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Um estudo sobre a devoção a Isabel Maria da Conceição em ...

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“A santa para as mulheres espanca<strong>da</strong>s, traí<strong>da</strong>s”:<br />

<strong>Um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> a <strong>devoção</strong> a <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> <strong>em</strong> Guaraciaba do<br />

Norte, Ceará.<br />

Michelle Ferreira Maia 1<br />

Eis que se nota o vulto de <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong>: de mãos postas e cruza<strong>da</strong>s<br />

segurando com precisão o terço, deixando entrever pelas contas <strong>da</strong>s ave-marias que uma<br />

oração é anuncia<strong>da</strong>, prece esta que é teci<strong>da</strong> <strong>em</strong> silêncio, pois sua boca está conti<strong>da</strong>mente<br />

fecha<strong>da</strong>. Seria a suplicante ou a suplica<strong>da</strong>?<br />

“Rogai por nós que recorr<strong>em</strong>os a vós”.<br />

A imag<strong>em</strong> é quase fantasmagórica,<br />

respeitando a ilusão ou a fronteira que separa<br />

o seu pertencimento entre o aquém e o além<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Finalmente que cor poderia possuir<br />

ou se apresentar uma alma do outro mundo?<br />

De fato, compõe-se de uma “[...] reali<strong>da</strong>de<br />

ausente que pretende representar” 2 .<br />

Os contornos do corpo estão restringidos pelo dorso, colo e pescoço. A magreza <strong>da</strong><br />

carne é coberta pela blusa azul celeste que propõe um ser frágil e indefeso. Sua veste cumpre<br />

com exatidão o dever de expor uma senhora casa<strong>da</strong>, de tal modo que suas “vergonhas”<br />

estejam guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

1 Doutoran<strong>da</strong> <strong>em</strong> História pela Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Grande Dourados, Mato Grosso do Sul, Bolsista CAPES,<br />

e está sob a orientação <strong>da</strong> Profª. Drª. Graciela Chamorro. <strong>em</strong>ail: michellefmaia@hotmail.com.<br />

2 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões <strong>sobre</strong> a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo.<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2001. p. 85.


Seus olhos cont<strong>em</strong>plativos estão a presumir certa tristeza, melancolia e pesar, mas no<br />

fim também incita a esperança. E o que falar do curto cabelo? Vitimado pelo insano ciúme ou<br />

cúmplice e culpado de um crime, <strong>da</strong> morte, do fim de <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong>.<br />

As árvores, ao redor <strong>da</strong> mulher, completam o cenário. E pod<strong>em</strong> suscitar, ao olhar de<br />

estrangeiro, a representação apenas de um lugar bucólico. Entretanto, exibe aos apreciadores e<br />

devotos a mulher campestre que morreu entre a mata verde, e que teve seu cadáver salvo do<br />

precipício graças às árvores que o seguraram impedindo a que<strong>da</strong> e com isso o<br />

desaparecimento <strong>da</strong> prova do homicídio: o corpo espancado, esfaqueado e humilhado pelo<br />

agressor.<br />

Na parte inferior, lê-se a: “Mártir de Guaraciaba do Norte”. Esta frase denuncia<br />

que, <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> simplória mulher <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> vislumbra<strong>da</strong> pela imponente e<br />

grandiosa pintura <strong>em</strong>oldura<strong>da</strong>, foi construí<strong>da</strong> e propaga<strong>da</strong> por outra faceta, ou seja, pela sua<br />

representação de concessora, de santa popular. De acordo com Milliet: “Ninguém nasce<br />

herói. Eis a Síntese, a reviravolta <strong>da</strong> história: o culpado torna-se vítima, o condenado, mártir.<br />

Cumpre verificar o nexo que norteia a criação do herói”. Milliet (2001. p. 11-14).<br />

Salientando estas considerações, a ótica do olhar é direciona<strong>da</strong> para a constatação de<br />

que dev<strong>em</strong>os compreender a pintura, seja sua posição e seus adornos e aparatos como uma<br />

fabricação media<strong>da</strong> e reverencia<strong>da</strong>, corporifica<strong>da</strong> pelo t<strong>em</strong>po e pelos sentidos simbólicos do<br />

presente. Concordo com Milliet (2001. p. 132) quando sugere que<br />

<strong>Um</strong>a pintura pode ser tão relevante quanto um artigo de jornal, uma estátua tão<br />

ou mais reveladora que um po<strong>em</strong>a, porque o mito, <strong>em</strong> sua ânsia de comunicação, não<br />

discrimina os meios, usando tanto a palavra quanto a imag<strong>em</strong> <strong>em</strong> diferentes suportes. Com<br />

habili<strong>da</strong>de perversa, o mito desloca-se <strong>da</strong> história.<br />

Ambos, as m<strong>em</strong>órias e sentidos simbólicos do presente estão condicionados por<br />

vários interesses que vão além <strong>da</strong> propagação dos milagres e graças alcançados pelos fiéis <strong>da</strong><br />

santa. É necessário, desse modo, compreender esta imag<strong>em</strong> por dois viés: entre o real (a<br />

2


mulher) e o imaginário (a santa). A construção <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> de <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong><br />

propõe a busca pelos sentidos <strong>da</strong> própria criação de sua “santi<strong>da</strong>de”.<br />

<strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> nasceu <strong>em</strong> 1901, <strong>em</strong> Guaraciaba do Norte 3 , Ceará. Pouco<br />

se fala <strong>sobre</strong> sua trajetória, qu<strong>em</strong> eram seus pais, ou <strong>sobre</strong> seu cotidiano seja o de filha, de<br />

esposa ou de mãe. Pod<strong>em</strong>os acrescentar que a biografia de <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> está<br />

s<strong>em</strong>pre apresenta<strong>da</strong> pela morte.<br />

Aos 28 anos, vítima pelo ciúme de seu esposo, que teria ficado contrariado ao vê-la<br />

de cabelo cortado: “A crença de que <strong>Isabel</strong> é santa nasceu logo depois de sua morte. Aos 28<br />

anos, ela foi espanca<strong>da</strong> e morta pelo marido, conhecido como Zé Passarinho, que tinha ciúmes<br />

de sua beleza. (FOLHA.com. “Cotidiano”, 8/3/2003)”.<br />

A compreensão <strong>da</strong> morte violenta e pr<strong>em</strong>atura é acresci<strong>da</strong> com o fim <strong>da</strong>do ao<br />

cadáver pelo agressor: “Depois, ela foi joga<strong>da</strong> por ele <strong>em</strong> um penhasco, mas seu corpo teria<br />

ficado preso <strong>em</strong> uma árvore, que, segundo a crença popular, continuaria intacta até hoje.<br />

(FOLHA.com. “Cotidiano”, 8/3/2003)”.<br />

Houve outros momentos de discórdia entre o casal motivado pelo ciúme? Pod<strong>em</strong>os<br />

compreender que se trata de um crime <strong>em</strong> defesa <strong>da</strong> honra? Ou seria um homicídio passional?<br />

Qu<strong>em</strong> foram às test<strong>em</strong>unhas? A <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> teria sido concedi<strong>da</strong> o direito a<br />

defesa? O que aconteceu com o réu “Zé Passarinho” após o ocorrido? Qual sua sentença ou<br />

penitência? Qu<strong>em</strong> ou quais pessoas teriam retirado o corpo do penhasco?<br />

(1997, p. 42):<br />

Perguntas que põe a questão do (re) corte <strong>da</strong>s m<strong>em</strong>órias. De acordo com Samuel<br />

a m<strong>em</strong>ória é historicamente condiciona<strong>da</strong>, mu<strong>da</strong>ndo de cor e forma de acordo<br />

com o que <strong>em</strong>erge no momento; de modo que, longe de ser transmiti<strong>da</strong> pelo modo<br />

int<strong>em</strong>poral <strong>da</strong> ‘tradição’, ela é progressivamente altera<strong>da</strong> de geração <strong>em</strong> geração. Ela<br />

porta a marca <strong>da</strong> experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido. T<strong>em</strong>,<br />

estampa<strong>da</strong>s, as paixões dominantes <strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po. Como a história, a m<strong>em</strong>ória é<br />

3 Guaraciaba do Norte está localiza<strong>da</strong> a 299 km de Fortaleza, que se ergue a uma altitude de 902,40 m. É sede de<br />

um município com 534,72 km² <strong>em</strong> cujo território vive um total de 37 777 habitantes (densi<strong>da</strong>de d<strong>em</strong>ográfica:<br />

61,78 hab./km²). Dados retirados do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guaraciaba_do_Norte.<br />

3


inerent<strong>em</strong>ente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece permanecer<br />

igual.<br />

As pessoas resignam-se a narrar e contar o “cruel” ato: o assassinato. As l<strong>em</strong>branças<br />

enfocam e deixam entrever as questões relaciona<strong>da</strong>s ao que antecedeu a morte. De um lado, o<br />

sentido de pertença do corpo de <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong>, todo ele de proprie<strong>da</strong>de do seu<br />

cônjuge. Dono e seu senhor, ao qual lhe devia obediência, reverência, respeito, e<br />

principalmente a sua “beleza”. Teria <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> desacatado o código de<br />

postura <strong>da</strong>s Santas mães? 4<br />

A vítima é agredi<strong>da</strong> fisicamente “espanca<strong>da</strong>” e “esfaquea<strong>da</strong>”, o corpo que antes era<br />

objeto de desejo e posse, agora é alvo <strong>da</strong> ira, por ter incitado a desconfiança de uma possível<br />

traição ou por simplesmente despertar o interesse dos olhares de outros. A violência ain<strong>da</strong> é<br />

pública e verbal. Assim o corpo, a moral e a honra de uma senhora casa<strong>da</strong> foram manchados,<br />

maculados tanto pelas infâmias quanto pelo sangue arrebatado pela peixeira de “Zé<br />

Passarinho”.<br />

Teria o infrator pr<strong>em</strong>editado à cena do crime? Afinal, próximo ao despenhadeiro, o<br />

lugar parece propicio para o desaparecimento do corpo, ao ser jogado, o ato seria apagado. O<br />

Sumiço seria sentido pelos vizinhos, familiares, amigos, mas s<strong>em</strong> o conhecimento do<br />

assassinato.<br />

E foi no espaço que intencionou o assassino ser o do esquecimento do corpo, que foi<br />

construído o lugar <strong>em</strong> que a alma de <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> passou a ser l<strong>em</strong>bra<strong>da</strong> e<br />

celebra<strong>da</strong>. Segundo, Certeau (1994, p. 189 – 190):<br />

Os lugares são histórias fragmentárias e isola<strong>da</strong>s <strong>em</strong> si, dos passados roubados<br />

à legitimi<strong>da</strong>de por outro, t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong>pilhados que pod<strong>em</strong> se desdobrar mas que estão ali<br />

antes como histórias à espera e permanec<strong>em</strong> no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim,<br />

4 De acordo com Mary Del Priore: “As Santas Mães seriam considera<strong>da</strong>s as mulheres que obedeciam as leis de<br />

Deus, do Estado e <strong>da</strong> Igreja e do marido: “cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe <strong>da</strong> família com<br />

o seu sexo, <strong>da</strong>ndo-lhe filhos que assegurass<strong>em</strong> a sua descendência e servindo como modelo para a socie<strong>da</strong>de<br />

familiar com que sonhava a Igreja”. DEL PRIORE, Mary. Mentali<strong>da</strong>des e práticas <strong>em</strong> torno do parto. In: Ao sul<br />

do corpo: condição f<strong>em</strong>inina, materni<strong>da</strong>de e mentali<strong>da</strong>des no Brasil Colônia. 2. ed. Rio de Janeiro: José<br />

Olympio, 1995. p. 29.<br />

4


simbolizações enquista<strong>da</strong>s na dor ou no prazer do corpo [...] é uma prática do espaço este<br />

b<strong>em</strong>-estar tranqüilo <strong>sobre</strong> a linguag<strong>em</strong> onde se traça, um instante, como um clarão.<br />

A faleci<strong>da</strong> tornou-se região e nos meios nacionais de divulgação a “santa para as<br />

mulheres espanca<strong>da</strong>s, traí<strong>da</strong>s”:<br />

Moradores de um município do interior do Ceará veneram uma santa popular,<br />

protetora <strong>da</strong>s mulheres traí<strong>da</strong>s e espanca<strong>da</strong>s. O culto à <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong>,<br />

conheci<strong>da</strong> como fina<strong>da</strong> <strong>Isabel</strong>, é feito numa pequena capela na beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> que liga<br />

Guaraciaba do Norte a Reriutaba, na serra <strong>da</strong> Ibiapaba, a 350 km de Fortaleza, local onde<br />

ela teria sido morta pelo marido, <strong>em</strong> 1929.<br />

A m<strong>em</strong>ória <strong>sobre</strong> <strong>Isabel</strong> e sua vi<strong>da</strong> e morte seguiu o curso dos seus construtores, que<br />

s<strong>em</strong>pre (re) elaboram os fatos que a tornaram a “Mártir de Guaraciaba do Norte”. O Corpo<br />

<strong>da</strong> mulher exposto na pintura e nas narrativas dos jornais foi destituído de qualquer pecado,<br />

sexuali<strong>da</strong>de e dos prazeres deste mundo, agora a ostentação é a <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> santa. Ramos<br />

(1998), ao discutir acerca do corpo e sexuali<strong>da</strong>de do Padre Cícero no imaginário dos devotos,<br />

observa que o santo é imperecível, dotado de um corpo não pecador, que na vi<strong>da</strong> terrena não<br />

se rendeu às tentações. Essa interpretação <strong>sobre</strong> o santo é construí<strong>da</strong>, porque, segundo Ramos<br />

(1998, p. 57):<br />

o que importa para os limites <strong>da</strong> presente abor<strong>da</strong>g<strong>em</strong> (<strong>sobre</strong> os devotos) não é o<br />

‘resgate’ do real e sim o imaginário social que constrói a reali<strong>da</strong>de de uma determina<strong>da</strong><br />

forma. A biografia oficial do Pe. Cícero não seduz, não se origina <strong>da</strong> fé n<strong>em</strong> lhe dá força.<br />

A consistência do Pe. Cícero é criação e criadora do prodigioso mundo <strong>da</strong> fé sertaneja.<br />

Antes apenas uma cruz e ex-votos d<strong>em</strong>arcavam o local reservado à santa popular e à<br />

<strong>devoção</strong> a ela direciona<strong>da</strong>. Hoje, vê-se uma capela organiza<strong>da</strong> e exuberant<strong>em</strong>ente construí<strong>da</strong>.<br />

A pintura descrita anteriormente situa-se como um altar que está posicionado no interior <strong>da</strong><br />

Capela que foi destina<strong>da</strong> como o “lugar de oração a <strong>Isabel</strong>”. O retrato está depositado de<br />

frente para os visitantes.<br />

Interessante pontuar que a estrutura <strong>da</strong> capela foi construí<strong>da</strong> no sentido abismo-<br />

estra<strong>da</strong>, sendo que a pintura está de costas para o abismo <strong>da</strong> serra de Reriutaba. Ain<strong>da</strong> <strong>sobre</strong> a<br />

imag<strong>em</strong>, esta não apresenta: a <strong>da</strong>ta de nascimento ou morte <strong>da</strong> faleci<strong>da</strong>, o nome do pintor, e<br />

5


n<strong>em</strong> a <strong>da</strong>ta de fabricação <strong>da</strong> tela. Contudo, ain<strong>da</strong> no altar, outra imag<strong>em</strong> exposta ao lado <strong>da</strong><br />

anterior nos é apresentado os “benfeitores”:<br />

Arquivo Pessoal <strong>da</strong> autora. Fotografa<strong>da</strong> no dia 20 de Julho de 2011.<br />

A descrição é enfática: “Monumento à <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong>”. A concepção de<br />

monumento aqui adota<strong>da</strong> nos faz pensar que<br />

De fato, o que <strong>sobre</strong>vive não é o conjunto <strong>da</strong>quilo que existiu no passado,<br />

mas uma escolha efetua<strong>da</strong> quer pelas forças que operam no desenvolvimento do<br />

mundo e <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do<br />

t<strong>em</strong>po que passa, os historiadores. Estes materiais <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória pod<strong>em</strong> apresentar-se<br />

sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos,<br />

escolha do historiador. (LE GOFF, 2003, p. 525).<br />

Analisar o processo de transformação <strong>da</strong> cruz <strong>em</strong> capela nos permite realizar as<br />

seguintes in<strong>da</strong>gações: Quando e por que ocorre essa modificação? Qual a perspectiva e<br />

repercussão desta construção do ponto de vista dos devotos?<br />

Porque seria a “União dos Conterrâneos e amigos de Guaraciaba do Norte” e do<br />

“Instituto de Desenvolvimento Sócio-Econômico Cultural de Reriutaba” os responsáveis pela<br />

iniciativa <strong>da</strong> reforma? Esperava-se que poderia ter sido uma mu<strong>da</strong>nça impulsiona<strong>da</strong> por uma<br />

associação religiosa.<br />

6


Embaixo <strong>da</strong> moldura, precisamente no lado inferior esquerdo, nota-se o nome do<br />

Professor Teodoro Soares, atualmente ocupando umas <strong>da</strong>s cadeiras de Deputado Estadual na<br />

Ass<strong>em</strong>bléia Legislativa de Fortaleza. De fato, uma imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong>de popular que<br />

também foi apropria<strong>da</strong> pelo poder:<br />

O deputado Professor Teodoro autorizou que fosse feito um levantamento <strong>da</strong> atual<br />

situação <strong>da</strong> Capela e se comprometeu a <strong>da</strong>r alguma contribuição. Vale ressaltar que o<br />

deputado Professor Teodoro foi o responsável pela construção <strong>da</strong> capelinha <strong>da</strong> “fina<strong>da</strong><br />

<strong>Isabel</strong>”, local de romaria na desci<strong>da</strong> de Guaraciaba para Reriutaba (Jornal Correio <strong>da</strong><br />

S<strong>em</strong>ana, 29/12/ 2009, p.1).<br />

A Capela beneficiou os devotos, o recinto está distribuído entre o altar, a parte de pôr<br />

os ex-votos, e ain<strong>da</strong> se vê<strong>em</strong> bancos de cimento para que os fiéis façam suas preces e seus<br />

agradecimentos sentados se assim o aspirar, abrigados do sol ou <strong>da</strong> chuva. É possível perceber<br />

que no lugar foi construí<strong>da</strong> uma ord<strong>em</strong>, a imponência do espaço impõe o abrigo maior <strong>da</strong><br />

<strong>devoção</strong> a <strong>Isabel</strong>, qu<strong>em</strong> passa pela serra t<strong>em</strong> a atenção atraí<strong>da</strong> pela capela que se impõe aos<br />

carros e ao abismo. A presença de visitantes à Capela é s<strong>em</strong>pre significativa, principalmente<br />

mulheres.<br />

Arquivo Pessoal <strong>da</strong> autora. Fotografa<strong>da</strong> no dia 20 de Julho de 2011.<br />

7


<strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong> <strong>Conceição</strong> t<strong>em</strong> seu retrato e folhetos <strong>sobre</strong> seus milagres<br />

distribuídos pela ci<strong>da</strong>de, e sua vi<strong>da</strong> e morte canta<strong>da</strong>s <strong>em</strong> versos falados e escritos:<br />

A história <strong>da</strong> morte de <strong>Isabel</strong> é narra<strong>da</strong> <strong>em</strong> uma oração distribuí<strong>da</strong> aos 30 mil<br />

habitantes de Guaraciaba do Norte há dois anos, <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao centenário do<br />

nascimento dela. "Valei-me, na vossa condição de protetora que fostes escolhi<strong>da</strong> pelas<br />

esposas espanca<strong>da</strong>s e mulheres traí<strong>da</strong>s, na minha aflição, alcançando-me a graça de que<br />

tanto necessito", diz um trecho <strong>da</strong> oração (FOLHA.com, 8/3/2003).<br />

Muitos costumam se dirigir a <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>em</strong> momentos difíceis pedindo sua<br />

proteção. Quando a terra não oferece alento, o céu se reveste de brandura e calmaria,<br />

apontando possibili<strong>da</strong>des dos poderes dos santos e de Deus. E o povo clama ao santo de sua<br />

estima, buscando apoio, confessando sua confiança no sagrado. A promessa é feita com o<br />

santo que concedeu, anteriormente, uma graça a alguém. Os milagres são a apresentação do<br />

poder do santo 5 .<br />

E várias são as formas de agradecimento: as pessoas costumam fazer caminha<strong>da</strong>s até<br />

o local onde ela morreu, man<strong>da</strong>m celebrar missas, dão o nome dela às filhas, como é o caso de<br />

Télia Bandeira Vale 6 , nasci<strong>da</strong> <strong>em</strong> Reriutaba, que t<strong>em</strong> uma filha com o nome de <strong>Isabel</strong>, devido<br />

a uma graça alcança<strong>da</strong> no momento de um acidente quando estava grávi<strong>da</strong>.<br />

As possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> escrita dessa história são diversas: muitas falácias, mas silêncios<br />

<strong>em</strong> torno do crime são uma constante. Além disso, é necessário apontar que <strong>Isabel</strong> <strong>Maria</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Conceição</strong> não foi a única mulher assassina<strong>da</strong> pelo marido, entretanto, porque fora a única a<br />

ser alvo de <strong>devoção</strong> e comoção?<br />

5 O poder do santo é vislumbrado pelo milagre e principalmente como este é visto e interpretado pela socie<strong>da</strong>de<br />

que o assiste, como adverte Régis Lopes Ramos: “A crença, portanto, possui uma fun<strong>da</strong>mentação no que é visto,<br />

ou melhor, na forma pela qual certos acontecimentos são percebidos”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O<br />

verbo encantado: a construção do Pe. Cícero no imaginário dos devotos. Ijuí: Unijuì, 1998. p. 25.<br />

6 VALE, Télia Bandeira. Doméstica, casa<strong>da</strong>, 45 anos. Residente na Rua Mons. Eurico, s.n. Centro, Guaraciaba,<br />

Ceará. Entrevista realiza<strong>da</strong> no dia 20 de julho de 2011.<br />

8


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:<br />

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira<br />

Alves. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 189-190.<br />

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões <strong>sobre</strong> a distância. Trad. Eduardo<br />

Brandão. São Paulo. Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2001. p. 85.<br />

LE GOFF, Jaques. Documento/Monumento. In: História e m<strong>em</strong>ória. Trad. Bernado Leitão.<br />

5. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. p. 525.<br />

MILLIET, <strong>Maria</strong> Alice. Tiradentes: O corpo do Herói. São Paulo. Martins Fontes, 2001. p.<br />

11-14.<br />

DEL PRIORE, Mary. Mentali<strong>da</strong>des e práticas <strong>em</strong> torno do parto. In: Ao sul do corpo:<br />

condição f<strong>em</strong>inina, materni<strong>da</strong>de e mentali<strong>da</strong>des no Brasil Colônia. 2. ed. Rio de Janeiro: José<br />

Olympio, 1995. p. 29.<br />

RAMOS, Francisco Régis Lopes. O verbo encantado: a construção do Pe. Cícero no<br />

imaginário dos devotos. Ijuí: Unijuì, 1998. p. 57.<br />

SAMUEL, Raphael. Teatros <strong>da</strong> m<strong>em</strong>ória. Projeto História, São Paulo, n. 14, fev. 1997. p.<br />

42.<br />

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