17.04.2013 Views

1 A origem da coca pelo vício do Inca Alexandre C ... - ANPHLAC

1 A origem da coca pelo vício do Inca Alexandre C ... - ANPHLAC

1 A origem da coca pelo vício do Inca Alexandre C ... - ANPHLAC

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

Resumo<br />

A <strong>origem</strong> <strong>da</strong> <strong>coca</strong> <strong>pelo</strong> <strong>vício</strong> <strong>do</strong> <strong>Inca</strong><br />

<strong>Alexandre</strong> C. Varella 1<br />

A <strong>coca</strong> surge, na crônica-carta de Guaman Poma de Ayala ao rei <strong>da</strong> Espanha, a<br />

partir de peculiares eventos <strong>da</strong> história <strong>do</strong> Peru. Na visão <strong>do</strong> escritor indígena e cristão<br />

(entre os sécs. XVI e XVII), a planta psicoativa aparece num passa<strong>do</strong> não muito<br />

distante, por meio <strong>do</strong>s índios <strong>da</strong> montaña (as serras orientais cobertas pela selva que<br />

vem <strong>da</strong> planície amazônica), numa história de i<strong>do</strong>latria <strong>do</strong> arbusto. Mas o <strong>vício</strong> de<br />

mastigar a folha <strong>da</strong> <strong>coca</strong> é inventa<strong>do</strong> <strong>pelo</strong>s incas na conquista dessa região (o<br />

Antisuyo). A história de Guaman Poma pode entreter, mas também demonstra a<br />

serie<strong>da</strong>de <strong>do</strong> cronista em apontar para a relação entre os <strong>vício</strong>s mun<strong>da</strong>nos com um<br />

grande peca<strong>do</strong>, a i<strong>do</strong>latria de alguns índios – mas são exceções para o fato, segun<strong>do</strong> o<br />

cronista, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira cristan<strong>da</strong>de desde muito tempo na serra (nas altitudes mais<br />

tempera<strong>da</strong>s), que recebe de fora o “<strong>vício</strong> de comer <strong>coca</strong>”. É interessante notar que<br />

essas histórias de Guaman Poma também indicam códigos indígenas de compreensão<br />

e manipulação <strong>do</strong>s eventos, como será discuti<strong>do</strong> abaixo, com apoio, ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong> análise<br />

<strong>da</strong> crônica de outro indígena <strong>do</strong> Peru, e contemporâneo, Santa Cruz Pachacuti.<br />

Comunicação<br />

Este texto recupera assuntos trabalha<strong>do</strong>s em capítulo de minha autoria na<br />

coletânea “Drogas e cultura: novas perspectivas”, recentemente publica<strong>da</strong>. 2 O tema<br />

<strong>do</strong> “<strong>vício</strong> de comer <strong>coca</strong>”, na expressão de Guaman Poma, foi aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> em<br />

virtude <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> quarto capítulo de minha dissertação de mestra<strong>do</strong>, também<br />

recentemente defendi<strong>da</strong> no programa de História Social <strong>da</strong> USP, com o título<br />

“Substâncias <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria; as medicinas que embriagam os índios <strong>do</strong> México e Peru<br />

1 Doutoran<strong>do</strong> no Programa de História Social <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de São Paulo – FFLCH/USP. Email: alevarell@yahoo.com<br />

2 VARELLA, <strong>Alexandre</strong> C. “Os <strong>vício</strong>s de ‘comer <strong>coca</strong>’ e <strong>da</strong> ‘borracheira’ no mun<strong>do</strong> andino <strong>do</strong> cronista<br />

indígena Guaman Poma” In: LABATE et al. (orgs.), Drogas e cultura: novas perspectivas, 2008, p.<br />

345-368.<br />

1


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

em histórias <strong>do</strong>s séculos XVI e XVII”. 3 Antes de refletir sobre a história <strong>do</strong> cronista<br />

indígena, vejamos, com temerária brevi<strong>da</strong>de, algumas peculiari<strong>da</strong>des <strong>do</strong> polêmico<br />

autor e sua obra. 4<br />

Guaman Poma nasceu após a conquista <strong>do</strong> Peru e produz a Nueva corónica y<br />

buen gobierno provavelmente entre 1580 e 1615. O cronista só pode ser conheci<strong>do</strong> ou<br />

caracteriza<strong>do</strong> praticamente através <strong>da</strong> análise de um único mas extenso <strong>do</strong>cumento,<br />

seu próprio manuscrito ilustra<strong>do</strong>, que tem quase mil e duzentos fólios, <strong>do</strong>s quais<br />

quatrocentos com gravuras, obra que só foi descoberta no início <strong>do</strong> século XX nos<br />

recônditos <strong>da</strong> Biblioteca Real <strong>da</strong> Dinamarca. 5<br />

A obra de Guaman Poma está dividi<strong>da</strong> em duas partes. A Nueva corónica<br />

relata a história humana a partir <strong>do</strong> evento <strong>da</strong> Criação de Adão e Eva, reforça que<br />

pós-diluvianos povoaram o Peru, e caracteriza as eras ancestrais andinas até os<br />

tempos <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s incas antes <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> <strong>do</strong>s espanhóis. Ain<strong>da</strong> na Nueva corónica,<br />

temos o capítulo <strong>da</strong> “conquista”, na recepção a Pizarro até a conclusão <strong>da</strong> chama<strong>da</strong><br />

“guerra civil” entre os espanhóis conquista<strong>do</strong>res, com a vitória final <strong>da</strong>s tropas fiéis<br />

ao império <strong>do</strong>s Habsburgos com sede na Espanha. A segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>, o Buen<br />

gobierno, que descreve um deprimente e violento cotidiano <strong>do</strong> vice-reino <strong>do</strong> Peru,<br />

traz informes sócio-econômicos e dá conselhos de Esta<strong>do</strong>, faz denúncias e<br />

provocações contra indivíduos, “castas” e “nações”, etc, terminan<strong>do</strong> com uma<br />

peregrinação <strong>do</strong> próprio autor Guaman Poma rumo a Lima, para despachar sua obra<br />

ao rei <strong>da</strong> Espanha. 6<br />

Pelos <strong>da</strong><strong>do</strong>s que oferece, Guaman Poma deve ter nasci<strong>do</strong> no conturba<strong>do</strong><br />

contexto após a conquista de Pizarro e Almagro, e ain<strong>da</strong> jovem foi educa<strong>do</strong> na língua<br />

3 VARELLA, <strong>Alexandre</strong> C. Substâncias <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria; as medicinas que embriagam os índios <strong>do</strong><br />

México e Peru em histórias <strong>do</strong>s séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestra<strong>do</strong> – FFLCH/USP, 2008.<br />

4 Fizemos o estu<strong>do</strong> pela seguinte edição: GUAMAN POMA de AYALA, Felipe. Nueva corónica y<br />

buen gobierno, 1993. Contu<strong>do</strong>, optamos por seguir as transcrições e traduções <strong>do</strong> manuscrito original<br />

de acor<strong>do</strong> com a versão digitaliza<strong>da</strong> pela seguinte edição: GUAMAN POMA de AYALA, Felipe.<br />

Nueva crónica y buen gobierno, 1987 [versão eletrônica, 2004]. Para as próximas citações utilizamos a<br />

abreviatura GP (numeração <strong>do</strong>s fólios <strong>do</strong> manuscrito <strong>pelo</strong> que o autor indicara e pela contagem nas<br />

edições atuais). Ex.: GP 950[964].<br />

5 Aqui não nos detemos na análise <strong>da</strong>s gravuras de Guaman Poma, mas sem dúvi<strong>da</strong>, o estu<strong>do</strong><br />

iconográfico de sua obra é o que mais consome os investiga<strong>do</strong>res dentro <strong>da</strong>s polêmicas sobre o caráter<br />

<strong>da</strong> produção <strong>do</strong> cronista indígena e sua maneira de pensar o mun<strong>do</strong> andino. Por outro la<strong>do</strong>, o escrito<br />

alfabético <strong>do</strong> mesmo pode indicar semelhante riqueza de conteú<strong>do</strong>s e de problemas para a investigação<br />

histórica.<br />

6 ADORNO, Rolena. Guaman Poma; writing and resistance in colonial Peru, 1986, p. 09.<br />

2


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

espanhola e na <strong>do</strong>utrina cristã. Deve ter ti<strong>do</strong> alguma autori<strong>da</strong>de e poder como<br />

“cacique” ou “curaca”, embora queira se arvorar como “príncipe” indígena, além de<br />

mostrar-se como grande devoto cristão. Transitou nas esferas eclesiásticas e civis <strong>do</strong><br />

vice-reino <strong>do</strong> Peru, conviven<strong>do</strong> com importantes religiosos espanhóis e com a<br />

literatura que estes acessavam. O trata<strong>do</strong> de Guaman Poma pode ser a expressão<br />

máxima <strong>da</strong> crônica indígena e cristã que floresce nos Andes Centrais na vira<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

século XVI para o XVII, e conta com outras obras importantes, como a de de Santa<br />

Cruz Pachacuti com sua Relación de antigüe<strong>da</strong>des de este reino del Perú. 7 É difícil,<br />

entretanto, classificar a natureza <strong>do</strong> manuscrito ilustra<strong>do</strong> de Guaman Poma, porque se<br />

tem a pretensão de um trata<strong>do</strong> formal, apresenta-se também, como adverte A<strong>do</strong>rno,<br />

enquanto mera relação de um ci<strong>da</strong>dão comum. 8 O texto é extremamente híbri<strong>do</strong>.<br />

Como destaca López-Baraut, mostra-se como “carta ao rei, memorial de petições e<br />

remédios, trata<strong>do</strong> de direito, crônica de Índias ilustra<strong>da</strong>, manual para predica<strong>do</strong>res e<br />

livro de conselho de príncipes, aparenta<strong>do</strong> com a emblemática política européia”. 9<br />

Denominar Guaman Poma como “ladino”, isto é, como indígena que fala e<br />

conhece vernáculos <strong>do</strong> quéchua, mas também, cristão que sabe falar espanhol (e que<br />

sabe escrever em espanhol e quéchua), é tratar de uma combinação bastante<br />

complexa. No discurso <strong>do</strong> cronista confluem esperança e desespero de um convicto<br />

cristão e defensor <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de aborígine, mas ambos rótulos, de “cristão” e de<br />

“índio”, devem ser baliza<strong>do</strong>s com extrema cautela, tanto em termos políticos quanto<br />

culturais.<br />

Note-se que o cronista fará voz intransigente contra a “i<strong>do</strong>latria”, inclusive,<br />

comenta ter acompanha<strong>do</strong> o juiz eclesiástico Cristobal de Albornoz em visitações na<br />

região de Lucanas por volta de 1580, onde se encontra Huamanga, a atual Ayacucho.<br />

Guaman Poma deve ter vivi<strong>do</strong> a maior parte de sua vi<strong>da</strong> nessa região, que foi o foco<br />

de um obscuro movimento que talvez tivera caráter messiânico e extático, denuncia<strong>do</strong><br />

<strong>pelo</strong>s clérigos Albornoz e Molina – trata-se <strong>do</strong> taki onqoy ou “<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de”,<br />

sublevação anticristã, propugnan<strong>do</strong> a volta <strong>do</strong> culto às “huacas”, as enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

7<br />

SANTA CRUZ PACHACUTI, Juan. Relación de antigüe<strong>da</strong>des de este reino del Perú, 1995.<br />

8<br />

ADORNO, op. cit., 1986, p. 09.<br />

9<br />

LÓPEZ-BARALT, Mercedes. Icono y conquista: Guamán Poma de Ayala, 1988, p. 271. Advirto que<br />

as citações no corpo <strong>do</strong> texto <strong>da</strong> bibliografia crítica em língua estrangeira são traduções minhas,<br />

manten<strong>do</strong>, entretanto, outras citações nas notas de ro<strong>da</strong>pé e as citações de textos de época na forma <strong>da</strong>s<br />

edições consulta<strong>da</strong>s.<br />

3


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

chama<strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria andina. 10 Enfim, se Guaman Poma combate crenças, costumes e<br />

ritos indígenas, por outro la<strong>do</strong>, será implacável contra o inaugura<strong>do</strong>r <strong>da</strong> fase <strong>da</strong><br />

“extirpação <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria” no início <strong>do</strong> século XVII, o <strong>do</strong>utor Francisco de Avila, que<br />

Guaman Poma expõe, é prócere de uma campanha de espoliação indecente e punição<br />

gratuita <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des indígenas.<br />

Pease destaca o caráter “hetero<strong>do</strong>xo” <strong>do</strong> cronista, entre outros aspectos, no<br />

importante tema <strong>da</strong> “conquista”. Apesar de condenar o vice-rei Tole<strong>do</strong> pela execução<br />

<strong>do</strong> último inca em resistência e refúgio nas florestas de Vilcabamba, abraçan<strong>do</strong> em<br />

termos gerais a perspectiva de Las Casas sobre a ilegali<strong>da</strong>de e violência desmedi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

conquista, ao mesmo tempo argumenta pela ilegitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dinastia incaica, uma<br />

escolha que vai de acor<strong>do</strong> com os interesses imperiais através <strong>do</strong> vice-rei Tole<strong>do</strong>.<br />

Lembro que Guaman Poma defende certos aspectos <strong>do</strong> governo deste importante<br />

vice-rei, mas ataca outros, e enfim, desautoriza a conquista espanhola que teria<br />

justificativa para cumprir a Missão cristã, ao contemplar a história <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> de um<br />

apóstolo de Jesus nos Andes. Enfim, o cronista considera que os mais antigos índios<br />

eram praticamente cristãos, pelas suas obras e por terem alguma luz de conhecimento<br />

de Deus. 11<br />

Como abor<strong>da</strong>r a mentali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> indígena Guaman Poma? Para Cabos<br />

Fontana, deve ser questiona<strong>da</strong> a visão de que a estrutura mental dele seja “selvagem”,<br />

isto é, essencialmente indígena, no ponto mesmo <strong>da</strong> sintaxe que governa suas<br />

compreensões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, perspectiva que vem com força desde Wachtel. 12 A autora<br />

procura demonstrar a forte influência européia nas profundezas <strong>da</strong> mente de Guaman<br />

Poma. 13 Mercedes López-Baralt procura acomo<strong>da</strong>r o problema <strong>da</strong>s influências e<br />

formas de pensar <strong>do</strong> índio, dentro <strong>da</strong> idéia de uma “policulturali<strong>da</strong>de”. 14<br />

Talvez possamos nos aproximar <strong>do</strong> lugar de Guaman Poma ao observar sua<br />

apreensão <strong>do</strong> cristianismo. “Cacique prencipal”, no desejo <strong>do</strong> cronista, “que sea muy<br />

10<br />

Cf. MILLONES, Luis. Historia y poder en los Andes centrales (desde los orígenes al siglo XVII),<br />

1987.<br />

11<br />

PEASE, Franklin. Las crónicas y los Andes, 1995, p. 278-82.<br />

12<br />

Cf. WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus; les indiens du Peróu devant la conquête espagnole<br />

1530-70, 1970.<br />

13<br />

CABOS FONTANA, Marie-Claude. Mémoire et acculturation <strong>da</strong>ns les Andes; Guaman Poma de<br />

Ayala et les influences européennes, 2000, p. 11.<br />

14<br />

LÓPEZ-BARALT, op. cit., 1988.<br />

4


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

buen cristiano que sepa latín, leer, escriuir, contar y sepa hazer peticiones ellos como<br />

su muger y hijos y hijas”. Aí, o cristianismo é praticamente sinônimo de cultura<br />

letra<strong>da</strong>, e enfim, instrumento para a afirmação indígena. Por outro la<strong>do</strong>, ser cristão<br />

significa evitar ser tal qual o ordinário cristão espanhol, que tem maus costumes e<br />

atitudes, e nem mesmo é convicto na fé em Deus. Isto não significa, contu<strong>do</strong>, que o<br />

cacique deva evitar ser como um espanhol, em aparência e maneiras que indiquem um<br />

status superior – vemos um senti<strong>do</strong> de aculturação, mas também, de apropriação <strong>da</strong><br />

cultura alheia: que o cacique, afirma o cronista, “se trate como español en el comer y<br />

en el <strong>do</strong>rmir y baxillas y hazien<strong>da</strong>s” – quan<strong>do</strong> essa atitude tem importância nas<br />

relações de poder, pois que seja o cacique como espanhol “y que no le estoruen los<br />

corregi<strong>do</strong>res ni padres ni comenderos”. 15 Os índios comuns, por sua vez, não<br />

deveriam se vestir como espanhóis, e nem vice-versa. Afinal, nenhuma “casta” ou<br />

“nação” deveria se vestir como índio, manten<strong>do</strong>-se o ideal <strong>da</strong> segregação <strong>da</strong> parcela<br />

indígena <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de vice-real. 16<br />

O código civilizacional <strong>do</strong> cristianismo parece ser manipula<strong>do</strong> para atingir a<br />

solução nativista para o vice-reino, embora isto seja bem relativo, pois Guaman Poma<br />

apresenta a perspectiva geral <strong>do</strong>s missionários <strong>da</strong> Igreja, que procuram, de uma forma<br />

ou de outra, integrar as hierarquias locais ao <strong>do</strong> império espanhol. Guaman Poma é<br />

venenoso para com os “curas e padres de <strong>do</strong>utrina”, os párocos nos povoa<strong>do</strong>s, mas<br />

defende a ação <strong>da</strong>s ordens franciscana, jesuíta, e de outros missionários que considera<br />

como “santos”. 17 Enquanto A<strong>do</strong>rno assevera que o cronista é “sempre inequívoco: a<br />

favor <strong>da</strong> ordem indígena e oposto ao colonialismo”, e que foi “anti-<strong>Inca</strong> e pró-andino,<br />

anticlerical mas pró-católico”, 18 outro autor, Jorge Zapata, conclui que Guaman Poma,<br />

ain<strong>da</strong> que manipulan<strong>do</strong> as formas <strong>do</strong> discurso e visão de mun<strong>do</strong> ocidental para um ato<br />

de resistência aos explora<strong>do</strong>res, apresenta uma obra onde “se encontram as premissas<br />

15 GP 742 [756].<br />

16 “Los dichos españoles, mestisos y señoras mestisas o negras, mulato, mulatas, que no se ponga áuito<br />

de yndio ni los yndios ni yndias no se ponga áuito de español. Por con color de ello hace muy gran<br />

ofensa a Dios y no ciruen a su Magestad y no tiene obedencia ni ley. Sea grauemente castiga<strong>do</strong> por las<br />

justicias” GP 539[553].<br />

17 GP 950[964].<br />

18 ADORNO, op. cit., 1986, p. 05.<br />

5


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

de uma estética dependentista” que assola a cultura latino-americana desde os tempos<br />

<strong>do</strong> encontro entre os <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s. 19<br />

Existe a plataforma de autonomia política para os “índios principais”<br />

governarem o vice-reino quase sem intermediários – ou melhor, essa plataforma é<br />

para aqueles líderes que Guaman Poma considera legítimos, pois muitos curacas são<br />

cita<strong>do</strong>s como embusteiros, que se apropriam <strong>do</strong>s tributos gera<strong>do</strong>s <strong>pelo</strong>s índios comuns<br />

para alimentar muitos e maus costumes, como o de usar a <strong>coca</strong> na boca.<br />

Observe-se que as reformas são concebi<strong>da</strong>s em torno de um amplo programa<br />

morigerante cristão. Toman<strong>do</strong> assento numa retórica que emerge <strong>do</strong>s topoi de “<strong>vício</strong>s<br />

e virtudes”, 20 Guaman Poma impõe-se como conselheiro <strong>do</strong> rei numa linguagem de<br />

protesto social, procuran<strong>do</strong> diagnosticar os males causa<strong>do</strong>s <strong>pelo</strong> “pachakuti” <strong>da</strong><br />

conquista espanhola: o vice-reino é fruto de um pachacuti ou “mun<strong>do</strong> ao revés”, 21 e<br />

deve ser recoloca<strong>do</strong> na ordem.<br />

A denúncia de inúmeros “<strong>vício</strong>s” é dirigi<strong>da</strong> contra to<strong>da</strong>s as “castas e nações”,<br />

inclusive, em direção aos índios tributários mais humildes. A denúncia não é apenas<br />

artifício retórico para atacar certos elementos <strong>da</strong> estrutura <strong>do</strong> poder colonial, e certas<br />

condições sociais que resultam disso, ou para denegrir certos desafetos <strong>do</strong> cronista,<br />

pois representa, a meu ver, muito mais, é um projeto de mu<strong>da</strong>nça de hábitos ti<strong>do</strong>s por<br />

errôneos segun<strong>do</strong> o militante cristão, e efusivamente, por Guaman Poma. E entre os<br />

costumes considera<strong>do</strong>s viciosos <strong>pelo</strong> cronista indígena, está o de consumir as folhas<br />

<strong>da</strong> <strong>coca</strong>, que descreve freqüentemente como ato de “comer <strong>coca</strong>”.<br />

Para Guaman Poma, a comunhão pode ser ofereci<strong>da</strong> ao indígena apenas se<br />

19<br />

ZAPATA, Jorge. Guamán Poma, indigenismo y estética de la dependencia en la cultura peruana,<br />

1989, p. 19.<br />

20<br />

Em Aristóteles “el topos es un lugar imaginario al cual se acude en busca de argumentos que<br />

ayuden a probar un punto o a persuadir a un público. En la filosofía moral antigua, el topos más<br />

frecuente fue el de la denuncia de vicios y la alabanza de virtudes”. As principais fontes literárias dessa<br />

retórica estão na Ética de Aristóteles (IV a.C.), em obras de Cícero, Sêneca, e ain<strong>da</strong>, na Psychomachia<br />

de Prudêncio (séc. IV), hispano-latino preferi<strong>do</strong> como modelo para o esquema cristianiza<strong>do</strong> de <strong>vício</strong>s e<br />

virtudes posteriormente inscrito em obras de protesto social no medievo e nos séculos XVI e XVII<br />

(LÓPEZ-BARALT, op. cit., 1988, p. 297-8).<br />

21<br />

“pachakuti”, uma subversão cósmica, literalmente, um “mun<strong>do</strong> ao revés”. O último desses sismos<br />

vem através dessa conquista <strong>do</strong>s espanhóis, e a reviravolta <strong>do</strong>s costumes, <strong>da</strong>s atitudes, está em to<strong>do</strong>s os<br />

âmbitos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana. Para López-Baralt, “es curioso cómo (...) se conjugan la concepción nativa<br />

milenarista de mun<strong>do</strong> cíclico con el topos europeo de mun<strong>do</strong> al revés: en ambos casos el cataclismo se<br />

anuncia con una proliferación de vicios” (Ibid., p. 302). Salomon aprimora o significa<strong>do</strong> <strong>da</strong> tradução:<br />

“pacha kuti, ‘turn of space/time’” (“Testimonies: the making and reading of native South American<br />

historical sources”, 2000, p. 48).<br />

6


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

pede “muy cristianamente o questé en la ora de la muerte arrepenti<strong>do</strong> de sus<br />

peca<strong>do</strong>s”, e complementa: que não tenha prova<strong>do</strong> na vi<strong>da</strong> “chicha, uino”, e ain<strong>da</strong>, que<br />

não tenha coloca<strong>do</strong> “<strong>coca</strong> en la boca”. 22 “Dios nos guarde”, que “no se le puede <strong>da</strong>r<br />

sacramento al que vome (sic) <strong>coca</strong>”. 23<br />

O fato, para Guaman Poma, é que usan<strong>do</strong> a erva e a poção embriagantes, será<br />

o índio “ydulatra y peca mortalmente y se matan entre ellos”. 24 Não é possível que<br />

comungue o pão e o vinho, corpo e sangue de Cristo, se está comungan<strong>do</strong> a folha de<br />

<strong>coca</strong> e a chicha, substâncias que se relacionam a peca<strong>do</strong>s em destaque entre as<br />

interdições <strong>do</strong> Decálogo: a i<strong>do</strong>latria e o assassínio.<br />

Os índios que escapam <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des a que pertencem por laços familiares<br />

e étnicos, são bastante mal-vistos <strong>pelo</strong> cronista, pois o fato representa a debilitação <strong>da</strong><br />

“república” indígena no Peru vice-real. Os índios “guagamun<strong>do</strong>” 25 vivem no caminho<br />

<strong>do</strong> mal (como bandi<strong>do</strong>s e joga<strong>do</strong>res), e nesse caminho, está a bebi<strong>da</strong> e a <strong>coca</strong>. Eles<br />

“an<strong>da</strong>n como animales y saluages y an<strong>da</strong>n ociosos y holgasanes, peresosos”; claro<br />

impedimento para o bom governo, não conhecem Deus, não temem a justiça, não<br />

respeitam os caciques, não pagam tributos nem trabalham nas minas ou noutros<br />

serviços. Ao la<strong>do</strong> dessas faltas, “sólo <strong>da</strong>n a beuer y enborrachearse y comer <strong>coca</strong>”. 26<br />

Guaman Poma, na conversa por reformas, trata de caciques que não são<br />

obedeci<strong>do</strong>s ou respeita<strong>do</strong>s nem por espanhóis, nem por índios tributários, porque “no<br />

son señor uer<strong>da</strong>dero de linagi”. Também, “ni tiene buenas obras” – são os caciques<br />

que tanto denigre. Uma lista de <strong>vício</strong>s (<strong>da</strong> tradição medieval cristã) é feita para<br />

caracterizar estes personagens, como preguiça, soberbia, avareza, gula e inveja. 27<br />

Mais presente ain<strong>da</strong> o <strong>vício</strong> <strong>da</strong> embriaguez e <strong>do</strong> uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong>: “son borrachos, que<br />

to<strong>do</strong>s los días están borrachos y comen <strong>coca</strong>”. 28<br />

“Borracho y coquero”. O binômio aparece em to<strong>do</strong> momento na escrita <strong>do</strong><br />

Buen gobierno, serve para maldizer muitos índios, principais ou comuns. Como<br />

22 GP 839[853].<br />

23 Ibid., 278[280].<br />

24 Ibid., 839[853].<br />

25 “le llama guagamun<strong>do</strong> que ellos salieron de sus pueblos por ser ladrones y saltea<strong>do</strong>res y juga<strong>do</strong>res,<br />

borrachos, peresosos, come<strong>do</strong>r de <strong>coca</strong>” (Ibid., 968[986]).<br />

26 Ibid., 872[886].<br />

27 Ibid., 742[756] e ss.<br />

28 Ibid., 768[782] e 769[783].<br />

7


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

sobreleva A<strong>do</strong>rno, o Buen gobierno é um texto “cansativamente repetitivo” 29 – e sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, a expressão “borracho y coquero” é um <strong>do</strong>s principais elementos <strong>da</strong> viciosa<br />

escrita <strong>do</strong> cronista.<br />

O uso bucal <strong>da</strong> <strong>coca</strong>, que estigmatiza o índio como “coquero”, e o uso <strong>do</strong><br />

tabaco, principalmente <strong>pelo</strong> negro “tauaquero”, são “<strong>vício</strong>s” porque são consumi<strong>do</strong>s<br />

de forma gratuita: “aunque no lo a menester el cuerpo, lo toma”. 30 Mas ao menos no<br />

caso <strong>do</strong> tabaco, existe o elogio de suas quali<strong>da</strong>des medicinais. 31 Mas a erva <strong>da</strong> <strong>coca</strong><br />

nunca será considera<strong>da</strong> como medicamento ou apresentan<strong>do</strong> qualquer boa serventia.<br />

Em Guaman Poma, a <strong>coca</strong> será nota<strong>da</strong>, propriamente, como veneno. Será assim e de<br />

forma exemplar, numa história conta<strong>da</strong> por umas velhas, que o autor <strong>da</strong> crônica<br />

comenta ter encontra<strong>do</strong> na sua peregrinação pelas serras andinas rumo à Ciu<strong>da</strong>d de los<br />

Reyes (Lima) para despachar seu trata<strong>do</strong> para Felipe III. O cronista coloca-se como<br />

figura messiânica que observa as inúmeras injustiças contra os pobres índios. Nessa<br />

caminha<strong>da</strong> de denúncias, as velhinhas que havia visto no trajeto lhe contam tenebrosa<br />

cena, na qual “hechiceros” obrigam a a<strong>do</strong>rar o “<strong>do</strong>lo uaca” mediante um suplício.<br />

Chicoteiam as costas <strong>do</strong> índio velho que está senta<strong>do</strong> sobre uma lhama branca, até que<br />

seu sangue escorra <strong>pelo</strong> animal. Nesse momento, a vítima se nega a participar <strong>do</strong><br />

“tormento enjusto”, e para tanto, comete o suicídio. Morre pela ingestão de <strong>coca</strong>:<br />

“tomó <strong>coca</strong> moli<strong>do</strong> hecho polbo y lo tomó y se ahogó y morió con ella”. 32<br />

Este não é o único conto que mostra o teor de veneno mortal <strong>da</strong> <strong>coca</strong>. Num<br />

momento <strong>da</strong> narrativa, Guaman Poma procura encontrar as causas <strong>da</strong> diminuição <strong>da</strong><br />

população indígena. O principal motivo foi a política de “reducción”, o trasla<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

população nativa para novas povoações, por ordem <strong>do</strong> vice-rei Tole<strong>do</strong>, que teria<br />

desconsidera<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Guaman Poma, a previdência <strong>do</strong>s incas e de seus “sauios y<br />

<strong>do</strong>tores, lesencia<strong>do</strong>s, filósofos”, que haviam escolhi<strong>do</strong> os bons sítios para multiplicar<br />

as gentes. Agora, os deslocamentos trouxeram o contato com maus ares e más<br />

influências astrais, causan<strong>do</strong> as enfermi<strong>da</strong>des mortais. Mas outra causa <strong>da</strong><br />

depopulação é “la borrachera, el mosto y uino, la chicha y la <strong>coca</strong>, el azogue<br />

[mercúrio]”. Além <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong>, a <strong>coca</strong> e o mercúrio, em associação, matam os índios.<br />

29<br />

ADORNO, op. cit., 1986, p. 141.<br />

30<br />

GP 154[156].<br />

31<br />

Ibid., 901[915] e 826[840].<br />

32<br />

GP 1111[1121].<br />

8


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

Deven<strong>do</strong> se referir ao trabalho nas minas, Guaman Poma adverte que “tenien<strong>do</strong> en la<br />

boca to<strong>do</strong> el día [a <strong>coca</strong>], traga el polbo con la <strong>coca</strong>. Y ací en el corasó[n] se detiene<br />

este polbo y la <strong>coca</strong> y ancí muere azoga<strong>do</strong>”. 33 Ou seja, a morte é causa<strong>da</strong> pela<br />

presença, no órgão vital, tanto <strong>da</strong> substância <strong>do</strong> mercúrio como <strong>da</strong> <strong>coca</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> o índio está “borracho y gran comelón de <strong>coca</strong>”, aparecem diversos<br />

problemas no corpo: sempre “hecho cuero”; ou com “buena barriga”; “cría gran<br />

cuerpo y gran cabesa”; ou “barriga chupa<strong>da</strong>, hecha como tabla”. 34 O cronista vê<br />

disparata<strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, porém, a causa <strong>do</strong>s males é bem exata: a chicha (ou vinho) e<br />

a <strong>coca</strong>.<br />

Em resumo, o uso <strong>da</strong> erva, delimita<strong>do</strong> como hábito desviante, porque não é<br />

para o proveito medicinal ou alimentar, também é ti<strong>do</strong> por costume obse<strong>da</strong>nte, e além<br />

<strong>do</strong> mais, manifesta a intrusão de substância venenosa, que traz enfermi<strong>da</strong>de ou má<br />

disposição. Além disso tu<strong>do</strong>, o <strong>vício</strong> <strong>da</strong> <strong>coca</strong>, bem como o <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong>, reportam à<br />

animali<strong>da</strong>de, a um esta<strong>do</strong> inferior <strong>do</strong> “racional” humano. O costume de mascar <strong>coca</strong> é<br />

vexa<strong>do</strong> como ato de ruminação: “comer <strong>coca</strong>, yerua como cauallo”. 35<br />

O <strong>vício</strong> <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong> ou a “borrachera”, e de “comer <strong>coca</strong>”, são rapi<strong>da</strong>mente<br />

associa<strong>do</strong>s à i<strong>do</strong>latria. Ao “emborracharse y comer <strong>coca</strong>” os caciques “mochan<br />

[reverenciam] guacas <strong>do</strong>los, y con los demonios, estan<strong>do</strong> borracho, se buelbe en su<br />

antigua ley”. 36 Guaman Poma está se referin<strong>do</strong> aos “dichos” caciques, ou seja,<br />

àqueles que fingiriam ser autori<strong>da</strong>des locais.<br />

Guaman Poma aponta que os antigos “hechiceros” <strong>do</strong>s tempos <strong>do</strong>s incas<br />

a<strong>do</strong>ravam as grutas onde <strong>do</strong>rmem de passo, deixan<strong>do</strong> <strong>coca</strong> e milho masca<strong>do</strong>s<br />

emplasta<strong>do</strong>s nas paredes. Guaman Poma expõe, inclusive, a expressão que utilizam<br />

nesse hábito i<strong>do</strong>látrico. 37 Como teria o cronista aprendi<strong>do</strong> a fala que anuncia no texto?<br />

33 Ibid., 951[965].<br />

34 Ibid., 797[811].<br />

35 Ibid., 774[788]. Importante ressaltar que “comer <strong>coca</strong>”, expressão corrente no relato <strong>do</strong> cronista, não<br />

é apropria<strong>da</strong> para definir o ato de mascar as folhas <strong>do</strong> arbusto, pois a pasta que se forma <strong>da</strong>s folhas em<br />

contato com um prepara<strong>do</strong> alcalino conheci<strong>do</strong> como lejía ou llipta, é acumula<strong>do</strong> entre a gengiva e a<br />

parede bucal e cuspi<strong>da</strong> eventualmente, embora libere o suco psicoativo que é ingeri<strong>do</strong>, e absorvi<strong>do</strong> pela<br />

mucosa bucal.<br />

36 Ibid., 774[788].<br />

37 “Machay mama, ama micuuanquicho allilla punochiuay” é a expressão que Guaman Poma traduz<br />

como “Cueua, no me comáys. Hasme <strong>do</strong>rmir bien y guár<strong>da</strong>me esta noche”. Os editores traduzem a<br />

expressão de forma mais completa: “Madre cueva, no me comas; hazme <strong>do</strong>rmir bien” (Ibid., 276[278]).<br />

9


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

Enquanto indica que o costume é particular <strong>do</strong>s “pontífices” <strong>do</strong> inca, também<br />

contempla uma maior abrangência <strong>do</strong> hábito: “hasta este tienpo lo uzan los yndios”. 38<br />

Além <strong>da</strong> declara<strong>da</strong> participação de Guaman Poma na campanha <strong>do</strong><br />

“extirpa<strong>do</strong>r” Albornoz, que lhe dá justificativa para o conhecimento de alguns rituais,<br />

parece haver convivência conflituosa com os costumes locais, ou conflito com gente<br />

que pratica tais costumes, pois o cronista se queixa que é persegui<strong>do</strong> por praticantes<br />

de certas cerimônias. 39 Também, o cronista índio deve ter absorvi<strong>do</strong> a tradição oral<br />

nativa, como aponta A<strong>do</strong>rno. 40<br />

Num <strong>do</strong>s relatos de Guaman Poma, a <strong>coca</strong> serve como ingrediente numa<br />

receita <strong>do</strong>s “pontífises hichezeros” <strong>do</strong>s incas. Junto com outras substâncias, como<br />

massa de milho com sangue (sanco), penas, prata e ouro, queimavam a <strong>coca</strong> dentro de<br />

uma panela. Daí “hablan” os “demonios del ynfierno”, para o “hechicero” saber <strong>da</strong>s<br />

coisas que se passam no mun<strong>do</strong>. 41 Se Guaman Poma demoniza o ritual <strong>do</strong> oráculo, o<br />

costume de adivinhar pela fumaça gera<strong>da</strong> num prepara<strong>do</strong> com <strong>coca</strong>, era algo<br />

recorrente, como destaca MacCormack, aparecen<strong>do</strong> em outros informes, como <strong>do</strong>s<br />

religiosos agostinhos de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVI, quan<strong>do</strong> “a fumaça <strong>da</strong> <strong>coca</strong> se eleva<br />

em direção ao Cria<strong>do</strong>r Ataguju”. 42<br />

Guaman Poma interpreta qualquer rito ou hábito com <strong>coca</strong> como feitiçaria. O<br />

uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong> não é percebi<strong>do</strong> <strong>pelo</strong> cronista como antigo hábito nos Andes, mas sim,<br />

como excrescência de um perío<strong>do</strong> recente na história andina, quan<strong>do</strong> surge a i<strong>do</strong>latria.<br />

Os maus usos de ervas e poções têm uma história, têm <strong>origem</strong> num passa<strong>do</strong> de<br />

degeneração <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de – e <strong>da</strong> parcela andina dessa humani<strong>da</strong>de.<br />

Concentremos o foco de análise na primeira parte <strong>do</strong> manuscrito de Guaman<br />

Poma, a Nueva corónica. Na visão <strong>do</strong> tempo expressa nesse texto, a humani<strong>da</strong>de<br />

passa por várias “i<strong>da</strong>des”, o que recompõe uma tradição teleológica já inscrita na<br />

profecia hebréia <strong>do</strong> Livro de Daniel, perspectiva comum nos séculos XVI e XVII.<br />

Mas também, na ótica <strong>do</strong> cronista índio, como ain<strong>da</strong> sugere Salomon, as i<strong>da</strong>des, elas<br />

se sucedem a partir de cataclismas, os “pachacutis”, como já comenta<strong>do</strong>, e que podem<br />

38<br />

Ibid., 276[278].<br />

39<br />

Ibid.<br />

40<br />

ADORNO, op. cit., 1986, p. 16 e 47.<br />

41<br />

Ibid., 278[280].<br />

42<br />

MacCORMACK, Sabine. Religion in the Andes; vision and imagination in early colonial Peru,<br />

1991, p. 303.<br />

10


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

representar visões locais, tradições <strong>da</strong>s elites nativas por conceber a história andina. 43<br />

Embora na crônica de Guaman Poma apareçam senti<strong>do</strong>s de degeneração moral ou<br />

social na sucessão <strong>da</strong>s quatro eras andinas, o traça<strong>do</strong> geral aponta para uma sau<strong>do</strong>sa<br />

época de bonança e retitude. 44<br />

Na visão de Guaman Poma, no passa<strong>do</strong> longínquo havia uma cristan<strong>da</strong>de<br />

informal, mas ver<strong>da</strong>deira <strong>do</strong>s antigos, que superaria o estágio formal, mas vazio de<br />

senti<strong>do</strong>, <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de atual no vice-reino: “cómo los yndios antigos fueron mucho<br />

más cristianos. Aunque eran ynfieles, guar<strong>da</strong>ron los man<strong>da</strong>mientos de Dios y las<br />

buenas obras de misericordia”. 45 Guaman Poma ain<strong>da</strong> empurra a detesta<strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria<br />

como evento excepcional, ela surge na dinastia <strong>do</strong>s incas. Guaman Poma produz uma<br />

relativa disputa contra os incas usurpa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> governo <strong>da</strong> legítima e ancestral<br />

dinastia que teria governa<strong>do</strong> o Peru, a linhagem “Yarovilca”, <strong>da</strong> qual se diz herdeiro.<br />

Santa Cruz Pachacuti, também cronista indígena e contemporâneo de Guaman Poma,<br />

como herdeiro <strong>do</strong>s senhores “collaga” (cultura aimará), mantém-se mais vacilante<br />

ain<strong>da</strong> na relação <strong>do</strong>s incas com o peca<strong>do</strong> <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria – alguns incas seriam contrários<br />

e outros mais acomo<strong>da</strong><strong>do</strong>s com a i<strong>do</strong>latria. 46 Se ambos cronistas pertenceram a etnias<br />

ou linhagens que foram subjuga<strong>da</strong>s <strong>pelo</strong>s incas de Cuzco, eles também mantêm visões<br />

de admiração <strong>da</strong> lei incaica. 47 Lembremos que muitas idéias de Guaman Poma por um<br />

“bom governo” se espelham em sua visão <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio inca, inclusive no que diz<br />

respeito ao controle <strong>da</strong> embriaguez, que seria bem administra<strong>da</strong> pela ação punitiva<br />

<strong>do</strong>s incas. Mas esta é outra peculiar história...<br />

Enfim, ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong> admiração <strong>do</strong> governo incaico, Guaman Poma colocou o<br />

nascimento <strong>da</strong> “i<strong>do</strong>latria”, que é o poder <strong>do</strong> diabo, justamente como conspiração <strong>do</strong>s<br />

43<br />

SALOMON, op. cit., 2000, p. 48.<br />

44<br />

MacCORMACK, op. cit., 1991, p. 317.<br />

45<br />

GP 858[872].<br />

46<br />

O manuscrito de Santa Cruz Pachacuti foi encontra<strong>do</strong> junto aos papéis <strong>do</strong> “extirpa<strong>do</strong>r” Dr. Francisco<br />

de Avila, o mesmo que coletou a crônica de Huarochirí no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1610. A <strong>da</strong>ta<br />

aproxima<strong>da</strong> <strong>do</strong> texto de Santa Cruz Pachacuti é de 1613 (MILLONES, Luis. Los dioses de Santa Cruz,<br />

s.d., p. 03). Como aponta Millones: “Los elementos de su propuesta están perfectamente balancea<strong>do</strong>s<br />

en el relato, así por ejemplo, a ca<strong>da</strong> desliz de los <strong>Inca</strong>s en su culto al Supremo Hace<strong>do</strong>r, corresponde<br />

el auge de las guacas (siempre equipara<strong>da</strong>s al demonio), a lo que sigue inmediatamente, una<br />

catástrofe personal o política del soberano peca<strong>do</strong>r. En otras palabras, por encima de sus<br />

limitaciones, la crónica fue planea<strong>da</strong> como una argumentación en favor de las virtudes del<br />

cristianismo, cuya antesala sería el descubrimiento del Crea<strong>do</strong>r, límite al que, por razonamiento<br />

natural, podía alcanzar el pueblo de los Andes” (p. 06).<br />

47<br />

A respeito <strong>da</strong>s semelhanças e diferenças entre as visões de Santa Cruz Pachacuti e Guaman Poma<br />

quanto à história <strong>do</strong>s incas e sua religião, cf. MacCORMACK, op. cit., 1991, p. 320 e ss.<br />

11


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

incas de Cuzco, uma dinastia desvia<strong>da</strong> <strong>do</strong>s antigos senhores de mesma dignitária<br />

nomenclatura. Mas os últimos <strong>do</strong>ze incas, vistos como usurpa<strong>do</strong>res, são ramos de um<br />

enxerto incestuoso que manchara a originária dinastia que foi sucessora natural <strong>do</strong>s<br />

diluvianos e <strong>da</strong>s quatro eras de gente andina, que tinha entendimento de Deus e obra<br />

de cristão. Enfim, o despencar veio com Mama Uaco, que na visão de Guaman Poma,<br />

teria si<strong>do</strong> a mãe e a própria esposa <strong>do</strong> primeiro inca idólatra, Manco Cápac. 48 A nova<br />

dinastia inca criara a i<strong>do</strong>latria por meio de uma “hechicera” que consumara grave<br />

peca<strong>do</strong> antinatural (o incesto), escurecen<strong>do</strong> to<strong>da</strong> a descendência. 49<br />

Para A<strong>do</strong>rno, a história de Mama Uaco e Manco Cápac incorpora o mito <strong>do</strong><br />

peca<strong>do</strong> original. 50 Cabos Fontana destaca como a intervenção <strong>do</strong> demônio se<br />

manifesta, numa gravura, pela “forma de uma serpente e por meio de uma mulher, tal<br />

como na Bíblia”. 51 Além <strong>do</strong> mais, note-se que Mama Uaco encaixa-se no estereótipo<br />

<strong>da</strong> feminina bruxaria, que condensa a grande conspiração diabólica desde fins <strong>da</strong><br />

época medieval.<br />

Será justamente no meio <strong>da</strong> história dessa linhagem torta <strong>do</strong>s incas que surge o<br />

<strong>vício</strong> de mascar a <strong>coca</strong>. O costume, desde o pioneiro relato <strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong> Cieza de León,<br />

poderia ter justificativa trivial: “preguntan<strong>do</strong> a algunos indios por qué causa traen<br />

siempre ocupa<strong>da</strong> la boca con aquesta hierba [<strong>da</strong> <strong>coca</strong>] (la cual no comen ni hacen<br />

más de traerla en los dientes), dicen que sienten poco la hambre que se hallan en<br />

gran vigor y fuerza”. 52 Las Casas, na Apologética historia, insistira <strong>pelo</strong> mesmo<br />

princípio de simples hábito por um proveito “natural”, ain<strong>da</strong> que o costume fosse<br />

“bárbaro”, mas apenas no senti<strong>do</strong> de que era estranho para o europeu. 53 Outro autor<br />

paradigmático, o jesuíta Acosta, embora notasse destinações i<strong>do</strong>látricas, e bastante<br />

superstição em torno <strong>da</strong> planta, também aponta para o excepcional mas natural poder<br />

48<br />

GP 80[80].<br />

49<br />

Note-se que Santa Cruz Pachacuti, embora confirme uma história de incesto, assevera que se trata de<br />

um casamento entre irmãos. Mas o ato teria uma boa justificativa, apesar de ser tabu para a cultura<br />

cristã. O resulta<strong>do</strong> não foi a desgraça <strong>da</strong> linhagem, foi para seu bem e <strong>do</strong> “buen gobierno” nos Andes:<br />

“Este casamiento lo hizo por no haber halla<strong>do</strong> su igual, lo uno [Manco cápac]. Y por no perder la<br />

casta. A los demás no les consintieron por ningún mo<strong>do</strong>, que antes lo prohibieron. Y comenzó a poner<br />

leyes morales para el buen gobierno de su gente, conquistan<strong>do</strong> a los desobedientes” (SANTA CRUZ<br />

PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 19).<br />

50<br />

ADORNO, op. cit., 1986, p. 75.<br />

51<br />

CABOS FONTANA, op. cit., 2000, p. 35.<br />

52<br />

CIEZA de LEÓN, Pedro de. La crónica del Perú, 1962, p. 249.<br />

53<br />

LAS CASAS, Bartolomé de. Apologetica historia sumaria, 1992.<br />

12


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

estimulante <strong>da</strong> <strong>coca</strong>. 54 Guaman Poma, embora fortemente influencia<strong>do</strong> <strong>pelo</strong><br />

pensamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>minicano e <strong>do</strong> jesuíta em muitos aspectos, nunca teve qualquer<br />

tolerância com relação ao costume de colocar a folha <strong>da</strong> <strong>coca</strong> na boca, desmerecen<strong>do</strong><br />

qualquer serventia ao hábito: “no lo dexan el uicio y mal custumbre cin prouecho,<br />

porque quien lo toma lo tiene sólo en la boca ni traga ni lo come”. 55 Vimos que a<br />

substância será puro veneno para Guaman Poma, e o costume de mascá-la terá apenas<br />

senti<strong>do</strong> pejorativo, como asqueroso <strong>vício</strong> de embriaguez. Também será substância <strong>da</strong><br />

i<strong>do</strong>latria: “to<strong>do</strong>s los que comen <strong>coca</strong> son hicheseros que hablan con los demonios,<br />

estan<strong>do</strong> borracho o no lo estan<strong>do</strong> y se tornan locos lo que comen <strong>coca</strong>”. 56<br />

Guaman Poma terá ain<strong>da</strong> ocasião de contemplar perfeita união entre usos<br />

i<strong>do</strong>látricos e o costume de mascar a erva, quan<strong>do</strong> descreve os “í<strong>do</strong>lo[s] i uacas de los<br />

Andi Suyos”. Nesse relato, o autor reflete sobre o culto ao “otorongo” [onça], no qual<br />

se dedicavam os povos <strong>da</strong> “montaña”, isto é, aqueles que vivem nos contrafortes<br />

orientais <strong>da</strong>s serras andinas que submergem na densa floresta amazônica. Lá, segun<strong>do</strong><br />

o cronista, sacrificavam gordura de cobra queima<strong>da</strong>, milho, <strong>coca</strong> e penachos de<br />

pássaros silvestres aos “otorongos”. Além <strong>do</strong> mais, também a<strong>do</strong>ravam o arbusto <strong>da</strong><br />

<strong>coca</strong>. 57 Chamam a folha de “<strong>coca</strong> mama y lo bezen”. Da a<strong>do</strong>ração ao consumo: “luego<br />

lo mete en la boca”. 58<br />

Estas manifestações de uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong>, vincula<strong>da</strong>s ao “culto <strong>do</strong> jaguar”, se acaso<br />

aparentam ser autóctones <strong>da</strong> “montaña”, contraditoriamente, refletiriam costumes fora<br />

de lugar. Vejamos: foi o “filho” ou “capitão” 59 <strong>do</strong> sexto inca (inca Roca), quem<br />

conquistou “Ande Suyo, Chuncho, to<strong>da</strong> la montaña”. Para tal proeza de guerreiros, os<br />

incas se tornam onças. Guaman Poma ain<strong>da</strong> comenta que devi<strong>do</strong> a este artifício –<br />

“dizen” – o “Ynga” impõe o culto ao animal para os índios <strong>da</strong> selvática região <strong>do</strong><br />

Antisuyo. 60 Ou seja, o culto ao jaguar não seria nativo <strong>da</strong> “montaña”, mas importa<strong>do</strong><br />

54<br />

ACOSTA, Joseph de. Historia natural y moral de las Indias, 1962.<br />

55<br />

GP 154[56].<br />

56<br />

Ibid., 278[280].<br />

57<br />

“Acimismo a<strong>do</strong>ran los árboles de la <strong>coca</strong> que comen ellos y ací les llaman <strong>coca</strong> mama” (Ibid.,<br />

269[71].<br />

58<br />

Ibid.<br />

59<br />

Pease propõe que as histórias <strong>do</strong>s “capitães”, às vezes chama<strong>do</strong>s de “filhos” <strong>do</strong>s incas, podem<br />

representar biografias <strong>do</strong>s “incas urin”, pois na estrutura de poder teria havi<strong>do</strong> uma diarquia<br />

hanan/hurin <strong>do</strong>s grandes senhores andinos (op. cit., 1995, p. 279).<br />

60<br />

GP 269[71].<br />

13


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

desde a conquista <strong>pelo</strong>s bravos incas “onças”.<br />

“El sesto capitán, otorongo achachi apo camac inga / Ande Suyo /”<br />

(gravura digitaliza<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> edição:<br />

GUAMAN POMA de AYALA, Nueva crónica y buen gobierno, 1987, fl. 155 [155])<br />

O costume de “comer <strong>coca</strong>” também aparece como responsabili<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s incas<br />

durante o evento <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> “montaña”: a <strong>coca</strong>, “lo comieron y ací se enseñaron<br />

los demás yndios en este reyno”. 61 O costume de mastigar a <strong>coca</strong> aparece<br />

repentinamente. A conquista <strong>do</strong> inca impõe o culto ao jaguar entre os índios <strong>da</strong> selva e<br />

também inaugura o costume de mastigar a <strong>coca</strong> entre os serranos. Numa passagem <strong>da</strong><br />

narrativa, Guaman Poma parece até se esquecer dessa história e imputa a invenção <strong>do</strong><br />

costume de “comer <strong>coca</strong>” ao último inca antes <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> <strong>do</strong>s espanhóis, Huayna<br />

Cápac, tornan<strong>do</strong> mais recente ain<strong>da</strong> o surgimento <strong>do</strong> <strong>vício</strong>. 62 Mas o uso pan-andino <strong>da</strong><br />

61 Ibid., 154[56]. Cf. fólio 103[103].<br />

62 Advirta-se que Guaman Poma, numa passagem de seus repetitivos mas às vezes contraditórios<br />

pareceres, transfere para Huayna Cápac o surgir <strong>do</strong> costume: “cómo el Ynga enuentó y les enseñó a<br />

comer <strong>coca</strong>. Juntamente le enseñó con la ydúlatra y dizen que le sustenta, no creo” (GP 332[334]).<br />

14


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

<strong>coca</strong> perde-se na dimensão <strong>do</strong> tempo arqueológico, independente <strong>da</strong> questão <strong>do</strong><br />

cultivo <strong>da</strong> <strong>coca</strong> ter guari<strong>da</strong>, e muito provavelmente, sua <strong>origem</strong> na região andina<br />

oriental de selva tropical, tal como Guaman Poma ambienta sua história. 63<br />

Na versão desse cronista, o costume de mascar <strong>coca</strong> surge, portanto, através<br />

<strong>do</strong>s líderes guerreiros que apresentam também a marca de hechiceros, não só porque<br />

se transformam em jaguares. 64 O “filho” <strong>do</strong> inca Roca ain<strong>da</strong> “hablaua con trueno”. 65<br />

Estes relatos podem ser sinais <strong>da</strong>quilo que atualmente se interpreta como práticas<br />

xamânicas em uso de plantas psicoativas.<br />

O cronista índio contemporâneo de Guaman Poma, Santa Cruz Pachacuti,<br />

também relata uma <strong>origem</strong> recente de costume com a <strong>coca</strong>. Os <strong>do</strong>is escritores, na<br />

opinião de Salomon, além de apresentarem “aspirações andinas reconcebi<strong>da</strong>s no<br />

disfarce <strong>da</strong> história teleológica renascentista” oferecem a ocasião “de escrever imensa<br />

quanti<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que aparenta ser memória transmiti<strong>da</strong> oralmente”. 66 Assim, talvez<br />

estejamos diante de tradições orais sobre origens de uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong> – ou melhor, diante<br />

de relatos reformula<strong>do</strong>s por estes índios ladinos, devi<strong>do</strong> a suas intenções, numa<br />

retórica bem cristã e de denúncia <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria.<br />

A <strong>coca</strong>, em Santa Cruz Pachacuti, surge num relato em torno <strong>da</strong>s apachitas,<br />

63 Se a relação entre a conquista <strong>do</strong> Antisuyo e o surgimento <strong>do</strong> costume de mascar a <strong>coca</strong> entre os<br />

incas apresenta certa coerência ou plausibili<strong>da</strong>de, se notamos que os relatos apresentam a <strong>coca</strong> como<br />

iguaria restrita aos líderes governantes pré-hispânicos, por outro la<strong>do</strong>, através de acha<strong>do</strong>s arqueológicos<br />

como cerâmicas com formas que aludem a bolas de <strong>coca</strong> entre as gengivas e a membrana bucal, de<br />

utensílios relaciona<strong>do</strong>s com o uso <strong>da</strong> planta, tal como as chuspas, que são bolsas para carregar folhas<br />

de <strong>coca</strong> (e utiliza<strong>da</strong>s até hoje), percebe-se quão remoto no tempo é o costume de mascá-la, e em várias<br />

partes <strong>do</strong>s Andes Centrais (HENMAN, Anthony. Mama Coca; un estudio completo de la <strong>coca</strong>, 2005,<br />

p. 89-90). De outro la<strong>do</strong>, o mais provável é que a <strong>coca</strong> tenha se origina<strong>do</strong> de fato nas selvas que<br />

margeiam o la<strong>do</strong> oriental <strong>do</strong>s altiplanos andinos, como Guaman Poma faz bem considerar – ain<strong>da</strong> que<br />

haja polêmica a respeito <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>do</strong>mesticação e <strong>da</strong>s a<strong>da</strong>ptações ecológicas que propiciaram o<br />

surgimento de varie<strong>da</strong>des genéticas desde a região <strong>do</strong> litoral norte peruano até o oeste <strong>da</strong> bacia<br />

amazônica (ibid., p. 93-95).<br />

64 Instigante associação que faz Guaman Poma entre a <strong>coca</strong> e o líder que se transforma em jaguar. Há<br />

vários trabalhos históricos e etnográficos que debatem o assunto <strong>do</strong> consumo de alucinógenos por<br />

“xamãs” que se transformam em onça, situação que poderia ser interpreta<strong>da</strong> como metáfora <strong>da</strong><br />

alteração <strong>da</strong> consciência, um “êxtase” <strong>do</strong>s guerreiros (Cf. REICHEL-DOLMATOFF, G. El chamán y el<br />

jaguar; estudio de Ias drogas narcóticas entre los Indios de Colombia, 1978).<br />

65 GP 103[103]. Lembremos <strong>da</strong> relação entre os incas e Illapa, a enti<strong>da</strong>de relaciona<strong>da</strong> ao trovão e outras<br />

manifestações climáticas. Através de avaliação de alguns pesquisa<strong>do</strong>res, MacCormack realça que “the<br />

lightning (...) articulated (...) <strong>Inca</strong>’s central position in the cosmic order (...) as expressed in nature and<br />

as replicated in politics and ritual. (...) <strong>Inca</strong> Roca’s mummy, the illapa on the ground (...) called forth<br />

the illapa in the sky. Lightning and the accompanying atmospheric phenomena, rain, hail, storms,<br />

whirlwinds, and the rainbow, represented cosmic forces of meteorological imbalance and war”<br />

(MacCORMACK, op. cit., 1991, p. 292).<br />

66 SALOMON, op. cit., 2000, p. 48.<br />

15


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

montes de pedra construí<strong>do</strong>s nos caminhos, encruzilha<strong>da</strong>s, cimas de montanhas. Os<br />

índios tratam de deixar a massa de <strong>coca</strong> masca<strong>da</strong> como oferen<strong>da</strong> nesses amontoa<strong>do</strong>s<br />

de pedra. Teria si<strong>do</strong> no governo <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> inca, Sinchi Roca, a inauguração <strong>do</strong><br />

“rito” de deixar pedras e <strong>coca</strong> em peculiares paragens. Segun<strong>do</strong> Santa Cruz Pachacuti,<br />

como o governante Sinchi Roca não era afeito às coisas <strong>da</strong> guerra, man<strong>da</strong>va os<br />

capitães e sua gente para as frentes de batalha, quan<strong>do</strong>, certa vez, aparece um “indio<br />

encanta<strong>do</strong>r” entre os guerreiros de Sinchi Roca, os quais deixavam “en ca<strong>da</strong><br />

quebra<strong>da</strong> (...) piedras para hacer fortalezas”. Este “encanta<strong>do</strong>r” sugere que chamem<br />

de “apachitas” aos montões de pedra,<br />

y les puso un rito (...) le había dicho el encanta<strong>do</strong>r al capitán del inca<br />

que to<strong>do</strong>s los sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s echasen <strong>coca</strong>hachos (<strong>coca</strong>s masca<strong>da</strong>s) al<br />

cerro por <strong>do</strong>nde pasaren (...) Y muchas veces aconteció que los<br />

apachitas o cerros (y dentro de ellas) les respondían: ‘¡En hora<br />

buena!’. Con esto fueron creí<strong>do</strong>s por aquella pobre gente de los<br />

tiempos pasa<strong>do</strong>s. 67<br />

Pode-se notar alguns paralelos importantes entre essas histórias de Guaman<br />

Poma e de Santa Cruz Pachacuti. Claramente, a planta <strong>da</strong> <strong>coca</strong> aparece em meio a<br />

eventos considera<strong>do</strong>s i<strong>do</strong>látricos: o “culto ao jaguar” e a “oferen<strong>da</strong>” nas apachitas.<br />

Também, por serem i<strong>do</strong>látricos, tais costumes vêm (naturalmente) pela iniciativa de<br />

hechiceros. Podem entrar no estereótipo de “hechiceros” tanto os incas guerreiros <strong>da</strong><br />

história de Guaman Poma que se tornam onças, como o encanta<strong>do</strong>r que atravessa o<br />

caminho <strong>do</strong>s guerreiros <strong>do</strong> inca, na história de Santa Cruz Pachacuti.<br />

Em ambas crônicas, por fim, os costumes com a <strong>coca</strong> têm <strong>origem</strong> dentro <strong>da</strong><br />

história <strong>da</strong> linhagem <strong>do</strong>s incas. Se os personagens dinásticos são diferentes, têm<br />

bastante similitude quanto a um aspecto fulcral: tais lideranças, o inca Roca e seu<br />

capitão (sextos na linhagem <strong>do</strong>s incas, para Guaman Poma), e Sinchi Roca (segun<strong>do</strong><br />

inca na linhagem, para Santa Cruz Pachacuti), apresentam alguns desvios morais que<br />

denigrem fatalmente suas notáveis figuras. O inca Roca de Guaman Poma é “gran<br />

xuga<strong>do</strong>r [joga<strong>do</strong>r] y putaniero, amigo de quitar hazien<strong>da</strong> de los pobres”, 68 além, é<br />

claro, de iniciar o <strong>vício</strong> de “coquero”. O Sinchi Roca de Santa Cruz Pachacuti, por sua<br />

67<br />

SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 23. Comentários entre parênteses são acréscimos <strong>do</strong><br />

editor.<br />

68<br />

GP 103[103].<br />

16


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

vez, é um <strong>do</strong>s incas mal-vistos <strong>pelo</strong> cronista, um <strong>da</strong>queles que comete peca<strong>do</strong>s e é<br />

conivente com a i<strong>do</strong>latria. Pois “este desventura<strong>do</strong> sinchi Roca dicen que siempre<br />

entendió en regalarse (...) en las fornicaciones”. O filho dele (Lloque Yupanqui), por<br />

outro la<strong>do</strong>, “muy ayuna<strong>do</strong>r (...) había prohibi<strong>do</strong> las fornicaciones y las<br />

borracheras”, 69 enquanto que o pai (Manco Cápac, o primeiro inca), elegera bons<br />

homens para conhecer “el hace<strong>do</strong>r del cielo y tierra” – esta expressão acomo<strong>da</strong><br />

alguma idéia de paralelo entre a enti<strong>da</strong>de Pachacámac com o deus <strong>do</strong>s cristãos. O<br />

primeiro inca montou um grupo de sábios “porque había visto y halla<strong>do</strong> la poca<br />

devoción de su hijo sinchi Roca”. 70 Este Sinchi Roca não entendia que as relações<br />

com as huacas “eran cosas del Enemigo antiguo”, ou seja, <strong>do</strong> demônio, e foi, afinal,<br />

no reina<strong>do</strong> deste inca que “habían comenza<strong>do</strong> a sacrificar con sangre humana y con<br />

corderos blancos y conejos, <strong>coca</strong>s y mollos y con sebo y sanco”. 71 Nesta última<br />

citação (<strong>pelo</strong> signo <strong>do</strong> sacrifício), há o surgimento <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria dentro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

dinastia <strong>do</strong>s incas, um paralelo com Guaman Poma, como se estes <strong>do</strong>is escritores<br />

pertencessem a uma política comum de cristãos ladinos, retiran<strong>do</strong> a chama<strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria<br />

<strong>do</strong> seio <strong>da</strong> cultura indígena e colocan<strong>do</strong>-a como invento de alguns poucos peca<strong>do</strong>res.<br />

Se para Santa Cruz Pachacuti certos incas são contrários à i<strong>do</strong>latria, e retos,<br />

para Guaman Poma, to<strong>da</strong> a linhagem incaica, a partir de Manco Cápac, é idólatra e<br />

receptora <strong>do</strong>s <strong>vício</strong>s. Este último cronista, na descrição <strong>da</strong>s figuras dinásticas, associa<br />

alguns peca<strong>do</strong>s ao ato de usar a <strong>coca</strong>. O inca Huáscar é pinta<strong>do</strong> por Guaman Poma<br />

sempre como um ser fraco e detestável. Ademais, “de puro auariento comía media<br />

noche y por la mañana manecía con la <strong>coca</strong> en la boca”. 72 O cronista relaciona<br />

69<br />

SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 29-31.<br />

70<br />

Ibid., p. 27.<br />

71<br />

Ibid., p. 29.<br />

72 GP 143[143]. Forte indício de aproximação entre os cronistas índios Guaman Poma e Santa Cruz<br />

Pachacuti, em termos de tradição oral compartilha<strong>da</strong>, está no relato sobre a humilhação que sofrera este<br />

inca Huáscar antes de ser executa<strong>do</strong> <strong>pelo</strong> inca Atahualpa, em relato sobre o uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong>. Expliquemos,<br />

antes de tu<strong>do</strong>, que Huáscar foi venci<strong>do</strong> por Atahualpa na guerra pela sucessão dinástica <strong>do</strong> senhorio <strong>do</strong>s<br />

incas, enquanto Pizarro com seus quase duzentos homens, invadia o Peru em 1532. Os espanhóis logo<br />

seqüestram Atahualpa no primeiro encontro em Cajamarca. Mesmo assim, Atahualpa man<strong>do</strong>u matar<br />

seu meio irmão Huáscar, que havia si<strong>do</strong> preso por seus homens em Cuzco, pois temia que Huáscar<br />

assumisse o poder enquanto estava nas mãos <strong>do</strong>s espanhóis – mas logo em segui<strong>da</strong>, Atahualpa também<br />

seria executa<strong>do</strong> <strong>pelo</strong>s conquista<strong>do</strong>res. Enfim, durante o episódio <strong>da</strong> execução de Huáscar <strong>pelo</strong> “ermano<br />

uastar<strong>do</strong> Atagualpa Ynga”, segun<strong>do</strong> Guaman Poma, ocorrem muitas humilhações, tais como: “por<br />

chicha le dieron de ueuer mea<strong>do</strong>s de carnero y de personas. Y por <strong>coca</strong> le presentaron petaquillas de<br />

hoja de chillca [um mato] y por llipta [cinza para mascar a <strong>coca</strong>] le dieron sucie<strong>da</strong>d de persona<br />

maja<strong>do</strong>” (116[116]). Na versão de Santa Cruz Pachacuti, a tortura se dá de maneira bem pareci<strong>da</strong>: “Al<br />

17


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

diretamente o consumo <strong>da</strong> <strong>coca</strong> à gula <strong>da</strong> coya [senhora, mulher] <strong>do</strong> oitavo inca:<br />

“comía muchos manjares y más comía <strong>coca</strong> por uicio; <strong>do</strong>rmien<strong>do</strong> tenía en la boca”. 73<br />

A <strong>coca</strong> está imersa na saca de i<strong>do</strong>latrias e maus costumes. Quanto às eras<br />

anteriores à sinistra saga i<strong>do</strong>látrica <strong>do</strong>s incas, não há sinal de uso <strong>da</strong>s folhas ou <strong>do</strong> pó<br />

de <strong>coca</strong>. E se nos tempos <strong>do</strong> vice-reino <strong>do</strong> Peru, muitos índios, de principais a<br />

tributários, são caracteriza<strong>do</strong>s como “coqueros”, é porque a<strong>do</strong>taram o <strong>vício</strong> <strong>pelo</strong><br />

exemplo <strong>do</strong>s incas, os quais, como pondera Henman, se optaram por segregar e<br />

controlar o uso <strong>da</strong> substância para a elite e para eventos e ritos especiais, isto não<br />

apaga uma antiqüíssima cultura <strong>do</strong> uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong> na enorme extensão <strong>da</strong>s serras<br />

andinas, e enfim, o relativo <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s incas durante um curto perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> história<br />

pré-hispânica não pôde ter impedi<strong>do</strong> o uso <strong>da</strong> <strong>coca</strong> por diversas etnias andinas. 74<br />

Entrementes, é interessante notar que para Guaman Poma a <strong>coca</strong> não deveria<br />

ser elimina<strong>da</strong> <strong>da</strong>s plantações. O cronista faz uma pergunta para si mesmo, no pretenso<br />

diálogo com o rei <strong>da</strong> Espanha, como se, ain<strong>da</strong> que de tão longe, estivesse D. Felipe III<br />

realmente pedin<strong>do</strong> os conselhos e ouvin<strong>do</strong> atentamente D. Felipe Guaman Poma de<br />

Ayala:<br />

Dime, autor, ¿cómo se hará rrico los yndios?<br />

A de sauer vuestra Magestad que an de tener hazien<strong>da</strong> de comuni<strong>da</strong>d<br />

que ellos les llama sapci, de sementeras de mas y trigo, papas, agí,<br />

magno [verdura seca], algodón, uiña, obrage [oficina], teñiría, <strong>coca</strong>,<br />

frutales... 75<br />

Surpreende que justamente a <strong>coca</strong>, planta sempre maldita no discurso <strong>do</strong><br />

escritor, agora, em franco conselho ao rei, deva ter “aumentación” na comuni<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s<br />

índios. 76 Se a retórica de Guaman Poma fecha o caminho <strong>do</strong> consumo <strong>da</strong> <strong>coca</strong> em<br />

forte tom de extirpação <strong>do</strong> <strong>vício</strong>, o juízo final livraria a substância <strong>da</strong> eterna <strong>da</strong>nação.<br />

Lembremos que a <strong>coca</strong> já propiciava, desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVI, grandes<br />

lucros aos que controlavam as plantações e o transporte para abastecer os índios<br />

fin, con la lanza le atraviesan los gaznates y le <strong>da</strong>n de beber orines. Y en lugar de <strong>coca</strong> un poco de<br />

chilca (o sus hojas)” (SANTA CRUZ PACHACUTI, op. cit., 1995, p. 125).<br />

73<br />

GP 135[135].<br />

74<br />

Cf. HENMAN, op. cit., 2005.<br />

75<br />

GP 963[977]. Segun<strong>do</strong> A<strong>do</strong>rno, o esquema de perguntas e respostas que se inscreve na parte final <strong>da</strong><br />

obra, quan<strong>do</strong> Guaman Poma se posiciona abertamente como conselheiro <strong>do</strong> rei, “mimics the formula of<br />

the relación typified in the Relaciones geográficas de Indias (1586)” (op. cit., 1986, p. 07).<br />

76<br />

Ibid., 892[906].<br />

18


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

mineiros, pois era excelente estimulante e também servia para anestesiar as agruras <strong>do</strong><br />

labor inumano. Por isso que a condenação moral <strong>da</strong> <strong>coca</strong> como instrumento <strong>da</strong><br />

i<strong>do</strong>latria indígena, já pronuncia<strong>da</strong> com tanta energia desde o Primeiro Conselho<br />

Eclesiástico de Lima, em 1551, não coibira a proliferação <strong>do</strong>s cultivos e nem frearia a<br />

intensificação <strong>do</strong> consumo. Independente <strong>do</strong> juízo sobre a <strong>coca</strong>, o que parece ter si<strong>do</strong><br />

regra geral é a deman<strong>da</strong> moven<strong>do</strong>, sem cessar, a história de consumo <strong>da</strong> substância.<br />

Guaman Poma, renden<strong>do</strong>-se a este caminho irresistível, procura ao menos reverter o<br />

senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> erva, em projeto de “bom governo” indígena.<br />

Mas as chácaras de cultivo <strong>da</strong> erva serviriam para promover o “<strong>vício</strong>” de<br />

“comer <strong>coca</strong>”? Interroguemos Guaman Poma: a idéia é que os índios vendessem a<br />

<strong>coca</strong> para a “mala casta”? 77 A <strong>coca</strong> é para os perversos negros?<br />

Sem deixar para Guaman Poma a resposta que já não pode nos oferecer,<br />

especulemos que a <strong>coca</strong> deveria ser consumi<strong>da</strong>, principalmente, <strong>pelo</strong>s espanhóis,<br />

<strong>pelo</strong>s detestáveis encomenderos, corregi<strong>do</strong>res, e muitos curas que desgraçariam a<br />

comuni<strong>da</strong>de indígena no vice-reino <strong>do</strong> Peru.<br />

77 Guaman Poma denomina de “mala casta” aos mestiços no vice-reino <strong>do</strong> Peru.<br />

19


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

“Ortelano, Pachacacvna [hortelanos] / ‘Cayllata acullicuy, pana’. [‘Hermana, masca esta <strong>coca</strong>.’] /<br />

‘Apomoy, tura’ [‘Tráela, hermano.’] / coquero /”<br />

(Versão de W. R. Pitta Jr. <strong>da</strong> gravura digitaliza<strong>da</strong> na edição:<br />

Guaman Poma, Nueva crónica y buen gobierno, 1987, fl. 862 [876])<br />

Referências bibliográficas<br />

ACOSTA, Joseph de. Historia natural y moral de las Indias. Edición de Edmun<strong>do</strong><br />

O’Gorman. México: Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, 1962.<br />

ADORNO, Rolena. Guaman Poma; writing and resistance in colonial Peru. Austin:<br />

University of Texas Press, 1986.<br />

CABOS FONTANA, Marie-Claude. Mémoire et acculturation <strong>da</strong>ns les Andes;<br />

Guaman Poma de Ayala et les influences européennes. Paris: L’Harmattan, 2000.<br />

CIEZA de LEÓN, Pedro de. La crónica del Perú. Madri: Espasa/Calpe, 1962.<br />

GUAMAN POMA de AYALA, Felipe. Nueva corónica y buen gobierno. Edición de<br />

Franklin Pease G. Y. / Vocabulario y traducciones de Jan Szemiski (tomos I, II e<br />

III). México: Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, 1993.<br />

__________. Nueva crónica y buen gobierno. Edición de John Murra, Rolena A<strong>do</strong>rno<br />

e Jorge Urioste. Madri: História-16, 1987 – versão digitaliza<strong>da</strong> www.kb.dk [2004].<br />

HENMAN, Anthony. Mama Coca; un estudio completo de la <strong>coca</strong>. Lima: Juan<br />

Gutemberg, 2005.<br />

LAS CASAS, Fray Bartolomé de. Apologetica historia sumaria. Edición de Vi<strong>da</strong>l<br />

Abril Castelló, Jesús A. Barre<strong>da</strong>, Berta Ares Queija y Miguel J. Abril Stoffels<br />

(tomos I, II e III). Madrid: Alianza Editorial, 1992.<br />

LÓPEZ-BARALT, Mercedes. Icono y conquista: Guamán Poma de Ayala. Madrid:<br />

Hiperión, 1988.<br />

MacCORMACK, Sabine. Religion in the Andes; vision and imagination in early<br />

colonial Peru. Princeton: Princeton University Press, 1991.<br />

MILLONES, Luis. Historia y poder en los Andes centrales (desde los orígenes al<br />

siglo XVII). Madrid: Alianza Editorial, 1987.<br />

__________. Los dioses de Santa Cruz; comentarios a la crónica de Juan de Santa<br />

20


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> VIII Encontro Internacional <strong>da</strong> <strong>ANPHLAC</strong> Vitória – 2008<br />

ISBN - 978-85-61621-01-8<br />

Cruz Pachacuti Yamqui. Lima: Pontifícia Universi<strong>da</strong>d Catolica del Perú, s.d.<br />

PEASE G. Y., Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: Pontifícia Universi<strong>da</strong>d<br />

Catolica del Perú; Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, 1995.<br />

REICHEL-DOLMATOFF, G. El chamán y el jaguar; estudio de Ias drogas narcóticas<br />

entre los Indios de Colombia. México: Siglo XXI, 1978.<br />

SALOMON, Frank. “Testimonies: the making and reading of native South American<br />

historical sources” In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart B. (ed.) The<br />

Cambridge History of the native peoples of the Americas. Volume III: South<br />

America (part 1). Cambridge: Cambridge University Press, 2000, pp. 19-95.<br />

SANTA CRUZ PACHACUTI, Juan. Relación de antigüe<strong>da</strong>des de este reino del<br />

Perú. Edición de Carlos Araníbar. Lima: Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, 1995.<br />

VARELLA, <strong>Alexandre</strong> C. “Os <strong>vício</strong>s de comer <strong>coca</strong> e <strong>da</strong> borracheira no mun<strong>do</strong><br />

andino <strong>do</strong> cronista indígena Guaman Poma” In: LABATE et al. (orgs.). Drogas e<br />

cultura: novas perspectivas. Salva<strong>do</strong>r: Edufba, 2008, p. 345-368.<br />

__________. Substâncias <strong>da</strong> i<strong>do</strong>latria; as medicinas que embriagam os índios <strong>do</strong><br />

México e Peru em histórias <strong>do</strong>s séculos XVI e XVII. Dissertação de Mestra<strong>do</strong> –<br />

Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi<strong>da</strong>de de São Paulo,<br />

São Paulo, 2008.<br />

WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus; les indiens du Peróu devant la conquête<br />

espagnole 1530-70. Paris: Gallimard, 1970.<br />

ZAPATA, Jorge. Guamán Poma, indigenismo y estética de la dependencia en la<br />

cultura peruana. Minneapolis: Institute for the Study of Ideologies and Literatures,<br />

1989.<br />

21

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!