14.07.2013 Views

Márcia Nunes Maciel - XI Encontro Nacional de História Oral

Márcia Nunes Maciel - XI Encontro Nacional de História Oral

Márcia Nunes Maciel - XI Encontro Nacional de História Oral

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Mulheres Guardiães <strong>de</strong> Uma Comunida<strong>de</strong> Afetiva<br />

MÁRCIA NUNES MACIEL 1<br />

A partir <strong>de</strong> narrativas realizadas com quatro mulheres que compartilharam<br />

espaços afetivos na Amazônia, percebi as significações construídas por elas <strong>de</strong> seus<br />

lugares <strong>de</strong> experiências e <strong>de</strong> si mesmas. Elas po<strong>de</strong>m ser vistas como Guardiãs <strong>de</strong><br />

tradições que chegaram até elas por meio <strong>de</strong> uma prática familiar e comunitária e<br />

atualmente <strong>de</strong>slocadas <strong>de</strong> seus lugares <strong>de</strong> tradição atualizam a memória <strong>de</strong> um mundo<br />

carregado <strong>de</strong> simbologias e, no qual se encarregam <strong>de</strong> transmitir para as novas gerações.<br />

Nesse sentido, a concepção <strong>de</strong> Tradição oral <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> afetiva é<br />

entendida como história transmitida por várias gerações que se relaciona com uma das<br />

variações da história oral, a qual requer uma condução ou procedimentos próprios, pois,<br />

trata das dimensões míticas e visões <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s que “têm valores<br />

filtrados por estruturas mentais asseguradas por referências ao passado remoto” [...]<br />

(MEIHY, p, 166, 2005).<br />

Por meio da pesquisa em <strong>História</strong> <strong>Oral</strong> realizada no mestrado <strong>de</strong> Socieda<strong>de</strong> e<br />

Cultura na Amazônia, oferecido pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas, foi percebido<br />

nas narrativas das colaboradoras que fizeram parte da dissertação: O Espaço Lembrado:<br />

Experiências <strong>de</strong> Vida <strong>de</strong> pessoas que vivenciaram o Espaço do Seringal da Amazônia<br />

(2010) que há uma comunida<strong>de</strong> afetiva atualizada pela memória estabelecida pelos elos<br />

afetivos entre as colaboradoras e as pessoas lembradas por elas. Essa comunida<strong>de</strong><br />

afetiva está ligada por meio das lembranças sobre os lugares <strong>de</strong> experiências<br />

compartilhados por essas pessoas e que se mantém viva em suas memórias.<br />

Na proposta <strong>de</strong> pesquisa para o doutorado em <strong>de</strong>senvolvimento, a chave <strong>de</strong><br />

percepção escolhida é a tradição oral, entendida <strong>de</strong>ntro da experiência, levando em<br />

consi<strong>de</strong>ração seus <strong>de</strong>slocamentos e reinvenções em três diferentes espaços vivenciados<br />

pelas mulheres que são parte <strong>de</strong>ssa pesquisa: O lugar <strong>de</strong> origem, on<strong>de</strong> nasceram e<br />

1 Pesquisadora do Núcleo <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>Oral</strong>/NEHO<br />

Doutoranda em <strong>História</strong> Social/USP


viveram parte <strong>de</strong> suas vidas, o lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento, on<strong>de</strong> se concentra parte da<br />

comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>slocada, O lugar on<strong>de</strong> se encontram atualmente em que há a<br />

dispersão da comunida<strong>de</strong>, mas se mantém um vínculo <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong>.<br />

O vínculo <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong> mantido entre uma comunida<strong>de</strong> que se dispersou após o<br />

<strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> espaços rurais para o espaço urbano foi percebido num dos encontros<br />

com uma das mulheres entrevistadas, D. Glória, ainda no <strong>de</strong>correr da pesquisa <strong>de</strong><br />

mestrado. Na época, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> entrevistar Glória se <strong>de</strong>u pelo procedimento <strong>de</strong><br />

formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> entrevistados a partir da entrevista realizada com Francisca 3 ,<br />

procedimento específico adotado na linha <strong>de</strong> <strong>História</strong> <strong>Oral</strong>. A entrevista foi realizada na<br />

casa da sua filha, Maria Madalena, com quem ela morava. Glória era prima distante <strong>de</strong><br />

Francisca, os laços <strong>de</strong> sangue foram reforçados pelo parentesco simbólico, construídos<br />

nas festas <strong>de</strong> fogueiras. Vínculo que se mostrou vivo no reencontro das filhas <strong>de</strong> Glória<br />

com a filha <strong>de</strong> Francisca, que presenciei. Nessa ocasião, Nilse, filha <strong>de</strong> Francisca, me<br />

acompanhou até a casa <strong>de</strong> Glória, convidada por mim para facilitar a aproximação com<br />

ela e sua família. Nesse reencontro, houve uma atualização dos laços simbólicos que as<br />

ligavam. Minha atenção estava voltada para Glória, enquanto suas filhas e a <strong>de</strong><br />

Francisca perguntavam umas às outras sobre seus afilhados <strong>de</strong> fogueira. Foi nesse<br />

reencontro que fiquei sabendo que, além <strong>de</strong> afilhados <strong>de</strong> fogueira, havia também as<br />

pessoas que passavam a fogueira para ser uma o cheiro da outra, passando a se tratarem<br />

por “meu cheiro”. Esse <strong>de</strong>talhe da relação simbólica estabelecida por meio da fogueira<br />

<strong>de</strong> santos me instigou a pensar que mesmo, as filhas das senhoras que eu estava<br />

entrevistando, tivessem passado do catolicismo para a religião evangélica essas<br />

tradições construídas em outros espaços e outros contextos, se mantinham <strong>de</strong> alguma<br />

forma.<br />

Dentro <strong>de</strong>sse contexto, foi percebido no <strong>de</strong>correr da pesquisa <strong>de</strong> mestrado que há<br />

uma comunida<strong>de</strong> afetiva atualizada pela memória estabelecida pelos elos afetivos entre<br />

as colaboradoras e as pessoas lembradas por elas. Essa comunida<strong>de</strong> afetiva está ligada<br />

por meio das lembranças sobre os lugares <strong>de</strong> experiências compartilhados por essas<br />

pessoas e que se mantém viva em suas memórias. É <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> partida que me<br />

2 A formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong> é a subdivisão da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino e que visa estabelecer parâmetros para<br />

<strong>de</strong>cidir sobre quem <strong>de</strong>ve ser entrevistado ou não. Conceitualmente comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino é “formada<br />

por um grupo que se organiza em torno <strong>de</strong> fatores comuns”. (MEIHY, 2005, p. 71)<br />

3 Francisca foi o ponto zero, primeira pessoa entrevistada. De sua entrevista <strong>de</strong>correu a formação da re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> entrevistadas.


propus a fazer um <strong>de</strong>sdobramento da dissertação para perceber como se dá a passagem<br />

geracional e as reinvenções das tradições, consi<strong>de</strong>rando as especificida<strong>de</strong>s das<br />

interações com os espaços vivenciados.<br />

Na transição da pesquisa <strong>de</strong> mestrado para a do doutorado, foi retomado o<br />

trabalho <strong>de</strong> campo em três lugares <strong>de</strong> experiências diferenciados. O primeiro é o Lugar<br />

Uruapiara, localizado no Estado do Amazonas, Nazaré, uma comunida<strong>de</strong> as margens do<br />

Rio ma<strong>de</strong>ira, no Estado <strong>de</strong> Rondônia, Porto Velho, capital do Estado <strong>de</strong> Rondônia para<br />

on<strong>de</strong> as famílias que se <strong>de</strong>slocaram do Uruapiara e vivenciaram espaços às margens do<br />

Rio do Rio Ma<strong>de</strong>ira até chegar a Porto Velho na década <strong>de</strong> 60, após a <strong>de</strong>cadência da<br />

borracha.<br />

Uruapiara é o lugar on<strong>de</strong>, as mulheres tomadas como Guardiãs da tradição,<br />

nasceram e viveram a juventu<strong>de</strong> e a ida<strong>de</strong> adulta, tornaram-se mães, esposas,<br />

batalhadoras pelo sustento <strong>de</strong> suas famílias e criação dos filhos. Quem o procurar o<br />

lugar no mapa do município <strong>de</strong> Humaitá-AM, o encontrará como um lago localizado no<br />

Estado do Amazonas, entre os municípios <strong>de</strong> Humaitá e Manicoré. Um pequeno ponto<br />

sem o <strong>de</strong>talhe do que lhe ro<strong>de</strong>ia, além da proximida<strong>de</strong> com o rio Ma<strong>de</strong>ira. Só quem sabe<br />

o caminho das águas consegue explicar que para chegar até lá é preciso ir <strong>de</strong> barco pelas<br />

águas dos rios Amazonas e Ma<strong>de</strong>ira, a<strong>de</strong>ntrando o rio Uruapiara que formará o lago<br />

atravessado pelo rio Ipixuna.<br />

O lugar Uruapiara se tornou um dos espaços <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> campo no doutorado<br />

por eles ser vivenciado no espaço afetivo da memória das 04 mulheres, Francisca,<br />

Glória, Ester e Izolina que foram colaboradoras da pesquisa <strong>de</strong> mestrado. Ao conhecer o<br />

lugar e as pessoas que lá vivem atualmente, após dois retornos em tempos diferentes,<br />

percebi que há uma circulação das pessoas que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>m dos mais velhos que lá<br />

viveram entre o lugar e os dois municípios próximos, Humaitá-AM e Porto Velho-RO.<br />

Muitos <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes que não se <strong>de</strong>sligaram do lugar mesmo transitando entre os<br />

dois municípios mencionados mantiveram algumas tradições dos festejos <strong>de</strong> santos e<br />

ladainhas, motivados pela rememoração dos antepassados, pela crença nos rituais<br />

religiosos, ou mesmo por iniciativas <strong>de</strong> fortalecimento cultural.<br />

Somente após o estabelecimento com pessoas que vivem ou que passam parte do<br />

ano no Uruapaira e outra parte nas cida<strong>de</strong>s próximas, foi possível perceber que existe<br />

uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações estabelecidas entre pessoas que vivem na cida<strong>de</strong> e mantém vínculo


afetivo, <strong>de</strong> tradições, ou mesmo <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> manter suas vidas com recursos do lugar.<br />

Estas pessoas quando estão na cida<strong>de</strong> mantém sua ligação com o Uruapiara por meio <strong>de</strong><br />

um calendário ou <strong>de</strong> festivida<strong>de</strong>s religiosas ou <strong>de</strong> ou ciclos <strong>de</strong> coletas <strong>de</strong> castanha ou<br />

ainda temporadas fartas <strong>de</strong> peixes. Em suas casas na cida<strong>de</strong> é possível encontrar<br />

produtos produzidos no Uruapiara que são consumidos no dia-a-dia ou em celebrações<br />

especiais, como o polvilho para fazer o bolinho tradicional, feitos para os lanches no<br />

puxirum – trabalho coletivo na roça e para a confraternização após as ladainhas dos<br />

santos. Ao visitar em Porto Velho, uma das mulheres que divi<strong>de</strong> sua vida entre os dois<br />

espaços, Uruapiara e Porto velho, juntamente com suas parentas, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comer dos bolinhos tradicionais, que havia comido após uma ladainha <strong>de</strong> São Miguel,<br />

realizada por ela, em sua casa no Uruapiara, na localida<strong>de</strong> herdada <strong>de</strong> seus pais.<br />

Nazaré, comunida<strong>de</strong> formada inicialmente por pessoas que se <strong>de</strong>slocaram do<br />

lugar Uruapiara, após o estabelecimento <strong>de</strong> pessoas que vivem no lugar e que fazem<br />

parte da minha família, além das minhas estadas em dois festejos, um no ano <strong>de</strong> 2006<br />

outro no ano <strong>de</strong> 2010, percebi que a comunida<strong>de</strong> atualiza a memória do festejo <strong>de</strong> São<br />

Pedro por meio da tradição oral que se remete a história do lugar Uruapiara-AM <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> vieram os mais velhos. A novena, a ladainha, o leilão, a dança do seringador e a<br />

<strong>de</strong>rrubada do mastro são retomados por meio da reconstrução da memória dos festejos<br />

realizados no Uruapiara. No conjunto do projeto <strong>de</strong> reafirmação i<strong>de</strong>ntitária construída<br />

na fusão da cultura afro e indígena estão presentes a brinca<strong>de</strong>ira do boi, a dança do<br />

carimbó e a quadrilha tradicional como elemento representativo da colonização<br />

portuguesa amalgamada no imaginário cultural da Amazônia.<br />

Ainda no mestrado pu<strong>de</strong> verificar pontos em comum na narrativa cantada e<br />

contada por um dos moradores da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nazaré que se relaciona com as<br />

narrativas das quatro mulheres que constituíram o corpus documental da dissertação.<br />

No conjunto da narrativa, é possível perceber elementos do imaginário e da<br />

historicização das relações sociais e culturais. Manoel conta assim a origem do nome<br />

Uruapiara e rememora um tempo <strong>de</strong> seus antigos habitantes:<br />

Um dia, recém chegados, passeando nas praias <strong>de</strong> barco, encontraram<br />

um uruá 4 muito gran<strong>de</strong>, maior do que todos os uruás vistos naquele<br />

4 Segundo as pessoas que viveram no Uruapiara uruá é uma espécie <strong>de</strong> caracol gran<strong>de</strong>.


lago. Eles consi<strong>de</strong>raram então ser aquele o maior peara dos uruás 5<br />

daquele lago, por isso, <strong>de</strong>ram-lhe então o nome <strong>de</strong> Uruapiara .<br />

Às margens <strong>de</strong>sse lago, habitavam a tribo dos índios Parintintim. Uma<br />

tribo um tanto guerreira. Sua maior pescaria era no gran<strong>de</strong> rio Ipixuna,<br />

afluente do lago do Uruapiara. Às margens do outro rio, vizinho do rio<br />

Ipixuna, habitava a tribo dos índios Pirahã, que eram completamente<br />

inimigas.<br />

Para essa festa acontecer, escolhiam uma moça índia da tribo<br />

vitoriosa, para fazer o papel <strong>de</strong> vaqueira. Era escolhido também um<br />

índio jovem que representava a tribo <strong>de</strong>rrotada, ele fazia o papel <strong>de</strong><br />

boi. Na hora da festa, a tribo toda se reunia em círculo para cantar e<br />

dançar. Um índio meio coroa jogava versos enquanto a tribo toda fazia<br />

o refrão “Arriba, seringandor!”. Durante a dança a índia vaqueira<br />

tentava lançar o índio-boi e jogá-lo no meio do círculo. O moço-boi<br />

tentava escapar, mas durante algum tempo, já cansado, era vencido e<br />

atirado ao chão. Os instrumentos utilizados na dança do seringandor<br />

eram o gambá, o xeque-xeque e o reco-reco. Quando a dança passou a<br />

ser a diversão do povo civilizado acrescentaram o pan<strong>de</strong>iro na lista<br />

dos instrumentos.<br />

E até hoje essa festa acontece no Lago do Uruapiara. Muita apreciada<br />

pela gente daquele lugar e admirada pelas pessoas que assistem suas<br />

festas. A festa <strong>de</strong> São Sebastião e do Divino Espírito Santo são as<br />

mais antigas e tradicionais fundadas pelos portugueses, ainda no<br />

século passado. Estas festas acontecem nos dias 20 <strong>de</strong> janeiro e no<br />

domingo <strong>de</strong> Pentecoste no lugar <strong>de</strong> antiga povoação, hoje<br />

Centenário...<br />

Antes <strong>de</strong> começar a cantar, Manoel situa o <strong>de</strong>slocamento do espaço on<strong>de</strong> foi<br />

gerada a dança do seringandor e o espaço on<strong>de</strong> ela é ressignificada, como parte da<br />

cultura construída no lugar Uruapiara:<br />

Em 1966 vindo para Rondônia em companhia <strong>de</strong> outras famílias<br />

trouxe essa dança para Nazaré on<strong>de</strong> fun<strong>de</strong>i a Escola Floriano Peixoto.<br />

E somente agora praticada e apreciada pelo grupo musical Minhas<br />

Raízes fundado pelos meus filhos Timaia, Túlio e nora Silvia Helena.<br />

5 Por meio da música Seringandor foi possível perceber que o sentido da junção dos termos uruá<br />

e peara, po<strong>de</strong> ser entendido como o lugar on<strong>de</strong> encontravam uma espécie gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracol, ou<br />

seja, o lugar dos caracóis.


Ainda como uma narrativa <strong>de</strong> história <strong>de</strong> vida, Manoel introduz a música na<br />

narrativa: Lembrando aquele lugar, minha terra, minha al<strong>de</strong>ia da tribo Parintintim,<br />

passo a cantar em versos a dança do seringandor. Entendo essa referência no contexto<br />

da narrativa como uma referência <strong>de</strong> origem i<strong>de</strong>ntitária, convocada pelo narrador na<br />

passagem do contado ao cantado:<br />

Na cacimba da minha al<strong>de</strong>ia,<br />

Tem um pé <strong>de</strong> juquiri 6<br />

On<strong>de</strong> fica escondido,<br />

Um botinho tucuxi<br />

Arriba, seringandor,<br />

Cajueiro, cajuá<br />

6 Uma planta com espinhos.<br />

Arriba, seringandor,<br />

Quereremos “musaiaiá”<br />

O boto é muito enxerido,<br />

Mas tem um bom coração<br />

Só fica assim escondido,<br />

Por causa da cunhã<br />

Arriba, seringandor...


No baile tem genjibira 7 ,<br />

Na trempa assando bacu<br />

No igarapé tem cabana,<br />

O índio suburucu<br />

Arriba, seringandor...<br />

Na cabana tem os Muras,<br />

Os “Turás” lá no Acaará,<br />

No Jacundá tem fartura<br />

Pra gente se admirar<br />

Arriba, seringandor...<br />

No muquem tem a anta assando<br />

Na cuia tem patauá<br />

O seringandor na festa<br />

Pra gente rolar e dançar<br />

Arriba, seringandor...<br />

7 Bebida produzida com gengibre, também conhecida como mangarataia.


Na narrativa, contextualiza-se a maneira como surgiu o nome do lugar, a<br />

ocupação territorial dos Kawahib (Parintintim) e dos Pirahã e sua <strong>de</strong>limitação territorial,<br />

e a geração <strong>de</strong> uma dança originada <strong>de</strong> diferentes culturas, dos habitantes que viviam<br />

nesse espaço.<br />

Na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> como se dava a festa em comemoração à vitória entre as duas “tribos”<br />

que guerreavam entre si, aparece a dança do seringandor. Por meio da <strong>de</strong>scrição feita na<br />

narrativa contada são apresentados os novos elementos culturais agregados aos dos habitantes<br />

mais antigos.<br />

A história contada por Manoel é uma história coletiva, porque é reconhecida por aqueles<br />

que se sentem parte da comunida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>slocou do lugar lembrado, carregando uma herança<br />

cultural também presente no contexto das narrativas <strong>de</strong> Francisca, Glória, Ester e Izolina.<br />

Por mais que os sentidos das lembranças coletivas variem <strong>de</strong> indivíduo para indivíduo,<br />

elas permanecem coletivas. É o que afirma Halbwachs:<br />

[...] Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são<br />

lembranças pelos outros, mesmo que se trate <strong>de</strong> acontecimentos nos<br />

quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É<br />

por que, em realida<strong>de</strong>, nunca estamos sós. Não é necessário que outros<br />

homens estejam lá, que se distingam materialmente <strong>de</strong> nós: porque<br />

temos sempre conosco e em nós uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas que não<br />

se confun<strong>de</strong>m... (HALBWACHS, 2004, p. 30).<br />

A partir <strong>de</strong>ssa concepção <strong>de</strong> memória, reafirma-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que tal fenômeno é<br />

uma criação coletiva. Essa criação da memória na relação do indivíduo com o coletivo<br />

se dá por meio da capacida<strong>de</strong> que o sujeito tem <strong>de</strong> reinventá-la, seja a partir da <strong>História</strong>,<br />

do imaginário social e onírico, seja juntando todos esses elementos, como fez Manoel<br />

nos dois momentos narrativos.<br />

Dentre os elementos presentes na narrativa contada e cantada por Manoel é<br />

possível situar <strong>de</strong> forma direta na narrativa <strong>de</strong> Francisca a importância do sobrenome da<br />

família, e na narrativa <strong>de</strong> Glória e Ester a lembrança da dança do seringandor.<br />

Por meio da recordação <strong>de</strong> Francisca sobre sua mãe, reafirma-se o seu nome<br />

<strong>Nunes</strong> e sua relação <strong>de</strong> parentesco: Minha mãe é irmã do Chico <strong>Nunes</strong>, do Manel<br />

<strong>Nunes</strong>. É tia do Antônio <strong>Nunes</strong>... Raimundo <strong>Nunes</strong>... Sabá <strong>Nunes</strong> 8 . Dizer que é da<br />

família dos <strong>Nunes</strong> não é apenas traçar uma linha familiar, é reafirmar o elo entre as<br />

8 Fragmento da narrativa <strong>de</strong> Francisca <strong>Nunes</strong> <strong>Maciel</strong>, que se encontra integral na minha dissertação: O<br />

Espaço Lembrado: Experiências <strong>de</strong> Vida em Seringais na Amazônia, 2010.


pessoas que fazem parte <strong>de</strong> um mundo específico, o mundo da infância, das<br />

experiências coletivas constituídas no Uruapiara e na experiência <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamentos.<br />

Segundo os habitantes antigos, a dança do seringandor é feita <strong>de</strong>pois da ladainha<br />

no festejo <strong>de</strong> São João. Glória, em sua narração, explica o que é esta dança, mas sua<br />

memória não conseguiu reconstruir uma imagem completa:<br />

Hoje eu me esqueci da ladainha. Eu rezo muito o terço. O terço ainda<br />

rezo... Mas... Mas a ladainha não. Agora eu lembrei que o pessoal<br />

também cantava o seringandor, mas não era ladainha. O seringandor<br />

era cantado quando acabavam <strong>de</strong> rezar e iam fazer a festa da ramada...<br />

Eles cantavam: Arriba, seringandor... Arriba, seringandor! Canoeiro,<br />

canoê... Mas não me lembro como era que cantavam tudo... E também<br />

as mulheradas que dançavam... Mas essa era a festa da ramada.<br />

Naquele tempo também tinham outras festas que faziam pelas casas.<br />

(Glória <strong>de</strong> Souza Miranda 9 )<br />

O esquecimento <strong>de</strong> como era cantada a dança do seringandor não impe<strong>de</strong> que se<br />

construa uma percepção do seu sentido na constituição do espaço on<strong>de</strong> ela foi gerada.<br />

Não só no caso <strong>de</strong> Glória, mas no contexto do entendimento subjetivo do ato <strong>de</strong> narrar<br />

uma memória. O “lembrável” e o “esquecível” são artifícios <strong>de</strong> criação <strong>de</strong>sse ato. Glória<br />

não conseguiu cantar ou narrar <strong>de</strong>talhadamente a cantoria do seringandor, mas o que<br />

interessa é a construção da sua memória que, embora fragmentada, nos oferece a<br />

imagem <strong>de</strong> um espaço que possui um sentido específico para ela, construído numa<br />

coletivida<strong>de</strong> e revivido como fragmento <strong>de</strong> uma vivência.<br />

Enquanto na narrativa contada, o esforço <strong>de</strong> lembrar atualiza uma história da<br />

cultura do lugar, na narrativa cantada a arte <strong>de</strong> lembrar evoca o passado sob a forma da<br />

imaginação. Na música, o narrador se empenha em realizar um registro poético,<br />

carregado <strong>de</strong> imagens enraizadas em seus sonhos, que o levam ao <strong>de</strong>vaneio, no sentido<br />

<strong>de</strong> que não está preocupado com comprovações objetivas.<br />

9 Fragmento da narrativa que se encontra <strong>de</strong> forma integral na minha dissertação: O Espaço<br />

Lembrado: Experiências <strong>de</strong> Vida em Seringais, (2010.)


Tendo em vista que nenhum signo cultural quando compreendido e dotado <strong>de</strong><br />

um sentido permanece isolado, “torna-se parte da unida<strong>de</strong> da consciência verbalmente<br />

constituída” (BAKHTIN, 2002, p. 38), é possível dizer que Manoel, no ato <strong>de</strong> sua<br />

narração, atualiza a configuração <strong>de</strong> um mundo on<strong>de</strong> as coisas nomeadas dizem respeito<br />

a um sentido específico e a um sentimento <strong>de</strong> pertença do espaço cultural e do espaço<br />

recordado nos sonhos, firmados na recriação <strong>de</strong> uma tradição construída na relação (do<br />

encontro, do conflito, da festa) com o que vem <strong>de</strong> fora e se agrega <strong>de</strong> novos<br />

significados.<br />

O instrumento musical xeque-xeque representa bem as trocas e as recriações das<br />

tradições. Ao invés <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o sentido dado pela cultura que o significava, torna-se um<br />

agregador <strong>de</strong> culturas, nele está o sentido do afoxé, da miçanga, do maracá que geraram<br />

novos ritmos e relações interculturais. Porém, como lembra Clifford Geertz (1989), em<br />

A interpretação das culturas, para a<strong>de</strong>ntrarmos nessa cultura precisaríamos fazer uma<br />

<strong>de</strong>scrição profunda, localizando a narrativa no imaginário amazônico, consi<strong>de</strong>rando as<br />

mitologias <strong>de</strong> diferentes culturas que o constitui. Imersa na cultura da qual faço parte, é<br />

possível dizer que o registro encontrado na música Seringandor correspon<strong>de</strong> à maneira<br />

pela qual as pessoas que vivem na Amazônia criaram seus mitos no contexto <strong>de</strong> suas<br />

experiências.<br />

Com a conclusão da dissertação foi possível perceber que as mulheres que<br />

fizeram parte da pesquisa são ou foram mulheres guardiãs <strong>de</strong> tradições. O ponto <strong>de</strong><br />

passagem e <strong>de</strong>sdobramento para o doutorado é vivenciar <strong>de</strong> forma mais intensa o<br />

campo, tenho como chave <strong>de</strong> compreensão os processos <strong>de</strong> constituição da Tradição<br />

<strong>Oral</strong> para alcançar uma possível compreensão <strong>de</strong> como essas mulheres que vivenciaram<br />

em seus <strong>de</strong>slocamentos geográficos, vários lugares <strong>de</strong> experiências, transmitiram seus<br />

saberes, suas visões <strong>de</strong> mundo, costumes, crenças e valores e nessa transmissão como<br />

essa tradição foi resignificada por suas receptoras.<br />

Referências<br />

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002.<br />

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: LCT, 1989.<br />

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.


MACIEL, <strong>Márcia</strong> <strong>Nunes</strong>. O Espaço Lembrado: Experiências <strong>de</strong> Vida em Seringais da<br />

Amazônia. Dissertação Mestrado em Socieda<strong>de</strong> e Cultura na Amazônia, Universida<strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas, Manaus, 2010.<br />

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual <strong>de</strong> história oral. São Paulo: 5ª. ed. Loyola,<br />

2005.<br />

SANTOS, Timaia. Minhas raízes: em cada som uma história. Porto Velho, CD, 60. 2007.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!