José Joaci Barboza - XI Encontro Nacional de História Oral
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PURUBORÁ: NARRATIVAS DE UM POVO RESSURGIDO NA AMAZÔNIA 1<br />
JOSÉ JOACI BARBOZA 2<br />
Os índios não têm homogeneida<strong>de</strong> cromática nem<br />
possuem traços físicos que possam singularizá-los<br />
perante os outros segmentos da população. [...]. Em<br />
<strong>de</strong>finitivo a condição da ‘índio’ nada tem que ver com<br />
pressupostos quanto à unida<strong>de</strong> racial ou <strong>de</strong> cor<br />
(Oliveira, 1999: 134)<br />
INTRODUÇÃO<br />
O presente artigo é parte <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> pesquisa e extensão <strong>de</strong>senvolvido no<br />
Departamento <strong>de</strong> Educação Intercultural da Fundação Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Rondônia,<br />
Campus <strong>de</strong> Ji-Paraná, com financiamento do PROEXT/MEC/SESU e contando com uma<br />
bolsa <strong>de</strong> Iniciação Científica do PIBIC/UNIR/CNPQ, com a participação do Povo Indígena<br />
Puruborá.<br />
1 O presente artigo é <strong>de</strong>corrente do Projeto Resgatando a Memória e a <strong>História</strong> do Povo Puruborá,<br />
<strong>de</strong>senvolvido com apoio do PROEXT/MEC/SESU/2012. Contou também com uma bolsa <strong>de</strong> iniciação científica<br />
do PIBIC/UNIR/CNPQ entre 2011 e 2012.<br />
2 Professor Assistente do Departamento <strong>de</strong> Educação Intercultural UNIR campus <strong>de</strong> Ji-Paraná e pesquisador<br />
associado ao Grupo <strong>de</strong> Pesquisa em Educação na Amazônia – GPEA. joacijb@unir.br
Portanto, trata-se da apresentação dos relatos das histórias dos Puruborá que foram<br />
narradas ao autor através <strong>de</strong> entrevistas realizadas em períodos e lugares distintos, já que os<br />
Puruborá se encontram dispersos em vários municípios do Estado <strong>de</strong> Rondônia. As entrevistas<br />
se estruturam a partir das teorias da <strong>História</strong> <strong>Oral</strong> <strong>de</strong>senvolvidas por <strong>José</strong> Carlos Sebe Bom<br />
Meiry (2000), e visa à constituição <strong>de</strong> um acervo <strong>de</strong> narrativas a ser criado na Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Rondônia.<br />
Até o presente momento realizamos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2011 até maio <strong>de</strong> 2012, oito<br />
entrevistas. Temos, ainda, outras entrevistas pré-agendadas para o <strong>de</strong>correr do ano <strong>de</strong> 2012.<br />
Das entrevistas realizadas, temos quatro transcritas, ou seja, já foi realizado o processo <strong>de</strong><br />
passar do código oral para o escrito, faltando ainda o trabalho <strong>de</strong> transcriação e, as outras em<br />
fase <strong>de</strong> transcrição, preten<strong>de</strong>mos encerrar as entrevistas previstas até <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2012.<br />
As entrevistas foram se constituindo como numa re<strong>de</strong> tecida coletivamente, tínhamos<br />
como ponto <strong>de</strong> partida a colaboradora mais velha entre as mulheres, e que fora o ponto <strong>de</strong><br />
partida para a reorganização do ressurgimento Puruborá, bem como a atual cacique do grupo.<br />
Posteriormente elas foram indicando outros colaboradores.<br />
Até o presente momento, as entrevistas se concentraram na região da al<strong>de</strong>ia Aperoy,<br />
criada após o ressurgimento. A al<strong>de</strong>ia fica localizada no município <strong>de</strong> Seringueiras, bem como<br />
em áreas próximas, na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominada Porto Murtinho atualmente ocupado por<br />
Migueleno e Puruborá, no município <strong>de</strong> São Francisco e por último no município <strong>de</strong> Costa<br />
Marques.<br />
2
As <strong>de</strong>mais entrevistas ocorrerão nos municípios <strong>de</strong> Ji-Paraná, São Miguel, Ariquemes,<br />
Porto Velho e Guajará-mirim. Fica assim evi<strong>de</strong>nte que, os Puruborá após os processos <strong>de</strong><br />
expulsão <strong>de</strong> seus territórios se dispersaram pelo estado, embora mantenham uma assembléia<br />
anual do grupo on<strong>de</strong> atualizam suas convicções, sonhos, cultura e a própria unida<strong>de</strong>.<br />
Enfrentam também problemas como a não a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> membros das famílias que não se auto-<br />
i<strong>de</strong>ntificam como Puruborá.<br />
Por questão <strong>de</strong> ética, não utilizaremos os nomes dos narradores, tampouco <strong>de</strong><br />
fragmentos das entrevistas, é que para tal teríamos <strong>de</strong> estar na fase final do processo, ou seja,<br />
após a conferência das entrevistas pelos narradores e narradoras e a respectiva assinatura da<br />
carta <strong>de</strong> cessão. Logo, o referido estudo encontra-se em sua fase inicial <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
contudo, o projeto tem por objetivo último a produção <strong>de</strong> um acervo disponível a todos os<br />
interessados.<br />
Buscamos <strong>de</strong>ixar evi<strong>de</strong>nte que os Puruborá são um grupo <strong>de</strong> índios ressurgidos em<br />
plena região Amazônica. Eles foram contatados no início do século XX pelo então Coronel<br />
Rondon, e posteriormente entregues a todo tipo <strong>de</strong> sorte nos seringais on<strong>de</strong> serviam <strong>de</strong> mão <strong>de</strong><br />
obra barata para aten<strong>de</strong>r a volúpia do capital industrial e financeiro, posteriormente,<br />
<strong>de</strong>scartados como qualquer peça sem serventia ao processo produtivo que per<strong>de</strong>u o uso na<br />
atual engrenagem da ca<strong>de</strong>ia produtiva e tecnológica.<br />
Dessa forma, a teimosia dos Puruborá, contraria todas as expectativas <strong>de</strong> alguns<br />
antropólogos que apontavam para o fim das socieda<strong>de</strong>s indígenas, na medida em que o<br />
contato fosse ampliado e os processos <strong>de</strong> “aculturação” se completassem. Como vaticinou<br />
3
Hubert Lepargneur (1975: 10-11), com o fim dos índios seria também o fim da carreira dos<br />
etnólogos, tornando-se estes, em guardadores <strong>de</strong> documentos, vejamos: “[....] Nenhuma<br />
classificação é estritamente rigorosa e <strong>de</strong>finitiva; trabalho para os etnólogos, ate que o seu<br />
objeto vivo <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong>sapareça; para prosseguir; converter-se-ão <strong>de</strong> exploradores em<br />
arquivistas”.<br />
Abordar a temática dos povos indígenas ressurgidos no Brasil é uma novida<strong>de</strong>, pois<br />
esses estudos iniciaram no final do século XX, portanto com menos <strong>de</strong> quatro décadas; esse<br />
cenário é completamente inexplorado se falarmos em povos ressurgidos na Amazônia, pois a<br />
região se constituiu no imaginário nacional como espaço “vazio” recoberto por inúmeras<br />
dificulda<strong>de</strong>s para a exploração e, por isso mesmo, um muro <strong>de</strong> proteção para os povos<br />
primitivos, portanto, ela ainda é um celeiro <strong>de</strong> índios supostamente verda<strong>de</strong>iros, ou em outras<br />
palavras, com contato recente.<br />
Rodrigo <strong>de</strong> Azevedo Grünewald (2004: 139), ao pesquisar os índios ressurgidos do<br />
Nor<strong>de</strong>ste aponta para esse imaginário que, ainda no século X<strong>XI</strong> insiste em se perpetuar:<br />
De uma maneira geral, quando se fala <strong>de</strong> índios no Brasil, logo se pensa nos<br />
xinguanos ou em tribos que habitam recônditos amazônicos. A imagem mais<br />
freqüente é a <strong>de</strong> ‘selvagens’, ‘aborígenes’, ‘autóctones’, que se apresentam a nós,<br />
‘oci<strong>de</strong>ntais’ e ‘civilizados’, como exóticos em sua língua, seus trajes, seus costumes.<br />
Contudo existem índios que só falam o português, que se vestem <strong>de</strong> forma idêntica<br />
aos membros das populações regionais imediatamente envolventes e que, ainda por<br />
cima, têm costumes muito próximos aos dos regionais.<br />
4
Essa é outra questão a ser consi<strong>de</strong>rada, no Brasil se consolidou a imagem do índio<br />
como aquele que mantém <strong>de</strong>terminados traços diacríticos, aí incluídos as características <strong>de</strong><br />
selvagem/rural em contraposição ao urbano, ou ainda que os verda<strong>de</strong>iros índios fossem<br />
somente aqueles que possuem traços mongólicos como afirmava Franz Caspar (s/d: 183) ao ir<br />
visitar uma criança recém nascida em sua primeira viagem na al<strong>de</strong>ia dos Tupari em 1948:<br />
Aproveitei a oportunida<strong>de</strong> para ver se o pequerrucho tinha a mancha mongólica. Os<br />
índios geralmente trazem ao nascer, um sinal azulado, perto das ná<strong>de</strong>gas, como<br />
lembrança <strong>de</strong> sua origem asiática. A mancha tem, mais ou menos, o tamanho <strong>de</strong><br />
uma moeda e <strong>de</strong>saparece em pouco tempo. As crianças mestiças em toda a América<br />
do Sul, têm também esse sinal da raça.<br />
Dito <strong>de</strong> outra maneira, o imaginário coletivo trabalha com a i<strong>de</strong>ia que o índio é um ser<br />
exótico, que anda nu, é a<strong>de</strong>pto <strong>de</strong> práticas e rituais antropofágicos, não tem respeito às<br />
relações <strong>de</strong> parentescos, não tem religião, etc. Nesse sentido vale reproduzir a crítica<br />
<strong>de</strong>senvolvida por João Pacheco <strong>de</strong> Oliveira (1999: 115) a essa concepção naturalizada da<br />
cultura indígena que contribui para o fortalecimento da imagem do senso comum sobre os<br />
indígenas brasileiros:<br />
[...]. A representação cotidiana sobre o índio, como já dissemos em outras ocasiões,<br />
é a <strong>de</strong> um indivíduo morador da selva, <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> tecnologias mais rudimentares e<br />
<strong>de</strong> instituições mais primitivas, pouco distanciado portanto da natureza. É<br />
justamente essa representação que informa as manifestações literárias e artísticas,<br />
5
a i<strong>de</strong>ologia sertanista, o estatuto legal, a política indigenista e ainda conforma os<br />
mecanismos oficiais <strong>de</strong> proteção e assistência.<br />
Ao mesmo tempo ainda impera, inclusive nos meios acadêmicos, dois impulsos: um<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> inclusão do indígena na cultura nacional, isso implicaria na perda total da língua e<br />
<strong>de</strong> traços consi<strong>de</strong>rados por muitos como os elementos distintivos <strong>de</strong> um grupo em relação aos<br />
<strong>de</strong>mais. Quando esses grupos per<strong>de</strong>m esses traços passam a ser acusados pela socieda<strong>de</strong>, aí<br />
incluindo alguns segmentos da aca<strong>de</strong>mia, como não sendo mais indígenas; o outro impulso<br />
seria o <strong>de</strong> tentar criar mecanismos para que os povos indígenas permaneçam como tal,<br />
intocados por elementos e culturas exógenas, como se fosse possível falar <strong>de</strong> populações e<br />
culturas que já não fossem resultados <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> trocas, <strong>de</strong> reinvenção e <strong>de</strong><br />
reinterpretação.<br />
Aliás, em 1948 Franz Caspar (s/d: 223-224) em seu retorno para a Europa e, antes <strong>de</strong><br />
chegar ao seringal <strong>de</strong> São Luis, atual localização dos Povos Indígenas Tupari, vai <strong>de</strong>scobrir<br />
que os índios selvagens que ele procurava não eram “puros” e afirma em tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsolo:<br />
Então ouvia pela primeira vez sobre a ‘unificação’ dos meus índios. Os chamados<br />
Tupari não eram, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, um povo único. Era no tempo dos avós e bisavós<br />
que várias tribos pequenas se uniram. Toptö contava, sem vacilar, a origem <strong>de</strong> cada<br />
membro da tribo. Restou só um homem <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> cada um dos Waikórotá, dos<br />
Aume e dos Mensiató. Cinco apenas eram Tupari puros [...].<br />
6
BREVE HISTÓRICO<br />
O povo Puruborá, segundo a literatura aqui utilizada, tem seu primeiro contato com a<br />
cultura oci<strong>de</strong>ntal na década <strong>de</strong> 1909, quando da instalação da Linha Telegráfica ligando o<br />
Mato Grosso até Guajará-mirim. Instalação essa conduzida pelo então Coronel Cândido<br />
Mariano da Silva Rondon que, além <strong>de</strong> construtor, tinha em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua formação<br />
positivista, uma relação toda especial com os indígenas, que na sua concepção <strong>de</strong>veriam ser<br />
protegidos e integrados a socieda<strong>de</strong> e, uma prática <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong> era juntar vários<br />
grupos indígenas num só espaço físico com o intuito <strong>de</strong> protegê-los, tanto fisicamente como<br />
culturalmente.<br />
Os Puruborá foram contatados pelo próprio Rondon no ano <strong>de</strong> 1909, nas imediações<br />
dos rios São Miguel e do seu afluente rio Manuel Correia, tendo fundado nessa região o posto<br />
Três <strong>de</strong> Maio. Segundo os relatos <strong>de</strong> alguns narradores do projeto em execução, Rondon teria<br />
se <strong>de</strong>tido na região do contato por <strong>de</strong>zoito dias em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> os mesmos terem abatido alguns<br />
cães <strong>de</strong> raça que o mesmo trazia consigo durante a instalação das linhas telegráficas e; esse<br />
posto Três <strong>de</strong> maio ficou conhecido como maloca Cigana.<br />
Outro narrador nos informou que o local originário <strong>de</strong>sse grupo era o território que era<br />
e ainda hoje habitam grupos como os Tupari, Arikapú, Jaboti ou Djeoromitxi, Makurap e<br />
outros, na Terra Indígena Rio Branco, localizada no município <strong>de</strong> Alta Floresta. Esse espaço<br />
7
era disputado principalmente entre os Puruborá, e seus principais inimigos, os Tupari e os<br />
Djeoromitxi. Em <strong>de</strong>corrências das guerras intertribais e fugindo do contato com o não<br />
indígena os Puruborá foram para a região on<strong>de</strong> mantiveram o contato com Rondon.<br />
Ainda segundo dois outros narradores a região on<strong>de</strong> Rondon teria <strong>de</strong>marcado suas<br />
terras era habitada tradicionalmente pelos Miguelenos e Cabixi. Mauro Leonel (1995: 95) <strong>de</strong><br />
alguma maneira corrobora essa hipótese ao afirmar que:<br />
O general Cândido Mariano da Silva Rondon interditou, no início do século, uma<br />
área indígena nos rios São Miguel, São Francisco e Manoel Correia <strong>de</strong>stinado aos<br />
índios puruborás e outros grupos ‘arredios’. O encarregado do posto <strong>de</strong>nominado<br />
Três <strong>de</strong> Maio, <strong>José</strong> Felix do Nascimento, abandonado pelo SPI, endividou-se com a<br />
empresa comercial Massud & Kalil, casou-se com uma índia e foi substituído por<br />
Arlindo <strong>de</strong> Souza Freitas [...].<br />
Os relatos dos narradores dão outra versão para essas estórias do SPI, sobre o <strong>José</strong><br />
Felix do Nascimento, mas no momento não nos <strong>de</strong>teremos nela. Eles, (Puruborá, Miguelenos<br />
e Cabixi), foram agrupados no Posto Indígena Três <strong>de</strong> Maio e, serviam <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra para<br />
os vários seringais, <strong>de</strong>ntre eles o mais <strong>de</strong>stacado era o <strong>de</strong> Limoeiro, on<strong>de</strong> recebiam como<br />
pagamento pelo trabalho roupas, machados, terçados, açúcar, café e outros produtos que,<br />
ainda segundo esses narradores vinham até a década <strong>de</strong> 1930 do Rio <strong>de</strong> Janeiro e<br />
posteriormente <strong>de</strong> outras regiões ou até mesmo da Bolívia.<br />
A região foi aos poucos sofrendo a ocupação <strong>de</strong> vários seringueiros que acorreram<br />
para essas paragens ou fugindo do <strong>de</strong>semprego e da seca no nor<strong>de</strong>ste, na primeira gran<strong>de</strong> leva<br />
8
<strong>de</strong> migração, ou fugindo dos campos <strong>de</strong> batalha da Segunda Guerra Mundial, na oportunida<strong>de</strong><br />
era dado o direito <strong>de</strong>les optarem ir para os campos <strong>de</strong> combate ou serem soldados da borracha.<br />
Os trabalhadores não indígenas, <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> Arigós – qualificação dada aos<br />
nor<strong>de</strong>stinos arregimentados para extração da seringa – eram incentivados a superarem sua<br />
cota anual em toneladas <strong>de</strong> extração do látex, <strong>de</strong> forma que tinham como prêmio<br />
“casamentos” arranjados com índias órfãs, criadas ou pelos seringalistas ou, até mesmo, pelos<br />
responsáveis pela segurança dos indígenas, caso dos funcionários do SPI.<br />
Existem vários casos na literatura que narram episódios como esse Franz Caspar (s/d:<br />
59) relata um episódio ocorrido no seringal São Luiz, quando o mesmo era administrado por<br />
um boliviano, que é bastante ilustrativo, vejamos:<br />
[...]. O boliviano era ainda pior para as mulheres e filhas dos índios que tratava<br />
pior do que um sultão os seus súditos. Tinha esposa e filhos. Não obstante, tomava<br />
para si as índias que lhe agradavam, divertia-se com elas e, <strong>de</strong>pois, distribuía-as à<br />
sua vonta<strong>de</strong>, entre empregados brancos ou pretos.<br />
Denise Maldi Meireles (1983: 49) falando do seringal e <strong>de</strong> suas conseqüências para os<br />
indígenas que ocupavam a região diz:<br />
Os seringalistas estabelecidos nos barracões iniciaram a caça a mão-<strong>de</strong>-obra<br />
indígena, visando aumentar o número <strong>de</strong> ‘colocações’ a seu serviço. O seringueiro<br />
isolado, muitas vezes ia buscar nas al<strong>de</strong>ias uma mulher que forçava a participar <strong>de</strong><br />
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sua existência miserável. Este fato, por si só, já era suficiente para antagonizar a<br />
população nativa. [...].<br />
Na mesma linha, Mauro Leonel (1995: 95) vai dizer que a pessoa que o Rondon<br />
<strong>de</strong>ixou como encarregado do posto Três <strong>de</strong> Maio, logo o responsável pela proteção aos vários<br />
grupos ali agregados, o senhor “[...] <strong>José</strong> Felix Alves do Nascimento [...] casou-se com uma<br />
índia e foi substituído [...]”. Esse episódio é narrado como o início do <strong>de</strong>clínio do posto e o<br />
acelerador do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação dos Puruborá.<br />
A colaboradora mais idosa que participou da pesquisa, narra que sua mãe fora casada<br />
com um seringueiro que provavelmente migrara para a região <strong>de</strong> Costa Marques no estado <strong>de</strong><br />
Rondônia ainda no primeiro ciclo da borracha, ciclo que se esten<strong>de</strong> da segunda meta<strong>de</strong> do<br />
século <strong>XI</strong>X até a segunda década do século XX. Outra narradora afirma que sua mãe que fora<br />
criada por <strong>José</strong> Felix, teve seu casamento arranjado aos treze anos e, que passou os primeiros<br />
meses <strong>de</strong> casada muito infeliz, tendo <strong>de</strong> dormir com uma pessoa completamente estranha.<br />
Ela mesma, a narradora mais idosa, fora um prêmio para outro seringueiro com quem<br />
se casou e com quem teve vários filhos. Após o casamento retornaram para as margens do Rio<br />
Manoel Correia, ao que tudo indica o rio se constitui para esse povo como um elemento<br />
aglutinador, elemento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, tanto que a família <strong>de</strong>la, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, não saiu <strong>de</strong>sse<br />
espaço geográfico e é nesse espaço que está construída a al<strong>de</strong>ia Aperoy.<br />
Alguns Puruborá saíram <strong>de</strong>ssa área ainda na gestão dos primeiros encarregados do<br />
posto, indicados por Rondon, segundo os narradores, ao tentarem explicar o fenômeno,<br />
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afirmaram que “eles po<strong>de</strong>riam até ser domados, mas não domesticados”, em outras palavras,<br />
qualquer coisa os faziam retornar a condição <strong>de</strong> “onça”, significado da palavra Puruborá.<br />
No entanto, vários permaneceram nas margens <strong>de</strong>sse rio, e segundo as narrativas dos<br />
colaboradores e, algumas obras literárias, os mesmos foram vítimas <strong>de</strong> três expulsões; a<br />
primeira ocorreu entre a década <strong>de</strong> 1910 até 1940, quando os órgãos oficiais e seus dirigentes<br />
estimularam a invasão das terras pela companhia Massud e Kalil e, dos vários seringueiros.<br />
A segunda expulsão vai ocorrer em 1982, quando da <strong>de</strong>limitação da Reserva Biológica<br />
do Guaporé – REBIO Guaporé, que abrange áreas do antigo seringal <strong>de</strong> Limoeiro, on<strong>de</strong><br />
habitavam e, ainda habitam vários Puruborá; assim nos informa Mauro Leonel (1995: 96) “O<br />
Ibama os expulsou do local, <strong>de</strong>snecessariamente e sem qualquer in<strong>de</strong>nização, por situarem-se<br />
nos limites da Reserva Biológica do Guaporé”.<br />
A terceira expulsão dar-se-á quando do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação da Terra Indígena<br />
Uru-Eu-Wau-Wau. Os responsáveis pela <strong>de</strong>marcação afirmaram, mais uma vez, que os<br />
Puruborá não eram mais índios e, portanto confundidos com ex-seringueiros, por isso<br />
<strong>de</strong>veriam sair da terra. A partir daí ocorreu uma verda<strong>de</strong>ira diáspora Puruborá. De forma que<br />
hoje encontramos os Puruborá em municípios como Costa Marques, Guajará-Mirim,<br />
Ariquemes, Porto Velho, Ji-Paraná, Seringueiras, São Francisco e, até mesmo fora do estado<br />
<strong>de</strong> Rondônia.<br />
Po<strong>de</strong>mos afirmar que as memórias do povo Puruborá estão marcadas pela mistura,<br />
mistura inicialmente extrínseca e com o passar do tempo passou a ser parte constitutiva da<br />
cultura <strong>de</strong>sse grupo. Constatamos que a maioria dos sobreviventes, e utilizamos essa<br />
11
expressão, pois acreditamos que os Puruborá escaparam dos dois ciclos da borracha e dos<br />
vários processos <strong>de</strong> expulsão da terra.<br />
A mistura ao que tudo indica, inclusive constatamos isso numa citação do Franz<br />
Caspar (s/d) cita acima, foi uma estratégia <strong>de</strong> sobrevivência dos grupos indígenas para não<br />
sucumbirem às intempéries do contato e da exploração do trabalho e dos efeitos da “guerra”<br />
bacteriológica inerente ao contato. Pensar a mistura entre os Puruborá é pensar a própria<br />
existência dos mesmos, as memórias dos narradores estão permeadas por elas.<br />
Pu<strong>de</strong>mos constatar que a maioria dos entrevistados são filhos <strong>de</strong> índios, ou como eles<br />
<strong>de</strong>nominam, “índios da venta (nariz) furada” com negros, brancos, outros grupos indígenas,<br />
quilombolas, etc. e essa mistura permeia todas as gerações <strong>de</strong> entrevistados. Mesmo os mais<br />
velhos e ainda falantes da língua (pouquíssimos) nascidos no final do primeiro ciclo da<br />
borracha são, até on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> perceber misturados.<br />
O PROCESSO DE RESSURGIMENTO<br />
Segundo relatos do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, ligado a igreja Católica<br />
e, do Conselho <strong>de</strong> Missão entre os Índios – COMIN, ligado a igreja Luterana, o processo <strong>de</strong><br />
ressurgimento iniciou no final da década <strong>de</strong> 1990 e início <strong>de</strong> 2000, quando o CIMI ouviu falar<br />
<strong>de</strong> alguns índios morando nos arredores da BR 429 e do rio Manuel Correia, tratava-se da<br />
família que mora on<strong>de</strong> hoje fica a al<strong>de</strong>ia Aperoy.<br />
12
A partir daí, com o auxílio <strong>de</strong>ssas duas organizações o povo <strong>de</strong>u inicio a suas<br />
assembléias anuais e a se organizar em busca da <strong>de</strong>marcação das terras <strong>de</strong>stinadas para eles<br />
pelo então coronel Rondon. As assembléias como afirmamos anteriormente ocorrem<br />
anualmente e, em locais distintos. Quando se iniciou as reuniões os Puruborá somavam algo<br />
em torno <strong>de</strong> 200 pessoas, com a propagação das assembléias, outros foram assumindo sua<br />
etnicida<strong>de</strong>, se reconhecendo e sendo reconhecidos como parentes e índios Puruborá.<br />
De fundamental importância para o ressurgimento <strong>de</strong>sse grupo, foi o fato <strong>de</strong> as<br />
famílias sempre comentarem, e por consequência, atualizarem sua memória enquanto<br />
indígenas, enquanto grupo étnico. Vários narradores <strong>de</strong> diferentes famílias nos afirmaram<br />
categoricamente que sempre souberam ser indígenas, ouvirem dos pais e mães muitas<br />
histórias sobre a origem do mundo, sobre o contato, como muitos foram dizimados pelo<br />
trabalho e pelas doenças.<br />
Uma entrevistada nos narrou o fato <strong>de</strong> sua mãe se <strong>de</strong>slocar <strong>de</strong> Limoeiro para Guajará-<br />
Mirim e <strong>de</strong>pois para Porto Velho, ainda na década <strong>de</strong> 1970, on<strong>de</strong> um dos seus filhos estava<br />
preso e, brigar com a FUNAI, pela sua etnicida<strong>de</strong> e pelos direitos subsequentes a essa<br />
assunção, correndo todos os riscos inerentes, tais como preconceitos, exclusão etc.<br />
Esse é um dos exemplos <strong>de</strong> como, mesmo o órgão oficial, a FUNAI, negar o direito e<br />
até mesmo corroborar para a exclusão e todo tipo <strong>de</strong> preconceito, esses indivíduos<br />
mantiveram acesa a chama <strong>de</strong> sua cultura e cultivaram vivas suas memórias. Esse fato, no<br />
meu entendimento foi <strong>de</strong> fundamental importância e contribui para que, em pouco tempo o<br />
grupo conseguisse o grau <strong>de</strong> organicida<strong>de</strong> hoje existente.<br />
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Após a primeira reunião outras lutas foram se configurando para esse povo, a mais<br />
importante tem sido a pela retomada <strong>de</strong> suas terras. Pois mesmo alguns saindo fugindo da<br />
exploração do trabalho, nos primeiros e segundo ciclo da borracha, outros durante a<br />
<strong>de</strong>marcação das terras dos Uru-Eu-Wau-Wau, ou da Reserva Biológica, vários Puruborá,<br />
compraram terras que eram sua por direito e, permaneceram em seus territórios, nas margens<br />
do rio Manuel Correia.<br />
A luta pela posse da terra é assumida por todos do grupo e conduzida bravamente pela<br />
cacique Hosana Castro <strong>de</strong> Oliveira Montanha. Como é sabido por todos; a terra é um fator<br />
importante para a formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para todos os indivíduos e grupos humanos, para as<br />
comunida<strong>de</strong>s indígenas, esse componente ganha dimensões e proporções ainda maiores. Em<br />
quase toda a mitologia indígena a terra é a gran<strong>de</strong> mão, útero <strong>de</strong> on<strong>de</strong> todos saíram.<br />
A luta pela posse da terra no Brasil sempre assumiu características violentas, para<br />
confirmar isso, basta ver o número <strong>de</strong> pessoas assassinadas na luta pela reforma agrária, bem<br />
como, <strong>de</strong> várias li<strong>de</strong>ranças indígenas em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus territórios. No caso da luta dos<br />
Puruborá esses componentes estão presentes. Felizmente ninguém foi assassinado, embora as<br />
ameaças sejam constantes, tanto da cacique quanto <strong>de</strong> seus familiares.<br />
Esse cenário <strong>de</strong> conflito é tensão é intensificado em virtu<strong>de</strong> da clássica ineficácia,<br />
ler<strong>de</strong>za, <strong>de</strong>scaso e má vonta<strong>de</strong> política da FUNAI em acelerar o processo. Isso se <strong>de</strong>ve em<br />
parte as pressões dos interesses políticos e econômicos da região. Vários políticos, <strong>de</strong>ntre eles<br />
senadores, governadores e ex-governadores resi<strong>de</strong>m na região que outrora pertenceu aos<br />
Cabixi, Miguelenos, Puruborá e vários outros grupos, alguns inclusive extintos.<br />
14
Esses políticos, além <strong>de</strong> possuírem proprieda<strong>de</strong>s nessa área geográfica, têm suas<br />
campanhas alimentadas e irrigadas financeiramente pelo capital dos proprietários <strong>de</strong> terras e<br />
homens <strong>de</strong> negócios que, não me<strong>de</strong>m esforços econômicos e mobilização política para<br />
impedir a <strong>de</strong>marcação das terras indígenas.<br />
Uma das histórias que ouvi dos narradores diz respeito ao antropólogo do órgão<br />
oficial, ele iria realizar uma perícia no local, para i<strong>de</strong>ntificar os locais tradicionalmente<br />
ocupados pelos Puruborá e, no último momento avisou sem muitas explicações que não<br />
po<strong>de</strong>ria realizar o referido trabalho e até o presente momento não fora substituído por outro.<br />
No que pese todas essas adversida<strong>de</strong>s, os Puruborá continuam na luta sem per<strong>de</strong>r sua<br />
alegria, esperança e dignida<strong>de</strong>. Todas as vezes que fomos à al<strong>de</strong>ia Aperoy ou nas residências<br />
dos membros do grupo, sempre fomos muito bem recebidos e, esse clima tem contagiado<br />
todos os envolvidos na pesquisa e, esperamos que o trabalho contribua com sua luta, sua<br />
organicida<strong>de</strong> e principalmente com a perpetuação <strong>de</strong> suas memória e histórias.<br />
15
REFERÊNCIAS<br />
CASPAR, Franz. TUPARI: Entre os índios, nas florestas brasileiras. São Paulo: Edições<br />
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