A CINDERELA NO MUNDO DA DANÇA - Curso de Dança
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UNIVERSI<strong>DA</strong>DE FEDERAL DE VIÇOSA<br />
CURSO DE GRADUAÇÃO EM <strong>DA</strong>NÇA<br />
Hilem Estefânia Cosme <strong>de</strong> Oliveira<br />
A <strong>CINDERELA</strong> <strong>NO</strong> <strong>MUNDO</strong> <strong>DA</strong><br />
<strong>DA</strong>NÇA<br />
Viçosa<br />
2007
Hilem Estefânia Cosme <strong>de</strong> Oliveira<br />
A <strong>CINDERELA</strong> <strong>NO</strong> <strong>MUNDO</strong> <strong>DA</strong><br />
<strong>DA</strong>NÇA<br />
Viçosa<br />
2007<br />
Trabalho <strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> curso<br />
apresentado ao Departamento <strong>de</strong><br />
Artes e Humanida<strong>de</strong>s da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Viçosa<br />
para obtenção do título <strong>de</strong><br />
Bacharel em <strong>Dança</strong>.<br />
Orientador: Solange Pimentel Cal<strong>de</strong>ira
SUMÁRIO:<br />
Resumo<br />
Abstract<br />
1. Introdução<br />
2. Justificativa<br />
3. Metodologia <strong>de</strong> pesquisa<br />
3.1 Natureza e <strong>de</strong>senvolvimento da pesquisa bibliográfica<br />
3.2 Tratamento dos Dados:<br />
3.2.1 Compilação das fontes<br />
3.22 Descrição do tratamento dos dados<br />
4. Discussão e análise dos resultados:<br />
4.1 Capítulo 1: Breve historiografia dos contos <strong>de</strong> fadas.<br />
4.2 Capítulo 2: A Cin<strong>de</strong>rela sob a ótica da psicologia.<br />
4.3 Capítulo 3: A Cin<strong>de</strong>rela no ballet clássico.<br />
4.3.1 Histórico.<br />
4.3.2 Descrição e análise da Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Konstantin Sergeyev para o<br />
Ballet Bolshoi.<br />
4.4 Capítulo 4: A Cin<strong>de</strong>rela na dança contemporânea.<br />
4.4.1 Histórico<br />
4.4.2 Descrição e análise da Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin para o Lyon<br />
Opèra Ballet.<br />
5. Consi<strong>de</strong>rações Finais:<br />
Referências Bibliográficas.
AGRADECIMENTOS:<br />
Agra<strong>de</strong>ço:<br />
À memória do meu pai Maurício pelo gran<strong>de</strong> incentivo aos estudos, e pelo<br />
<strong>de</strong>spertar do amor pela arte, consequentemente a dança. A minha mãe Mariêta por todo<br />
o amor, carinho, atenção e <strong>de</strong>dicação, sempre.<br />
À minha professora orientadora Solange Cal<strong>de</strong>ira por todo o apoio e paciência<br />
nessa jornada.<br />
Aos meus outros professores pelos ensinamentos.<br />
À turma <strong>Dança</strong> 2002 em especial as “hijas” Talitha, Carina, Lívia e Taiman, pela<br />
luta, garra, farras, colo... Enfim por serem um pilar <strong>de</strong> sustentação em todos os<br />
momentos nessa passagem pela “Terra do Nunca”.<br />
Às minhas companheiras <strong>de</strong> república, Ika, Maria e Paloma, por serem as irmãs<br />
que a vida me proporcionou.<br />
À verda<strong>de</strong>ira família Bafão, por tornar todos os momentos que vivemos<br />
especiais.<br />
Aos amigos “aflitos” e “etanóis”, em especial ao Marco e Antônio por toda<br />
amiza<strong>de</strong>, carinho, “xingos” e música.<br />
À minhas famílias trespontana, campineira e bastense, pela acolhida em feriados<br />
prolongados, em que eu tinha que ficar sozinha aqui em Viçosa.<br />
Enfim a todos familiares e amigos que contribuíram mesmo que indiretamente<br />
para essa conquista.
RESUMO:<br />
A Cin<strong>de</strong>rela no Mundo da <strong>Dança</strong> é uma pesquisa bibliográfica, seguida por<br />
análises <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os, que propõe fazer uma leitura das adaptações feitas pelo ballet<br />
clássico e pela dança contemporânea do conto <strong>de</strong> fadas Cin<strong>de</strong>rela.<br />
Enfoca o surgimento da Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> contextos históricos que registraram<br />
os contos <strong>de</strong> fadas, à medida que eles eram transcritos das tradições orais para a obra<br />
literária. Aborda ainda uma visão da psicologia sobre o conto e, a importância na<br />
educação infantil, pois com suas construções narrativas simples auxilia as crianças a se<br />
i<strong>de</strong>ntificarem com os personagens e resolver seus dramas existenciais mais simples.<br />
Dá especial <strong>de</strong>staque a tradução da obra literária para a dança, fazendo um<br />
levantamento <strong>de</strong> como um mesmo conto foi coreografado em momentos históricos<br />
diferentes. Procurou-se <strong>de</strong>stacar os principais aspectos levantados na pesquisa<br />
bibliográfica e organizar os conteúdos dividindo-o em capítulos para melhor<br />
compreensão da análise dos ví<strong>de</strong>os.<br />
A análise dos ví<strong>de</strong>os abrange todos os aspectos do espetáculo como cenários,<br />
figurinos, iluminação e principalmente a movimentação dos bailarinos, que<br />
caracterizam a releitura <strong>de</strong> uma história consagrada feita por coreógrafos <strong>de</strong> diferentes<br />
escolas <strong>de</strong> dança, como Konstantin Sergeyev fez para o ballet clássico e Maguy Marin<br />
fez para a dança contemporânea.<br />
Sob o aspecto histórico-social, a análise comparativa dos ví<strong>de</strong>os, observa os<br />
<strong>de</strong>talhes que caracterizam cada obra, fazendo analogia à narrativa original <strong>de</strong> Charles<br />
Perrault.
1. INTRODUÇÃO<br />
Os contos <strong>de</strong> fadas são histórias <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> tradições orais, uma variação<br />
do conto popular ou da fábula, pois partilha com estes a característica <strong>de</strong> terem uma<br />
curta narrativa, e ainda o herói ou heroína tem que enfrentar gran<strong>de</strong>s obstáculos até<br />
triunfar contra o mal. Existe ainda uma dose <strong>de</strong> magia e encantamento que auxilia os<br />
protagonistas para conseguirem ter as suas vitórias.<br />
Esses contos po<strong>de</strong>m ser vistos como verda<strong>de</strong>iras obras <strong>de</strong> arte, que têm a<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> envolver-nos com o enredo, comovendo-nos com a sorte dos seus<br />
personagens. A psicologia explica que eles causam impacto em nosso psiquismo porque<br />
tratam <strong>de</strong> experiências cotidianas e permitem que nos i<strong>de</strong>ntifiquemos com as<br />
dificulda<strong>de</strong>s, bem como as alegrias <strong>de</strong> seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em<br />
suma, a condição humana frente às provações da vida. Não fossem assim tão<br />
verda<strong>de</strong>iros ao simbolizar nosso caminho pessoal <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, apresentandonos<br />
as situações críticas <strong>de</strong> escolha que invariavelmente enfrentamos, não <strong>de</strong>spertariam<br />
nem sequer o interesse nas crianças que buscam neles, além da diversão, um<br />
aprendizado apropriado.<br />
A Cin<strong>de</strong>rela, provavelmente, é o conto <strong>de</strong> fadas mais conhecido no mundo, e<br />
quando adaptado das traduções orais, foi revisado, reescrito e modificado segundo o<br />
espírito e a época <strong>de</strong> seus autores. Registram-se milhares <strong>de</strong> versões <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela<br />
encontradas na Itália, Escócia, Escandinávia, Alemanha, França, Egito, China, África e<br />
Américas. O tema abordado é invariavelmente a história <strong>de</strong> uma garota maltratada pela<br />
madrasta. Como recebe um auxílio mágico, a garota obtém acesso a uma ocasião<br />
especial, luxuosa ou ritualística. Ela se escon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois volta à vida <strong>de</strong> pobreza e<br />
sofrimento e, ao correr <strong>de</strong> volta para casa, esquece um dos sapatos. O sapato é<br />
encontrado por um príncipe que ficara encantado com sua misteriosa presença. Depois<br />
<strong>de</strong> experimentá-lo em todas as mulheres possíveis, ele a <strong>de</strong>scobre e se casa com ela.<br />
À medida que esses contos foram se popularizado tornaram não apenas mo<strong>de</strong>los<br />
pra histórias literárias, mas temas i<strong>de</strong>ais para ballets clássicos, principalmente por
constituir uma temática sobrenatural, on<strong>de</strong> a heroína do conto <strong>de</strong> fada se transforma na<br />
gran<strong>de</strong> protagonista do espetáculo. Os elementos da fantasia são transpostos para o<br />
palco em passos, saltos e giros virtuosísticos extraídos do vocabulário do ballet clássico,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1815.<br />
Em meados do século XX aparece uma nova tendência no mundo da dança on<strong>de</strong><br />
existe necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> horizontes e experimentação <strong>de</strong> novas concepções.<br />
Então a Cin<strong>de</strong>rela passou a extrapolar os limites dos padrões estéticos<br />
institucionalizados do ballet, aparecendo nas produções da dança contemporânea, on<strong>de</strong><br />
uma história já consagrada foi reinterpretada e adaptada novamente para os palcos.<br />
Estudar esses momentos específicos da obra literária Cin<strong>de</strong>rela, transposto para<br />
a dança é o que se busca, realizando uma <strong>de</strong>scrição e análise das adaptações do conto <strong>de</strong><br />
fadas Cin<strong>de</strong>rela que foram feitas, e um estudo das características do conto<br />
coreografadas em períodos históricos diferentes. Primeiro a adaptação feita pelo ballet<br />
clássico, estreada na Rússia, em 1944, pelo Ballet Bolshoi, com coreografia <strong>de</strong><br />
Konstantin Sergeyev, no teatro Kirov, em Lenigrado, e segundo, a versão filmada em<br />
VHS, feita pela dança contemporânea francesa, com coreografia <strong>de</strong> Maguy Marin, para<br />
o Lyon Opèra Ballet, estreada em 1984.<br />
Ballet Bolshoi
2. JUSTIFICATIVA:<br />
Em meados do século XX existe a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> horizontes no<br />
mundo da dança e os contos <strong>de</strong> fadas passam a extrapolar os limites dos padrões<br />
estéticos institucionalizados do ballet, aparecendo nas produções da <strong>Dança</strong>-Teatro<br />
Contemporâneas, on<strong>de</strong> as histórias já consagradas são reescritas e reinterpretadas. Um<br />
exemplo disso é a Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin <strong>de</strong> 1985 para o Lyon Ópera <strong>de</strong> Ballet.<br />
É um novo momento histórico, mas a Cin<strong>de</strong>rela ainda está presente, ela transita<br />
por séculos, pertence à categoria <strong>de</strong> mitos contemporâneos que foram <strong>de</strong>sistoricizados,<br />
<strong>de</strong>spolitizados, para representar e manter os interesses das classes dominantes, e que<br />
ressurge em novos contextos contemporâneos. Assim como o conto, a dança também<br />
tem sua i<strong>de</strong>ologia e essa transposição da narrativa literária para os palcos leva os<br />
coreógrafos a repensarem essa temática e estruturá-las <strong>de</strong> acordo com o momento da<br />
dança que eles representam.<br />
A relevância <strong>de</strong>sta pesquisa justifica-se por sua temática comparativa que se<br />
relaciona diretamente às discussões existentes na área artística da <strong>Dança</strong>, entre o<br />
formalismo do ballet clássico e as novas propostas da dança contemporânea. Observa a<br />
transição da obra literária para os palcos e as diferenças e/ou semelhanças da leitura <strong>de</strong><br />
uma mesma obra, feita em momentos históricos diferentes.<br />
Trata-se ainda <strong>de</strong> uma pesquisa interdisciplinar, que procura estudar a Cin<strong>de</strong>rela<br />
em diferentes linguagens, como a da literatura, da psicologia, do ballet e da dança<br />
contemporânea, tendo como suporte teórico a história da dança, a análise do espetáculo<br />
e a psicologia. Aponta, assim, a questão do concurso plural da interinfluência <strong>de</strong><br />
diversos sistemas artísticos em uma obra, núcleo relevante na pesquisa acadêmica.
3. METODOLOGIA DE PESQUISA:<br />
3.1 NATUREZA E DESENVOLVIMENTO <strong>DA</strong> PESQUISA<br />
BIBLIOGRÁFICA:<br />
Esse estudo se <strong>de</strong>senvolveu através <strong>de</strong> análise e interpretação <strong>de</strong> dados obtidos<br />
em uma pesquisa do tipo bibliográfica e conseqüente avaliação <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os sobre a<br />
temática da narrativa <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, a apropriação especial feita pela psicologia, bem<br />
como seu transporte para os palcos.<br />
Quanto à natureza da pesquisa bibliográfica, conforme Lakatos & Marconi 1<br />
explicam, preten<strong>de</strong> "colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito<br />
sobre <strong>de</strong>terminado assunto” 2 . Além disso, Otávio Cruz Neto 3 diz que: “A pesquisa<br />
bibliográfica coloca frente a frente os <strong>de</strong>sejos do pesquisador e os autores envolvidos em<br />
seu horizonte <strong>de</strong> interesse.” 4<br />
Desta forma, a base <strong>de</strong>sta pesquisa foi o estudo <strong>de</strong> livros, artigos especializados,<br />
dissertações e teses que possibilitaram o acesso a informações relevantes para a análise<br />
da tradução <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fadas <strong>de</strong>ntro do universo da <strong>Dança</strong>.<br />
Portanto, para o sucesso <strong>de</strong>ssa análise embasou-se a pesquisa num levantamento<br />
bibliográfico via internet em bases <strong>de</strong> dados científicos como Google Scholar, Capes,<br />
Biblioteca Virtual da UNESP, Scirus e Scielo, on<strong>de</strong> se pesquisou resultados, separados<br />
por assunto, em cima das seguintes palavras chave: Cin<strong>de</strong>rela e Conto <strong>de</strong> Fadas bem<br />
como as associações Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong>, Cin<strong>de</strong>rela – Ballet, Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong><br />
Contemporânea, Contos <strong>de</strong> Fadas – Psicologia, Contos <strong>de</strong> Fadas – Cin<strong>de</strong>rela.<br />
O idioma selecionado para a seleção dos resultados foi o português, e só foram<br />
consi<strong>de</strong>rados relevantes ao levantamento dos dados aqueles que estavam diretamente<br />
vinculados ao tema em questão.<br />
As bibliotecas setoriais do Departamento <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />
Viçosa, bem como a Biblioteca Central também foram utilizadas como recurso para o<br />
levantamento necessário a esse estudo.<br />
1 MARCONI, M. A.& LAKATOS, E.M. Técnicas <strong>de</strong> pesquisa. São Paulo: Atlas, 1986.<br />
2 MARCONI, M. A.& LAKATOS, E.M. Op Cit, p. 57.<br />
3 NETO, Otávio Cruz. O trabalho <strong>de</strong> campo como <strong>de</strong>scoberta e criação. In MINAYO, Maria (org.).<br />
Pesquisa Social. Teoria método e criativida<strong>de</strong>.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Vozes. 1989.<br />
4 NETO, Otávio Cruz. Op.Cit. p. 53.
Após o aparato dos dados bibliográficos, o material foi estudado através da<br />
realização <strong>de</strong> fichamentos, que visaram abranger informações importantes para o estudo<br />
da transcrição <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fadas para a dança. Esse tipo <strong>de</strong> fichamento Marconi &<br />
Lakatos <strong>de</strong>fine como <strong>de</strong> resumo ou conteúdo 5 , não possuindo julgamentos pessoais ou <strong>de</strong><br />
valor. Paralelamente aos fichamentos, elaborou-se um fichário <strong>de</strong> sínteses pessoais,<br />
constando reflexões ou críticas à documentação.<br />
Terminado o levantamento bibliográfico ficou viável ao pesquisador <strong>de</strong>screver e<br />
analisar obras em ví<strong>de</strong>os com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> visualizar cenicamente a tradução da<br />
Cin<strong>de</strong>rela em períodos históricos diferentes e por manifestações <strong>de</strong> dança também<br />
diferentes. Nesse caso utilizou-se um DVD da adaptação feita pelo ballet clássico,<br />
encenada na Rússia, em 1944, pelo Ballet Bolshoi, com coreografia <strong>de</strong> Nicholas<br />
Sergeyev, no teatro Kirov, em Leningrado, e a versão, em VHS, feita pela dança<br />
contemporânea francesa, com coreografia <strong>de</strong> Maguy Marin, para o Lyon Opèra Ballet,<br />
estreada em 1984.<br />
3.2. TRATAMENTO DOS <strong>DA</strong>DOS:<br />
3.2.1. COMPILAÇÃO <strong>DA</strong>S FONTES:<br />
Para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa pesquisa foram utilizadas, como fontes primárias,<br />
artigos científicos, dissertações e teses disponíveis nas bases <strong>de</strong> dados científicos do<br />
Google Scholar, Capes, Biblioteca Virtual da UNESP, Scirus e Scielo. Bem como livros<br />
cedidos pela biblioteca setorial do Departamento <strong>de</strong> Letras e Biblioteca Central da<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Viçosa. Assim como a filmagem, para póstuma análise dos<br />
ví<strong>de</strong>os, da adaptação <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela feita pelo ballet clássico, coreografado em 1944 por<br />
Sergeyev, e da adaptação feita pela dança contemporânea francesa, coreografada por<br />
Maguy Marin, em 1984, para o Lyon Opèra Ballet.<br />
3.2.2. DESCRIÇÃO DO TRATAMENTO DOS <strong>DA</strong>DOS:<br />
No primeiro momento fez-se uma análise <strong>de</strong> todo o material recolhido para que<br />
se obtivesse uma visão geral sobre o assunto em questão. Esta etapa está associada ao<br />
que Cervo & Bervian 6 <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong> “leitura informativa”, a qual po<strong>de</strong> ser subdividida<br />
em quatro categorias <strong>de</strong> leitura relacionadas entre si. A saber: “leitura <strong>de</strong><br />
reconhecimento”, “leitura seletiva”, “leitura crítica ou reflexiva” e “leitura interpretativa”.<br />
5 MARCONI, M. A.& LAKATOS, E.M. Op Cit.<br />
6 CERVO, A.L. & BERVIAN, P.A., Metodologia científica. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1975.
A partir <strong>de</strong>ssa análise po<strong>de</strong>-se organizar uma historiografia a respeito dos contos<br />
<strong>de</strong> fadas, conseqüentemente da Cin<strong>de</strong>rela, e perceber os aspectos políticos, sociais e<br />
psicológicos implícitos nessas histórias encantadas. Ainda foi possível esclarecer um<br />
maior número <strong>de</strong> questionamentos abordados pelos autores em seus estudos, para as<br />
diferentes versões <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela.<br />
Feito o levantamento bibliográfico sobre o tema, assistiu-se aos ví<strong>de</strong>os que foram<br />
investigados através <strong>de</strong> uma transcrição que segundo Bauer & Gaskell 7 tem como<br />
finalida<strong>de</strong>: “(...) gerar um conjunto <strong>de</strong> dados que se preste a uma análise cuidadosa e a<br />
uma codificação. Ela traslada e simplifica uma imagem complexa da tela.” 8<br />
O primeiro passo para <strong>de</strong>screver os ví<strong>de</strong>os foi codificar sobre a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
análise que, por convenção da pesquisadora, <strong>de</strong>cidiu-se dividir em cenas <strong>de</strong> acordo com o<br />
início <strong>de</strong> pantomimas ou coreografias do bailado. Portanto a <strong>de</strong>finição da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
análise foi basicamente visual, pois não é registrada a presença <strong>de</strong> um discurso direto,<br />
verbal. Essa convenção justifica-se <strong>de</strong>vido à praticida<strong>de</strong> para avaliar o conteúdo da cena,<br />
e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer ao ví<strong>de</strong>o com mais agilida<strong>de</strong>, caso ocorresse alguma dúvida<br />
no momento <strong>de</strong> transcrever a imagem para o discurso verbal. Bauer & Gaskell 9 afirmam,<br />
em uma reflexão do seu livro, segundo um exemplo próprio, que:<br />
“A televisão é um meio audiovisual e <strong>de</strong>verá existir algum modo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>screver o visual, bem como a dimensão verbal. Enfatizei a dimensão visual e<br />
chegou a hora <strong>de</strong> olhar para isso com um pouco mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhe. É impossível<br />
<strong>de</strong>screver tudo o que está na tela e eu diria que as <strong>de</strong>cisões sobre transcrição<br />
<strong>de</strong>vem ser orientadas pela teoria .” 10<br />
Para categorizar cada cena, <strong>de</strong>screver seu cenário, figurino dos bailarinos e os<br />
tipos <strong>de</strong> movimentação por eles realizados, alocou-se as cenas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um código, aqui<br />
representado por algarismos romanos. Por exemplo: CENA I, CENA II. Vale salientar<br />
que, além do aspecto físico, em cada cena foram observadas as disposições <strong>de</strong> ânimo,<br />
<strong>de</strong>sconformida<strong>de</strong> e soberania representadas através da iluminação, da música e <strong>de</strong> outros<br />
signos teatrais.<br />
Os diferentes aspectos do texto visual selecionados para transcrição foram<br />
rigorosamente categorizados e os critérios para avaliação, <strong>de</strong>scrição e análise segundo o<br />
período histórico são: cenário, figurino, movimentação, que inclui gestos e pantomimas,<br />
e a música ou efeito sonoro utilizado na cena. Esses aspectos foram sistematicamente<br />
7<br />
BAUER, Martin W. e GASKEL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Um manual<br />
prático. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Vozes, 2000.<br />
8<br />
BAUER, Martin W. e GASKEL, George. Op Cit, p. 348.<br />
9<br />
BAUER, Martin W. e GASKEL, George. Op Cit.<br />
10<br />
BAUER, Martin W. e GASKEL, George. Op Cit, p. 349.
anotados na transcrição por serem consi<strong>de</strong>rados pela pesquisadora fundamentais para<br />
análise das obras segundo o objetivo do estudo, unida à pesquisa bibliográfica feita<br />
anteriormente.<br />
Cada unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise é alocada em um código e sendo assim:<br />
“O processo <strong>de</strong> codificação é um processo <strong>de</strong> translação. O<br />
pesquisador está interpretando o sentido <strong>de</strong> cada unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise. Embora<br />
as interpretações estejam restringidas tanto pela teoria, quanto pelo<br />
referencial <strong>de</strong> codificação, faz sentido perguntar se outros codificadores<br />
teriam chegado à mesma conclusão.” 11<br />
Na dimensão visual as escolhas <strong>de</strong> seleção, a transcrição e a codificação são<br />
diretas. Primeiro <strong>de</strong>limitou-se a cena em foco, segundo a tomada coletiva dos<br />
participantes, sempre feita em grupo 12 , e finalmente é feito um levantamento dos<br />
elementos escolhidos para a análise: cenário, figurino, movimentação, iluminação música<br />
e efeitos complementares. “Os códigos para análises visuais po<strong>de</strong>m ser vistos nos<br />
extratos. Eles são, na verda<strong>de</strong>, transcritos e codificados em um movimento único.” 13<br />
Assim, po<strong>de</strong>-se afirmar que cada passo na análise do material audiovisual é uma<br />
translação e, em geral, uma simplificação. A questão é ser explícito sobre os<br />
fundamentos teóricos, éticos e práticos da técnica e abrir um espaço on<strong>de</strong> o trabalho<br />
possa ser <strong>de</strong>batido, nesse caso específico, aliando-o ao contexto histórico-social proposto<br />
pelo levantamento bibliográfico feito anteriormente.<br />
11<br />
BAUER, Martin W. e GASKEL, George. Op Cit, p. 356.<br />
12<br />
A tomada sempre será em grupo, pois em nenhum dos dois ví<strong>de</strong>os avaliados aconteceu <strong>de</strong> um<br />
personagem ficar sozinho a cena inteira.<br />
13<br />
BAUER, Martin W. e GASKEL, George. Op Cit, p. 357.
4. DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS:<br />
A partir <strong>de</strong> uma pesquisa bibliográfica sobre o corrente tema <strong>de</strong>sta monografia<br />
em algumas bases <strong>de</strong> dados científicos como po<strong>de</strong>mos citar o Google Scholar, Capes<br />
(periódicos), BBT UNESP, Scirus e Scielo, observamos que não há uma gran<strong>de</strong><br />
variação nas fontes encontradas, em alguns casos os dados são os mesmos apenas<br />
disponíveis em bases diferentes. Optou-se realizar a busca por palavras-chave e<br />
combinações entre essas que tenham a ver com o tema, tais como “Cin<strong>de</strong>rela”, “<br />
Cin<strong>de</strong>rela-<strong>Dança</strong>” , “Cin<strong>de</strong>rela Ballet” , “ <strong>Dança</strong> Contemporânea – Cin<strong>de</strong>rela” , “<br />
Contos <strong>de</strong> Fadas” , “Contos <strong>de</strong> Fadas - Psicologia” e “Contos <strong>de</strong> Fadas – Cin<strong>de</strong>rela.<br />
De acordo com os resulados mostrados na Tabela 1 po<strong>de</strong>mos concluir que no<br />
Brasil há um déficit <strong>de</strong> publicações na área <strong>de</strong> dança, principalmente no que se diz<br />
respeito ao Ballet Clássico e a <strong>Dança</strong> Contemporânea.<br />
Tabela 1 – Pesquisa Bibliográfica em Bases <strong>de</strong> Dados Científicos.<br />
Google<br />
BBT<br />
Scholar CAPES Scielo Scirus UNESP Total<br />
Cin<strong>de</strong>rela 9 0 0 2 4 15<br />
Cin<strong>de</strong>rela - <strong>Dança</strong> 7 0 0 1 2 10<br />
Cin<strong>de</strong>rela - Ballet<br />
Cin<strong>de</strong>rela - <strong>Dança</strong><br />
0 0 0 0 2 2<br />
Contemporânea 3 0 0 1 1 5<br />
Contos <strong>de</strong> Fadas<br />
Contos <strong>de</strong> Fadas -<br />
15 0 0 9 4 28<br />
Psicologia 4 0 0 9 4 17<br />
Contos <strong>de</strong> Fadas - Cin<strong>de</strong>rela 5 0 0 7 4 16<br />
Nas bases do Google Scholar, quando se trata da palavra “Cin<strong>de</strong>rela” aparecem<br />
9 resultados que estão ligados ao tema <strong>de</strong>sta pesquisa 14 . Na relação “Cin<strong>de</strong>rela - <strong>Dança</strong>”<br />
aparecem 7 registros on<strong>de</strong> 4 <strong>de</strong>les estão em comum com “Cin<strong>de</strong>rela” como palavra<br />
chave. Para a associação “Cin<strong>de</strong>rela - Ballet” nenhum resultado foi encontrado no site e<br />
para “Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong> Contemporânea” encontrou-se 3 registros que são comuns à “<br />
Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong>”.<br />
Para “Contos <strong>de</strong> Fadas” constam 15 registros, quando para “Conto <strong>de</strong> Fadas –<br />
Psicologia” esse número cai para quatro e três <strong>de</strong>sses já apareciam em “Conto <strong>de</strong> fadas”<br />
14<br />
Vale Ressaltar que esses registros foram filtrados <strong>de</strong>ntre os resultados e colocados <strong>de</strong> acordo com o<br />
tema da pesquisa.
como palavra chave. E para a relação “Conto <strong>de</strong> Fadas – Cin<strong>de</strong>rela” encontrou-se 5<br />
registros, sendo 2 em comum com “Conto <strong>de</strong> Fadas”.<br />
Segundo as bases da Capes <strong>de</strong> da Scielo nenhum registro foi encontrado para as<br />
palavras chaves principais “Cin<strong>de</strong>rela” e “Conto <strong>de</strong> Fadas” bem como para as<br />
associações entre elas.<br />
Já nas bases da Scirus obteu-se 2 resultados para a palavra-chave “Cin<strong>de</strong>rela”,<br />
nas associações “Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong>” e “Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong> Contemporânea” apenas 1<br />
resultado que já fora visto em pesquisa anterior; nenhum registro para “ Cin<strong>de</strong>rela -<br />
Ballet” foi encontrado.<br />
Tanto para “Contos <strong>de</strong> Fadas” quanto para “Contos <strong>de</strong> Fadas – Psicologia”<br />
constam 9 registros (em comum) e para a associação “Contos <strong>de</strong> Fadas – Cin<strong>de</strong>rela”<br />
sete resultados foram encontrados, sendo 3 em comum as associações anteriores,<br />
portanto apenas 4 registros específicos sobre o tema.<br />
Na biblioteca Virtual da Unesp para a palavra chave “Cin<strong>de</strong>rela” encontrou-se 4<br />
registros, 3 <strong>de</strong>les já vistos em pesquisas anteriores, para a associação “Cin<strong>de</strong>rela -<br />
<strong>Dança</strong>” apenas 2 registros, quando passamos para especificar “Cin<strong>de</strong>rela – Ballet” 2<br />
registros foram encontrados, sendo em comum com “Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong>”, para<br />
“Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong> Contemporânea” um registro só foi achado, sendo que já em<br />
comum com “Cin<strong>de</strong>rela – <strong>Dança</strong>” e com “Cin<strong>de</strong>rela – Ballet”.<br />
Ainda na Biblioteca da Unesp para a palavra-chave “Contos <strong>de</strong> Fadas” e para as<br />
associações “Contos <strong>de</strong> Fadas – Psicologia” e “Contos <strong>de</strong> Fadas – Cin<strong>de</strong>rela”<br />
encontrou-se 4 resultados 15 , todos já vistos em buscas anteriores e que eram relevantes<br />
ao tema em foco na pesquisa.<br />
Quanto ao conteúdo dos registros encontrados pouquíssimos estavam<br />
diretamente ligados a dança, a maioria <strong>de</strong>les dizia respeito ao conto da Cin<strong>de</strong>rela na<br />
caráter <strong>de</strong> história infantil, ora contavam a história, ora falavam da importância <strong>de</strong>sta<br />
para a educação das crianças.<br />
Nos registros encontrados, a palavra-chave “Contos <strong>de</strong> Fadas”, foi a que mais<br />
obteve dados <strong>de</strong> trabalhos científicos, percebeu-se uma gran<strong>de</strong> preocupação <strong>de</strong><br />
profissionais que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m suas teses baseadas na importância <strong>de</strong>sses contos e seus<br />
significados ocultos na formação da criança e até na explicação <strong>de</strong> certos<br />
comportamentos <strong>de</strong> adultos.<br />
15 Esse resultado foi filtrado e selecionaram-se os artigos que estavam mais próximo do tema da pesquisa.
Em todas as bases procuradas nenhum resultado relacionava diretamente essa<br />
questão história e política presente nos contos <strong>de</strong> fadas, mais precisamente na<br />
Cin<strong>de</strong>rela, com as suas adaptações feitas para dança, tanto para o Ballet Clássico quanto<br />
para a <strong>Dança</strong> Contemporânea. Portanto mesmo não tendo ligação específica, os<br />
documentos encontrados aliados a pesquisa em livros e ví<strong>de</strong>os, foram a base<br />
bibliográfica para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta pesquisa.<br />
A partir <strong>de</strong>sses resultados obtidos na pesquisa bibliográfica divi<strong>de</strong>-se este<br />
trabalho nos capítulos a seguir.
4.1 CAPÍTULO 1: BREVE HISTORIOGRAFIA DOS CONTOS DE<br />
FA<strong>DA</strong>S.<br />
Os contos <strong>de</strong> fadas são nada mais que escritos <strong>de</strong> histórias já existentes na<br />
tradição oral. Estão presentes em diversas culturas, em todos os continentes com<br />
estruturas e narrativas semelhantes aos contos que conhecemos hoje, e que são <strong>de</strong><br />
origem européia, para citar um exemplo a história da Cin<strong>de</strong>rela, tem um registro <strong>de</strong><br />
narrativa muito semelhante registrada na China do século IX d.C. 16 . A origem da<br />
própria literatura infantil se confun<strong>de</strong> com o registro escrito dos contos <strong>de</strong> fadas, pois<br />
estes já existiam na oralida<strong>de</strong> muito antes disso.<br />
Essas histórias fantásticas caracterizam-se por uma narrativa curta, on<strong>de</strong> o herói<br />
ou heroína tem que enfrentar gran<strong>de</strong>s obstáculos e situações <strong>de</strong> puro sofrimento até<br />
triunfar contra o mal - núcleo problemático existencial. Envolvem ainda um caráter<br />
mágico, algum tipo <strong>de</strong> metamorfose ou encantamento.<br />
Ao contrário do que pensamos, são versões relativamente recentes que <strong>de</strong>rivam<br />
<strong>de</strong> contos folclóricos <strong>de</strong> regiões específicas do planeta, transmitidos oralmente aos<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. No entanto, através <strong>de</strong>ssas adaptações, os textos são revisados, reescritos<br />
e modificados segundo o espírito da época <strong>de</strong> seus autores. Kátia Canton 17 afirma que:<br />
“São trabalhos criados por autores específicos, projetados em contexto sócio-históricos<br />
e culturais particulares” 18 . Por essas razões é que os contos <strong>de</strong>vem ser encarados não só<br />
como um resultado <strong>de</strong> criação pessoal, como também um documento sócio-histórico.<br />
Até o século XVI os contos <strong>de</strong> fadas não foram escritos para crianças, muito<br />
menos para transmitir ensinamentos morais. Em sua forma original, os textos traziam<br />
doses fortes <strong>de</strong> adultério, incesto, canibalismo e mortes hediondas. Conforme registra<br />
Sheldon Cashdan 19 :<br />
Ainda segundo Cashdan :<br />
“Originalmente concebidos como entretenimento para adultos, os<br />
contos <strong>de</strong> fadas eram contados em reuniões sociais, nas salas <strong>de</strong> fiar,<br />
nos campos e em outros ambientes on<strong>de</strong> os adultos se reuniam - não<br />
nas creches.” 20<br />
"Alguns folcloristas acreditam que os contos <strong>de</strong> fadas transmitem<br />
'lições' sobre comportamento correto e, assim, ensinam aos jovens<br />
16<br />
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1995.<br />
17<br />
CANTON, Katia. E o Príncipe Dançou. São Paulo: Ática, 1994.<br />
18<br />
CANTON. Op. Cit, p. 12.<br />
19<br />
CASH<strong>DA</strong>N, Sheldon. Os sete pecados capitais nos contos <strong>de</strong> fadas: como os contos <strong>de</strong> fadas<br />
influenciam nossas vidas. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Campus, 2000.<br />
20<br />
CASH<strong>DA</strong>N. Op. Cit, p. 20.
como ter sucesso na vida, por meio <strong>de</strong> conselhos.(...)A crença <strong>de</strong> que<br />
os contos <strong>de</strong> fada contêm lições po<strong>de</strong> ser, em parte, creditada a<br />
Charles Perrault, cujas histórias vem acompanhadas <strong>de</strong> divertidas<br />
'morais', muitas das quais inclusive rimadas". 21<br />
As versões infantis <strong>de</strong> contos <strong>de</strong> fadas hoje consi<strong>de</strong>radas clássicas, <strong>de</strong>vidamente<br />
expurgadas e suavizadas, teriam nascido quase por acaso na França no século XVII, na<br />
corte <strong>de</strong> Luís XIV, pelas mãos <strong>de</strong> Charles Perrault 22 . Foi ele que, em 1697, publicou<br />
Histoires ou contes du temps passe ou Histoires <strong>de</strong> ma mère l’Oye (Histórias da Mamãe<br />
Gansa), seguido, em 1715 por Peau d’âne (Pele <strong>de</strong> asno).<br />
“Perrault ouvia as histórias <strong>de</strong> contadores populares, e então as<br />
adaptava ao gosto da corte francesa, acrescentando ricos <strong>de</strong>talhes<br />
<strong>de</strong>scritivos, bem como diminuindo os trechos que conotavam os<br />
rituais da cultura pagã popular ou fizessem referências à<br />
sexualida<strong>de</strong> humana (pois vivia sob o contexto <strong>de</strong> conflito religioso<br />
entre católicos e protestantes à época da Contra-Reforma<br />
Católica.” 23<br />
Perrault ainda no fim da narrativa um espécie <strong>de</strong> moral da história, <strong>de</strong>ixando<br />
clara a sua preocupação pedagógica, pois <strong>de</strong>fendia que as histórias <strong>de</strong>viam servir como<br />
orientação moral para a as crianças “Ou seja, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu primeiro registro por escrito,<br />
os contos <strong>de</strong> fadas já começaram a ter seus <strong>de</strong>talhes, <strong>de</strong> enorme riqueza simbólica,<br />
<strong>de</strong>turpados.” 24<br />
No século XIX, Jacob e Whilhelm Grimm elevam os contos <strong>de</strong> fadas à nível <strong>de</strong><br />
pesquisa acadêmica, como eram filólogos o interesse inicial era coletar contos populares<br />
para estudar a língua alemã. Dentro do contexto <strong>de</strong> um movimento nacionalista na<br />
Alemanha, os irmãos Grimm, buscavam dar um novo status às histórias das origens do<br />
povo alemão, através do registro do seu folclore, da recuperação da realida<strong>de</strong> histórica<br />
do país e da publicação em 1812 e 1857 <strong>de</strong> Kin<strong>de</strong>r-und bausmarchen gesammelt durch<br />
die Brun<strong>de</strong>r Grimm (Contos infantis e familiares publicados pelos irmãos Grimm) 25 .<br />
“Os Grimm tiveram o mérito <strong>de</strong> registrar suas histórias nas versões<br />
originais, sem as adaptações e lições morais <strong>de</strong> Perrault. Depois da<br />
publicação <strong>de</strong> seus trabalhos é que surgiu a literatura infantil <strong>de</strong><br />
fato, com vários autores do mundo inteiro escrevendo para<br />
crianças.” 26<br />
21 CASH<strong>DA</strong>N. Op Cit, p. 23.<br />
22 COELHO, Nelly Novaes. O Conto <strong>de</strong> Fadas. São Paulo:Ática, 1987.<br />
23 FIGUEIREDO, Taicy <strong>de</strong> Ávila. A Magia dos Contos <strong>de</strong> Fadas. Disponível em:<br />
http://imforum.insite.com.br/arquivos/1027/taicy-contos<strong>de</strong>fadas.doc. Acessado em 26/12/2006.<br />
24 FIGUEIREDO. Op Cit.<br />
25 COELHO. Op Cit, p. 16.<br />
26 FIGUEIREDO. Op Cit.
Vale salientar que a popularização dos contos <strong>de</strong> fadas, só teria mesmo ocorrido<br />
no século XIX, em função da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>dores ambulantes (mascates) que<br />
viajavam <strong>de</strong> um povoado para o outro "ven<strong>de</strong>ndo artigos domésticos, partituras e<br />
pequenos volumes baratos chamados <strong>de</strong> chapbooks" 27 . Estes chapbooks (ou cheap<br />
books, "livros baratos" em inglês), eram vendidos por poucos centavos e continha<br />
histórias simplificadas do folclore e contos <strong>de</strong> fadas, on<strong>de</strong> se expurgava as passagens<br />
mais fortes, o que lhes facultava o acesso a um público mais amplo e menos sofisticado.<br />
Num contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência do racionalismo e uma exaltação da fantasia e do<br />
inverossímil (final do século XVII), Perrault tem a intenção <strong>de</strong> recriar o maravilhoso<br />
popular. Cin<strong>de</strong>rela é um dos oito contos da coletânea Histórias da Mamãe Ganso. Ele<br />
adaptou o conto às regras do período barroco e às lições <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> e educação elevada<br />
que pretendia com a sua narrativa. Perrault era um militante da causa feminista, o que se<br />
traduz visivelmente em sua temática, já que nas suas obras estão relacionadas<br />
adversida<strong>de</strong>s competentes ao universo dos personagens femininos.<br />
Mais <strong>de</strong> um século <strong>de</strong>pois, os Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm revisitam o<br />
maravilhoso entitulando uma seleção <strong>de</strong> narrativas como Contos <strong>de</strong> fadas para<br />
Crianças e Adultos (1812-22). Sob a influência do signo romântico, encontram este<br />
mundo mágico em suas pesquisas filológicas, on<strong>de</strong> a tradição oral preservara essa<br />
fantasia.<br />
Em consonância com os i<strong>de</strong>ais do Romantismo, <strong>de</strong>ssa coletânea <strong>de</strong> contos on<strong>de</strong><br />
se <strong>de</strong>staca Cin<strong>de</strong>rela, foram retirados trechos que julgavam menos recomendáveis por<br />
sua violência.<br />
Tem-se conhecimento ainda <strong>de</strong> uma versão <strong>de</strong> Sophia <strong>de</strong> Mello B. An<strong>de</strong>rsen 28<br />
que <strong>de</strong>svela o simples e o complexo da existência humana com leveza e simplicida<strong>de</strong>.<br />
Sua participação política retrata-se em seu texto por sua temática <strong>de</strong> dimensão mais<br />
social. Em História da Gata Borralheira, enfatiza problemas <strong>de</strong> socialização<br />
adolescente e as relações <strong>de</strong> pobreza e interesse. Ainda nessa obra, a influência <strong>de</strong> seus<br />
conhecimentos da cultura grega clarifica-se pela preocupação da personagem Lucia 29<br />
com a aparência, olhando-se no espelho, a semelhança <strong>de</strong> Narciso.<br />
27<br />
CASH<strong>DA</strong>N. Op Cit, pp. 20-21.<br />
28<br />
ANDERSEN, Sophia <strong>de</strong> Mello B. "História da Gata Borralheira" In: Histórias <strong>de</strong> terra e mar. Lisboa:<br />
Texto Editora, 2000.<br />
29<br />
ANDERSEN, Op Cit. Lucia é o nome dado à personagem principal do conto “A História da Gata<br />
Borralheira”.
Cin<strong>de</strong>rela é uma estória muito antiga que quando registrada na China no século<br />
nove D.C. já possuía relatos anteriores. 30 In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da versão, no geral aborda a<br />
história <strong>de</strong> uma garota maltratada pela madrasta, que recebe um auxílio mágico e tem<br />
acesso a uma ocasião especial, luxuosa ou ritualística. Ela se escon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois volta à<br />
vida <strong>de</strong> pobreza e sofrimento e, ao correr <strong>de</strong> volta para casa, esquece um dos sapatos. O<br />
sapato é encontrado por um príncipe que ficara encantado com sua misteriosa presença.<br />
Depois <strong>de</strong> experimentá-lo em todas as mulheres possíveis, ele a <strong>de</strong>scobre e se casa com<br />
ela, para <strong>de</strong>sgosto <strong>de</strong> suas irmãs e madrasta.<br />
A partir do século XVII dá-se uma institucionalização dos contos <strong>de</strong> fadas, que<br />
passam a ser vistos como:<br />
“Um gênero aristocrático, fundamental na educação <strong>de</strong> crianças –<br />
por intermédio das obras <strong>de</strong> Charles Perrault, na França no século<br />
XVII – e, analogamente, como um monumento do folclore alemão –<br />
por meio dos irmãos Grimm, na Alemanha do século XIX.” 31<br />
No caso <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela a <strong>de</strong>nominação institucional é <strong>de</strong> extrema importância na<br />
educação infantil, pois nenhum outro conto retrata tão bem as experiências internas da<br />
criança quando se sente marginalizada pelos irmãos. Quando a estória entra em cena<br />
Bruno Bettelheim 32 afirma que:<br />
“Correspon<strong>de</strong> ao que a criança sente intimamente, ela atinge a<br />
condição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> verídica e os episódios do conto parecem<br />
mais convincentes do que as suas próprias experiências <strong>de</strong> vida.” 33<br />
Sheldon Cashdan 34 , por exemplo, sugere ainda que os contos seriam<br />
psicodramas da infância espelhando lutas reais. Na visão <strong>de</strong> Cashdan:<br />
“Embora o atrativo inicial <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fada possa estar em sua<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encantar e entreter, seu valor duradouro resi<strong>de</strong> no<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ajudar as crianças a lidar com os conflitos internos que<br />
elas enfrentam no processo <strong>de</strong> crescimento". 35<br />
Essa institucionalização mantém as estruturas da história em questão, mas fazem<br />
uma remo<strong>de</strong>lagem dos valores subjacentes seguindo interesses específicos <strong>de</strong> editoras,<br />
da indústria cinematográfica e dos meios <strong>de</strong> comunicação em massa.<br />
30 CANTON. Op Cit, p. 124.<br />
31 CANTON. Op Cit p.31.<br />
32 BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos <strong>de</strong> Fadas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1980.<br />
33 BETTELHEIM. Op Cit, p. 20<br />
34 CASH<strong>DA</strong>N. Op Cit, p. 33.<br />
35 CASDHAN. Op Cit, p. 25.
Mesmo com todo o arsenal usado e comprovado dos contos <strong>de</strong> fadas na melhoria<br />
da educação infantil, estes ficaram esquecidos e <strong>de</strong>sprezados por um bom tempo, sob<br />
alegação <strong>de</strong> irrealida<strong>de</strong> e até selvageria em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> seu conteúdo altamente<br />
dramático. Na verda<strong>de</strong> os pais temiam que seus filhos se i<strong>de</strong>ntificassem com os<br />
monstros, ogros, madrastas, vilões e iniciassem um processo <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />
rejeição aos bons valores.<br />
Marie-Louise von Franz 36 , psicanalista da corrente <strong>de</strong> Carl Gustav Jung, vê nas<br />
personagens dos contos “figuras arquetípicas que, à primeira vista, não têm nada a ver<br />
com os seres comuns ou com os caracteres <strong>de</strong>scritos pela Psicologia" 37 .<br />
Neste sentido, a psicanálise entra em questão e <strong>de</strong>smistifica a inocência e<br />
simplicida<strong>de</strong> do universo da criança, trazendo o conto <strong>de</strong> fadas novamente para as<br />
mesas <strong>de</strong> leituras, justamente por <strong>de</strong>screverem um mundo pleno <strong>de</strong> experiências, <strong>de</strong><br />
amor, mas também <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição, <strong>de</strong> selvageria e <strong>de</strong> ambivalências. Ouvir essas<br />
histórias assegura à criança que ela também será capaz <strong>de</strong> superar as dificulda<strong>de</strong>s, os<br />
sentimentos profundos e contraditórios, <strong>de</strong>spertados por seu <strong>de</strong>licado e complexo<br />
conflito emocional, e virá a encontrar a felicida<strong>de</strong>.<br />
“Este é o po<strong>de</strong>r mágico dos contos <strong>de</strong> fadas – o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fazer-nos<br />
conhecer e compreen<strong>de</strong>r melhor a nós mesmos – e esta a razão <strong>de</strong><br />
sua permanência entre nós através dos séculos, bem como a razão do<br />
fascínio que o simples ato <strong>de</strong> sentar-se junto a um adulto para ouvir<br />
uma história ainda consegue <strong>de</strong>spertar, mesmo frente a um mundo<br />
cheio <strong>de</strong> brinquedos e maravilhas tecnológicas.” 38<br />
Por isso, cabe a ela mesma vivenciar o conto e tirar <strong>de</strong>le a mensagem que lhe é<br />
útil – e não ao adulto, a mensagem <strong>de</strong> sucesso e segurança que os contos carregam os<br />
tornam insubstituíveis e fascinantes para o imaginário infantil, como veremos no<br />
próximo capítulo.<br />
36 FRANZ, Marie-Louise von. O feminino nos contos <strong>de</strong> fadas. Petrópolis, RJ:Vozes, 1995<br />
37 FRANZ. Op Cit, p. 18.<br />
38 FIGUEIREDO. Op Cit.
4.2 CAPÍTULO 2: A <strong>CINDERELA</strong> SOB A ÓTICA <strong>DA</strong> PSICOLOGIA.<br />
Na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, existe uma preocupação com o racional, acredita-se que<br />
a educação <strong>de</strong> crianças e o alcance <strong>de</strong> sua maturida<strong>de</strong> sejam somente através do<br />
ensinamento lógico, proposto pelas escolas, on<strong>de</strong> a preocupação é quase que exclusiva<br />
em repassar um conteúdo pedagógico <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s significados para a vida.<br />
Os contos <strong>de</strong> fadas por sua vez com uma estrutura simples, mas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />
significado, uma expressão clara da nossa psique, entram no universo das crianças e<br />
<strong>de</strong>spertam sentimentos que clamam por um <strong>de</strong>senvolvimento do justo 39 . As crianças<br />
estão diretamente ligadas a essa linguagem não-verbal presente nos contos, pois<br />
comunica-se diretamente com o seu imaginário, Fanny Abramovich 40 assim <strong>de</strong>fine esse<br />
fascínio:<br />
“Por quê? Porque os contos <strong>de</strong> fadas estão envolvidos no<br />
maravilhoso, um universo que <strong>de</strong>nota fantasia, partindo sempre<br />
duma situação real, concreta, lidando com emoções que qualquer<br />
criança já viveu... Porque se passam num lugar que é apenas<br />
esboçado, fora dos limites do tempo e do espaço, mas on<strong>de</strong> qualquer<br />
um po<strong>de</strong> caminhar... (...) Porque todo esse processo é vivido através<br />
da fantasia, do imaginário, com intervenção <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s fantásticas<br />
(bruxas, fadas, duen<strong>de</strong>s, animais falantes, plantas sábias...).” 41<br />
A Cin<strong>de</strong>rela ou Borralheira é uma estória que se encaixa nesse perfil <strong>de</strong><br />
encantamento e <strong>de</strong> senso <strong>de</strong> justiça, a protagonista humilhada vivencia os sofrimentos e<br />
as esperanças que constituem a rivalida<strong>de</strong> fraterna 42 , bem como a sua vitória sobre as<br />
irmãs e a madrasta que a maltrataram.<br />
O significado do nome Borralheira é elucidado por Bruno Bettelheim em seu<br />
livro A Psicanálise dos Contos <strong>de</strong> Fadas, quando alega ter encontrado apenas uma<br />
tradução em português: “ter <strong>de</strong> viver entre as cinzas” 2 . Originalmente o termo<br />
<strong>de</strong>signaria uma empregada suja, <strong>de</strong> condição sócio-econômico baixa, que era recrutada<br />
para vigiar as cinzas da lareira. Taicy <strong>de</strong> Ávila 43 chama atenção ainda que o nome da<br />
protagonista esteja diretamente ligado a suas características físicas e emocionais, ela<br />
como e os personagens da trama não possuem nomes próprios, fazendo com que a<br />
i<strong>de</strong>ntificação criança-personagem se torne mais fácil, ora ele não tendo i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
39 o<br />
URBAN, Paulo. Revista Planeta, n 345. Junho 2001.<br />
40<br />
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1995.<br />
41<br />
ABRAMOVICH. Op Cit p.120.<br />
42<br />
BETTELHEIM. Op Cit, p. 277.<br />
43<br />
FIGUEIREDO, Taicy <strong>de</strong> Ávila. A Magia dos Contos <strong>de</strong> Fadas. Disponível em:<br />
http://imforum.insite.com.br/arquivos/1027/taicy-contos<strong>de</strong>fadas.doc. Acessado em 26/12/2006.
própria po<strong>de</strong> emprestar a sua personalida<strong>de</strong> ao leitor que acompanha a narrativa e<br />
completa “Gata Borralheira tem essa alcunha porque suas irmãs invejosas obrigam-na<br />
a dormir no borralho (cinza), significado <strong>de</strong> on<strong>de</strong> também vem seu outro nome,<br />
Cin<strong>de</strong>rela”.<br />
Os irmãos Grimm também tem uma versão para moradores das cinzas, como<br />
<strong>de</strong>fine Bettelheim 44 abaixo:<br />
“Na Alemanha, por exemplo, havia estórias on<strong>de</strong> um menino que<br />
vivia entre as cinzas mais tar<strong>de</strong> tornava-se rei, <strong>de</strong> forma comparável<br />
à Borralheira.“Aschenputtel” é o título que os irmãos Grimm <strong>de</strong>ram<br />
ao conto.” 45<br />
No conto da Cin<strong>de</strong>rela há uma substituição das relações fraternas, pela relação<br />
entre irmãos adotivos e relata <strong>de</strong> maneira clara e precisa as experiências internas da<br />
criança pequena quando se sente <strong>de</strong>sesperadamente marginalizada por irmãos e irmãs.<br />
“Borralheira é humilhada e rebaixada pelas irmãs adotivas; a<br />
madrasta sacrifica os interesses <strong>de</strong> Borralheira em favor dos das<br />
irmãs; <strong>de</strong>ve executar os trabalhos mais sujos e mesmo fazendo-os<br />
bem, não é aceita por eles; só lhe fazem mais exigências.” 46<br />
A expressão rivalida<strong>de</strong> fraterna refere-se a uma constelação complexa <strong>de</strong><br />
sentimentos e suas causas 47 . O que vale ressaltar é que a fonte real <strong>de</strong>sse complexo <strong>de</strong><br />
emoções é o sentimento da criança pelos pais. A criança <strong>de</strong>vastada por esse sentimento<br />
não se sente aliviada se lhe dissermos que crescerá tão capaz quanto seus irmãos, por<br />
mais que queira acreditar ela só enxerga os fatos <strong>de</strong> maneira subjetiva e não crê que<br />
sozinha consiga alcançar o patamar <strong>de</strong>les.<br />
Superficialmente, Borralheira é uma história simples. Fala dos sofrimentos<br />
vividos pela protagonista <strong>de</strong>vido à rivalida<strong>de</strong> fraterna, da exaltação dos humil<strong>de</strong>s, do<br />
mérito reconhecido <strong>de</strong>ntre os que vivem sob os farrapos, da bonda<strong>de</strong> recompensada e da<br />
malda<strong>de</strong> castigada. O que está escondido sob esse conteúdo manifesto é um complexo<br />
<strong>de</strong> relações, na gran<strong>de</strong> parte inconscientes, na qual os <strong>de</strong>talhes ajudam o suficiente para<br />
as nossas associações, e conseqüentes associações infantis. Sobre esse processo <strong>de</strong><br />
assimilação e i<strong>de</strong>ntificação Marly Amarilha 48 nos diz:<br />
“Através do processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com os personagens, a criança<br />
passa a viver o jogo ficcional projetando-se na trama da narrativa.<br />
44<br />
BETTELHEIM. Op Cit.<br />
45<br />
BETTELHEIM. Op Cit, p. 277.<br />
46<br />
BETTELHEIM. Op Cit, p. 278.<br />
47<br />
BETTELHEIM. Op Cit, p. 279.<br />
48<br />
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? – literatura infantil e prática pedagógica. Petrópolis:<br />
Vozes, 1997.
Acrescenta-se à experiência o momento catártico, em que a<br />
i<strong>de</strong>ntificação atinge o grau <strong>de</strong> elação emocional, concluindo <strong>de</strong><br />
forma liberadora todo o processo <strong>de</strong> envolvimento. Portanto, o<br />
próprio jogo <strong>de</strong> ficção po<strong>de</strong> ser responsabilizado, parcialmente, pelo<br />
fascínio que (o conto <strong>de</strong> fadas) exerce sobre o receptor.” 49<br />
A narrativa do conto reproduz a história <strong>de</strong> vida das crianças e as assegura que<br />
por mais que elas tenham problemas irão ser capazes <strong>de</strong> enfrentar e superar como<br />
Cin<strong>de</strong>rela fez. Uma das características <strong>de</strong>ssa história é a existência <strong>de</strong> um dilema<br />
existencial <strong>de</strong> forma breve e categórica permitindo à criança enten<strong>de</strong>r o problema <strong>de</strong><br />
forma essencial, on<strong>de</strong> uma trama mais complexa confundiria o assunto para ela, assim<br />
fala Amarilha 50 :<br />
“Pelo processo <strong>de</strong> ‘viver’ temporariamente as conflitos, angústias e<br />
alegrias dos personagens da história, o receptor multiplica as suas<br />
próprias alternativas <strong>de</strong> experiências do mundo, sem que com isso<br />
corra risco algum.” 51<br />
A morte dos progenitores já esclarecida no início do conto é a gran<strong>de</strong> responsável pelos<br />
problemas mais angustiantes da protagonista, e isso ou o medo disto ocorre com<br />
bastante freqüência na vida real.<br />
A presença <strong>de</strong> personagens mágicos como a fada-madrinha que realiza milagres,<br />
da bruxa (madrasta), e <strong>de</strong> ratos e bichinhos como amigos da protagonista “não são<br />
puras criações da mente <strong>de</strong> seus autores. São representações talhadas pela humanida<strong>de</strong>,<br />
durante os milênios, para simbolizar os seus sentimentos mais profundos.” 52<br />
Abramovich 53 ainda explica assim:<br />
“A magia não está no fato <strong>de</strong> haver uma fada anunciada já no título,<br />
mas na sua forma <strong>de</strong> ação, <strong>de</strong> aparição, <strong>de</strong> comportamento, <strong>de</strong><br />
abertura <strong>de</strong> portas...” 54<br />
Tais personagens <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela mostram no <strong>de</strong>correr da história <strong>de</strong>terminadas<br />
características simplificadas que só aumentam o sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação das<br />
crianças com as trajetórias <strong>de</strong> vida vivida por eles como exemplo po<strong>de</strong>mos citar o<br />
maniqueísmo, o herói é extremamente bom e o vilão completamente mau. Vale ressaltar<br />
ainda que justamente esses <strong>de</strong>talhes escabrosos presente no conto são os que têm maior<br />
relevância na história.<br />
49 AMARILHA. Op Cit, p. 18.<br />
50 AMARILHA. Op Cit.<br />
51 AMARILHA. Op Cit, p. 19.<br />
52 FIGUEIREDO, Taicy <strong>de</strong> Ávila. A Magia dos Contos <strong>de</strong> Fadas. Disponível em:<br />
http://imforum.insite.com.br/arquivos/1027/taicy-contos<strong>de</strong>fadas.doc. Acessado em 26/12/2006.<br />
53 ABRAMOVICH. Op Cit.<br />
54 ABRAMOVICH. Op Cit, p. 121.
As figuras presentes em Cin<strong>de</strong>rela não são ambivalentes - não são boas e más ao<br />
mesmo tempo, como somos na realida<strong>de</strong>, essa polarização tão presente no universo<br />
infantil também domina o universo da ficção, Bettelheim 55 assim explica:<br />
“Uma pessoa é boa ou má, sem meio termos . Um irmão é tolo e o<br />
outro é esperto. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, as outras são<br />
vis e preguiçosas. Uma é linda, as outras são feias . Um dos pais é<br />
todo bonda<strong>de</strong>, o outro é malvado.” 56<br />
A vilania da madrasta e das irmãs adotivas chama a atenção das crianças, pois as<br />
suas falhas tornam-se insignificantes diante <strong>de</strong> tanta malda<strong>de</strong>, por isso ao ouvir o conto<br />
a criança não se sente tão culpada por sentir raiva <strong>de</strong> seus irmãos. Numa alusão ao<br />
exagero fantástico “por mais que pais e irmãos pareçam tratar-nos muito mal, e por<br />
mais que soframos não é nada em comparação ao <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Borralheira.” 57<br />
No possível papel <strong>de</strong> borralheira a criança po<strong>de</strong> sentir uma espécie <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong><br />
superficial, tendo uma leve convicção <strong>de</strong> que é superior à mãe e irmãs mantendo um<br />
pensamento <strong>de</strong> que só é tratada <strong>de</strong>sse jeito por ser superior, por achar que, na verda<strong>de</strong>,<br />
as irmãs sentem ciúmes <strong>de</strong>la e por isso a excluem. O que dá ênfase a esse pensamento é<br />
o fim da história que assegura a todas as crianças borralheiras serem <strong>de</strong>scobertas pelos<br />
príncipes.<br />
O conto fala abertamente da rivalida<strong>de</strong> fraterna <strong>de</strong> maneira extrema: os ciúmes e<br />
inimiza<strong>de</strong>s das irmãs e o sofrimento <strong>de</strong> Borralheira quanto a isso. Bettelheim assim<br />
<strong>de</strong>fine:<br />
“As inúmeras outras proposições psicológicas recebem uma alusão<br />
tão encoberta que a criança não toma consciência <strong>de</strong>las. Mas no<br />
inconsciente respon<strong>de</strong> a estes <strong>de</strong>talhes significativos que se referem a<br />
assuntos e experiências <strong>de</strong> que se afastou conscientemente, mas que<br />
continuam criando-lhe gran<strong>de</strong>s problemas.” 58<br />
O interessante é que em nenhum outro conto há essa explanação da madrasta má,<br />
que estabelece missões difíceis para a enteada e exige <strong>de</strong>la um árduo trabalho. Isso<br />
significa para a criança que apesar <strong>de</strong> ser massacrada ela terá sua recompensa, que é<br />
tornar-se a princesa do reino. Se não fosse a Borralheira, a heroína nunca teria se<br />
tornado noiva do príncipe, por exemplo, e as irmãs para quem a madrasta teria sempre<br />
sido uma boa-mãe continuariam sendo conchas ocas 59 , conforme aponta Collete<br />
55 BETTELHEIM. Op Cit.<br />
56 BETTELHEIM. Op Cit, p. 17.<br />
57 BETTELHEIM. Op Cit, p. 281.<br />
58 BETTELHEIM. Op Cit, p. 285.<br />
59 BETTELHEIM. Op Cit, p. 315.
Dowling 60 , adultos sem iniciativa que não conseguem <strong>de</strong>senvolver uma personalida<strong>de</strong><br />
própria.<br />
O conto <strong>de</strong> fadas que acomete os adultos, no caso as mulheres, é conhecido<br />
como Complexo <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela 61 , que Collete Dowling 62 assim <strong>de</strong>fine:<br />
“Uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s e temores profundamente reprimidos que<br />
retém as mulheres numa espécie <strong>de</strong> penumbra e impe<strong>de</strong>-as <strong>de</strong><br />
utilizarem plenamente seus intelectos e criativida<strong>de</strong>. Como<br />
Cin<strong>de</strong>rela, as mulheres <strong>de</strong> hoje ainda esperam por algo externo<br />
que venha transformar suas vidas.” 63<br />
O que acontece é uma busca do auto-conhecimento através dos <strong>de</strong>tentores do<br />
po<strong>de</strong>r temporal, da sabedoria. A sabedoria torna-se dócil com quem a ama e inexistente<br />
para quem não experimentou uma mínima parte sua; ela não força ninguém, mas<br />
também não se entrega fácil. Ela tem <strong>de</strong> ser buscada e, mesmo crendo tê-la encontrado,<br />
é possível estar enganado. Mas se quem a busca a ama, os enganos são vencidos. É disto<br />
que trata a história.<br />
Segundo Joel Nunes dos Santos 64 trata-se <strong>de</strong> uma história para crianças apenas<br />
“porque este é o modo universal <strong>de</strong> apresentar alguma verda<strong>de</strong> necessária, a qual se<br />
revela a quem com ela topa.” Admite que para os adultos <strong>de</strong> pouco entendimento é<br />
apenas um sonho bom, e para os <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> chaves da cultura universal é um<br />
organizador do pensamento do eterno drama do homem “que é o <strong>de</strong> encontro, e perda, e<br />
busca do que, sendo verda<strong>de</strong>iro, não muda no que tem <strong>de</strong> essencial.” 65<br />
Assim, Borralheira oferece um conforto necessário a adultos e crianças pois<br />
po<strong>de</strong> ensinar-lhes a viver temporariamente sobre uma luz <strong>de</strong>sagradável . As crianças<br />
apren<strong>de</strong>m que para conquistarem seu reinado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ssa vivência como<br />
borralheira. E os adultos alimentam o eterno triunfo do bem contra o mal que mesmo<br />
com todos os conflitos do casamento e da <strong>de</strong>cepção do pai com a madrasta - as gran<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>cepções - há <strong>de</strong> se superar a situação e viver uma relação <strong>de</strong> amor pleno e <strong>de</strong><br />
sabedoria.<br />
60<br />
DOWLING, Colette. O Complexo <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela - O Medo Inconsciente das Mulheres por<br />
In<strong>de</strong>pendência.<br />
07/12/2006<br />
61<br />
Ibid.<br />
Disponível em http://www.oindividuo.com/convidado/Joel4.htm. Acessado em<br />
62<br />
DOWLING, Op.Cit.<br />
63<br />
DOWLING, Op.Cit.<br />
64<br />
SANTOS, Joel Nunes dos. Cin<strong>de</strong>rela, o encanto da sabedoria. Disponível em<br />
http://www.oindividuo.com/convidado/Joel4.htm. Acessado em 07/12/2006.<br />
65<br />
. Ibid.
4.3 CAPÍTULO 3: A <strong>CINDERELA</strong> <strong>NO</strong> BALLET CLÁSSICO<br />
4.3.1 HISTÓRICO:<br />
O ballet clássico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início, nos séculos XVI e XVII se tornou um artefato<br />
cultural aristocrático. Foi adotado pela burguesia <strong>de</strong> novos ricos, principalmente após a<br />
Revolução <strong>de</strong> 1789 66 . Após esse período Napoleão Bonaparte, adotou a dança como<br />
expressão artística favorita e financiava produções grandiosas, “on<strong>de</strong> motivos<br />
coreográficos ligados à Antiguida<strong>de</strong> heróica eram usados para legitimar seu po<strong>de</strong>r<br />
político.” 67<br />
Através dos séculos, os contos <strong>de</strong> fadas se tornaram não apenas exemplares<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> histórias literárias, indispensáveis na educação infantil, mas também temas<br />
compatíveis para os motivos coreográficos <strong>de</strong> balés clássicos .<br />
“De modo similar ao ocorrido com textos orais para literários, a<br />
transposição <strong>de</strong> textos literários para peças <strong>de</strong> dança também foi<br />
influenciada pelas condições sócio-histórica e estéticas. Esses balés<br />
são especialmente associados à Rússia czarista do final do século<br />
XIX, on<strong>de</strong> o mestre <strong>de</strong> ballet francês Marius Petipa começou a criar<br />
peças monumentais para a aristocracia.” 68<br />
Na realida<strong>de</strong> o ballet sempre esteve associado aos contos <strong>de</strong> fadas. Essa<br />
associação começou a tomar forma com a i<strong>de</strong>ntificação do ballet romântico com o<br />
sobrenatural, o irreal, e a instituição do i<strong>de</strong>al etéreo da bailarina. Canton ainda nos<br />
complementa assim:<br />
“Esse i<strong>de</strong>al é encarnado com perfeição pela graça transparente <strong>de</strong><br />
Marie Taglioni em La sylphil<strong>de</strong> (1823) e atinge seu ápice com a<br />
combinação <strong>de</strong> encanto feminino e ousadia física <strong>de</strong> carlotta Grisi<br />
em Giselle (1841).” 69<br />
Consta que Giselle é uma obra trágica consi<strong>de</strong>rada como ápice da era romântica,<br />
escrito por Théophile <strong>de</strong> Gaulthier que baseou sua história num livro <strong>de</strong> Heinrich Heine<br />
sobre as lendas alemãs das Willis 70 .<br />
66<br />
Consi<strong>de</strong>ra-se a Revolução Francesa <strong>de</strong> 1789 o acontecimento político e social mais espetacular e<br />
significativo da história contemporânea. Foi o maior levante <strong>de</strong> massas até então conhecido que fez por<br />
encerrar a socieda<strong>de</strong> feudal, abrindo caminho para a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Influenciados pelo iluminismo.<br />
67<br />
CANTON. Op Cit., p.114.<br />
68<br />
CANTON. Op Cit., p. 12.<br />
69<br />
CANTON. Ibid.<br />
70<br />
As Willis são donzelas espectrais que faziam com que todo homem que encontrasse dançasse até a<br />
morte.
Em meados do século XIX o ballet começou a se voltar cada vez mais para o<br />
formalismo da arte da dança, tais como o virtuosismo técnico <strong>de</strong> bailarinos e a<br />
concepção das linhas e formas dos corpos <strong>de</strong> bailes 71 . Durante aquele período, ainda<br />
havia gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> dos temas sobrenaturais, mas foram os heróis e heroínas dos<br />
contos <strong>de</strong> fadas que se transformaram em protagonistas típicos do ballet, substituindo a<br />
antiga tendência <strong>de</strong> silfos imateriais e ninfas mortas.<br />
“Os contos <strong>de</strong> fadas proporcionavam libretos bem conhecidos,<br />
permitindo que os coreógrafos se concentrassem nos aspectos<br />
formais, espetaculares da dança. Os elementos <strong>de</strong> fantasia das<br />
histórias, com suas súbitas mudanças no curso narrativo, eram<br />
perfeitamente transpostos em passos, saltos e giros virtuosísticos<br />
estraídos do vocabulário do balé.” 72<br />
Dentro do contexto discutido acima se constata inúmeras versões coreografadas<br />
para o ballet Cin<strong>de</strong>rela. Essas releituras seguem o estilo <strong>de</strong> época e a característica<br />
principal <strong>de</strong> cada coreógrafo, bem como a música elaborada para a peça, o que os une<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo grupo é o ballet clássico como técnica principal para a composição<br />
das coreografias 73 e variações 74 .<br />
O clássico conto <strong>de</strong> fadas escrito por Charles Perrault tem sido coreografado<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1815. A sua primeira versão foi feita em São Petersburgo com criação <strong>de</strong><br />
Francisco Decombe, em 1822, e representada na Opera <strong>de</strong> Paris em 1923. Em Viena, a<br />
primeira apresentação foi em 4 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1908 no Hofoperntheater com coreografia<br />
<strong>de</strong> Hassreiter. Fre<strong>de</strong>rick Ashton, com sua versão no Saddler's Wells Ballet, no Royal<br />
Opera House <strong>de</strong> Covent Gar<strong>de</strong>n, Inglaterra, em 23 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1948, ficou sendo a<br />
primeira versão <strong>de</strong> um ballet a ser composto nos mo<strong>de</strong>los do Século XIX.<br />
Em cada apresentação do ballet, sempre houve variações e <strong>de</strong>talhes especiais<br />
criados por cada artista. Na versão vienense, Cin<strong>de</strong>rela era a jovem aprendiz chamada<br />
Greta e o príncipe era Gustav, o gerente <strong>de</strong> uma loja <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentos. A produção era<br />
comum, mas os bailarinos <strong>de</strong>monstraram virtuosida<strong>de</strong> técnica. Em contraste, a versão <strong>de</strong><br />
Paulo Meijor, foi colorida por uma infusão <strong>de</strong> criaturas da natureza, como joaninhas e<br />
cogumelos, que eram dançados por crianças do ballet da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Chicago, no Teatro<br />
Auditorium, em 25 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1981.<br />
71 Grupo que emoldura as cenas em torno dos bailarinos principais com seções <strong>de</strong> dança pura.<br />
72 CANTON. Op Cit.,p.13.<br />
73<br />
Uma coreografia (do grego χορογραφία; χορεία "dança" e -γραϕία "grafia", "escrita") é arte <strong>de</strong> compor<br />
trilhas ou roteiro <strong>de</strong> movimentos que compõem uma dança.<br />
74<br />
Enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> passos diferentes sobre um tema musical. Fragmento <strong>de</strong> um bailado, geralmente<br />
executado por solistas.
No Teatro Real da Dinamarca, o ballet estreou no dia 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1910.<br />
Emilie Walbom coreografou a música do famoso compositor dinamarquês Carl Nielsen,<br />
vale salientar que <strong>de</strong>ssa versão não consta quem assina o cenário nem o figurino.<br />
No Teatro Bolshoi, em Moscou, com o título <strong>de</strong> Zolushka, Cin<strong>de</strong>rela estreou no<br />
dia 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1945. O coreógrafo foi Rostilav Zakharov e a música <strong>de</strong> Sergei<br />
Prokofiev. Prokofiev começou a trabalhar na música durante o inverno <strong>de</strong> 1940 para o<br />
ballet Kirov, <strong>de</strong> Leningrado. Seus planos foram interrompidos pelo início da Segunda<br />
Guerra Mundial e ele só terminou o trabalho em 1944. A sua versão segue a tradição<br />
clássica contendo vários, adagios 75 , a gavotte 76 , a mazurka 77 e valsas 78 . O compositor<br />
usou compassos simples e vivos para <strong>de</strong>monstrar a vida interior <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela A estréia<br />
do ballet Kirov ocorreu no dia 8 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1946, e seguiu mais <strong>de</strong> perto a linha original.<br />
Foi a estréia do coreógrafo Konstantin Sergeyev.<br />
Dentre as mais memoráveis versões está a <strong>de</strong> Ashton, on<strong>de</strong> dançaram Moira<br />
Shearer, <strong>de</strong>pois Margot Fonteyn e Michael Somes. Essa produção foi vista em Nova<br />
York, quando o Saddler's Wells Ballet visitou os Estados Unidos pela primeira vez, e<br />
influenciou a versão americana.<br />
A primeira versão da Cin<strong>de</strong>rela americana foi a <strong>de</strong> Ben Stevenson, pelo National<br />
Ballet <strong>de</strong> Washington, DC, estreada no dia 24 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1970. A coreografia <strong>de</strong><br />
Stevenson contou com inesperadas marcações <strong>de</strong> cena, as irmãs eram representadas por<br />
travestis e a madrasta foi omitida.<br />
Cin<strong>de</strong>rela teve versões européias e até mesmo no Japão. Todos se preocuparam<br />
em manter a jovialida<strong>de</strong> do tema, mas em 1987 Rudolf Nureyev quebrou as tradições e<br />
dançou sua versão para a Ópera <strong>de</strong> Paris, feita em um estúdio <strong>de</strong> Hollywood, tendo<br />
como heroína, a filha legítma da madrasta e não a adotiva.<br />
4.3.2 DESCRIÇÃO E ANÁLISE <strong>DA</strong> <strong>CINDERELA</strong> DE KONSTANTIN<br />
SERGEYEV PARA O BALLET BOLSHOI:<br />
Konstantin Sergeyev foi convocado para coreografar a partitura escrita por<br />
Prokofiev. Era sua estréia como coreógrafo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um longa carreira como primeiro<br />
75<br />
Provém do italiano e em linguagem musical significa um grau <strong>de</strong> andamento muito lento.<br />
76<br />
<strong>Dança</strong> popular francesa <strong>de</strong> passos saltitantes, muito comum na corte <strong>de</strong> Luís XIV.<br />
77<br />
<strong>Dança</strong> <strong>de</strong> origem polonesa.<br />
78<br />
<strong>Dança</strong> <strong>de</strong> compasso ternário, originária do Landlër.
ailarino do Kirov Ballet. A versão foi montada originalmente para o Kirov, mas o<br />
Ballet Bolshoi a adotou e continua a encena-la até hoje.<br />
Prokofiev retornava à Rússia em 1935 com uma música contemporânea, repleta<br />
<strong>de</strong> violência e sentido <strong>de</strong> ironia e <strong>de</strong> grotesco, fora um evento <strong>de</strong> maior importância “já<br />
que ele significou ao lado <strong>de</strong> Stravinski e Shostakovitch, a nova música russa do<br />
século.” 79 Nesse período compôs Romeu e Julieta. Mais adiante escreveu duas peças<br />
exclusiva para o ballet, que são Cin<strong>de</strong>rela e Flor <strong>de</strong> Pedra 80 .<br />
A Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Prokofiev tem uma estrutura musical que segue os mol<strong>de</strong>s<br />
tradicionais, o compositor sugeriu ao coreógrafo que a personagem principal fosse<br />
“uma pessoa real, que pensa, se move, sofre e se diverte como qualquer um <strong>de</strong> nós”. 81<br />
Devido à narrativa do conto, este encaixou-se perfeitamente para a união <strong>de</strong><br />
movimentos como a protagonista almejada pelo compositor.<br />
O virtuosismo tradicional do ballet clássico é muito presente nessa versão. A<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Sergeyev é literalmente uma ação pantomímica, intercalada por danças,<br />
embalada por peças musicais. Luis Ellmerich 82 assim <strong>de</strong>fine:<br />
“Está dividido em atos, personagens <strong>de</strong> contornos firmes e<br />
cenas contrastantes. Cada movimento <strong>de</strong> dança <strong>de</strong>verá<br />
correspon<strong>de</strong>r a um movimento <strong>de</strong> espírito. Os movimentos<br />
importantes <strong>de</strong>vem ter a força plástica <strong>de</strong> uma pintura para o<br />
espectador. As mãos das bailarinas <strong>de</strong>vem “dizer”alguma<br />
coisa; se os músculos do rosto carecem expressão, se os olhos<br />
não “<strong>de</strong>clamam”, o resultado será falho e a impressão,<br />
falsa.” 83<br />
Ou seja, Sergeyev junto a Prokofiev uniram a dança, a poesia, a música e arte da<br />
<strong>de</strong>coração, através <strong>de</strong> glamurosos cenários. Essas expressões em conjunto <strong>de</strong>ram vida a<br />
uma obra-prima do ballet clássico. Como veremos adiante.<br />
CENA I:<br />
Abre-se a cortina e o espectador se <strong>de</strong>para com um luxuoso cenário, um casarão,<br />
composto por uma gran<strong>de</strong> sala revestida por cortinas, poltronas e utensílios requintados<br />
como quadros, lustres e castiçais dispostos na região central. Ao lado esquerdo do palco<br />
encontra-se uma lareira, on<strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela está sentada lustrando panelas. As duas irmãs<br />
79<br />
CAMINA<strong>DA</strong>, Eliana. História da dança. Evolução cultural. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Sprint, 1999. P. 273.<br />
80<br />
Obra estreada em Moscow, em 1954, com características da concepção soviética <strong>de</strong> espetáculo, com<br />
coreografia <strong>de</strong> Grigorovitch.<br />
81<br />
CAMINA<strong>DA</strong>. Op Cit., p.274<br />
82<br />
ELLMERICH, Luis. História da <strong>Dança</strong>. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1962.<br />
83 ELLMERICH. Op Cit., p. 128.
estão em cena costurando uma manta <strong>de</strong> forma ritmada, coreografada. Elas realizam um<br />
movimento <strong>de</strong> costura exagerado <strong>de</strong> acordo com os acor<strong>de</strong>s da música. A madrasta <strong>de</strong><br />
Cin<strong>de</strong>rela também está em cena, trajando um vestido que possui uma saia gran<strong>de</strong> e<br />
volumosa, com armações que lhe dão um ar ainda maior <strong>de</strong> soberania, ela está sentada<br />
em uma das confortáveis poltronas do cenário observando o trabalho-brinca<strong>de</strong>ira 84 das<br />
filhas e paparicando-as.<br />
O pai <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela encontra-se <strong>de</strong> pé ao lado da esposa, e reage <strong>de</strong> maneira<br />
apática a toda a situação. Esse comportamento indiferente do pai apresentado, em cena,<br />
não é claro na obra <strong>de</strong> Perrault, que aliás segue uma <strong>de</strong>nsa patriarcalização. Essa<br />
característica específica do pai está mais ligada aos contos orais narrado entre mulheres<br />
mulçumanas e registrada pela antropóloga Margaret A. Mills. 85 no curso <strong>de</strong><br />
aproximadamente quatro milênios, <strong>de</strong> 7000 a.C. a 3000 a.C. on<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> seguia<br />
uma linhagem matriarcal.<br />
É interessante ressaltar que o rosto da madrasta é alterado por próteses em seu<br />
nariz e verrugas na região da boca que lhe conferem um ar grotesco, espantoso, <strong>de</strong><br />
acordo com a sua personalida<strong>de</strong> má. Essa associação do feio ao mal é muito comum no<br />
universo encantado dos contos <strong>de</strong> fadas.<br />
Cin<strong>de</strong>rela permanece próxima à lareira, fazendo jus ao significado <strong>de</strong> seu nome<br />
<strong>de</strong> viver entre as cinzas, realizando o seu trabalho serviçal 86 . A madrasta levanta <strong>de</strong> sua<br />
confortável poltrona, vai até o encontro <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela com o único intuito <strong>de</strong> insultá-la e<br />
retorna ao lugar <strong>de</strong> origem. O exagero <strong>de</strong> pantomimas <strong>de</strong>ixa nítida a raiva que a<br />
madrasta sente da enteada.<br />
Ballet Bolshoi<br />
84<br />
Assim <strong>de</strong>nominado por convenção da pesquisadora, pois, as filhas, trabalham, mas ao mesmo tempo,<br />
brincam e fazem provocações entre si.<br />
85<br />
CANTON. Op Cit., p.124.<br />
86<br />
Nessa adaptação Cin<strong>de</strong>rela aparece a maior parte do tempo próximo a lareira indo <strong>de</strong> acordo com o<br />
significado elucidado por Bruno Bettelheim “ter que viver entre as cinzas” em seu livro a Psicanálise dos<br />
contos <strong>de</strong> fadas. Op Cit, p. 277.
Enquanto isso as irmãs continuam a costura e uma <strong>de</strong>las espeta a outra com a<br />
agulha, as duas iniciam uma briga, figurada por um allegro 87 e pantomimas. Elas<br />
dançam agarradas ao manto que estavam costurando. A mãe resolve tomar uma<br />
providência para acabar com aquela algazarra, se levanta e corta o manto que causava<br />
discórdia entre as meninas. As duas caem no chão e ficam pondo a culpa uma na outra<br />
pela fúria da mãe. Aqui se percebe que as filhas quando erram não são punidas<br />
violentamente, como seria o caso se o erro fosse proveniente <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela.<br />
Ballet Bolshoi<br />
Assim, a madrasta vai até a lareira e or<strong>de</strong>na que Cin<strong>de</strong>rela arrume a bagunça<br />
feita pelas irmãs, que a ficam provocando com seus lenços nas mãos. Finalizada a tarefa,<br />
Cin<strong>de</strong>rela volta para a lareira on<strong>de</strong> costura e borda, <strong>de</strong>monstrando cansaço através da<br />
sua fisionomia facial, porém sempre portando um sorriso ingênuo e doce nos lábios. A<br />
mãe afaga as duas filhas e, unidas, vão até Cin<strong>de</strong>rela, a quem ataca-na com beliscões<br />
nos ombros e tapas na cabeça, até saírem <strong>de</strong> cena.<br />
CENA II:<br />
Cin<strong>de</strong>rela está <strong>de</strong>solada com tanta humilhação, sentada na lareira, passa a mão<br />
no ombro e se auto-acalanta, limpa as lágrimas e se distrai juntando os novelos <strong>de</strong> lã que<br />
estão no chão. Levanta do seu banquinho e com a cesta <strong>de</strong> novelo começa a dançar.<br />
Paradoxalmente, Cin<strong>de</strong>rela dança uma variação 88 feliz, estruturada com pequenos<br />
saltitos e pirouettes 89 , pois apesar <strong>de</strong> ser rebaixada a heroína <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fadas tem<br />
que <strong>de</strong>monstrar superação e a dança leve, saltitante, <strong>de</strong>ntro do ballet clássico significa<br />
um momento áureo para a bailarina.<br />
87<br />
Origem italiana e significa dizer que o grau <strong>de</strong> andamento é rápido compostos por pequenos saltos e<br />
baterias.<br />
88<br />
Ver nota 73.<br />
89<br />
Movimento giratório do corpo sobre a ponta ou meia ponta.
Envolvida por um manto, Cin<strong>de</strong>rela pára diante do espelho e se admira, volta a<br />
dançar com virtuosismo, repetindo sua variação anterior, mas logo recua e pára <strong>de</strong><br />
dançar quando se <strong>de</strong>para com um quadro que contém o retrato <strong>de</strong> sua madrasta fixado<br />
na pare<strong>de</strong>. Cin<strong>de</strong>rela se aproxima e cobre o quadro com uma das partes da cortina,<br />
senta-se no sofá embaixo do quadro e se emociona com a foto <strong>de</strong> sua mãe guardada em<br />
um colar que carrega no pescoço. Assusta-se com algum barulho e volta rapidamente ao<br />
trabalho, mas era apenas o seu pai que, num gesto raro, vinha ao seu encontro consola-la.<br />
A heroína aqui nitidamente sente a falta <strong>de</strong> sua mãe, e lamenta a sua sorte, pois<br />
além <strong>de</strong> perdê-la o seu pai a tem substituida por uma mulher que vinha se revelando<br />
uma verda<strong>de</strong>ira bruxa.<br />
No momento em que o seu pai aparece uma das irmãs avista a cena e percebe o<br />
retrato coberto na pare<strong>de</strong>. Sai rapidamente para chamar a mãe, que separa e fica<br />
enfurecida com a ousada atitu<strong>de</strong> da menina. Com gestos bem grotescos e exagerados<br />
preten<strong>de</strong> aterrorizar a pobre moça e, num acesso <strong>de</strong> loucura fica muito exaltada caindo<br />
estafada na poltrona da sala, com as filhas a abandoná-la na tentativa <strong>de</strong> reanimá-la.<br />
CENA III:<br />
Mãe e filhas estão <strong>de</strong>itadas nas ca<strong>de</strong>iras, cansadas com toda a recente confusão.<br />
A luz do palco está bem baixa dando um ar <strong>de</strong>nso. Cin<strong>de</strong>rela está na lareira dando<br />
continuida<strong>de</strong> aos seus afazeres. Aproxima-se uma mendiga, que futuramente tornar-seá<br />
a fada-madrinha <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, e pe<strong>de</strong> uma esmola, que é negada pelas vilãs, além <strong>de</strong><br />
ser expulsa do recinto com ironia e gestos ofensivos das irmãs.<br />
Dentro do contexto <strong>de</strong>sse conto <strong>de</strong> fadas, seria impossível um personagem rico,<br />
<strong>de</strong> má índole, ajudar um pobre mendigo, principalmente nessa representação do ballet<br />
clássico on<strong>de</strong> mãe e filhas são radicalmente as vilãs.<br />
A mendiga gesticula um sinal <strong>de</strong> repulsa com as mãos na direção das três e sai<br />
cabisbaixa. Quando a bondosa Cin<strong>de</strong>rela lhe oferece o seu pão como esmola, a mendiga<br />
agra<strong>de</strong>ce e retribui com um olhar <strong>de</strong> benção. É o primeiro momento <strong>de</strong> magia, o início,<br />
ainda remoto, da transformação triunfal que a heroína do conto irá sofrer.<br />
Essa fada-madrinha aparece aqui como uma imagem materna <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela que<br />
vê a falecida mãe personificada na imagem da fada, para acompanhar os passos da filha.<br />
Essa relação po<strong>de</strong> ser feita <strong>de</strong> acordo com a sua aparição na próxima cena.
CENA IV:<br />
A cena começa com a euforia das costureiras chegando com os vestidos e dos<br />
cabeleireiros com as perucas que a madrasta e suas filhas usarão no baile oferecido pelo<br />
príncipe em seu palácio real 90 , há uma agitação em cena, e todos dançam na expectativa<br />
para o gran<strong>de</strong> momento.<br />
Mesmo com toda a humilhação sofrida Cin<strong>de</strong>rela não se abate e, percebendo a<br />
madrasta com dificulda<strong>de</strong>s para se vestir, vai ao seu encontro com o intuito <strong>de</strong> ajudá-la,<br />
mas é mais uma vez <strong>de</strong>sprezada.<br />
O espelho como símbolo <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> é disputado pelas irmãs e Cin<strong>de</strong>rela sentese<br />
triste quando repara em seu vestido simples.<br />
Eis o ápice <strong>de</strong> euforia, um mestre <strong>de</strong> dança, contratado pela madrasta para<br />
ensinar suas filhas a dançar, entra exibindo uma variação 91 <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s saltos e giros<br />
para impressionar os presentes. Ele se apresenta e or<strong>de</strong>na que os violinos, que também<br />
estão compondo a cena nesse momento, comecem a tocar. Ao som dos violinos o<br />
mestre tenta ensinar às irmãs mimadas e indisciplinadas a dançar. Não obtém muito<br />
sucesso, pois elas estão mais interessadas em fazer brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> mal-gosto com<br />
Cin<strong>de</strong>rela. Mesmo assim os três dançam um pas-<strong>de</strong>-trois 92 que é o momento mais<br />
animado na preparação para o baile.<br />
A sala está repleta <strong>de</strong> costureiras, cabeleireiros, músicos, madrasta, irmãs e<br />
ajudantes, todos muito alegres com o evento que está prestes a acontecer, só quem não<br />
está feliz no recinto é Cin<strong>de</strong>rela, que continua na lareira arrumando novelos <strong>de</strong> lã, e até<br />
mesmo quando se levanta para ajudar as irmãs nos <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> cabelo e vestido é mais<br />
uma vez humilhada. Cin<strong>de</strong>rela retorna ao seu lugar enquanto todos saem felizes rumo ao<br />
baile.<br />
O momento é aparentemente <strong>de</strong> sossego para Cin<strong>de</strong>rela, se não fosse uma das<br />
suas irmãs voltar à sala só para mais uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mal-gosto. Entra<br />
sorrateiramente, seduz Cin<strong>de</strong>rela com um manto, dando uma impressão <strong>de</strong><br />
reconciliação e provavelmente a esperança <strong>de</strong> que irá ao baile mas sai correndo sozinha,<br />
<strong>de</strong>ixando a pobre menina ainda mais triste.<br />
90<br />
Não há registro <strong>de</strong> que é um Baile para escolher uma noiva como no conto original <strong>de</strong> Charles Perrault.<br />
91<br />
Enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> passos diferentes sobre um tema musical. Fragmento <strong>de</strong> um bailado, geralmente<br />
executado por solistas.<br />
92<br />
Passo para três solistas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um bailado.
CENA V:<br />
Cin<strong>de</strong>rela está sozinha em casa, observa atentamente tudo que a cerca, e num<br />
intuito repentino brinca com os objetos da sala. Senta no sofá e se envolve com um<br />
manto esquecido pelas irmãs. <strong>Dança</strong> uma variação 93 leve e graciosa, com uma expressão<br />
feliz, talvez por ter um pouco <strong>de</strong> paz das chateações provocadas por suas irmãs e<br />
madrasta.<br />
Ao parar em frente ao espelho, vê uma imagem encantada, é a sua fadamadrinha<br />
que aparece para confortá-la e proporcionar uma agradável surpresa. A fadamadrinha<br />
atravessa o plano do espelho e vai até a lareira, on<strong>de</strong> transforma uma chama<br />
<strong>de</strong> fogo em um belo sapato <strong>de</strong> cristal. 94<br />
Ballet Bolshoi<br />
A aparição da fada-madrinha significa promover o afastamento temporário das<br />
cinzas e criar uma esperança luminosa: por favorecer a ida ao baile.<br />
A partir da aparição da fada-madrinha, o corpo <strong>de</strong> baile 95 , que aparece em<br />
diversas ocasiões, será o responsável pela transformação da menina sofrida em uma<br />
gran<strong>de</strong> princesa. A relação é a seguinte: cada dança do corpo <strong>de</strong> baile é igual a um item<br />
do figurino que Cin<strong>de</strong>rela usará no baile. Como veremos a seguir. 96<br />
O cenário em que todo esse movimento acontece, continua sendo a sala do<br />
casarão, porém a partir da entrada da fada as pare<strong>de</strong>s se tornam salpicadas por efeitos<br />
luminosos que enfatizam a atmosfera mágica.<br />
Começa com o corpo <strong>de</strong> baile dançando uma alegre coreografia 97 . Ao término da<br />
dança, o simples vestido <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela está transformado num luxuoso vestido <strong>de</strong> festa,<br />
93 Ver nota 74.<br />
94 É interessante perceber que o local on<strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela mais foi atormentada pelas vilãs da história é o<br />
berço para a sua felicida<strong>de</strong>, pois por causa do sapato <strong>de</strong> cristal é que o príncipe consegue tê-la <strong>de</strong> volta em<br />
seus braços.<br />
95 Grupo que emoldura as cenas em torno dos bailarinos principais com seções <strong>de</strong> dança pura.<br />
96 Observar que não há a aparição <strong>de</strong> ratos, lagartos e abóboras, que seriam transformados em vestido,<br />
carruagem, cocheiros, etc. como ocorre na versão do Conto <strong>de</strong> Charles Perrault.<br />
97 Arte <strong>de</strong> compor passos e figuras <strong>de</strong> dança, no corpo <strong>de</strong> baile.
que ela agra<strong>de</strong>ce com um belo sorriso. Um outro grupo, agora com mantos nas mãos,<br />
dançam um adagio 98 com movimentos bem pausados e entrega para Cin<strong>de</strong>rela um<br />
buquê <strong>de</strong> flores. A fada-madrinha envia uma simples folha como um sinal mágico que<br />
faz com que o corpo <strong>de</strong> baile, dance uma variação muito rápida e agressiva, dando<br />
impressão <strong>de</strong> força, a coreografia culmina com a entrega do manto dourado para<br />
Cin<strong>de</strong>rela, que será usado na sua triunfal entrada no baile real. Numa dança mais leve e<br />
graciosa entra em cena, outro grupo, que entrega para Cin<strong>de</strong>rela a coroa que <strong>de</strong>verá ser<br />
usada no baile.<br />
Ballet Bolshoi<br />
Nessa versão, a aparição <strong>de</strong>sses grupos <strong>de</strong> bailarinos (corpo <strong>de</strong> baile) representa<br />
os elementos mágicos utilizados nas diferentes versões da narrativa literária.<br />
Depois da transformação <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, <strong>de</strong> Borralheira a Princesa, os seres<br />
encantados conduzem a menina para que a fada-madrinha explique a condição para ir ao<br />
baile: ela não po<strong>de</strong>rá ficar até o fim do baile, terá <strong>de</strong> voltar à meia noite, sob pena <strong>de</strong><br />
per<strong>de</strong>r o encantamento antes da hora e voltar a ser Borralheira.<br />
Para representar essa condição, doze duen<strong>de</strong>s, assistentes da fada-madrinha são<br />
os <strong>de</strong>signados como guardadores do relógio que indicará a hora <strong>de</strong> voltar para casa. Eles<br />
representam as badaladas que Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong>verá ouvir para que seu encanto não se acabe<br />
na frente <strong>de</strong> todos os convidados do baile.<br />
Ballet Bolshoi<br />
98 Do italiano significa um grupo <strong>de</strong> exercícios executados com lentidão . É o momento culminante, on<strong>de</strong><br />
a bailarina, geralmente, ajudada pelo companheiro, <strong>de</strong>monstra sua graça e virtuosida<strong>de</strong>.
Com roupa e acessórios prontos e a condição firmemente estabelecida, a fadamadrinha<br />
abençoa sua pupila, com um ar maternal e se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong> com graça e simpatia,<br />
entrando <strong>de</strong>ntro do relógio.<br />
CENA VI:<br />
Os diferentes grupos <strong>de</strong> corpos <strong>de</strong> baile agora estão todos unidos formando um<br />
só, compondo um bailado <strong>de</strong> seres encantados. <strong>Dança</strong>m juntamente com Cin<strong>de</strong>rela em<br />
perfeita harmonia. É uma valsa nobre, com elementos típicos do glamour do ballet<br />
clássico, composta por arabesques 99 , <strong>de</strong>veloppés 100 , e pás <strong>de</strong> valse 101 .<br />
Esses seres encantados são os condutores que levam Cin<strong>de</strong>rela até o baile. 102<br />
CENA VII:<br />
O cenário on<strong>de</strong> acontece o baile é bem diferente do anterior. É composto por<br />
lustres e <strong>de</strong>coração dourada, circulando todo o salão, um espelho no lado esquerdo do<br />
palco, e um trono bem ao centro que dá <strong>de</strong> frente para a escadaria externa. Este trono é<br />
protegido por dois guardiões, além <strong>de</strong> dois serviçais menores e negros, e está vazio no<br />
início do baile.<br />
Cin<strong>de</strong>rela sobe triunfalmente as escadarias do palácio. Está <strong>de</strong>slumbrante com<br />
seu novo figurino trazido pelos seres encantados, o manto dourado é carregado pelos<br />
seres, formando uma espécie <strong>de</strong> comitiva.<br />
Dentro do palácio o baile já está acontecendo, suas irmãs e madrasta já estão no<br />
baile, olhando-se no espelho. Mais uma vez a presença o espelho aparece como símbolo<br />
<strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>. Espelho que também é o portal mágico responsável pela vinda <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela<br />
ao local on<strong>de</strong> disputará e ganhará <strong>de</strong> suas irmãs o amor do príncipe. As três circulam<br />
pelo salão com um ar esnobe, com o pai sempre andando atrás das três, sem forças para<br />
libertar-se das or<strong>de</strong>ns da esposa.<br />
Os convidados apresentam uma dança <strong>de</strong> corte, as mulheres usam um tutu 103<br />
romântico e os homens terno, ambos <strong>de</strong> branco e preto, em seguida dança-se pas <strong>de</strong><br />
99<br />
Do francês significa que a posição do corpo <strong>de</strong>scansa sobre uma perna , mantendo a outra estendida<br />
para trás.<br />
100<br />
Do francês, significa o movimento <strong>de</strong> uma perna <strong>de</strong>senvolvendo-se em diversas elevações e direções.<br />
101<br />
Do francês significa passo <strong>de</strong> valsa.<br />
102<br />
É interessante perceber que nessa versão criada para o ballet clássico não há a figura da famosa<br />
carruagem do conto original <strong>de</strong> Charles Perrault.<br />
103<br />
Nome dado ao figurino característico da bailarina Romântico por ser feito <strong>de</strong> material leve e<br />
comprimento na altura dos joelhos.
<strong>de</strong>ux 104 típicos do ballet clássico. As irmãs exibem seu talento em uma variação precisa<br />
e <strong>de</strong> nível técnico elevado. Enquanto uma dança a outra sente inveja e travam uma<br />
verda<strong>de</strong>ira batalha para chamar atenção. A mãe as idolatra e as mostra para outros<br />
convidados do baile.<br />
Ballet Bolshoi<br />
CENA VIII:<br />
Os dois guardiões do trono anunciam a chegada do príncipe e dançam uma<br />
variação indicando que ele chegará ao baile para ocupar o seu lugar. Como o trono está<br />
liberado, as irmãs correm e disputam quem irá sentar ali, a mãe envergonhada as tira <strong>de</strong><br />
lá, or<strong>de</strong>nando que as duas se comportem.<br />
Membros da corte preparam um corredor para a entrada do príncipe, este entra<br />
triunfalmente com uma variação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s saltos e giros, que culmina com uma pose<br />
ao trono. O príncipe tem ar <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>.<br />
Os seres encantados, que compõem o séqüito <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, entram no palácio<br />
preparando a cena para a entrada triunfal <strong>de</strong> moça. Ela entra e vai direto ao encontro do<br />
príncipe,ao se curvar em cumprimento, o primeiro olhar entre os dois já <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o<br />
nascimento <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> amor.<br />
Duas integrantes do grupo <strong>de</strong> seres encantados tiram o manto dourado preso às<br />
costas <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela e ela <strong>de</strong>slumbra a todos com seu lindo vestido.<br />
Cin<strong>de</strong>rela dança para o príncipe uma variação graciosa e cheia <strong>de</strong> magia, e ele a<br />
observa encantado com tanta beleza. Em seguida os dois iniciam um pas <strong>de</strong>u <strong>de</strong>ux,<br />
acompanhado pelos membros da corte juntamente e o séqüito <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela.<br />
Esse encantamento <strong>de</strong>monstrado logo <strong>de</strong> início, é mais uma batalha vencida por<br />
Cin<strong>de</strong>rela que <strong>de</strong>sperta atenção do homem mais cobiçado da noite, sem precisar lutar,<br />
agredir, física ou verbalmente. Ela triunfa apenas por sua bonda<strong>de</strong> e beleza. Dando mais<br />
um exemplo <strong>de</strong> civilização, tão <strong>de</strong>sprezado pelas suas irmãs.<br />
104 Do francês significa dança para dois solistas <strong>de</strong>ntro do bailado.
CENA IX:<br />
Cin<strong>de</strong>rela está à vonta<strong>de</strong> no baile, e começa a brincar com o príncipe. Ela some,<br />
se escon<strong>de</strong> pelo palácio e enquanto os convidados, junto com suas irmãs dançam na<br />
tentativa <strong>de</strong> chamar atenção, o príncipe a procura preocupado e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> procura-la pelo<br />
salão.<br />
Cin<strong>de</strong>rela aparece escondida atrás dos guardas do palácio, finalmente é<br />
<strong>de</strong>scoberta pelo príncipe, e encanta a todos dançando sem parar. O príncipe alia-se à<br />
amada e também exibe seus atributos, numa variação 105 <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s saltos e giros.<br />
Três empregadas negras trajando roupa alaranjada, dançam um pas <strong>de</strong>s trois 106<br />
servem uma bebida para Cin<strong>de</strong>rela, que tem seu primeiro copo tomado pelas irmãs e o<br />
outro, servido em seguida apossado pela madrasta. As três não admitem que Cin<strong>de</strong>rela<br />
esteja chamando atenção <strong>de</strong> todos no baile.<br />
CENA X:<br />
Um romântico adágio 107 entre Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe é realizado nesse momento,<br />
um grand pas <strong>de</strong>u <strong>de</strong>ux 108 , dançando juntamente com o corpo <strong>de</strong> baile formado pelos<br />
seres encantados. O grand pas <strong>de</strong>u <strong>de</strong>ux termina com uma coda 109 que envolve todos os<br />
personagens em difíceis variações.<br />
Ballet Bolshoi<br />
Ao finalizar a coda, Cin<strong>de</strong>rela se lembra da orientação <strong>de</strong> sua fada-madrinha e<br />
os doze duen<strong>de</strong>s aparecem indicando as 12 badaladas. Cin<strong>de</strong>rela abandona o palácio<br />
<strong>de</strong>sesperada, sai correndo pela escadaria real. O príncipe entra em <strong>de</strong>sespero e põe toda<br />
a corte a procurá-la, mas Cin<strong>de</strong>rela já <strong>de</strong>sfeito encanto, se escon<strong>de</strong> por trás das escadas<br />
e, percebendo todo o alvoroço, foge em direção à sua casa.<br />
105<br />
Ver nota 74.<br />
106<br />
Do francês significa dança para três solistas <strong>de</strong>ntro do bailado.<br />
107<br />
Ver nota 94.<br />
108<br />
Passo para dois solistas acompanhado por corpo <strong>de</strong> baile.<br />
109<br />
Momento final do grand pás <strong>de</strong>u <strong>de</strong>ux on<strong>de</strong> os solistas executam uma sequência <strong>de</strong> 32 tempos girando.
Ao <strong>de</strong>scer a escadaria algo perdido em um dos <strong>de</strong>graus chama atenção do<br />
príncipe, que se abaixa diante do objeto e percebe que é o lindo sapato <strong>de</strong> cristal perdido<br />
por sua amada. Ele recolhe e o guarda com carinho, disposto a encontrar a dona daquele<br />
sapato, que o fez suspirar <strong>de</strong> amor.<br />
CENA XI:<br />
PRIMEIRO QUADRO:<br />
Recolhido em seu aposento, o príncipe contempla o sapato acalentado-o em suas<br />
mãos e num ímpeto <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> que terá seu gran<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> volta. Deci<strong>de</strong> colocar os<br />
membros da corte para percorrer o mundo atrás da amada. O andamento da música<br />
começa a tomar força, intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iluminação abaixa, estruturando uma atmosfera<br />
pesada.<br />
Ballet Bolshoi<br />
Uma variação composta basicamente por manèges 110 saltados, indica o<br />
<strong>de</strong>sespero que ele está passando sem saber notícias do seu gran<strong>de</strong> amor. O movimento<br />
circular sem fim, vai tornando essa procura infrutífera O príncipe dança essa variações<br />
com o sapato <strong>de</strong> cristal na mão.<br />
O cenário, as pare<strong>de</strong>s estão salpicadas <strong>de</strong> feixes luminosos, enfatizando o<br />
momento encantado e a estratégia cênica da fumaça espalhada pelo palco aumenta a<br />
atmosfera <strong>de</strong> tensão.<br />
SEGUNDO QUADRO:<br />
O primeiro lugar que ele visita é uma taberna, on<strong>de</strong> oferece o sapato a uma linda<br />
moça espanhola, po<strong>de</strong>-se perceber a sua origem, <strong>de</strong>vido ao figurino, e violões presentes<br />
no recinto, característicos do povo espanhol. Ela tenta experimentar, mas o sapato não<br />
serve em seu pé. O príncipe retorna à sua seqüência <strong>de</strong> manèges, com saltos e giros cada<br />
vez mais rápidos e uma música que estrutura um <strong>de</strong>sespero maior.<br />
TRECEIRO QUADRO:<br />
O príncipe encontra uma moça árabe, a quem oferece o sapato, e também não<br />
serve.<br />
110 Do francês significa percorrer o palco em círculo, girando s obre si, na ponta, meia ponta ou saltando.
QUARTO QUADRO:<br />
Na busca o príncipe chega a uma al<strong>de</strong>ia indígena e como já era <strong>de</strong> se esperar o<br />
sapatinho é muito pequeno para a índia, que convencida do seu fracasso faz uma cara<br />
engraçada para o público, emprestando um momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontração à cena.<br />
CENA XII:<br />
Cin<strong>de</strong>rela está <strong>de</strong>itada em um sofá, com a cabeça numa vassoura, numa espécie<br />
<strong>de</strong> porão com as pare<strong>de</strong>s sem pintura, nem cortinas. Apresenta uma máquina <strong>de</strong> tear no<br />
canto esquerdo e cestos espalhados na cena.<br />
Cin<strong>de</strong>rela está encantada sonhando com a noite anterior, levanta-se e começa a<br />
dançar com a vassoura <strong>de</strong> forma alegre. A menina relembra cada momento <strong>de</strong> toda a<br />
magia que viveu, mesmo que só por uma noite. Durante a dança, com uma expressão<br />
muito doce percebe que um dos seus sapatos <strong>de</strong> cristal está perdido em cima da poltrona<br />
e fica muito feliz por ter ainda essa recordação <strong>de</strong> uma noite tão inesquecível, ajoelha-se<br />
e passa o sapatinho com carinho no rosto.<br />
Quando percebe que as irmãs acordam, corre para a máquina <strong>de</strong> tear, simulando<br />
um trabalho. As irmãs inva<strong>de</strong>m o recinto, trajando camisolas brancas, e com a mesma<br />
disposição para humilhação que sempre tiveram. Provocam Cin<strong>de</strong>rela incessantemente,<br />
dançando uma variação agitada, com giros e a saltos. Cin<strong>de</strong>rela assusta-se e escon<strong>de</strong> o<br />
sapato em sua roupa. As irmãs dançam provocando Cin<strong>de</strong>rela, e oferecem as<br />
lembranças que trouxeram do baile, os copos com bebida que foram tomados da menina,<br />
só para ofendê-la. As duas como <strong>de</strong> costume iniciam uma briga, disputando espaço na<br />
poltrona <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela. A sua mãe entra em cena esbaforida, querendo contar alguma<br />
novida<strong>de</strong>, o pai entra atrás da mãe apático. As três ofegantes olham pela janela e vêem o<br />
príncipe realizando sua incessante busca pela dona do sapato. Exaltam-se e em gestos<br />
convidativos chamam o rapaz para sua casa. Rapidamente a madrasta or<strong>de</strong>na que suas<br />
filhas troquem <strong>de</strong> roupa e fiquem belas para receber o príncipe.<br />
Um enviado real, junto com dois servos, entram na sala com o sapato na mão,<br />
apoiado em uma almofada, e explica o que irá acontecer. A madrasta os recebe com<br />
muita simpatia. Logo entra o príncipe que exausto <strong>de</strong> sua longa jornada <strong>de</strong>saba em cima<br />
da poltrona e adormece. Cin<strong>de</strong>rela assiste tudo ao lado <strong>de</strong> seu pai junto da máquina <strong>de</strong><br />
tear.<br />
As irmãs entram na sala, todas produzidas para receber o nobre. O enviado tenta<br />
acordá-lo, mas ele <strong>de</strong>saba novamente, ao ficar cara a cara com a feiúra da madrasta.
A mãe reune as filhas, e há um momento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> expectativa para saber em<br />
quem irá servir o sapato. A primeira calça, insiste, mas ele não serve. A segunda calça,<br />
também insiste e o sapato está longe <strong>de</strong> servir. Para calçar os sapatos as duas fazem<br />
pantomimas exageradas, indicando o esforço que estão sofrendo para que o sapato lhes<br />
sirva. Cin<strong>de</strong>rela escon<strong>de</strong>-se atrás do pai. Diante do fracasso reinicia uma briga entre as<br />
três, pois <strong>de</strong>sejavam muito que tal sapato coubesse, afinal <strong>de</strong> contas casar com o<br />
príncipe significava prestígio e soberania <strong>de</strong>ntro do reino.<br />
O enviado chama mais uma vez a atenção do príncipe para tentar acabar com a<br />
confusão causada pelas três, agora ele reage e lhes toma o sapato num movimento<br />
súbito, é quando olha para o lado e vê a linda criada da casa escondida atrás do pai,<br />
junto máquina <strong>de</strong> tear.<br />
O príncipe percebe só no olhar que aquela é a sua amada, e ao se aproximar <strong>de</strong>la<br />
o outro sapato, que estava guardado na roupa <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, cai no chão. Ele compara e<br />
tem em suas mão a prova <strong>de</strong>finitiva que aquela simples criada era a mulher que lhe<br />
encantara no baile real. É um momento paradoxal <strong>de</strong> espanto mas também <strong>de</strong> muita<br />
felicida<strong>de</strong>.<br />
As irmãs e madrasta estão <strong>de</strong>sconsoladas, choram e esperneiam lamentando não<br />
terem sido as escolhidas e, para piorar a situação, a partir <strong>de</strong> então elas têm que se<br />
curvar para Cin<strong>de</strong>rela, que é a nova princesa do reino.<br />
Cin<strong>de</strong>rela feliz da vida dança uma variação lenta, composta basicamente por<br />
arabesques, em homenagem ao gran<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> sua vida, que a encontrou para viverem<br />
juntos uma gran<strong>de</strong> história. Esse é o <strong>de</strong>sfecho típico <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fadas, o triunfo do<br />
bem, sobre mal, o “felizes para sempre”.<br />
CENA XIII:<br />
A cena ambientada com efeitos especiais luminosos, e fumaça que compõem o<br />
encantado é o cenário para a aparição da fada-madrinha, que surge para acompanhar os<br />
passos da afilhada junto com seus duen<strong>de</strong>s ajudantes. Ela abençoa o casamento e se<br />
<strong>de</strong>spe<strong>de</strong> dos dois. Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe, apaixonados, selam a união terminando o<br />
espetáculo com um pas <strong>de</strong>u <strong>de</strong>ux em adágio, composto basicamente por portées 111 e<br />
<strong>de</strong>slocamentos pelo palco. Demonstrando toda a paixão existente entre os dois<br />
111 Do francês significa quando o bailarino ergue a bailarina, exibindo figures.
4.4 CAPITULO 4: A <strong>CINDERELA</strong> NA <strong>DA</strong>NÇA CONTEMPORÂNEA.<br />
4.4.1 HISTÓRICO<br />
A partir da década <strong>de</strong> 1950 surge um novo nome no cenário da dança francesa,<br />
este é Maurice Béjart, que mesmo militante da técnica do ballet usava-a <strong>de</strong> maneira<br />
original embasada em textos metafísicos, assim Béjart tornou-se o maior mestre da<br />
dança Mo<strong>de</strong>rna na Europa.<br />
“Estabelecido em Bruxelas, on<strong>de</strong> dirigia o seu Ballet du XX e Siècle,<br />
Béjart passou a elaboraruma nova forma <strong>de</strong> conceber a dança. Sua<br />
Symphonie pour um hommr seul (Sinfonia para um homem só)<br />
apresentada em 1955 no Théâtre <strong>de</strong> la Monnaie, elevou a dança a<br />
um nível ritualístico e transformou-a num arte muito popular.” 112<br />
Entretanto Béjart não passou a inovar e suas danças intelectualizadas passaram a<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r cada vez mais da técnica virtuosística do ballet e ele passou a não <strong>de</strong>senvolver<br />
mais esse projeto <strong>de</strong> dança mo<strong>de</strong>rna francesa. Assim no começo da década <strong>de</strong> 60 a única<br />
forma <strong>de</strong> contato dos franceses com danças radicalmente experimentais era através <strong>de</strong><br />
coreógrafos norte-americanos como Merce Cunningham 113 , que promovia workshops<br />
nos estúdios <strong>de</strong> Françoise e Dominique Dupy 114 ,em Paris.<br />
Um movimento <strong>de</strong> repensar social trazido pela revolução <strong>de</strong> 1968 preparou o<br />
terreno para a forte ebulição da futura dança contemporânea, a danse nouvelle, que se<br />
solidificou em 1974, quando a dançarina mo<strong>de</strong>rna norte-americana fora escolhida<br />
coreógrafa principal da Ópera <strong>de</strong> Paris.<br />
Essa danse nouvelle é uma elaboração da dança francesa que cria um novo tipo<br />
<strong>de</strong> narrativa on<strong>de</strong> o conteúdo emocional é a fonte da coreografia, “embora as<br />
encenações sejam cuidadosamente construídas através <strong>de</strong> gestos formalistas.” 115<br />
Segundo Allen Robertson: 116<br />
“Embora os artistas e dançarinos franceses admirem e respeitem o<br />
movimento pós-mo<strong>de</strong>rno norte-americano, este mostrou-se austero e<br />
auto-referencial <strong>de</strong>mais. O amor pela vanguarda não se esten<strong>de</strong> à<br />
arte por amor à arte.” 117<br />
112<br />
CANTON. Op Cit., p. 115.<br />
113<br />
Merce Cunnigham: Bailarino e coreógrafo americano, pioneiro na mo<strong>de</strong>rna dança dos EEUU.<br />
114<br />
Dupy. Bailarino francês, um dos pioneiros da nouvelle danse.<br />
115<br />
CANTON. Op Cit., p 117.<br />
116<br />
ROBERTSON, Allen. Danse nouvelle – a mo<strong>de</strong>rn dance boom has been sweeping away France the<br />
past few years. Ballet News, New York, 1983.<br />
117<br />
ROBERTSON, Allen. Danse nouvelle – a mo<strong>de</strong>rn dance boom has been sweeping away France the<br />
past few years. Ballet News, New York, 1983. Disponível em CANTON. Op Cit., pág 117.
Marguerite Marin nasceu em Toulouse em 1951. Seus pais refugiados políticos,<br />
exilaram-se no sul da França durante a guerra civil espanhola. Contrabalançando os<br />
valores rígidos que adquiriu graças à sua educação ateísta e comunista, Marin teve uma<br />
infância cheia <strong>de</strong> vida em Toulouse, on<strong>de</strong> cantar e dançar faziam parte do seu<br />
cotidiano 118 . Marin iniciou seus estudos no tradicionalismo do ballet clássico e até<br />
chegou a atuar como solista no Balé da Ópera <strong>de</strong> Estrasburgo.<br />
Já insatisfeita com o vocabulário limitado do ballet Marin começou uma busca<br />
por manifestações efetivamente expressivas em cima dos palcos, necessitava <strong>de</strong> uma<br />
aprendizagem que superasse as expectativas da dança. Para isso buscou e escola<br />
Mudra 119 <strong>de</strong> Maurice Béjart em Bruxelas, on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>u técnicas alternativas <strong>de</strong> dança,<br />
além <strong>de</strong> canto, representação, filosofia e artes orientais. Marin se formou e entrou para<br />
o Ballet du XX e Siècle, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> herdou lições <strong>de</strong> profissionalismo, disciplina e uma<br />
significação do social ligado à dança.<br />
Mesmo com toda a aprendizagem Marin ainda discordava do virtuosismo da<br />
dança <strong>de</strong> Béjart e somente após um trabalho com a norte-americana Carolyn Carlson, no<br />
verão <strong>de</strong> 1974, é que passou a atinar para as “intenções emocionais invisíveis que dão<br />
forças a cada gesto.” 120<br />
Além <strong>de</strong> um estilo individual Marin é uma cabeça pensante a respeito das<br />
preocupações estéticas dos recentes coreógrafos da danse nouvelle. Essas preocupações<br />
po<strong>de</strong>m ser resumidas como:<br />
“Uma crença <strong>de</strong> que os indivíduos não po<strong>de</strong>m ser separados <strong>de</strong> seu<br />
contexto físico, narrativo e histórico. Todo material coreográfico é<br />
uma narração e, portanto veicula algum tipo <strong>de</strong> mensagem. Ao<br />
mesmo tempo todos os coreógrafos da danse nouvelle extraíram seus<br />
estilos narrativos distintos <strong>de</strong> uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>ntes<br />
pessoais e tendências internacionais , sobretudo <strong>de</strong> escolas tão<br />
diferentes como a danse académique francesa, a dança abstrata pós<br />
mo<strong>de</strong>rna americana, o Tanztheater alemão e o butô japonês, além do<br />
teatro contemporâneo, especialmente o teatro do absurdo <strong>de</strong> Beckett<br />
e Ionesco.” 121<br />
Assim, mesmo preocupando-se com o significado, suas narrativas nunca são<br />
lineares ou diretas pois o movimento, mesmo quando <strong>de</strong>rivado do ballet, não é o foco<br />
118 Informações sobre a biografia <strong>de</strong> Magui Marin forma retiradas <strong>de</strong> CANTON. Op Cit., p. 118.<br />
119 Segundo Béjart a palavra <strong>de</strong> origem sânscrita significa um pensamento tornado carne, a expresssão<br />
abstrata da alma que revela o po<strong>de</strong>r dos sinais, o tangível que se torna a testemunha viva do inexprimível.<br />
Disponível em BÉJART, Maurice. Béjart by Béjart. Trad. Richard Miller. New York, Congdon & Lattes,<br />
1979.<br />
120 CANTON. Op Cit., p. 119.<br />
121 CANTON. Ibid
principal da história. Os dançarinos interagem com música, texto, cenários, luzes,<br />
figurinos, e inúmeros outros elementos que servem <strong>de</strong> instrumentos para ampliar a<br />
dimensão do campo <strong>de</strong> idéias da coreógrafa, seguindo a tendência da dança européia em<br />
geral. “<strong>Dança</strong> é drama narrativo contado por meio <strong>de</strong> elementos integrados <strong>de</strong>ntro e<br />
fora do meio da dança.” 122<br />
Entretanto as obras <strong>de</strong> Maguy Marin são veiculadas através <strong>de</strong> idéias visuais,<br />
on<strong>de</strong> imagens, movimento e som se interligam e retomam temas pré-estabelecidos. “Ela<br />
possui preocupações formalistas em sua procura <strong>de</strong> como veicular a narrativa.” 123<br />
Com esse arsenal <strong>de</strong> investigações e coragem em 1984 Maguy Marin recebe<br />
como <strong>de</strong>safio recriar a Cin<strong>de</strong>rela para o Lyon Opéra Ballet. O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio era no<br />
entanto remontar uma peça que advinha do repertório clássico - linguagem que Marin<br />
havia abandonado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a saída da Ópera <strong>de</strong> Estrasburgo em 1968 – para uma<br />
companhia <strong>de</strong> ballet, <strong>de</strong>ntro da perspectiva da danse nouvelle da qual agora era a<strong>de</strong>pta.<br />
Como verermos no próximo tópico.<br />
4.3.2 DESCRIÇÃO E ANÁLISE <strong>DA</strong> <strong>CINDERELA</strong> DE MAGUY MARIN<br />
PARA O LYON OPÈRA BALLET. COREOGRAFA<strong>DA</strong> EM 1984.<br />
Maguy Marin traz ao palco uma releitura contemporânea do conto Cin<strong>de</strong>rela, <strong>de</strong><br />
uma forma provocativa e instigante, assegurando não estar interessada na versão no<br />
questionamento do sentido do conto feito por Bruno Bettelheim em a Psicanálise dos<br />
contos <strong>de</strong> fadas 124 , afirmou limita-lo as esferas das crianças preocupando-se em como<br />
conta-las tal história – como executara construção do seu próprio espetáculo mantendo a<br />
consagrada versão <strong>de</strong> Charles Perrault.<br />
“A coreógrafa manteve a narrativa tal como escrita por Perrault,<br />
mas o sentido numa representação teatral não é transmitido apenas<br />
pela narrativa textual. Por intermédio dos elementos visuais, sonoros<br />
e cinéticos, Marin, na verda<strong>de</strong>, subverteu <strong>de</strong> maneira consistente o<br />
sentido da história. Ou, ao menos, subverteu o ponto <strong>de</strong> vista<br />
mitificado, clássico.” 125<br />
A Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin, já que criada para uma companhia <strong>de</strong> ballet segue<br />
ainda um feixe <strong>de</strong> outras produções clássicas. No entanto, a expectativa <strong>de</strong> uma<br />
produção <strong>de</strong>ntro dos parâmetros tradicionais é rompida logo no primeiro impacto. Ela<br />
122 CANTON. Op Cit., p. 121.<br />
123 CANTON. Ibid.<br />
124 BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos <strong>de</strong> Fadas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1980.<br />
125 CANTON. Op Cit, p. 123.
traz ao palco bailarinos transformados, trajando máscaras e enchimentos que remetem<br />
ao rosto e corpo <strong>de</strong> bonecos. Além disso, o palco está coberto por um cenário que é a<br />
representação <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong> bonecas.<br />
“Para impedir que os dançarinos do balé Lyon empregassem<br />
expressões miméticas a que estavam habituados, Marin fez com que<br />
usassem máscaras. As máscaras acabaram sendo expandidas,<br />
virando bonecas inteiras, e dotaram a interpretação <strong>de</strong> todo um<br />
aparato <strong>de</strong> fantasia associado a infância.” 126<br />
Trajando esse figurino um tanto exótico os bailarinos assemelham-se a velhas<br />
bonecas, as cabeças são maiores que o normal, <strong>de</strong>sproporcional ao resto do corpo, o que<br />
resulta numa dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentação, dando-lhes uma aparência <strong>de</strong>sajeitada, que<br />
po<strong>de</strong> ser vista em diversas cenas do espetáculo.<br />
A Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
Todo esse arsenal utilizado por Marin era a fim <strong>de</strong> justificar o seu temor em<br />
ce<strong>de</strong>r às convenções do ballet, principalmente porque iria utilizar a mesma música<br />
romântica <strong>de</strong> Prokofiev. Assim <strong>de</strong>cidiu cortar algumas peças musicais que consi<strong>de</strong>rou<br />
muito dramática e acabou incluindo uma composição original criada por Jean<br />
Schuwartz 127 misturando balbucios <strong>de</strong> nenê, grunhidos eletrônicos e murmúrios.<br />
Assim a Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin faz um intercâmbio entre as noções <strong>de</strong><br />
inovação e tradição tornando in<strong>de</strong>finível a linha que separa a vanguarda e o estilo<br />
clássico e virtuoso do ballet.<br />
A criação <strong>de</strong> movimentos que se assemelham diretamente a bonecos, como<br />
<strong>de</strong>dos bem juntos e um misto <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z e angularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regiões periféricas do corpo,<br />
retoma características próprias do universo infantil, imprimindo à coreografia uma<br />
característica <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> e ingenuida<strong>de</strong>. Ainda é interessante ressaltar que os<br />
bailarinos acentuam essa dificulda<strong>de</strong> em executar <strong>de</strong>terminados passos <strong>de</strong>monstrando<br />
insegurança com uma exímia espontaneida<strong>de</strong>, como no momento em que Cin<strong>de</strong>rela<br />
126<br />
CANTON. Op. Cit., p. 128.<br />
127<br />
CANTON. Op. Cit., p. 128: Jean Schuwartz: compositor contemporâneo que faz experimentos com<br />
música eletrônica e do<strong>de</strong>cafônica.
ecebe os seus sapatinhos encantados, entregue por sua fada-madrinha, calça-os e, no<br />
ato da subida para andar com os novos calçados, cai esparramada no chão.<br />
Ainda <strong>de</strong>ntro do imaginário das crianças, po<strong>de</strong>-se perceber a presença <strong>de</strong> jogos<br />
infantis no momento <strong>de</strong> euforia que antece<strong>de</strong> o baile, on<strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela brinca com fadas e<br />
bichos, rola pelo chão, saltita, pula amarelinha, pula carniça.<br />
Dentro <strong>de</strong>sse contexto dividiu-se o espetáculo em 11 cenas 128 para uma melhor<br />
análise e compreensão:<br />
CENA I:<br />
No momento inicial do espetáculo, Cin<strong>de</strong>rela está pensativa sentada em uma<br />
ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>monstrando cansaço, provavelmente por um dia duro <strong>de</strong> trabalho na casa <strong>de</strong><br />
sua madrasta. Essa sensação é enfatizada por alguns gestos como <strong>de</strong>bruçar-se na<br />
vassoura ou simular uma queda. Nas feições da máscara <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela po<strong>de</strong>-se perceber<br />
um leve ar <strong>de</strong> doçura e ingenuida<strong>de</strong>, seu avental, única peça <strong>de</strong> vestuário significa sua<br />
condição <strong>de</strong> empregada, e um cabelo longo liso e cor <strong>de</strong> rosa, dão ainda maior ênfase à<br />
pureza e simplicida<strong>de</strong>.<br />
A Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
O cenário é simples, sem gran<strong>de</strong>s virtuosismos. Lembra uma casa <strong>de</strong> bonecos,<br />
pois os objetos são pequenos. O fundo do palco é preenchido por vários quadros, uma<br />
espécie <strong>de</strong> história em quadrinhos, em que cada quadro representa alguma história, que<br />
se <strong>de</strong>svendará até o fim do espetáculo.<br />
As duas irmãs entram em cena com suas roupas escuras e com enchimentos que<br />
as <strong>de</strong>ixam gordas e com um aspecto <strong>de</strong>sengonçado. Suas máscaras têm feições<br />
grosseiras, feias, que <strong>de</strong>ixam clara a proposta <strong>de</strong> representação do mal naquelas figuras<br />
grotescas. As duas avistam Cin<strong>de</strong>rela e vão diretamente ao seu encontro com uma<br />
movimentação <strong>de</strong>sengonçada, forte e expressiva. Estão humilhando a irmã, uma rixa<br />
que mistura ódio e inveja, porque a beleza e a doçura <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela chamam mais a<br />
128 Convenção feita pela pesquisadora.
atenção. Aqui se percebe a questão do imaginário infantil, Cin<strong>de</strong>rela, sufocada pelas<br />
ofensas das irmãs tenta escapulir subindo na vassoura, como numa brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> pau<strong>de</strong>-sebo<br />
129 . Cin<strong>de</strong>rela tenta interagir com as irmãs, agradando-as, mas sem sucesso.<br />
O pai entra em cena trajando calça curta e uma blusa cinza <strong>de</strong> mangas compridas.<br />
Chega à casa carregado <strong>de</strong> presentes para todas, Cin<strong>de</strong>rela corre para lhe dar um beijo e<br />
ele lhe entrega uma gran<strong>de</strong> caixa. As irmãs saem para um canto com os presentes e<br />
Cin<strong>de</strong>rela corre para os braços do pai.<br />
Surge a madrasta, o patamar máximo <strong>de</strong> vilania da história acentuado pela<br />
máscara supera a expressão <strong>de</strong> feiúra e zanga das suas filhas, seguindo a tradição dos<br />
contos <strong>de</strong> fadas seria ela a mais feia <strong>de</strong> todas e a pior. Ao perceber o carinho do pai com<br />
a filha trata <strong>de</strong> chamar sua atenção, mas ele a ignora, cruzando os braços e protegendo a<br />
doce Cin<strong>de</strong>rela.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
O intuito <strong>de</strong> maltratar Cin<strong>de</strong>rela é visível pelo uso coreográfico <strong>de</strong> movimentos<br />
angulares e pesados pelas irmãs e madrasta em relação à Cin<strong>de</strong>rela, recorrendo várias<br />
vezes a gestos associados a atrevimento, soberania e humilhação, como exemplo<br />
po<strong>de</strong>mos citar a colocação das mãos nos quadris com o peito estufado – movimento que<br />
toma amplitu<strong>de</strong> maior <strong>de</strong>vido aos enchimentos presentes no figurino das vilãs da<br />
história. As três atacam Cin<strong>de</strong>rela mais <strong>de</strong> uma vez, a movimentação é agressiva e a<br />
raiva fica mais evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>vido às feições <strong>de</strong> suas máscaras.<br />
Quando percebe a situação <strong>de</strong> filha, o pai trata rapidamente <strong>de</strong> protegê-la em<br />
seus braços, enlaçando-a em sentido contrário às irmãs e madrasta. A madrasta que<br />
<strong>de</strong>finitivamente não gosta <strong>de</strong>ssa superproteção começa a dançar com as filhas,<br />
embalando o pai e Cin<strong>de</strong>rela num quinteto que é notoriamente uma guerra dos dois<br />
contra as três, uma simulação da gran<strong>de</strong> dualida<strong>de</strong> da humanida<strong>de</strong> “Bem X Mal”. A<br />
“guerra” acaba quando o pai segura a madrasta no ar, que esperneia <strong>de</strong> raiva<br />
expulsando-a, garantindo a proteção <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela.<br />
129 Brinca<strong>de</strong>ira infantil on<strong>de</strong> os participantes tem que escalar um maestro para ganhar prêmios.
CENA II:<br />
A paz volta a reinar na cena, Cin<strong>de</strong>rela está sozinha e um pouco ofegante com<br />
toda a confusão vivida. Num momento <strong>de</strong> reflexão, olha para o lado e para das caixas<br />
que o seu pai trouxera. A caixa está coberta por uma fumaça que lhe <strong>de</strong>sperta a atenção.<br />
Curiosa, começa a abrir o presente e um ser encantado aparece, Cin<strong>de</strong>rela corre<br />
assustada e se escon<strong>de</strong> atrás da pilastra, mas continua a observar <strong>de</strong> longe o movimento<br />
que está acontecendo. Aproxima-se engatinhando, <strong>de</strong>monstrando <strong>de</strong>fesa e medo, até que<br />
cria coragem e abre a caixa por completo.<br />
A figura que sai da caixa se assemelha a um fantoche, com a cabeça bem gran<strong>de</strong><br />
e arredondada. Seu corpo está aparentemente preso à caixa.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
Cin<strong>de</strong>rela está espantada, porém curiosa e os dois iniciam uma estranha<br />
conversa representada na música <strong>de</strong> Jean Schuwartz, uma espécie <strong>de</strong> balbucios. A<br />
empatia é instantânea, e uma nova amiza<strong>de</strong> entre os dois é selada com um abraço. Eles<br />
começam a brincar e Cin<strong>de</strong>rela abraça e tira seu novo amigo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da caixa.<br />
Cin<strong>de</strong>rela está radiante, e brinca, dando cambalhotas e risadas.<br />
No instante da brinca<strong>de</strong>ira entram em cena três fadas vestidas <strong>de</strong> preto, saias e<br />
cabelos arroxeados entram em cena. São as primeiras personagens do espetáculo que<br />
utilizam sapatilhas <strong>de</strong> pontas – mesmo com uma movimentação bem diferenciada do<br />
tradicional virtuosístico utilizado no balé clássico. Essas fadas entram na história como<br />
ajudantes do fantoche que retiram a caixa <strong>de</strong> cena e conduzem Cin<strong>de</strong>rela a uma espécie<br />
<strong>de</strong> janela, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela vê um <strong>de</strong>senho que mostra suas irmãs e madrasta cortejando um<br />
príncipe que está sentado em um trono, o que sugere um baile real.<br />
CENA III:<br />
Enquanto isso começa a sair <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do corpo do fantoche que está <strong>de</strong>itado no<br />
chão a fada-madrinha, traduzida para o espetáculo na figura <strong>de</strong> um robô. Ao se levantar<br />
uma das fadas-ajudantes lhe entrega a varinha <strong>de</strong> condão, on<strong>de</strong> se convencionou uma<br />
espada <strong>de</strong> luz, pois ajuda na composição do aspecto robótico da fada. O corpo do robô-
fada é percorrido por feixes <strong>de</strong> luz que compõem o figurino, dando uma impressão <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r e inteligência. Com um som que lembra máquinas, o robô-fada dança<br />
movimentos lentos e marcados realizando um adagio 130 , marcado por arabesques 131<br />
estáticos, <strong>de</strong>monstrando o equilíbrio e a força do robô- fada 132 . Cin<strong>de</strong>rela observa tudo<br />
emocionada.<br />
Vale ressaltar que a figura <strong>de</strong> um robô para representar a fada-madrinha, que é o<br />
ser responsável por toda a magia da história, é muito pertinente nos dias atuais, pois as<br />
máquinas têm esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> se sobrepor a vida humana e proporcionar um transporte ao<br />
mundo mágico da vida real, mesmo que seja apenas nos facilitando algum trabalho<br />
árduo, ou realizando tarefas diárias <strong>de</strong> forma mais corriqueira sem que precisemos nos<br />
preocupar.<br />
Cin<strong>de</strong>rela observa tudo atentamente, muito admirada, é o início <strong>de</strong> uma<br />
aproximação entre os dois. O robô-fada <strong>de</strong>monstra um ar <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, porém sem<br />
ofen<strong>de</strong>r Cin<strong>de</strong>rela, dando-lhe instruções com sua espada-varinha 133 , ela se curva diante<br />
<strong>de</strong>le acatando com muita atenção toda a orientação. Com uma or<strong>de</strong>m dada pela espadavarinha<br />
ilumina-se uma vitrine, on<strong>de</strong> estão as fadas-ajudantes do robô-fada, que trazem<br />
até Cin<strong>de</strong>rela um carro <strong>de</strong> brinquedo 134 , o futuro responsável pelo seu transporte até o<br />
baile. Cin<strong>de</strong>rela admira-se e entra no carrinho, sai dirigindo <strong>de</strong> maneira cômica pelo<br />
palco, até que o robô-fada or<strong>de</strong>na que pare. Essa or<strong>de</strong>m serve para mostrar para<br />
Cin<strong>de</strong>rela on<strong>de</strong> está o vestido que ela <strong>de</strong>verá usar para ir ao baile, pois Cin<strong>de</strong>rela<br />
participará do baile graças à magia do robô-fada.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
130 Na dança significa um grupo <strong>de</strong> exercícios executados com lentidão.<br />
131 Posição do corpo quando <strong>de</strong>scansa sobre uma perna, mantendo a outra estendida para trás.<br />
132 Termo convencional utilizado pela pesquisadora para <strong>de</strong>signar a “fada-madrinha” do conto original <strong>de</strong><br />
Charles Perrault..<br />
133 Termo convencional utilizado pela pesquisadora para <strong>de</strong>signar a “varinha <strong>de</strong> condão” do conto original<br />
<strong>de</strong> Charles Perrault..<br />
134 Termo convencional utilizado pela pesquisadora para <strong>de</strong>signar a “carruagem” do conto original <strong>de</strong><br />
Charles Perrault..
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong>scobre a sua nova roupa, assim como a sapatilha vermelha 135 , esta é<br />
uma sapatilha <strong>de</strong> ponta <strong>de</strong> cor vermelha que, <strong>de</strong> certa forma, contrasta com a figura<br />
tradicional do <strong>de</strong>licado sapato transparente <strong>de</strong> cristal utilizado por Charles Perrault na<br />
narrativa original. Ela se senta no chão e as calça. As fadas-ajudantes dançam<br />
alegremente nas pontas, uma coreografia <strong>de</strong>sengonçada remetendo à movimentação <strong>de</strong><br />
bonecos. Mesmo nesta coreografia contemporânea o uso <strong>de</strong> sapatilhas <strong>de</strong> pontas são<br />
uma apologia ao etéreo, já que as fadas-ajudantes são seres do bem, aliadas do robôfada.<br />
Cin<strong>de</strong>rela está quase pronta para o baile, sua saia cor-<strong>de</strong>-rosa é bela e ela está<br />
encantada com sua roupa nova.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
CENA IV:<br />
Com seu novo visual, e gestos <strong>de</strong> encantamento, Cin<strong>de</strong>rela se admira, olha bem<br />
para os pés, mas cai no chão logo em seguida, <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sengonçada, pois nunca tivera<br />
sapatos daquele tipo. As fadas-ajudantes a ensinam como usar, auxiliando-a na hora <strong>de</strong><br />
andar.<br />
As três começam uma coreografia que remete a uma brinca<strong>de</strong>ira junto com<br />
Cin<strong>de</strong>rela, carregam-na no colo e fazem balanços. Aqui fica muito evi<strong>de</strong>nte a proposta<br />
do movimento imitar o <strong>de</strong> um boneco, escolhida pela coreógrafa.<br />
As três fadas-ajudantes saem <strong>de</strong> cena e <strong>de</strong>ixam Cin<strong>de</strong>rela sozinha, que mais uma<br />
vez se esparrama no chão.<br />
CENA V:<br />
Cin<strong>de</strong>rela está <strong>de</strong>itada no chão e o robô-fada se aproxima <strong>de</strong>la com a espadavarinha<br />
na mão em movimentos pausados. Or<strong>de</strong>na que Cin<strong>de</strong>rela se levante, ela dança<br />
mais um pouco com as fadas-ajudantes, mas cai novamente no chão.O robô-fada se<br />
135<br />
Termo utilizado pela pesquisadora para <strong>de</strong>signar o “sapato <strong>de</strong> cristal” do conto original <strong>de</strong> Charles<br />
Perrault.
aproxima novamente realizando movimentos <strong>de</strong> adágio 136 , e envolve Cin<strong>de</strong>rela com a<br />
espada na mão.<br />
Quatro lobos da floresta começam a aparecer, junto com mais três bonecosajudantes<br />
137 , e Cin<strong>de</strong>rela assiste à cena <strong>de</strong>les junto com o robô-fada. Estes personagens<br />
curvam-se diante do robô-fada <strong>de</strong>monstrando servidão, este or<strong>de</strong>na que mostrem para<br />
Cin<strong>de</strong>rela o relógio escondido sob uma gran<strong>de</strong> janela. Cin<strong>de</strong>rela apoiada pelo robô-fada<br />
se aproxima do relógio com receio.<br />
Os lobos da floresta junto com os bonecos <strong>de</strong>monstram medo em relação ao que<br />
irá acontecer. O robô-fada marca a meia-noite no relógio e explica para Cin<strong>de</strong>rela que<br />
<strong>de</strong>verá retornar até esse horário, ela se ajoelha agra<strong>de</strong>cida.<br />
Cin<strong>de</strong>rela se aproxima dos lobos e os agrada com “cafunés”, todos inclusive as<br />
fadas-ajudantes e os bonecos se aproximam <strong>de</strong>la e inicia-se uma dança coletiva, uma<br />
espécie <strong>de</strong> confraternização. Aqui acontece mais uma vez a nítida presença <strong>de</strong> jogos<br />
infantis, Cin<strong>de</strong>rela brinca com todos <strong>de</strong> pular carniça, e amarelinha. Nessa brinca<strong>de</strong>ira<br />
os bonecos a conduzem até o carrinho <strong>de</strong> brinquedo e Cin<strong>de</strong>rela parte para o baile.<br />
CENA VI:<br />
No segundo plano do cenário está organizado o baile, em um dos quadros se<br />
encontram a madrasta e as irmãs <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, organizadas em duas fileiras,<br />
aguardando, com movimentos impacientes, a <strong>de</strong>scida <strong>de</strong> uma escadaria e a aparição do<br />
príncipe junto com outras convidadas do baile. Os pares caminham em direção a mais<br />
dois quadros e do segundo plano do cenário, em um <strong>de</strong>les está o trono real, vazio.<br />
Um baile só com figuras femininas indica que o objetivo único das convidadas é<br />
se mostrarem para o príncipe e conseguirem ascensão social.<br />
O príncipe aparece, trajando roupas mais sofisticadas que os outros personagens,<br />
uma calça comprida, uma blusa abotoada, botas e uma coroa na cabeça. A sua máscara<br />
<strong>de</strong> boneco também tem uma expressão doce.<br />
Quando o príncipe <strong>de</strong>sce a escadaria todas <strong>de</strong>scem atrás <strong>de</strong>le cortejando-o,<br />
beijando-lhe as mãos, furioso, ele sobe novamente as escadas. O cortejo o segue, ele<br />
passas por elas, recua e ocupa seu trono, representado aqui por uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> criança,<br />
como as que se vê em restaurantes.<br />
136 Na dança <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> exercícios executados com lentidão.<br />
137 Personagens que atuam como ajudantes do robô-fada, mas também como ajudantes do príncipe.
CENA VII:<br />
. A porta para o baile é aberta pelos lobos e por ela Cin<strong>de</strong>rela entra <strong>de</strong> forma<br />
tímida. Ao primeiro passo o príncipe vem ao seu encontro, encantado. Os dois se<br />
entreolham, envergonhados, e ele a convida para dançar. Enquanto os dois dançam, os<br />
convidados <strong>de</strong>scem as escadas, como crianças escorregando sentados pelos <strong>de</strong>graus. A<br />
partir <strong>de</strong> agora aparecem figuras masculinas no baile.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
Todos dançam uma dança <strong>de</strong> corte, em duplas, mas <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>sajeitada, na<br />
parte da frente do cenário. Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe, também <strong>de</strong>scem as escadas andando,<br />
mas são surpreendidos pela agressivida<strong>de</strong> dos convidados que tentam separá-los a todo<br />
custo. A madrasta segura o príncipe e um outro convidado Cin<strong>de</strong>rela. As duplas dançam<br />
pelo salão com movimentos que remetem a bonecos.<br />
Novamente Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe ficam juntos, chegam até a dançar um pouco,<br />
mas logo são separados pelos casais que continuam dançando em duplas, e <strong>de</strong> repente se<br />
divi<strong>de</strong>m em dois círculos colocando em um o príncipe e no outro Cin<strong>de</strong>rela.<br />
Em <strong>de</strong>terminado momento conseguem sair dos círculos e Cin<strong>de</strong>rela se curva<br />
diante do príncipe num sinal <strong>de</strong> reverência, mas ele não permite. A madrasta se<br />
aproxima inconformada, chama uma <strong>de</strong> suas filhas para explicar um plano, que espalha<br />
para todos do baile. Uma mesa <strong>de</strong> doces no canto direito é servida e os convidados<br />
fazem gestos <strong>de</strong> fome, passando a mão na barriga.<br />
Verifica-se aqui mais um elemento do imaginário infantil,pois nessa mesa os<br />
doces são bem coloridos, como os servidos em festas <strong>de</strong> crianças. Também os sons<br />
emitidos pelos personagens imitando conversas, lembram balbucios <strong>de</strong> bebês.<br />
Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe estão perto da mesa <strong>de</strong> doces, servindo-se, e os<br />
convidados atacam a mesa passando, literalmente, por cima dos dois, que caem no chão.
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
Os convidados que inva<strong>de</strong>m a mesa são li<strong>de</strong>rados pela madrasta. Os bonecos que<br />
ajudaram a conduzir Cin<strong>de</strong>rela para o baile resgatam o príncipe e Cin<strong>de</strong>rela, e<br />
colocando-os novamente <strong>de</strong> pé, juntos um do outro. Os dois sobem a escadaria<br />
apaixonados, enquanto a madrasta li<strong>de</strong>ra mais uma confusão para separá-los.<br />
Todos os convidados fazem um verda<strong>de</strong>ira bagunça brigando pelos doces da<br />
festa, o que é muito freqüente <strong>de</strong> acontecer em festas infantis.<br />
O príncipe <strong>de</strong>sce as escadarias e or<strong>de</strong>na que pare a confusão, toma-lhes os doces,<br />
e todos saem revoltados com a <strong>de</strong>cisão da realeza. Cin<strong>de</strong>rela também <strong>de</strong>sce as escadas<br />
para ficar junto do seu amado, que lhe oferece o doce tomado dos convidados e dá-lhe<br />
um beijo no rosto. Os convidados sobem a escada <strong>de</strong>ixando os dois a sós.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
CENA VIII:<br />
Inicia-se um romântico pas-<strong>de</strong>u-<strong>de</strong>ux com movimentos angulares, e<br />
<strong>de</strong>monstrando uma certa vergonha entre os dois, que também fazem brinca<strong>de</strong>iras<br />
infantis como bater as mãos e andar nas costas um do outro. A dança termina com o<br />
envio <strong>de</strong> um beijo através da mão.<br />
Os bonecos trazem um bolo para o príncipe, que sopra as velinhas e é entretido<br />
pelos outros convidados, enquanto a madrasta grita com Cin<strong>de</strong>rela e todos morrem <strong>de</strong><br />
rir caídos no chão. Os sons in<strong>de</strong>cifráveis novamente imitam a conversa dos personagens.<br />
Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe não têm sossego, todos voltam a atormentá-los. A<br />
madrasta o agarra pelas orelhas e o joga para uma <strong>de</strong> suas filhas, que, junto com os<br />
bonecos-ajudantes, o carregam para uma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> amarelinha, todos ficam na
torcida e expectativa para que o príncipe chegue até o final da brinca<strong>de</strong>ira e é uma folia<br />
quando isso acontece.<br />
A brinca<strong>de</strong>ira agora é pular corda, o príncipe convida Cin<strong>de</strong>rela para ver mais <strong>de</strong><br />
perto, só que a madrasta a empurra, mas, todos entram na brinca<strong>de</strong>ira, até a própria<br />
Cin<strong>de</strong>rela, que mais uma vez, convidada pelo príncipe, <strong>de</strong>sperta a inveja <strong>de</strong> todos os<br />
outros convidados, que a observam pular, até per<strong>de</strong>r o equilíbrio e cair no chão.<br />
O príncipe a levanta, verifica se está tudo bem. Os dois começam a dançar,<br />
enquanto os convidados estão inconformados com a <strong>de</strong>satenção do príncipe. Em certo<br />
momento, todos sobem as escadas do palácio e dançam, inclusive os bonecos-ajudantes<br />
que junto às fadas-ajudantes, dançam em duplas.<br />
CENA IX:<br />
Soa a meia-noite é marcada no relógio e o robô-fada aparece com sua espadavarinha<br />
no canto do palco, indicando que está na hora <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela se recolher.<br />
Cin<strong>de</strong>rela vai se encolhendo, até escorregar escadaria abaixo, esquecendo a sua<br />
sapatilha vermelha em um dos <strong>de</strong>graus.<br />
O príncipe a procura e quando <strong>de</strong>sce as escadas vê o objeto perdido pela amada,<br />
ele o pega, admira mostra a todos os outros convidados do baile.<br />
CENA X:<br />
O príncipe sai montado num cavalo <strong>de</strong> brinquedo, lembrando aqueles utilizados<br />
em carrossel, galopando em busca daquela que o encantou na noite anterior. Todos os<br />
personagens <strong>de</strong>sfilam puxando brinquedos pelo palco, indicando a comitiva real.<br />
Aparece uma moça usando trajes que remete ao usado por espanholas, um<br />
vestido amarelo, com bolas pretas e muitos babados, a sua máscara tem uma expressão<br />
neutra. Ela aparece cortejada por dois lobos. Um dos bonecos-ajudantes anuncia a<br />
entrada do príncipe que tentará experimentar o sapato nela, ela o oferece uma rosa e<br />
começa a dançar, com movimentos sensuais envolvendo o corpo do príncipe e suas<br />
mãos, embora não use castanholas se movem como se estivesse tocando. Ele se senta e<br />
ela dança para seduzi-lo.<br />
O príncipe or<strong>de</strong>na a entrada da sapatilha vermelha para que a espanhola a<br />
experimente. O sapato não lhe serve em um dos pés, ela ainda insiste para que calce no<br />
outro sem sucesso algum. Ela fica enfurecida, o príncipe tenta cortejá-la mas não há<br />
acordo, e os lobos a carregam <strong>de</strong> volta.
CENA XI:<br />
O príncipe continua a procura, em cima <strong>de</strong> seu cavalo <strong>de</strong> carrossel. E todos os<br />
personagens indicam a comitiva real atravessando o palco portando brinquedos.<br />
Os lobos agora trazem uma moça <strong>de</strong> origem árabe, sentada em um tapete,<br />
escoltada por camelos, um encantador <strong>de</strong> serpente e um coqueiro que é posto no canto<br />
esquerdo. Está trajando calça, top e turbante típico da região, em material transparente.<br />
Sua máscara tem uma expressão neutra.<br />
O príncipe está sentado, escoltado por sua comitiva, observando a dança que a<br />
árabe faz para tentar seduzi-lo. Ela realiza movimentos que remetem à dança do ventre e<br />
move-se com sensualida<strong>de</strong>. Um dos bonecos a segura nos braços e o outro se aproxima<br />
para que ela calce o sapato que, mais uma vez não, serve. Todos ficam <strong>de</strong>solados com a<br />
situação, inclusive o príncipe, que abaixa a cabeça, os ombros e solta um suspiro.<br />
Os lobos recolhem a moça ao seu tapete, que vai embora chorando e seguem seu<br />
<strong>de</strong>stino.<br />
CENA XII:<br />
O príncipe e os bonecos dançam pelo reino, o príncipe está <strong>de</strong>sconsolado, põe as<br />
mãos no rosto e chora, mas um dos bonecos vem ajudá-lo. O outro faz até uma<br />
brinca<strong>de</strong>ira com a máscara e uma peruca parecida com as feições e cabelos <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela,<br />
mas estão todos exaustos com a procura e acabam <strong>de</strong>scansando sobre os cavalos.<br />
CENA XIII:<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
Cin<strong>de</strong>rela está em casa <strong>de</strong>sconsolada, sentada em sua ca<strong>de</strong>ira, numa figura que<br />
remete à primeira cena do espetáculo, com o mesmo avental simples que utilizava, num<br />
cenário idêntico ao <strong>de</strong>scrito no momento inicial. Cin<strong>de</strong>rela observa as próprias mãos,<br />
passa-as nos cabelos e no corpo e solta um suspiro. Pega sua vassoura e começa a<br />
dançar, coloca uma ca<strong>de</strong>ira no centro do palco, com a vassoura <strong>de</strong>itada, simbolizando a
figura do príncipe, e põe a sua ca<strong>de</strong>irinha ao lado, como se estivesse lembrando da noite<br />
anterior. Cin<strong>de</strong>rela se curva para a vassoura e realiza os gestos tímidos que fez quando<br />
entrou no baile e se encontrou com o príncipe. Repete a seqüência <strong>de</strong> gestos várias<br />
vezes enfatizando a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter seu <strong>de</strong>sejo realida<strong>de</strong>.<br />
Ao terminar <strong>de</strong> dançar para a vassoura, cai na real que aquilo era ilusão criada<br />
por ela, e <strong>de</strong>saba a chorar no chão.<br />
A madrasta e as irmãs aparecem cruzando os braços cobrando-lhe uma<br />
satisfação e ela rapidamente organiza toda a bagunça que fez. As três vilãs sentam-se<br />
nas ca<strong>de</strong>iras e curvam-se sobre Cin<strong>de</strong>rela, assustando-a com sua expressão macabra. As<br />
três conversam entre si e novamente partem para cima <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela, agora <strong>de</strong> forma<br />
amigável e vão seduzindo a ingênua garota até que a madrasta a escon<strong>de</strong> entre as pernas,<br />
pois o príncipe e a sua comitiva estão entrando em sua casa, e elas não querem que ele a<br />
veja.<br />
As duas filhas saem em direção ao príncipe e se mostram para ele como<br />
candidatas a calçar a sapatilha vermelha. A primeira calça, esperneia, mas a sapatilha<br />
vermelha não lhe serve, com a segunda acontece a mesma coisa, e todas choram.<br />
O príncipe fica muito triste e vai em direção ao seu cavalo, junto com a sua<br />
comitiva. É quando o robô-fada aparece e, com sua espada-varinha, aponta para as<br />
pernas da madrasta e Cin<strong>de</strong>rela surge. O príncipe se aproxima e calça a sapatilha<br />
vermelha Cin<strong>de</strong>rela que mostra o outro par e o calça. O gran<strong>de</strong> segredo está <strong>de</strong>svendado,<br />
eles se reconhecem com um beijo.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin<br />
O robô-fada abençoa tudo da parte <strong>de</strong> cima do cenário e os bonecos com as<br />
fadas-ajudantes, e Cin<strong>de</strong>rela com o Príncipe, dançam em duplas, enquanto a madrasta e<br />
as irmãs são amarradas nas ca<strong>de</strong>iras por or<strong>de</strong>m do robô-fada. Elas resistem através dos<br />
sons grunhidos, balançando braços e pernas, mas não obtêm sucesso.<br />
A coreografia dançada em duplas é muito alegre, com saltos e batidas <strong>de</strong> palmas<br />
que remetem à vitória, do triunfo do bem sobre o mal.
As fadas-ajudantes, junto com os bonecos-ajudantes formam um corredor para a<br />
<strong>de</strong>scida do robô-fada que casa Cin<strong>de</strong>rela e o príncipe com sua espada-varinha. Eles se<br />
beijam e todos comemoram. Felizes, se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>m, enquanto as três vilãs permanecem<br />
amarradas na ca<strong>de</strong>ira, e vigiadas por um guardião.<br />
As duplas formadas por fadas-ajudantes e bonecos, atravessam o palco<br />
carregando seus brinquedos. O último casal a passar nessa travessia é Cin<strong>de</strong>rela com<br />
seu príncipe arrastando um comprido carrinho repleto <strong>de</strong> filhos, representados por<br />
bonecos bem pequenos trajando macaquinho azul e cor-<strong>de</strong>-rosa, simbolizando meninos<br />
e meninas.<br />
Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> Maguy Marin
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:<br />
Depois <strong>de</strong> feito o levantamento bibliográfico a respeito dos contos <strong>de</strong> fadas e da<br />
visão da psicologia sobre a Cin<strong>de</strong>rela, teve-se embasamento teórico para se analisar os<br />
ví<strong>de</strong>os <strong>de</strong> adaptações feitas para o ballet clássico e, em seguida para a dança<br />
contemporânea. A partir <strong>de</strong> então se conclui que o contexto sócio-histórico particular<br />
em que uma mesma obra literária foi coreografada obe<strong>de</strong>ce a meios específicos <strong>de</strong><br />
expressão e, permite-nos enxergar a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> concepção artística e vocabulário<br />
corporal possível para adaptação <strong>de</strong> uma narrativa literária para a dança.<br />
A Cin<strong>de</strong>rela do ballet clássico, coreografada por Konstantin Sergeyev em 1944<br />
está diretamente ligada ao formalismo da arte da dança. Composta por corpos <strong>de</strong> baile<br />
que emolduram a cena para que os bailarinos principais dancem coreografias on<strong>de</strong><br />
expõem todo o seu virtuosismo técnico, bem como o uso <strong>de</strong> tutus e sapatilhas <strong>de</strong> pontas<br />
por todas as bailarinas em cena.<br />
A Cin<strong>de</strong>rela da dança contemporânea, coreografada por Maguy Marin em 1985,<br />
tem um tratamento diferenciado da do ballet, pois reflete além da técnica valores<br />
artísticos e culturais da coreógrafa que reinterpretou e revitalizou <strong>de</strong> forma ingênua,<br />
seguindo o imaginário infantil, o significado <strong>de</strong> uma história já consagrada.<br />
Nas duas versões Cin<strong>de</strong>rela é uma menina que após per<strong>de</strong>r a mãe sofre maus<br />
tratos da madrasta e das irmãs feias e malvadas. Tanto Sergueyev quanto Marin retratam<br />
isso claramente através <strong>de</strong> próteses e máscaras que <strong>de</strong>ixam as vilãs com feições ainda<br />
mais grotescas.<br />
O pai na versão do ballet é uma figura apática que acata as or<strong>de</strong>ns dadas pela<br />
esposa <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar sua filha viver literalmente entre as cinzas, enquanto que na dança<br />
contemporânea ele é ele ativo na guerra contra o mal para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a filha.<br />
Sem condições <strong>de</strong> ir ao baile 138 um portal mágico é o responsável pela ocasião<br />
que mudará a vida da protagonista, pois é através <strong>de</strong>le que a fada-madrinha aparecerá.<br />
No ví<strong>de</strong>o do ballet esse portal é representado pela figura <strong>de</strong> um espelho do cenário e, no<br />
da dança contemporânea pela caixa <strong>de</strong> presente que o seu pai trouxe. Em ambos os<br />
casos fica claro o momento <strong>de</strong> magia <strong>de</strong>vido aos recursos cênicos utilizados como<br />
fumaças e efeitos luminosos, pois trata-se do surgimento do principal personagem do<br />
138<br />
Em nenhum dos casos ficou clara a proibição feita pela madrasta <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela ir ao baile, como no<br />
conto original <strong>de</strong> Perrault.
em, que será o responsável, mesmo indiretamente, pelo casamento, equilíbrio,<br />
felicida<strong>de</strong> e início <strong>de</strong> um lar.<br />
Esse auxiliar mágico proporciona todos os a<strong>de</strong>reços necessários para Cin<strong>de</strong>rela<br />
ir ao baile como vestido, coroa, sapato e transporte. Esse encanto feito pelo auxiliar<br />
obe<strong>de</strong>cem ao da narrativa original <strong>de</strong> Perrault, em que Cin<strong>de</strong>rela terá <strong>de</strong> voltar para casa<br />
antes da meia-noite sob a condição <strong>de</strong> per<strong>de</strong>-lo.<br />
O transporte da heroína para o baile, em nenhum dos casos, é feito na luxuosa<br />
carruagem do conto original <strong>de</strong> Perrault. No ballet essa é substituída por um séqüito<br />
constituído por membros do corpo <strong>de</strong> baile e na dança contemporânea por um carrinho<br />
<strong>de</strong> brinquedo.<br />
Nas duas adaptações o baile é o local on<strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela encontra seu gran<strong>de</strong> amor,<br />
que acontece à primeira vista. Cin<strong>de</strong>rela vence a batalha contra as irmãs e madrasta sem<br />
precisar guerrear com elas.<br />
O baile da adaptação <strong>de</strong> Marin tem a agressivida<strong>de</strong> típica da infância, on<strong>de</strong><br />
disputam atenção do príncipe tentando separa-lo <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela. Marin põe em cena uma<br />
batalha <strong>de</strong> brinquedos e retrata uma festa <strong>de</strong> criança on<strong>de</strong> o príncipe sopra velinhas no<br />
bolo, todos brincam <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras infantis e doces e balas são servidos aos convidados.<br />
Sergeyev transformou o baile em sessões <strong>de</strong> dança pura, com a presença <strong>de</strong><br />
grand pas-<strong>de</strong>-<strong>de</strong>ux, e danças <strong>de</strong> corte feita pelos protagonistas e emoldurados pelo<br />
corpo- <strong>de</strong>-baile. O comportamento <strong>de</strong> todos é <strong>de</strong>ntro dos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> boa educação e das<br />
normas <strong>de</strong> conduta, longe <strong>de</strong> batalhas ou agressões visíveis aos outros convidados, ao<br />
contrário, a bondosa Cin<strong>de</strong>rela, mesmo <strong>de</strong>scartada pelas vilãs, ainda divi<strong>de</strong> com elas as<br />
bebidas que o príncipe mandava lhe servir.<br />
Nos dois casos as badaladas indicando meia noite são <strong>de</strong>cisivas para o fim do<br />
encanto. Na adaptação do ballet, Cin<strong>de</strong>rela sai correndo elegantemente as escadarias e,<br />
per<strong>de</strong> um dos sapatos <strong>de</strong> cristal que usou durante a festa. Na versão da dança<br />
contemporânea Cin<strong>de</strong>rela enrola o seu corpo até o chão e vai escorregando <strong>de</strong>itada pela<br />
escadaria, quando escapa do seu pé a sapatilha vermelha, que simboliza o sapatinho <strong>de</strong><br />
cristal da obra original <strong>de</strong> Perrault.<br />
Nas duas adaptações esse objeto perdido é a única lembrança que o príncipe<br />
guarda da amada e promete a si mesmo casar-se com aquela que conseguir calçar. O<br />
príncipe or<strong>de</strong>na uma comitiva em busca <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela.<br />
No ballet a busca caracteriza-se por um <strong>de</strong>sespero exagerado percebido pela<br />
movimentação, música, e iluminação utilizadas na cena. É uma procura quase solitária,
pois envolve apenas um enviado e dois servos. A busca <strong>de</strong> Marin é tranqüila, todos os<br />
personagens se locomovem arrastando brinquedos pelo palco e o príncipe <strong>de</strong>sloca-se em<br />
cima <strong>de</strong> um cavalo <strong>de</strong> brinquedo.<br />
Nas duas versões o príncipe em busca <strong>de</strong> sua amada encontra duas moças, uma<br />
espanhola e outra árabe, que experimentam o sapato, mas não serve. Na adaptação do<br />
ballet registra-se ainda a presença <strong>de</strong> uma índia, que experimenta o sapato sem sucesso.<br />
Depois <strong>de</strong> fugir do baile Cin<strong>de</strong>rela volta para casa em farrapos novamente, as<br />
protagonistas das duas versões lembram-se da noite anterior escoradas em suas<br />
vassouras. A heroína <strong>de</strong> Marin é criativa e engraçada, pois brinca com a vassoura que<br />
coloca em cima da ca<strong>de</strong>ira para fingir seu namorado, provavelmente o príncipe. A <strong>de</strong><br />
Sergeyev é mais contida e dança com leveza, como manda uma boa moça. Sua alegria é<br />
ainda maior quando encontra o outro sapato que usou em cima da poltrona. As duas<br />
voltam à realida<strong>de</strong> quando percebem a presença da madrasta e das irmãs.<br />
A entrada do príncipe na casa on<strong>de</strong> está Cin<strong>de</strong>rela é <strong>de</strong> acordo com o momento<br />
em que foi coreografada. Na adaptação <strong>de</strong> Sergeyev, segue as normas <strong>de</strong> conduta dos<br />
padrões da alta-socieda<strong>de</strong>, a madrasta o recebe, unida das filhas e não escon<strong>de</strong>m a<br />
bastarda, apenas a <strong>de</strong>ixam esquecida num canto.<br />
As irmãs experimentam o sapato que não serve, e o príncipe já está pronto para a<br />
partida quando olha para o canto e reconhece a amada apenas pelo olhar. Ela nem<br />
precisa experimentar o sapato, como acontece na narrativa original <strong>de</strong> Perrault, o<br />
príncipe apenas compara o sapato que tem em suas mãos com o que acabara <strong>de</strong> cair do<br />
avental <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela para ter certeza que ela é a sua amada.<br />
A chegada do príncipe na casa <strong>de</strong> bonecos <strong>de</strong> Marin está <strong>de</strong> acordo com o retrato<br />
do imaginário infantil proposto pela coreógrafa. A madrasta literalmente escon<strong>de</strong><br />
Cin<strong>de</strong>rela embaixo <strong>de</strong> sua saia, enquanto as irmãs experimentam o sapato e esperneiam<br />
em cena porque não coube. É necessária a presença do auxiliar mágico (robô-fada), que<br />
aponta a varinha para a saia da madrasta e tira Cin<strong>de</strong>rela <strong>de</strong> lá. O príncipe experimenta<br />
o sapato em Cin<strong>de</strong>rela, que tira o outro da roupa e calça também, os dois se reconhecem.<br />
A cena final dos dois espetáculos é o casamento <strong>de</strong> Cin<strong>de</strong>rela com o príncipe,<br />
porém retratado <strong>de</strong> formas diferentes. O casamento do ballet vai <strong>de</strong> encontro ao virtuoso<br />
proposto por essa escola <strong>de</strong> dança, um pas-<strong>de</strong>u-<strong>de</strong>ux é dançando com entusiasmo<br />
<strong>de</strong>ixando clara a idéia <strong>de</strong> “felizes para sempre” comum nos contos <strong>de</strong> fadas.<br />
No casamento <strong>de</strong> Maguy Marin as vilãs são punidas, amarradas em cena, todos<br />
os personagens estão no palco carregando brinquedos, quando surge Cin<strong>de</strong>rela e o
príncipe carregando um carrinho comprido cheio <strong>de</strong> bonecos simbolizando seus filhos,<br />
o que representa uma visão cética <strong>de</strong> Marin a respeito dos finais felizes dos contos <strong>de</strong><br />
fadas.<br />
Após essa análise po<strong>de</strong>m-se perceber as semelhanças e diferenças <strong>de</strong> uma<br />
mesma obra literária adaptada para a dança, <strong>de</strong> acordo com o contexto sócio-histórico<br />
particular <strong>de</strong> cada coreógrafo. On<strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les releu a Cin<strong>de</strong>rela e transpôs para o<br />
palco <strong>de</strong> acordo com a sua interpretação pessoal, fornecendo uma nova compreensão do<br />
significado do conto.
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