, sempre em relação ao signo homem. A traição do subjétil, papel/som,<br />

expressa na fala das alegorias RF, BR e CM, diz respeito nesse caso a não permitir a<br />

construção do signo circunscrito pela oposição, pelo menos, não de uma forma confortável<br />

para SD.<br />

O cansaço do jogo não determina o fim do jogo, talvez possibilidade de retomada do mesmo<br />

sob outra condição, outra regra, outras alegorias (e ainda assim haveria algo que nos<br />

permitiria dizer se tratar do mesmo jogo e das mesmas alegorias renomeadas). Trata-se da<br />

percepção arbitrária, sensação e desejo de passar para outro jogo, não totalmente outro, mas<br />

estabelecido a partir de outras alegorias, talvez o mesmo subjétil, papel/som agora assumido<br />

ele próprio como alegoria. Não, definitivamente, não se trata do término do jogo nem do<br />

219<br />

estabelecimento de um jogo totalmente outro. Trata de deixar espaços, vazios, na expectativa


de serem preenchidos, deixá-los como devires, respiros da narrativa. Se há quem se proponha<br />

ou reclame o estabelecimento de um fim que tente por si. Mas, de fato há um cansaço e desde<br />

já de dentro dele emerge a vontade de jogar outro jogo, muito possivelmente, demonstrando<br />

as possibilidades de movimento, a movência, condição dessa possibilidade que o jogo guarda<br />

como caractere constante. Mas esse caractere, diz respeito a uma condição de possibilidade de<br />

movimento, não a um sempre mover-se. Esse já diria de outra constância presente em todo<br />

jogo, porém, traída sempre que se constata a falta de constância que o não-movimento diante<br />

da possibilidade de movimento expressa. O cansaço do jogo não diz exatamente desse não<br />

movimento, a não ser que se interprete o vazio subseqüente ao corte, à ruptura, ao anacoluto<br />

como estagnação do subjétil, porém outra interpretação diz respeito àquela do espaço para se<br />

entrar gritando, interferindo, esperneando dentro do que já se estava na condição de<br />

autorouvinte, Seu Doutor, autor/leitor, ou qualquer outra forma de palavra que diga dessa<br />

condição participativa no jogo.<br />

O autorouvinte pode se perguntar para que serve então jogar o jogo. E aí, vale redizer o que<br />

foi colocado preliminarmente como objetivo do jogo para afirmar que o jogo objetiva o<br />

estabelecimento de uma ética participativa em que a atenção (mesmo a vigilância, com toda a<br />

antipatia que essa palavra sugere), sobre fixações de conceitos, distinções, analogias, sínteses<br />

e classificações devem reconhecer seus próprios limites, incompletudes, de forma não a<br />

envergonhar-se delas, mas como positividades que encetam espaços de respiro e<br />

possibilidades de troca, diálogos, interferências e participações. O jogo fala dessa ética do<br />

outro, desse enorme respeito pelo outro dentro de si, desse mergulhar no outro, desse amor<br />

pelo outro, a ponto de tornar incerta a distinção. Jogar o jogo é permitir o outro dentro de si e<br />

vice-versa. É buscar não permitir em nenhuma instância o estabelecimento de um objeto<br />

objetável frente um sujeito que o observa no interior do cadinho alquímico enquanto produz<br />

anotações dessa suposta realidade. A questão diz respeito a enxergar o mesmo caderno de<br />

notas na mão de quem está dentro do cadinho anotando sobre aquele que supostamente o<br />

observa de fora. Dar voz a essa escritura faz romper o vidro e inscreve a possibilidade de estar<br />

sensível às injustiças, maldades, desequilíbrios, avarezas e iniqüidades não mais da<br />

perspectiva da sombra/luz da caverna que estabelece o real frente a cópia frente o simulacro,<br />

mas a partir da própria invenção da fala do outro que sofre, as injustiças não como categoria<br />

mas como gente que fala, ama, deseja e que no mínimo seria feita para brilhar e não para<br />

morrer de fome encarando as reais condições que relações de produção e troca assim se nos<br />

apresentam. E aí? Vamos pedir a saideira?<br />

220


A saideira e a conta<br />

Não gostaria que os anacolutismos desse corpus fossem por nós, autorouvintes alegóricos,<br />

interpretados como falta ou perda. Ao contrário, refletem movimentos que se aproximam,<br />

buscam semelhanças, com o que entendemos por pensamento, coisa que não se auto-exerce<br />

apenas por séries lineares e, quando escrevemos/lemos isso, agora mesmo podemos pensar em<br />

uma mesa de boteco com batuque de faca e prato, em um pato, uma laranja, um pato no<br />

tucupi, a cidade de Belém e que somos do mato como um pato e um leão e como na canção.<br />

Nesse feixe que se reproduz rizomaticamente para lá para acolá, por mais de um, já seríamos<br />

pelo menos dois, se não três, espécie de premissa esquizofrênica expressando-se à semelhança<br />

do pensamento que sucede imagem-tempo sobre e entre imagem tempo 695 . Esse feixe diz de<br />

nossos parâmetros especificados como racionais e irracionais, de nossas racionalidades tal<br />

qual nosso sentimento. E seria possível estabelecer essa distinção? Diz-se canção que quando<br />

a gente está contente até barata pode ser um barato total. E quando a gente está contente?<br />

Quando a revolução vier e sob o peso dos conceitos, da história e sob a brutalidade e<br />

linearidade do tempo cronológico esmagar as injustiças e sonhos mesquinhos, assim por ela<br />

julgados? Ou estamos contentes de outra forma? De muitas e muitas outras formas?<br />

Caminhado e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais braços dados ou não que a<br />

canção portuguesa respondeu ironicamente, décadas depois, sob toda a responsabilidade<br />

histórica da Revolução dos Cravos e do sangue que os totalitarismos brutalmente sempre<br />

derramam: Agora sim, temos a força toda! Agora sim, há fé neste querer! Agora sim, só vejo gente<br />

boa! Vamos em frente e havemos de vencer! Agora não, que me dói a barriga, agora não, dizem que<br />

vai chover, agora não que joga o Benfica e eu tenho mais o que fazer 696 .<br />

Não gostaria que os anacolutismos do texto fossem interpretados pelos mesmos referidos<br />

como novo método, aplicação de uma episteme pós-moderna da desconstrução, ruptura de<br />

algo arcaico datado historicamente e que já vamos deixando para traz, como uma velha pele<br />

221<br />

695 Em Deleuze a Imagem-tempo seria a melhor tradução da Imagem-pensamento. Ela expressa o<br />

reflexo da imagem cristal, soma de uma visão atual com outra virtual da memória, que sulca o fluxo<br />

do pensamento, desatina-o. A imagem-tempo é mais legível que inteligível, não é dada à<br />

compreensão, a não ser às interpretações psicanalíticas, considerando as especificidades do campo<br />

da psicanálise. Ela produz uma multiplicação de parâmetros que explode a linearidade narrativa em<br />

reencadeamentos de imagens recomeçados por cima de cortes e ligações irracionais entre as<br />

imagens, como feixe, como fluxo que não permite o tempo ser subordinado à linearidade do<br />

movimento. Deleuze especifica essas categorias como uma tentativa de produzir uma filosofia própria<br />

da imagem, mais especificamente do cinema. Divide a produção cinematográfica do século XX em:<br />

Imagem-movimento, tempo subordinado ao movimento, característica do cinema clássico e das<br />

narrativas lineares, e Imagem-tempo, movimento subordinado ao tempo, característica do cinema<br />

moderno de autor, em que a linearidade seria rompida por anacolutismos que buscam aproximar a<br />

narrativa do fluxo do pensamento.<br />

696 Movimento Perpétuo Associativo. (I) Ana Bacalhau – Pedro da Silva Martins, 2007.


da qual finalmente nos livramos. Ao contrário, eles sempre estiveram lá, e contra eles, toda<br />

uma tradição racionalizante, taxionômica, classificatória de aspiração totalitária que acreditou<br />

dar conta da origem/fim de fenômenos postou-se bravamente. Porém, lutar contra eles que<br />

sempre constituíram semelhanças com o próprio exercício do pensamento diz respeito a crer<br />

em certa mitologia fundadora de um logos, rátio que se especifica como produto privilegiado<br />

do pensamento. É dessa hierarquização que a porção esquizo do pensamento pretendeu tratar<br />

através dos jogos por nós manuseados. Não se trata também de uma inversão. A partir de<br />

agora, dessa ruptura proposta, seremos melhores enquanto textos anacolutos. Não, porém,<br />

trata-se de permitir os movimentos de entrelaçamento entre textos aparentemente racionais e<br />

emocionais, sensíveis ao “no entre”, à brizura, ao subjétil, que simultaneamente permite<br />

estabelecer distinção/fronteira e semelhança/confusão, participações de um texto no outro,<br />

estratégias de luta, tentativas de dominação, cooptação, motins, subversões cladestinas, soma<br />

de forças, pactos. Propomos o deslocamento dessa hierarquia a ponto de invalidá-la como<br />

modelo hegemônico estabelecido pelas epistemes clássica e moderna. Esse deslocamento não<br />

implica a anulação do ratio, como dito, mas, da distinção simples, da parcela da razão que<br />

organizava e sustentava o estabelecimento não só da hierarquia, mas da própria polarização<br />

dicotômica ou dialética.<br />

Produzir esse movimento diz do objetivo geral do corpus que não pretende apenas ser lido,<br />

mas jogado, possivelmente reescrito. Anacolutismos como espaços de respiro, portas por onde<br />

se pode entrar, rasurar, interferir no jogo, propor outro jogo. Como? Isaura bate à porta? As<br />

canções batem à porta? Amélias e Emílias? Rapaz Folgado, Barão da Ralé, Seu Doutor,<br />

Contente Magoado batem à porta? O papel bate à porta? De dentro a voz claudicante pergunta<br />

quem é e quantos são. Há a possibilidade de serem todos ao mesmo tempo? Para começar o<br />

jogo já seríamos pelo menos dois se não três. Alguém se habilita?<br />

Ressaca:<br />

A ressaca segue à violência de esgotar o texto, estancar o fluxo. A violência da saideira a qual<br />

nos submetemos quando ainda havia por dizer. A violência do fim, da morte no livro, do<br />

livro. A morte que o livro sofre e provoca. Mas, a tese é um livro, deve esgotar-se com e no<br />

livro, ainda que todo o resto, o fora do livro, insista em querer prosseguir. Provocando<br />

tedesterritorializandanças para muito além dos dialogismos impertinentes que certa vez<br />

222<br />

compomos como grande ousadia frente à outra brutalidade que a palavra ciência encerra e


dissemina. Na página 133 (isso já parece uma autópsia), falou-se (e esse sujeito indeterminado<br />

até parece um defunto) da música como estrutura outrem. Mais que a possibilidade de relação<br />

com a alteridade, possibilidade de relação a partir da territorialização que o outro propõe.<br />

Derrida no indecidível “animot” sentiu vergonha de estar nu diante de um gato. Mas, o gato<br />

também está nu, ou ainda, nunca esteve nu, porque a nudez é uma invenção, uma<br />

territorialização alheia a territorialização do gato. O que o levou a perguntar qual seria a<br />

invenção do gato que agora mesmo o olha de onde está. Qual ordenamento, qual<br />

territorialização o olhar do gato inscreve, provocando reação no objeto olhado, ele mesmo,<br />

Derrida, que, uma vez a-sujeitado, reificado, pelo gato, necessita cobrir-se, envergonhar-se de<br />

sua nudez, re-sujeitar-se e responder. Mas, não a partir de sua própria ordem, antropocêntrica,<br />

envergonhada pela e da própria nudez, mas a partir da ordem do gato que o olha e já<br />

territorializa, animot.<br />

223<br />

A música, como a língua, é para Rousseau uma condição moral (não física),<br />

de natureza imitativa (e não natural). Diria que talvez fosse necessário<br />

ouvir/pensar a música indígena (para torná-la como paradigma daquela que<br />

não é ocidental) não apenas como plausível de ser deduzida ou composta de<br />

acordo com uma lei da física ou matemática e nem como a expressão de uma<br />

nobre moral ainda que movida pelo calor da comunicação afetiva e pelo ato<br />

criativo da imprevisibilidade performática. Mas, deveríamos, pensá-la/ouvila<br />

como a expressão de uma outra ontologia. Nessa ontologia ameríndia, o<br />

canto e a música curam e constroem pessoas, permitem viagens cósmicas,<br />

pois nela já não há uma natureza e várias culturas e sim uma única cultura<br />

co-extensiva aos seres naturais, por isso, onde ouvimos grunhidos, gritos e<br />

risos dos homens e mulheres indígenas, deveríamos ouvir música. Mesmo lá,<br />

onde percebemos grunhidos de animais, devemos ver-ouvir cantos, por<br />

exemplo, das onças e dos macacos, que, cada qual nas suas aldeias, dança,<br />

festeja, troca afetos e cumplicidades amorosas (QUEIROZ, p.26, 2006).<br />

Discordando e simultaneamente, mais do que concordando com a fala acima, Derrida diria<br />

que o indecidível animot não inscreve efeito de uma única cultura co-extensiva a todos os<br />

“seres naturais”, mas é sensível a existência de culturas para além de uma ordem meramente<br />

antropocêntrica. Ao mesmo tempo, a propriedade que o autor acima atribui a essa “ontologia<br />

ameríndia”, que reconhece a inscrição a partir da inscrição do outro, o efeito do xamã, a<br />

presença do orixá, nos termos derridianos, seria extensiva a “toda ontologia”, toda música,<br />

escritura, música/escritura, ao olhar do gato e ao próprio Derrida. Música como estrutura<br />

outrem. Devir escritura que nunca se esgota a não ser pela violência a qual agora mesmo nos<br />

encontramos prestes a nos submeter.<br />

O que haveria de mais a dizer diz respeito a tal porção musical que toda palavra traz gravada<br />

em si como um efeito indecidível derridiano cujo devir parece nunca se fechar, esgotar,


ealizar. Na canção já citada nesse corpus, Pecado original, Wisnik propõe que o movimento<br />

que os versos de Caetano sugerem é o de uma cobra, uma sensação de sinuosidade que a<br />

melodia sugere. Efeito prosódico, soma de melodia e letra, som e palavra, que expressa<br />

desejo, medo, força, erotismo, veneno, traição, enfim uma série de signos que<br />

derivam\dialogam com o signo “cobra” ou “movimento da cobra”. Tatit e Lopes<br />

experimentam a mesma aproximação propondo análises a partir da proposição de modelos<br />

semióticos que articulam os elementos melodia e letra. Não há intenção de desqualificar o<br />

esforço desses autores, que não é pequeno, considerando a dificuldade de deambular por um<br />

universo obscuro, delicadas veredas, cujo querer dizer se espanta frente inúmeras<br />

possibilidades e sentimentos que afloram de forma tão pouco sistemática qual mecanismos da<br />

memória e das emoções. Mas, talvez a melhor resposta nos traga Guimarães Rosa ao afirmar<br />

que “o que a música diz é a impossibilidade de haver mundo, coisas” (Rosa apud Reinaldo,<br />

2005). Traduzindo para os termos da desconstrução, o que a música diz é a impossibilidade de<br />

apontar coisas no mundo. Porque sempre seria possível acrescentar novas outras coisas sobre<br />

a melodia/letra, som/palavra, relação que também instaura o devir/escritura que nos fala<br />

Derrida. Entre elas, entre as novas outras coisas, os sentimentos que vertem quando o som<br />

verte. Tentar responder o que é isso que verte do e com o canto, que afeto, que sentimento,<br />

não é tarefa recente. Tratados gregos e renascentistas já tentaram responder a questão.<br />

224<br />

Cantar afirma Doni nada mais é do que um modo de dizer, por ser palavra<br />

melodizada, antes e acima de tudo, exterioriza a interioridade, desvela o<br />

pulso anímico do espírito. Se o dizer cotidiano contém e expressa afetividade<br />

humana, o dizer em mélos intensifica, tipifica este afeto ingênito à fala.<br />

Assim cantar para gregos e renascentistas, não é atividade que meramente<br />

compraz, mas um instrumento humano-educativo (CHASIN, contracapa,<br />

2004).<br />

Esse educar diria respeito “a mover os afetos do público”, a partir de um efeito de imitação,<br />

mimese dos afetos humanos, mas que já de antemão se assume como não sendo a coisa em si,<br />

como uma segunda natureza das paixões, para sermos fiéis ao pensamento de Aristóteles. Para<br />

os renascentistas, o que verte da alma humana (ao ouvir e cantar) é de natureza metafísica,<br />

impossível de ser apontada no mundo. Diria de uma subjetividade, interioridade que se<br />

expressa, manifestação de um estado ou pulsar da alma (idem, 102). Porém essa interioridade<br />

só se manifesta quando em contato com uma exterioridade, contexto, sobre o qual exerce<br />

função educativa.<br />

Canto nada mais é do que interioridade manifesta, logo interioridade que só<br />

pode existir concretamente nos fluxos e influxos de um contexto. Musica<br />

sem texto é subjetividade sem mundo, (...) sem razão de ser. A arte dos sons<br />

implica a mais intrínseca unidade entre exterioridade e interioridade, de tal


225<br />

modo que no canto o externo contém, exala e se realiza essencialmente a<br />

partir do mundo interior dos homens, e, reciprocamente, esta interioridade só<br />

alcança forma estética a partir do poético, da dimensão objetiva da vida<br />

(ibidem, 117).<br />

Por hora, deixemos os impasses entre gregos e baianos de lado. A assunção de um método<br />

labiríntico, palimpsesto, torna a justificar-se aqui. E, no lugar de uma rígida separação entre o<br />

“mundo” e o “querer dizer” deslizamos em hipertexto sob efeito mesmo da música/escritura,<br />

porque, como já dito em algum lugar desse corpus, não haveria mundo sem música e vice-<br />

versa e nem essa separação. Riobaldo diz que muita coisa importante falta nome, mas, ao<br />

mesmo tempo assume que tudo nessa vida é muito cantável (ROSA, GSV, p.368).<br />

Há música por toda parte no sertão. Grandeza cantável, como diz Riobaldo.<br />

Música dos bichos, das plantas, dos rios, dos carros-de-boi, dos ventos.<br />

Cantigas de ninar. De amor. Cantos religiosos, de celebração, efstas e<br />

bandeirinhas. As danças. Canto de encantamento, feitiço encomendado.<br />

Modinhas, coplas, lundus. A cantilenalastimosa. Os reisados: saudações e<br />

bênçãos. O cortejo dos sons das hipnóticas ladainhas. E o silêncio – um<br />

silencio tão grande, tão fino, tão claro. Extraindo do sertão a matéria de seu<br />

ofício, Rosa quer essa musicalidade em sua escritura. Música que está<br />

também nas palavras, palavras que tem plumagem (REINALDO, 2005, p.<br />

16).<br />

Cancioneiro → hipertexto → rede → rizoma → memória em trânsito → memória em transe<br />

→ trilhas → veredas → nonada → silêncio → som → música → canção → alegoria →<br />

discurso → fala → canto → território → pássaro → palavra → canção → <strong>cancioneiro</strong> →<br />

khôra → contexto → urbanidade → ruralidade → modernidade → tradição → identidade<br />

nacional → rasura → diferança → umidade → no entre → nonada → terceira margem →<br />

subjétil → animot → pássaro → palavra → som → silêncio → ritornelo → território →<br />

samba → marcha → baião → cateretê → moda → viola → piano → canto → canção →<br />

Rapaz Folgado → Contente Magoado → Barão da Ralé → Seu Doutor → Rádio → Isaura →<br />

nós → papel falante → subjétil → música →<br />

“E o que a palavra em seu uso ordinário não diz, a música sugere. (...) Há um conteúdo latente<br />

na língua que está em sua melodia sonora. O que não se pode explicar, mas é agradável aos<br />

ouvidos” (REINALDO, 2005, p 22).<br />

O leitor deve receber sempre uma pequena sensação de surpresa, isto é<br />

de vida. Acho também que as palavras devem fornecer mais do que o<br />

que significam. As palavras devem funcionar também por sua forma<br />

gráfica, sugestiva, sua sonoridade, contribuindo para criar uma espécie<br />

de música subjacente. [O leitor] tem quase que aprender novas<br />

maneiras de sentir e pensar. Não o disciplinado, não a clareza, mas a<br />

poesia, a obscuridade do mistério que é o mundo. E é nos detalhes<br />

quase sem importância que esses efeitos se obtêm. A maneira de dizer<br />

tem de funcionar, a mais, por si. Mas, o verbo “saravaja”, eu o ouvi, e


226<br />

o contador não soube me explicar o que é. Verbo só em “a”,<br />

belíssimo. (...) Traduzir mais ou menos como: irradiava luminoso em<br />

rajas (carta de Rosa ao tradutor italiano de Sagarana apud<br />

REINALDO, 2005, p. 24).<br />

Essa música subjacente, intraduzível, apela para o efeito de deslizamento do binômio<br />

palavra/canto, também expresso como mundo/subjetividade. Nem gregos sob o olhar<br />

enamorado da renascença, nem baianos donos do mesmo olhar amoroso pousado sobre os<br />

bardos e pincéis da paulicéia de 22. Avoé, Mário de Andrade. Estamos à porta do casarão<br />

escuro. Quase ruína. Rosa poderia até nos convidar. Mas, os olhos estão apressados na<br />

eminência do anunciado fim do livro. Não vão conseguir. No primeiro momento, entram e<br />

nada vêem. Está escuro aqui dentro, mas, com o tempo, não é a luz que aumenta, são os olhos<br />

que se acostumam e passam a enxergar belezas antes ocultas. Mais ou menos assim, Afonso<br />

Arinos comparou “Grande Sertão: veredas” a um velho casarão. Mas, não há tempo, nem<br />

som/palavra, por exemplo, para descriminar o sertão roseano em contraste com o sertão<br />

euclidiano. Serróseo? Serclídio? Falta palavra. Palavra/som. Poesia/música. E então não<br />

seríamos mais do que crianças sentadas juntinhas lado a lado no banco de madeira, o<br />

joelhinho ralado de molecagens. Todas ansiosas pela história que o avô já vai contar.<br />

Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não,<br />

Deus esteja. Alvejei mira em árvore... (Rosa, 2007, p. 23).<br />

Ou não é exatamente assim, mas, trata-se de um olhar que escuta o som mareado que a<br />

imagem de certos olhos machadianos inspira. Pulsão, paixão, musa, música. A ressaca dos<br />

olhos de Capitu, a musa, a música, o livro, que não é escrito, mas que se encontra por aí<br />

quando se vai de trem na direção de um outro Rio, um outro De Janeiro, diria Rosa, e se<br />

permite puxar conversa com um desconhecido que nos revela como esbarrou com o livro<br />

sentado no mesmo lugar que agora estamos. O desconhecido nos conta a história da história<br />

que começa assim.<br />

Uma noite destas vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no<br />

trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de<br />

chapéu (ASSIS, 1961, p.5).<br />

Ou ainda, não é bem isso, mas, trata-se de outro encontro em que se emenda o papel não à<br />

ressaca dos mares, mas à ressaca de sertão que o Contente Magoado ainda tonto de tanto De<br />

Janeiro deixa rasurar.<br />

Certa manhã quando o sol mostrou a cara<br />

Nós pegamos nossas malas


E eu fui conhecer o Rio<br />

Eu e meu pai, numa rural já bem usada<br />

Nos pusemos pela estrada<br />

Muito longa, que nos leva para o Rio de Janeiro.<br />

Eu tinha lá meus 15 anos de idade<br />

E era tanta ansiedade que eu nem consegui dormir.<br />

A noite que precedeu nossa viagem<br />

Foi noite de vadiagens pela imaginação, fala baixo coração.<br />

Nos hospedamos num hotel muito elegante<br />

Em plena Praça Tiradentes<br />

Pois meu pai quis me mostrar<br />

Primeiro a parte da cidade<br />

Que é cigana depois sim Copacabana<br />

Onde eu fui vestindo um terno passear em frente ao mar.<br />

À noite a gente conheceu a Cinelândia,<br />

Com todo nosso recato fomos só apreciar.<br />

Antes do sono nós ficamos conversando<br />

Sobre o medo que se sente no bondinho,<br />

Um jeito muito carioca de voar.<br />

Foi muito curto o nosso tempo de estadia<br />

Mas valeu por muitos dias de coisas pra se contar<br />

Pra gente que leva uma vida mais tranqüila,<br />

De um jeito quase caipira ir ao Rio de Janeiro é o mesmo que flutuar 697<br />

697 A primeira vez que eu fui ao Rio. Renato Teixeira, 1978.<br />

227


Referências:<br />

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:<br />

Cortez, 2006.<br />

ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: F. Alves;<br />

Brasília: INL, 1979.<br />

ANDRADE, Mário de. Os cocos. São Paulo: Duas cidades; Brasília: INL, Fundação<br />

Nacional Pró-memória, 1984.<br />

ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.<br />

ARAUJO, Frederico Guilherme Bandeira. Identidade e território enquanto simulacros<br />

discursivos. In: (org.) ARAUJO, Frederico Guilherme Bandeira de; HAESBAERT, Rogério.<br />

Identidades e territórios. Questões e olhares Contemporâneos. Rio de Janeiro: Access, 2007.<br />

ARAUJO, Frederico Guilherme Bandeira et. al. Para compreender o discurso: uma<br />

proposição metodológica de inspiração bakhtiniana, Rio de Janeiro: GPMC/IPPUR/<strong>UFRJ</strong>,<br />

2007.<br />

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: São Paulo: Editora Brasileira Ltda,<br />

1961.<br />

BAKHTIN. Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.<br />

BOLLE, Willi. Grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas cuidades;<br />

Ed. 34, 2004.<br />

BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. Contribuição para uma economia dos bens<br />

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Anexo:<br />

Em defesa do título: do nome que quer dizer <strong>cancioneiro</strong> em rasura.<br />

235<br />

O <strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> <strong>deslocando</strong> paradigmas de<br />

modernidade, urbanidade, ruralidade e tradição <strong>deslocando</strong> o<br />

<strong>cancioneiro</strong> <strong>popular</strong> <strong>brasileiro</strong> OU A<br />

desmetrocampolismatacidade de alegorias autorOuvintes do<br />

<strong>cancioneiro</strong> OU A almAtéria musical de desurbaRuralidades que<br />

a canção movimenta OU o Jogo/devir entre o papel falante, o<br />

rádio, nós e Isaura.<br />

Questiona-se, banca, secretaria, orientador e autorouvinte, se o nome expressa os movimentos<br />

que o papel falante provoca no decorrer do corpus. Para expressar sua própria defesa, o papel<br />

falante se apresenta à tribuna. Apresenta-se ao formato de tribunal que se encena e se emula<br />

entre nós aqui presentes para defender-se de uma provável mutilação. Amputação de partes de<br />

si, partes do nome, nome próprio que o especifica no mundo metafisicamente como este<br />

corpus, esta tese.<br />

O problema, o impasse, o dissídio pode ser expresso pela questão de receber ou banir o nome<br />

que se apresenta. Novo nome – estrangeiro ao código da academia que pode recebê-lo como<br />

um hóspede ou como um hostil. Ele pergunta se a ameaça ao “em casa”, ao pertencente à<br />

língua ou ao código acadêmico, pode produzir uma reação xenófoba a ponto de transformar o<br />

hospitaleiro, o douto acadêmico em hostil.<br />

Derrida identifica uma perversão aparentemente insuperável, uma dificuldade, uma<br />

impossibilidade entre uma lei incondicional da hospitalidade e as leis da hospitalidade,<br />

dificuldade expressa no entre do justo e do legal. A perversão funciona sob lógica direta:<br />

quanto maior a percepção da ameaça, da diferença, mais o hospitaleiro pode se tornar hostil<br />

aos olhos do hóspede e reciprocamente mais o hóspede se torna bárbaro aos olhos do<br />

hospitaleiro.<br />

Identificamos dois movimentos:<br />

(a) O novo nome, que aos olhos do hospitaleiro se torna cada vez mais hostil quanto mais<br />

novo é o nome, viria de fora do código e parece forçar a porta da hospitalidade ao exigir ser<br />

aceito sem mutilações, o que já seria uma violência.<br />

(b) O hospedeiro se coloca no lugar de direito a si, lugar privado, de propriedade do código,<br />

lugar de uma moral pré-estabelecida pelas leis condicionais e condicionantes da hospitalidade<br />

acadêmica que recebe ou não um novo nome que parece ameaçar o limite do código.


Porém, a Lei, a justa lei da hospitalidade só funcionaria como aporia, ela precisa ser<br />

transgredida ou transgredir para mover-se. Ela expressa uma dificuldade, uma<br />

impossibilidade: a lei da hospitalidade incondicional, hiperbólica exige transgredir todas as<br />

leis da hospitalidade (condições, normas, direitos e deveres a hospedeiros e hospedados) que<br />

especificam o reconhecimento do outro enquanto um nome, estrangeiro, mas possuidor de um<br />

nome próprio, não mais um bárbaro, sem nome, sem código, sem língua. Nesses termos, a<br />

oposição entre “a lei” e “as leis” apresenta-se como dialética irreconciliável, como um jogo de<br />

anulação.<br />

Mas, pode-se caminhar sob um segundo pretexto em direção a mesma base de sustentação do<br />

conceito de hospitalidade.<br />

A lei que se estabelece fora e acima das leis apóia-se nas leis. Necessita das leis para<br />

transgredi-las ou digressionar ante suas forças. As leis necessitam da lei para serem de fato<br />

hospitaleiras ainda que condicionalmente. Necessitam da lei para romperem o vidro que as<br />

isola imutáveis e inatingíveis. Vidro que torna refém o hóspede, mas também o hospedeiro<br />

obrigado a seguir as leis que ele próprio ditou e emoldurou. Se bem que escritas e protegidas<br />

atrás de um vidro, as leis estão visíveis e é a partir delas e de sua visibilidade e de sua<br />

cristalização que se pode transgredir ou digressionar.<br />

A transgressão do hóspede liberta o hospedeiro das leis. Então, o hospedeiro pede ao hóspede<br />

para tomar seu lugar. Estranha lógica essa de um senhor impaciente que espera seu hóspede<br />

para emancipá-lo de seu compromisso com as leis, como um libertador estrangeiro que amplia<br />

e altera o parâmetro, limite, de horizonte que o hospedeiro guardava como certo.<br />

Dá-se múltipla inversão. O hóspede, refém convidado, torna-se convidador do convidador,<br />

possível senhor do hospedeiro. Essas substituições tornam todos, e cada um, refém do outro<br />

sob a condição de aporia articulando e distinguindo a lei e as leis da hospitalidade.<br />

Isso nos levanta a questão do estrangeiro, do outro, enquanto questão vinda do estrangeiro e<br />

não tratada simplesmente de dentro, por exemplo, do contexto acadêmico, considerando<br />

classificações tais como código, língua e ethos não só a partir das leis reservadas a protegidas<br />

sob o vidro e a moldura pregada na parede da sala de visitas, mas também a partir do<br />

estrangeiro, a partir da relação de aporia entre a lei e as leis da hopitalidade.<br />

O novo nome pergunta:<br />

Em qual língua eu, o “novo nome”, devo então endereçar meu pedido de aceite e em qual<br />

devo, ou mereço, ser interrogado?<br />

Como eu, o nome próprio, posso não corresponder ao funcionamento da língua, do código<br />

que, no entanto, me condicionou, a língua portuguesa e suas regras gramaticais e lexicais?<br />

236


A segunda lógica parece encetar uma ética contraditória: o senhor faz as leis e se dobra a elas<br />

e a seu ato até que o hóspede venha libertá-lo. O hóspede que já era refém da hospitalidade do<br />

hospedeiro.<br />

As leis condicionais e a lei absoluta expressam entre si heterogeneidade radical, mas também<br />

estariam em condição de indissociabilidade. Uma requer, implica ou prescreve a outra.<br />

Questionamentos finais:<br />

Praticando o direito relativo à lei da hospitalidade incondicional, é possível dar lugar a um<br />

direito calculável? Como medir a possibilidade de transgressão para além das leis<br />

emolduradas que nos torna reféns uns dos outros? Isto é, qual o coeficiente de impertinência<br />

que nos cabe produzir e aceitar considerando que pertinências e impertinências estão<br />

indissociadas?<br />

Em estado de isolamento, exílio ou clandestinidade caberia ao novo nome outra resposta,<br />

outra fala que não seja o silêncio ou a auto-traição, traição da possibilidade de movimento da<br />

língua, movimento do código e de sua própria condição de externalidade?<br />

Por outro lado...<br />

Salvo o nome, a exceção do nome, muito possivelmente o nome próprio se abriria, não para a<br />

mutilação, não para o estigma, a marca destruidora, que combate com violência a violência<br />

impetrada pelo nome ao tentar penetrar e pertencer ao signo acadêmico, mas para docilmente<br />

se deixar mover por rasuras, sulcos, marcas, movência que todo nome , signo, traz gravado<br />

em si como promessa, devir, condição de possibilidade de movimento. E o nome próprio já<br />

deslizaria, deslocar-se-ia até mesmo de forma tão radical que poderia já não guardar em si<br />

nenhuma das características e termos do nome anterior, sequer <strong>cancioneiro</strong> em rasura.<br />

Almatéria:canção como Macunaíma Capitulando-se por Grande Sertão:Veredas. Os quase<br />

outros de “Os sertões”, da “Paulicéia Desvairada” e de “Dom Casmurro”.<br />

237

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