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Capitulo 2 - Alessandro Tirloni - Famiglia Tirloni

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CAPÍTULO 2 - ALESSANDRO TIRLONI<br />

Para descrever a sua incrível história humana, pudemos contar com muitíssima<br />

documentação reunida até os nossos dias, mas sobretudo contamos também com os<br />

relatos daqueles que o conheceram pessoalmente: os nossos avós.<br />

Em particular, sinto-me no dever de citar e agradecer (porque é sobretudo<br />

graças a ele que agora posso escrever tudo isto), a meu avô Giuseppe (Peppino)<br />

<strong>Tirloni</strong>, que desde pequeno me fez ficar apaixonado, por meio de seus contos, pela<br />

figura e pelas ações – decididamente nada banais ou inenarráveis – desse nosso<br />

predecessor. Devo citar também o tio do Brasil, Alexandre Merico que manteve viva<br />

essa minha curiosidade nos anos seguintes ao desaparecimento de meu avô.<br />

2.1 – Os primeiros anos<br />

<strong>Alessandro</strong> nasceu em Bariano, na província de Bérgamo, na fazenda Corsa, no<br />

dia 26 de novembro de 1852.<br />

Fazenda Corsa (fotos fevereiro 2002)<br />

Em nossos dias essa fazenda está situada no território municipal de Morengo,<br />

porque a construção da estrada de ferro – que se tornou um claro limite entre os dois<br />

municípios – fez com que os territórios existentes ao norte de Bariano fossem cedidos<br />

ao município vizinho. Entre os territórios de interesse dessa transição estava, também,<br />

a fazenda Corsa, que se situava a poucos metros da empedrada ferrovia.<br />

<strong>Alessandro</strong> nasceu em uma família de colonos rendeiros e foi o último dos<br />

cinco filhos. No momento de seu nascimento sua mãe Giovanna tinha 37 anos,<br />

enquanto que o pai Giovanni - pode-se fazer uma hipótese - talvez já tivesse 40 anos,<br />

e os dois, considerando a idade do primeiro filho Antônio que já tinha 17 anos, eles<br />

tinham se casado há pelo menos 18 anos. Não se pode excluir, portanto, que<br />

<strong>Alessandro</strong> não tenha sido um filho desejado pelos pais, mas como se costumava<br />

dizer naqueles tempos, um filho que “aconteceu”.


<strong>Alessandro</strong> foi batizado na igreja de Bariano, fato que se deduz também pelo<br />

seu certificado de casamento, mas até hoje não foi encontrado o seu certidão de<br />

batismo.<br />

A família <strong>Tirloni</strong> não morou na elegante parte da casa da fazenda com uma<br />

dupla sacada – muito rara, aliás, na arquitetura rural bergamasca – que distinguia a<br />

casa da fazenda, mas ao contrário viveu numa das mais simples e pobres casas dos<br />

rendeiros, colocadas defronte da casa principal da fazenda. De acordo com o Registro<br />

Municipal, a família viveu na casa 51, colocada sobre o andar superior, sobre a<br />

entrada principal da fazenda.<br />

Considerando as dimensões do edifício, deve-se supor que a parte da casa<br />

ocupada pelos <strong>Tirloni</strong> fosse muito pequena (dois ou três quartos no máximo, com<br />

mais um lugar para a cozinha) e todos vivendo apertados, como infelizmente ocorria<br />

nas pobres famílias dos rendeiros.<br />

Sobre a parede externa da casa que era voltada para a campina, estava pintada<br />

(e permanece até os dias de hoje) uma pintura mural representando a Santa Virgem.<br />

Fazenda Corsa : Casa onde nasceu <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong> (fotos ano 2010)<br />

<strong>Alessandro</strong> perdeu o pai sendo ainda criança, e o encargo de genitor foi<br />

assumido por seu tio paterno Giuseppe – que se tornou o novo chefe da família – e<br />

pelos irmãos mais velhos. <strong>Alessandro</strong>, crescendo, demonstrou bem de pressa sua<br />

insatisfação em relação a seus irmãos, pois estes não faziam nada para melhorar a sua<br />

condição econômica de colonos rendeiros. Para eles, era suficiente ter um pouco de<br />

dinheiro para gastar na bodega, mas para <strong>Alessandro</strong>, que desde jovem teria sido<br />

muito apegado ao dinheiro, a passividade dos irmãos era absolutamente inconcebível.


2.2 – A escolha de emigrar para o Brasil<br />

Naquele tempo, as condições de vida para as classes pobres eram muito<br />

difíceis. As privações e dificuldades estavam na ordem do dia, e a iniciativa pessoal<br />

daqueles poucos que procuravam progredir era sempre contrariada de imediato pela<br />

realidade da situação do tempo, principalmente para os colonos rendeiros.<br />

Os colonos rendeiros trabalhavam na terra dos patrões, e a economia rural<br />

impunha que também aqueles poucos pedaços de terra oferecidos a eles, para cultivar<br />

algo para o próprio sustento, eram cedidos com aluguel. E até para pagar esse aluguel<br />

se estabelecia que o que se colhia naqueles pedaços de terras, era dividido em 50%<br />

com os patrões, que obviamente esperavam receber a melhor parte da colheita. Os<br />

colonos rendeiros não só não trabalhavam a própria terra, mas precisavam dar ao<br />

patrão a metade daquilo que produziam nos seus pequenos pedaços de terra.<br />

Para todos os colonos rendeiros, o sonho maior era aquele de serem<br />

proprietários da terra em que trabalhassem, e a proposta do Novo Mundo, no qual<br />

havia muita terra pronta para ser dada a todos aqueles que a requeressem, era um<br />

sonho irresistível, bem como para as poucas pessoas que não se curvavam ao destino<br />

da situação em que haviam nascido, mas que, pelo contrário, tinham vontade de<br />

evoluir e emancipar-se.<br />

Pode-se muito bem compreender que <strong>Alessandro</strong>, um jovem determinado, com<br />

muita vontade de progredir, e a quem não faltava coragem, ficava cada vez mais<br />

incômoda a vida em Bariano, junto de seus irmãos que, ao contrário, pareciam<br />

conformados em sua resignada simplicidade.<br />

Na realidade daquele tempo, faziam muito eco os relatos, muitas vezes de pura<br />

fantasia, sobre as terras longínquas que todos genericamente chamavam “La Mérica”.<br />

Por meio de uma intensa propaganda, estes lugares eram descritos como autênticos<br />

paraísos, nos quais a riqueza e a felicidade estavam ao alcance das mãos de qualquer<br />

um. Na Itália havia verdadeiros recrutadores de imigrantes que, tripudiando sobre a<br />

ignorância popular, descreviam o Brasil como um país da “Cuccanha”, uma terra<br />

onde “corriam torrentes de leite e de mel! Onde as plantas produziam salsichas, onde<br />

havia seis estações de clima quente, e as montanhas eram abarrotadas de ouro e de<br />

pedras preciosas!” Ainda hoje, no Brasil, os nossos parentes mais velhos recordam<br />

aquilo que os velhos imigrantes contavam: “Na Itália diziam que no Brasil existia<br />

uma planta que dava como fruto as salsichas”. Esta planta foi revelada como sendo a<br />

bananeira.<br />

A tudo isso acrescente-se o fato de que o governo brasileiro ajudava os colonos,<br />

seja dando a terra gratuitamente, seja oferecendo aos colonos uma ajuda de várias<br />

espécies, e por um certo período, a viagem para o Brasil na terceira classe dos navios<br />

era grátis. É fácil, portanto, pensar que miragem representava tudo isto para uma<br />

mente frágil e faminta. Todas essas notícias procediam diretamente da propaganda<br />

dos postos de imigração.<br />

Os opúsculos de propaganda apontavam também sobre as ilustrações dos


navios que faziam a rota entre a Itália e o Brasil, ilustrações essas que eram<br />

mostradas com todo seu esplendor, garantindo uma viagem cômoda e sem problemas.<br />

Talvez essas notícias chegaram também a Bariano, e foram ouvidas por<br />

<strong>Alessandro</strong>...<br />

Paginas de propaganda (segunda metade ‘800)<br />

Embora a respeito disso não existam provas orais, mas tenhamos apenas uma<br />

anotação colocada a lápis em um registro amarelado pelo tempo, na família <strong>Tirloni</strong> foi<br />

verificado um caso de alguém que se rebelou contra a sorte e foi tentar fazer fortuna<br />

emigrando: Giovanni Battista, um dos irmãos de <strong>Alessandro</strong>, 15 anos mais velho, que<br />

parece ter emigrado para a América, mas não se sabe em que data, nem para onde.<br />

Talvez, induzido pelo exemplo do irmão mais velho, mas sobretudo pela<br />

vontade de melhorar de vida, <strong>Alessandro</strong> decidiu realizar aquilo que, por todos os<br />

efeitos, pode-se chamar de “O grande passo”: Emigrar para o Brasil!<br />

Presumivelmente os seus irmãos se transferiram, em seguida, para a fazenda<br />

Seriana de Morengo, onde permaneceram por muitos anos. Atualmente essa fazenda<br />

está desabitada, mas os descendentes dos <strong>Tirloni</strong> da fazenda Seriana ainda vivem em<br />

Marengo. Esta é a única notícia que até agora temos de todo o resto da família de<br />

<strong>Alessandro</strong> que permaneceu na Itália. (Estas indicações foram feitas pelo senhor<br />

Bettani Battista, atual proprietário da fazenda Corsa).<br />

Sobre a data de partida para o Brasil, há muitas divergências, e até agora não<br />

foi encontrada nenhuma prova escrita ou testemunho comprovado. Meu avô Peppino


dizia que <strong>Alessandro</strong> tinha partido com 17 anos, portanto em 1969/1870, com apenas<br />

40 liras no bolso, o que para um emigrante eram muito poucas. Um tio do Brasil, que<br />

muitas vezes visitou a Itália, de nome Alexandre Merico, memória histórica<br />

autorizadíssima de nossa família, sustentava, em vez, que a partida havia ocorrido em<br />

torno de 1873/1875. De seguro sabe-se que as primeiras notícias de Porto Franco são<br />

de 1876, e aliás, o próprio município, baseado em estudos, coloca como data de sua<br />

fundação o período compreendido entre maio e junho de 1876.<br />

Um dado que reforça a tese de uma partida mesmo neste ano é reportada em<br />

um livro escrito em 1892 que, falando do território da baixada bergamasca, assegura<br />

que a mais numerosa onda de emigração em direção à América ocorreu de fato em<br />

1876. “...Só da pequena Bariano emigraram mais de 200...”.<br />

O que será que <strong>Alessandro</strong> teria pensado no seu último dia vivido em<br />

Bariano?... Talvez o sonho de uma vida melhor tenha sido um estímulo muito forte<br />

para animá-lo ainda mais. Quem sabe que emoções teria provado quando pegou suas<br />

poucas coisas – talvez fechadas dentro de uma mala de papelão – e saiu da casa, na<br />

qual tinha vivido toda a sua vida, para ir ao encontro do desconhecido...<br />

Quem sabe se teria voltado o olhar na direção da pintura da Santa Virgem (que<br />

estava estampada sobre o muro externo de sua pobre casa, sobre o arco de entrada<br />

meridional) e teria feito uma oração ou uma intercessão, dirigida àquela que<br />

seguramente era considerada pela gente da fazenda como a “sua” Madonina.<br />

Cascina Corsa : particolare del dipinto mariano murale (fotografie – anno 2010)<br />

Não sabemos se <strong>Alessandro</strong> era um crente devoto e observante de sua religião,


como, aliás, é toda a sua descendência, e como particularmente a totalidade da gente<br />

daquele tempo. A precaução e determinação que sempre o distinguiram deixa quase a<br />

imaginar que se tratasse de uma pessoa não muito inclinada aos sentimentos<br />

religiosos e à fidelidade...<br />

Não nos é dado sabê-lo, mas com certeza não deve ter sido um momento fácil,<br />

nem sequer para um jovem determinado e ambicioso que já tinha um caráter<br />

decididamente duro e forte, o que, aliás, sempre o distinguiu.<br />

Certamente a “santa ignorância” - com esse termo se quer dizer literalmente a<br />

“falta completa de cultura” - teria sido uma ajuda, pois <strong>Alessandro</strong> não sabia<br />

absolutamente o que iria encontrar pela frente, e portanto não se lhe colocava nem<br />

sequer o problema daquilo que poderia acontecer. Admitindo que tivesse sabido que<br />

se falava uma língua estrangeira, e que a natureza era completamente diferente<br />

daquela da nativa planície bergamasca, seguramente ele não tinha sequer a<br />

capacidade de intuir plenamente o que significariam obstáculos desse tipo.<br />

Acrescente-se ainda o fato de que os emigrantes, muito provavelmente, eram<br />

voluntariamente deixados no desconhecimento do longo tempo que deveriam gastar<br />

na viagem, antes de chegar à sonhada meta da terra americana. A falta de cultura<br />

impedia de realizar o conceito absoluto de “distância”. Na mente simples da pobre<br />

gente, habituada a raciocinar usando como termo de comparação a própria realidade<br />

local e a própria vivência, os 50 km que separavam a cidade de Milão da cidade de<br />

Bérgamo, fazia com que esses dois lugares fossem considerados como “muito<br />

distantes entre eles”. Falar da América estava absolutamente fora de sua possibilidade<br />

mental, como poderia ser para nós falar de viagens espaciais!<br />

Nas crônicas dessas viagens, bem como pelas recordações diretas que faziam,<br />

na época, muitos emigrantes, muitas vezes ouvia-se dizer que pessoas embarcadas em<br />

Gênova, e tendo o navio feito escala depois de alguns dias de navegação, por exemplo<br />

em Nápoles ou em qualquer porto da França meridional, essas pessoas acreditavam<br />

de já tinham chegado na América...<br />

Basta pensar que <strong>Alessandro</strong> nunca havia visto o mar, e agora se apresentava<br />

para atravessá-lo!... Eis o mar, esse desconhecido! Com certeza não foi fácil e rápido<br />

chegar até Gênova, partindo de Bariano. Não se sabe como chegou, mas pode ser que<br />

tenha gastado mais de um dia só para chegar a ver, pela primeira vez em sua vida,<br />

essa novidade: o mar.<br />

Não se sabe com certeza em que navio <strong>Alessandro</strong> embarcou, mas é muito<br />

provável que se tratasse do navio (naquele tempo chamado de “vapor”, ou também de<br />

“bastimento”) de nome “Norte América” que, por estudos feitos no Brasil, chegou de<br />

Gênova em 1876 com cerca de 900 emigrantes. Durante esta viagem por mar,<br />

<strong>Alessandro</strong> encontrou-se com as famílias Morelli, Maestri, e Cavalca. Com o tempo<br />

estas famílias acabaram ligando-se a ele por vínculos de parentesco matrimonial.


A travessia durava cerca de 35 a 40 dias, e foi para todos uma experiência<br />

traumática. A fome, o frio, as dificuldades de todo tipo, como também a falta de<br />

higiene, tornavam-na um autêntico inferno. Os dormitórios de terceira classe eram<br />

deslocados abaixo do nível do mar, (coisa ocultada nos opúsculos) e por isso a<br />

renovação do ar era praticamente inexistente. Ocorria às vezes que por causa da<br />

grande afluência de emigrantes nos navios, eram criados quartos improvisados onde<br />

pouco antes estava armazenado o carvão para as caldeiras, e obviamente tudo isto era<br />

feito sem antes fazer alguma limpeza.<br />

Dormitórios de terceira classe (foto fim ‘800)<br />

As crônicas assim descrevem estas verdadeiras viagens da esperança: “Por<br />

causa do frio o emigrante se jogava sobre o leito, vestido, e com os sapatos nos pés.<br />

Ali depositavam os pacotes e as malas. As crianças ali deixavam a urina e as fezes, e<br />

mais ainda, ali vomitavam”. Depois de alguns dias, cada cama se tornava “um covil<br />

de Cachorros”.<br />

Nos dormitórios o ar se tornava, bem depressa, irrespirável, e então os<br />

emigrantes, de vez em quando, para fugir dos sórdidos dormitórios comuns, subiam<br />

para a cobertura para respirar, pálidos, tremendo de frio, com a cabeça envolta nos<br />

lenços de bolso, com o paletó às avessas para não gastá-lo, posicionando-se costas<br />

contra costas para aquecerem-se e armarem-se de coragem.<br />

Os emigrantes eram completamente abandonados a si mesmos, e as crônicas<br />

navais não desmentiam o fato de que chegavam também a ocorrer casos de morte por<br />

fome, porque os suprimentos alimentares, talvez mal calculados, terminavam!


Emigrantes em viagem para “La Merica” (fotos fim ‘800)<br />

Estas viagens representavam também uma tremenda matança de crianças. A<br />

viagem para o Novo Mundo tornava-se, muitas vezes, para os mais pequenos, uma<br />

verdadeira matança, e eram sobretudo as epidemias de sarampo e de varicela a<br />

provocar mortes em massa. A falta de remédios apropriados, a degradação do<br />

ambiente dos dormitórios, e muitas vezes a incompetência do pessoal médico,<br />

tornavam aquilo que poderia ser uma doença infantil normal, um verdadeiro surto de<br />

perigosa epidemia.<br />

As crônicas apontadas pelos nossos familiares sobre esses fatos são unânimes<br />

ao contar uma história, a dizer pouco, traumatizante: “Durante a longa travessia do<br />

oceano, ao desgaste físico dos passageiros, devido às más condições nas quais<br />

deviam viver, somavam-se as doenças contagiosas como tifo, cólera, contágios<br />

pestilentos (causados por ratos), para não falar dos distúrbios pulmonares como<br />

gripes e pulmonites, devidos à umidade, bem como à famigerada “pellagra” (devido<br />

a uma dieta baseada somente na polenta), e ao escorbuto causado pela falta de


vitamina “C” na alimentação. Não poderiam ser diferentes os problemas nos navios<br />

abarrotados nos quais havia promiscuidade entre seres humanos, bagagens e<br />

animais, sem ventilação, e nos quais proliferava toda sorte de imundícies (como<br />

ratos, pulgas, piolhos, moscas e vermes)”.<br />

Funerais em mar(segunda metade ‘800)<br />

Ao ouvir esses relatos, torna-se muito natural pensar que em geral todos os<br />

emigrantes partiam impelidos pela fome e pela “santa ignorância”, mas sobretudo


sustentados pela fé. Não se pode encontrar outras explicações!<br />

Quem sabe o que <strong>Alessandro</strong> teria pensado nas longas noites transcorridas no<br />

navio... Naquele momento, por certo, teria descoberto todas as dificuldades e a<br />

periculosidade de uma escolha como a sua. Será que teria, por exemplo, tomado<br />

conhecimento de que o mar era uma barreira deveras intransponível, e que se<br />

resolvesse voltar para casa seria obrigado a tomar um navio, e precisaria de dinheiro<br />

para a passagem.<br />

Evidentemente não seria como emigrar para outros países europeus, dos quais,<br />

no caso das coisas darem errado, poder voltar a pé. O mar seria uma barreira que<br />

excluía completamente a possibilidade de retorno, em caso de falência, e o Novo<br />

Mundo poderia transformar-se em uma prisão! Do Novo Mundo não se voltava a não<br />

ser ricos!<br />

Depois de muitos dias de navegação, finalmente <strong>Alessandro</strong> avistou a nova<br />

terra: o Brasil! O navio fez escala primeiro no Rio de Janeiro, depois em Paranaguá,<br />

em seguida em São Francisco, e finalmente chegou à etapa final, onde <strong>Alessandro</strong><br />

desembarcou: a cidade de Itajaí.<br />

Emigrantes italianos em America do sul (fotos fim ‘800)<br />

Era o momento dos controles médicos. Devido às péssimas condições nas quais<br />

as pessoas eram constrangidas a viajar, era muito comum contraírem doenças, e neste<br />

caso os imigrantes eram rejeitados e enviados de volta para sua pátria, ou pelo menos<br />

colocados em quarentena. Às vezes ocorria que navios inteiros eram reencaminhados<br />

ao porto de partida porque estavam infestados de epidemias. <strong>Alessandro</strong> superou os<br />

exames médicos previstos para os emigrantes. Trazia sobre os ombros o desgaste da<br />

vagem, mas a esperança do Mundo Novo, finalmente encontrado, lhe fez depressa<br />

esquecer todos os cansaços e os sofrimentos da viagem apenas vividos, e estava<br />

pronto para enfrentar, com decisão, o resgate social tão sonhado!


2.3 A Aposta de Porto Franco<br />

Na cidade de Itajaí todos os emigrantes se dividiram. <strong>Alessandro</strong> juntamente<br />

com um grupo de emigrantes bergamascos (entre os quais as famílias Morelli e<br />

Maestri) iniciaram a subida pelo rio que atravessava essa cidade, o rio Itajaí, para se<br />

estabelecerem na região, graças a uma lei do Governo que concedia aos colonos uma<br />

porção de terra para cultivar. Chegaram, enfim, na região onde hoje situa-se a cidade<br />

de Brusque.<br />

Chegados ali, se deram conta de que os melhores lotes de terra já tinham sido<br />

dados à comunidade alemã, e que a eles não restava outra coisa senão os terrenos<br />

mais afastados, cobertos daquilo que no Brasil chamam de “mata”, uma floresta densa<br />

e inexplorada, atravessada pelo rio Itajaí-Mirim.<br />

Provavelmente pararam vários dias em Brusque, talvez por um mês, alojados<br />

em uma barraca, na Rua das Carreiras, na localidade hoje chamada de Águas Claras.<br />

<strong>Alessandro</strong> arranjou-se como pôde, e para ganhar algum dinheiro para matar a fome<br />

chegou a andar pelas ruas vendendo fósforos.<br />

Isto não é absolutamente o que <strong>Alessandro</strong> esperava, e a situação começou<br />

tomar decididamente um rumo ruim. Depois de todas as fadigas sofridas, encontravase<br />

de fato numa situação ainda pior, em relação àquela deixada na Itália, e é por isso<br />

que, juntamente com o pequeno grupo de emigrantes bergamascos, tomou a decisão<br />

mais arriscada, mas para todos os efeitos a mais sensata: decidiu prosseguir a viagem.<br />

Compradas barcaças e canoas, continuaram a subir pelo rio. Pararam só quando<br />

chegaram a um ponto no qual o rio fazia uma grande curva e se encontrava com um<br />

riacho atualmente chamado de “Ribeirão de Porto Franco”.<br />

Justamente na confluência entre os dois rios, havia um remanso com uma<br />

pequena praia que se apresentava como o lugar mais seguro para atracar as canoas.<br />

Daqui partiram a pé para explorar a região. Enquanto estavam desbravando, foram<br />

surpreendidos por um violento temporal com chuvas muito fortes que, em pouco<br />

tempo, fizeram transbordar todos os rios. Os exploradores retornaram de imediato às<br />

embarcações, preocupados com a possibilidade de não mais encontrar seus únicos<br />

meios de transporte, mas ao contrário, com grande surpresa e alegria, viram que as<br />

suas barcas giravam sobre as águas no lugar onde haviam sido atracadas!<br />

A partir desse momento os pioneiros decidiram ficar e estabelecer-se neste<br />

lugar. Iniciaram a construção de um núcleo de casas – obviamente cabanas de<br />

madeira – ao qual foi dado o nome de Porto Franco, e que hoje se chama Botuverá,<br />

(palavra indígena Tupi-Guarani que significa “Pedra Preciosa” ou “Montanha<br />

Brilhante” - nome que teve origem na existência de várias minas de ouro e metais<br />

preciosos presentes na região, ou nas belas montanhas cobertas de mata atlântica).<br />

Cada família procurou um lugar para viver, delimitou uma área como sua<br />

propriedade, e depois esse primeiro núcleo foi acrescido de outros imigrantes. Pouco


a pouco, depois de sua fundação, Porto Franco tornou-se um núcleo habitado por<br />

cerca de 500 pessoas. Estes, em seguida, foram colonizando outras localidades, todas<br />

situadas ao longo do vale do rio Itajaí-Mirim (Águas Negras, Ribeirão do Ouro,<br />

Lajeado, Gabiroba etc.)<br />

Não se sabe com certeza quais as famílias que chegaram inicialmente nesta<br />

colônia. Ouvindo os relatos dos mais idosos (descendentes diretos dos pioneiros) e<br />

realizando acurados estudos sobre a escassa documentação disponível (trata-se de<br />

arquivos paroquiais, hoje guardados em Florianópolis) pôde-se estabelecer que entre<br />

os primeiros pioneiros estavam em torno de 33 pessoas, mas não se pode excluir que<br />

também havia crianças entre eles. Seus sobrenomes eram: Aloni, Bettinelli,<br />

Bonomini, Bósio, Comandolli, Dognini. Gianesisni, Maestri, Molinari, Morelli,<br />

Pedrini, Raimundi, Rampelotti, Tomio e <strong>Tirloni</strong>.<br />

Esses dados são extraídos dos arquivos do município de Botuverá, e portanto a<br />

tradição oral que se transmitiu em família, até os nossos dias, foi oficializada. Ela<br />

coloca o nosso avô <strong>Alessandro</strong> entre os primeiros pioneiros, entre aqueles poucos<br />

impávidos que desafiaram as insídias de um território desconhecido e se lançaram até<br />

aquele remanso e aquela pequena praia segura, no rio Itajaí-Mirim, para fundar essa<br />

colônia, na qual até hoje se fala um dialeto bergamasco restrito, composto ainda por<br />

termos dos anos de 1800, termos esses que já desapareceram do hodierno dialeto da<br />

atual província de Bérgamo.<br />

Por um certo tempo, ninguém de Brusque daquele tempo ouviu mais falar dos<br />

colonos bergamascos que tinham subido o rio dentro da floresta, e pensavam até que<br />

aqueles colonos tinham morrido todos, vítimas dos animais ferozes, da natureza<br />

agreste, ou mais provavelmente, mortos pela população dos “Bugres” (os indígenas<br />

autóctones, assim chamados). Em vez, os pioneiros, a preço de muita fadiga e até de<br />

derramamento de sangue, chegaram a levar a melhor, sobre tudo e sobre todos.<br />

A este ponto foi aberto um capítulo por certo não decoroso para a nossa<br />

história, relativo ao relacionamento com os indígenas. Sobretudo nos primeiros<br />

tempos, os confrontos entre os pioneiros e os indígenas eram praticamente contínuos.<br />

Essas populações autóctones eram sedentárias ou talvez migravam por uma área não<br />

muito grande, e obviamente não toleravam a presença do homem branco em seus<br />

territórios, e procuravam caçar de todos os modos aqueles que efetivamente eram<br />

invasores de suas terras.<br />

Inicialmente os pioneiros procuravam conviver com os indígenas, mas não era<br />

nada fácil. Conforme os relatos transmitidos, no começo os indígenas não eram<br />

particularmente maus e não procuravam logo matar, mas eram decididamente<br />

belicosos, e portanto, as tentativas de entendimento foram praticamente logo<br />

substituídas por ameaças armadas.<br />

Um relato transmitido ainda no tempo atual pelo velho tio que ainda vive e


eside em Botuverá – Durval Luís Maestri, filho de Albina <strong>Tirloni</strong>, e portanto neto de<br />

<strong>Alessandro</strong> – o qual conta com uma lucidez e uma ênfase impressionantes, de como<br />

os primeiros colonos, cansados dos contínuos assaltos dos indígenas e das mortes que<br />

provocavam, a partir de um certo momento decidiram resolver o problema de maneira<br />

definitiva. Formaram um grupo armado de pistolas e machados que penetrou pela<br />

floresta, e por 8 dias seguiu as pegadas dos indígenas na esperança de encontrar o seu<br />

acampamento.<br />

Guerreiros Bugri da tribo XoKleng (fotos século XIX)<br />

Durante aqueles dias de buscas, o grupo ficou em absoluto silêncio, comendo o<br />

menos possível, sem fumar (naquele tempo todos os homens fumavam cachimbo),<br />

nem sequer acendeu o fogo, de noite, para não fazer-se descobrir pelos índios.<br />

(“Sensa boca, sensa mangià e sensa pipà) conta o tio Durval. Passados 8 dias<br />

encontraram no coração da floresta um grande acampamento no qual, em uma única<br />

oca estavam reunidos todos os índios da tribo, O grupo dos colonos esperou que<br />

escurecesse, que todos os indígenas dormissem, e só então, sempre em silêncio,<br />

entraram na oca e com os machados cortaram a cabeça de todos: homens, mulheres,<br />

velhos e crianças. Contava-se que o sangue chegava até os joelhos... Obviamente tudo<br />

isso é muito exagerado, mas dá alguma ideia da carnificina realizada.<br />

Dessa matança só se salvaram uma jovem senhora que estava acordada para


amamentar suas duas crianças, e os dois indiozinhos. O grupo dos pioneiros não teve<br />

coragem de matar uma indefesa mãe e suas duas crianças que ali olhavam<br />

aterrorizadas. A índia e seus dois filhinhos foram levados com a intenção de integrálos<br />

na comunidade, mas infelizmente a índia e, em um segundo momento também<br />

uma das crianças, foram mortos porque se rebelavam contra os colonos.<br />

A outra criança, a menor das duas, ao contrário, tinha um caráter mais manso e<br />

obediente. Foi levada para Porto Franco, integrou-se na comunidade, criou a sua<br />

família, e viveu muitos anos, morrendo de velhice nos anos 60. Toda a comunidade de<br />

Brusque conhecia a história dessa pessoa porque tinha-se tornado famosa na região,<br />

graças à sua capacidade futebolística colocada a serviço do primeiro time de futebol<br />

da cidade de Brusque.<br />

Acampamento indigena do tribo XoKleng (fotos século XIX)<br />

Não se sabe se <strong>Alessandro</strong> teria feito parte dessa missão punitiva. O tio Durval<br />

sustenta que é possível, pois <strong>Alessandro</strong> era um dentre os jovens da comunidade,<br />

tinha um caráter decididamente forte, provavelmente não tinha muitos escrúpulos e,<br />

portanto, era uma pessoa ideal para a missão daquele tipo.<br />

O problema dos assaltos por parte dos índios não foi definitivamente resolvido<br />

com aquele episódio. Os relatos transmitidos em família, bem como as crônicas<br />

daquele tempo contavam os sanguinolentos encontros havidos também muitos anos<br />

depois daquele tremendo morticínio. Ao final dos anos 40, o meu bisavô Emanuele<br />

<strong>Tirloni</strong> contava como também nos seus tempos – portanto nos inícios dos anos


novecentos – acontecia de esbarrar nas tribos dos nativos, e era preciso lutar contra<br />

eles (ghéra de combat cuntra i Bugheri”, contava com ênfase). Querendo ou não, o<br />

homem branco era o usurpador de suas terras, e portanto era um adversário a ser<br />

eliminado.<br />

As crônicas de Porto Franco narram detalhadamente também a brutalidade dos<br />

Bugres quando atacavam. Escondiam-se no meio da mata, ficavam imóveis por horas<br />

a fio para estudar os movimentos dos colonos, depois os atacavam com arcos e<br />

flechas, e não davam chances aos desafortunados colonos. Não faziam distinção ente<br />

homens, mulheres ou crianças, e sobretudo, uma vez mortos, os corpos dos infelizes<br />

eram objeto de um ritual de barbárie absolutamente incrível: cortavam os pulsos e os<br />

tornozelos (ou talvez até cortavam as mãos e os pés) das vítimas para fazer escorrer<br />

todo o sangue, e depois o corpo era cortado em pedaços, os quais eram levados<br />

embora pelos indígenas como troféus.<br />

Isso acontecia sobretudo quando os colonos provocavam os indígenas,<br />

debochando e rindo deles. Infelizmente ocorria também isso: os colonos estavam<br />

armados de pistolas, enquanto os indígenas tinham apenas arcos e flechas (talvez<br />

envenenadas). Estando em uma situação de superioridade por causa das armas, os<br />

colonos sentiam-se protegidos, tornavam-se desprezadores e provocadores dos<br />

indígenas. Era sobretudo esse o motivo que desencadeava a fúria indígena. Essa gente<br />

não gostava absolutamente de ser provocada, mas os pioneiros não queriam saber<br />

disso e continuavam a provocá-los.<br />

Pessoalmente sou levado a crer que o bisavô Emanuele não pertencia àquele<br />

grupo de pessoas que provocava os indígenas porque se sentiam seguros por causa de<br />

suas armas de fogo. Sou propenso a crer que se tratasse de esporádicos combates<br />

ocorridos – talvez até cruentos – os quais o bisavô precisou enfrentar simplesmente<br />

porque teve a má sorte de encontrar-se no lugar errado, no momento errado.<br />

Obviamente não todos os indígenas eram iguais, e nem todos os colonos eram<br />

tão estúpidos de quererem provocá-los. Falava-se também das diversas ocasiões nas<br />

quais, na mesma Porto Franco, a autêntica amizade entre colonos e Bugres era coisa<br />

ordinária, a tal ponto de estarem na mesma mesa, indígenas e colonos. Seria de<br />

esperar que se encontrassem, frente a frente, o indígena pacífico e o bom colono, e<br />

que se agisse de tal forma correta, ou pelo menos de forma diplomática, para não se<br />

chegar a provocá-lo. Infelizmente não acontecia sempre assim, e o preço pago com o<br />

derramamento de sangue foi alto para ambas as partes.<br />

Apesar de verem-se impelidos a enfrentar esse difícil problema de<br />

relacionamento com as populações indígenas, os pioneiros iniciaram a trabalhar a<br />

terra que cansativamente tinham conquistado. A região de Porto Franco é<br />

montanhosa. As poucas terras planas encontravam-se vizinhas às margens do rio, e a<br />

floresta cobria todos os montes, e portanto a agricultura era, pelo menos nessa fase<br />

inicial, quase impossível. A maior parte dos colonos era de origem agrícola, e a única


coisa que todos sabiam fazer era mesmo aquilo próprio do agricultor. A primeira coisa<br />

que os pioneiros começaram a fazer foi desmatar os terrenos, a fim de prepará-los<br />

para cultivar.<br />

É preciso lembrar que naqueles tempos o fato de desmatar a floresta virgem era<br />

vista pelo governo brasileiro como uma verdadeira bênção, pois chegava a tornar<br />

produtiva uma terra que até então não servia para nada, e ainda mais que todos os<br />

riscos ligados a essa emancipação eram assumidos pelos novos colonos. Para<br />

incentivar o nascimento de uma nova economia onde antes não havia nada, a não ser<br />

floresta improdutiva, o governo em um primeiro momento oferecia a esses pioneiros<br />

todos os instrumentos necessários para aquele fim, como também as sementes e<br />

alguns animais domésticos, tudo isso para que também nesse canto escondido do<br />

Brasil chegasse a se desenvolver uma primordial economia<br />

A madeira cortada foi inicialmente utilizada para construir as primeiras casas,<br />

nas quais se estabeleceram os colonos, criando os primeiros recintos de vida e as<br />

primeiras propriedades. Foi assim que começou a tomar forma a vila inicial de Porto<br />

Franco. Obviamente não devemos imaginar uma vila como se pode tipicamente<br />

entender na Europa, com as casas todas vizinhas entre elas. Nos seus primórdios,<br />

Porto Franco devia parecer como uma grande clareira na floresta, na qual, de vez em<br />

quando, ao longo do rio, apareciam pequenas clareiras com uma cabana ao meio, um<br />

pequeno sinal de civilização, em meio à floresta selvagem. Provavelmente as clareiras<br />

não eram nem sequer coligadas por uma rede de caminhos, mas ao contrário, a via<br />

fluvial era a única via de comunicação entre um lugar e outro.<br />

Uma vez criada a planta inicial da vila, com certeza foi construído também o<br />

primeiro edifício que tinha uma função bem definida: um lugar para o culto. Naquele<br />

tempo, a devoção e o compromisso religioso eram um valor absolutamente<br />

fundamental e preponderante. Como bem disse durante a festa bergamasca de<br />

Botuverá de 2009 o nosso primo Padre Alírio José Pedrini: “A fé era a força dos<br />

imigrantes”. A fé servia para o encorajamento em meio às dificuldades, e bem<br />

podemos imaginar quais e quantas tenham sido, nesse primeiro período. A fé<br />

auxiliava a manter um contato – mesmo se puramente espiritual – com os próprios<br />

caros parentes permanecidos na Itália, os quais eram recomendados aos cuidados e à<br />

piedade de Deus. A fé também contribuía para fazer parar o trabalho por um<br />

momento, bem como para se refazerem das fadigas e para encontrar as luzes nos<br />

momentos de incerteza. Mesmo que na comunidade não estivesse presente um padre,<br />

foi construído um edifício do qual não se podia prescindir: uma pequena igreja.<br />

Provavelmente nessa igreja estava presente somente um crucifixo, talvez<br />

esculpido ali mesmo, mas isso era suficiente para dar à nossa gente um ulterior<br />

sentido de comunidade, e não se pode excluir que aquilo representasse o único ponto<br />

de união para os pioneiros, que com dias marcados e constantes, ali se encontravam<br />

para rezar e agradecer a superação dos perigos. Nada de mais fácil do que adivinhar o<br />

lugar escolhido para a primeira igreja. Outro lugar não seria senão o local onde agora


se encontra a igreja paroquial de Botuverá!<br />

Os pioneiros, nesses primeiríssimos tempos, iniciaram também a penetrar nas<br />

áreas circunstantes, e foi sobretudo graças às impressões que estes lugares deixaram<br />

aos exploradores que foram escolhidos os nomes para essas localidades: Águas<br />

Claras, Águas Negras, Ribeirão do Ouro, Cedro e outras localidades. Elas foram<br />

batizadas dessa forma, graças às primeiras impressões que despertaram nos colonos<br />

que as exploravam, e ainda hoje mantêm os nomes dados por esses detalhes que se<br />

tornavam um nome usado por todos.<br />

4Matrimonio e Filhos<br />

<strong>Alessandro</strong>, que já estava no Brasil um pouco mais de um ano, conheceu e se<br />

enamorou por uma moça de nome Elisabetta Colombi, filha de imigrantes italianos,<br />

nascida em Caravággio – na província Bérgamo – em 1855 ou 1856 (não se conhece a<br />

data exata de seu nascimento). Essa moça era filha de Calisto Colombi e Francesca


Tadini (Os documentos divergem quanto aos nomes Taddini, Tardini, Thardina), mas<br />

o mais correto seria mesmo Tadini.<br />

Esta família era originária de uma vila da baixada bergamasca, tão cara e<br />

conhecida de todos os emigrantes pela presença do Santuário de Santa Maria da<br />

Fonte, conhecido de todos com o nome de Santuário de Nossa Senhora de<br />

Caravaggio, construído depois da aparição da Santa Virgem, aparição essa ocorrida<br />

no dia 26 de maio de 1432.<br />

Santuario di Nostra Signora di Caravaggio (vista dal lato dei porticati nord)<br />

A devoção popular da gente bergamasca (e não só) em relação a esse Santuário<br />

Mariano é até hoje muito grande, e em tempos remotos, em cada casa havia uma<br />

imagem ou talvez um quadro da Madonna di Caravaggio, diante da qual as famílias<br />

se reuniam em oração.<br />

Os emigrantes muitas vezes levavam consigo essa imagem, e também no Brasil<br />

há muitas igrejas dedicadas à “Madonna di Caravaggio”, e na própria periferia de<br />

Brusque encontra-se o santuário de Nossa Senhora de Azambuja, no qual se venera<br />

uma dessas imagens, levada por um emigrante de Treviglio, de sobrenome Colzani.


Santuário Nossa Senhora de Azambuja e quadro da “Madonna de Caravaggio” (fotos ano 2009)<br />

Elisabetta emigrou para o Brasil conjuntamente com toda a sua família, e no<br />

arquivo histórico do Rio de Janeiro foram encontrados os documentos de imigração<br />

que trazem todas as datas da viagem realizada pela família Colombi.<br />

Documento de imigração de Elisabetta Colombi<br />

(foto ano 2009)<br />

O grupo embarcou no vapor Ester, que partiu de Gênova no dia 12 de<br />

dezembro de 1876, e desembarcou em Piúma, no estado do Espírito Santo, no dia 21<br />

de janeiro de 1877. Daqui reembarcaram no vapor brasileiro Alice e chegaram ao Rio<br />

de Janeiro no dia 17 de fevereiro de 1877, e finalmente no dia 28 de fevereiro de 1877<br />

embarcaram no navio brasileiro Rio Grande, com destino a Itajaí, para depois


chegarem até a colônia de Porto Franco.<br />

Por meio do registro dessa viagem, temos à disposição todas as datas. Inclusive<br />

pode-se ver que a odisseia destes pobres desesperados, do momento da partida de<br />

suas casas da Itália até a chegada à nova terra durou um total de três intermináveis<br />

meses.<br />

O núcleo familiar era composto do chefe de família, Calisto Colombi, de 49<br />

anos (nascido em 1828), a mulher Francesca, de 43 anos, (nascida em 1834) e os<br />

seus 4 filhos:<br />

–Francesco de 25 anos (nascido em 1852)<br />

–Stefano de 23 anos (nascido em 1854 desposou Rosa Caresia<br />

–Maria de 16 anos (nascida em 1861)<br />

–Elisabetta de 13 anos (nascida em 1864 desposou <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong>)<br />

Analisando esse documento aparece a evidente discrepância em relação à idade<br />

de Elisabetta, que foi registrada aos 13 anos, antes do que aos 21 ou 22... Mas a coisa<br />

se torna absolutamente impossível se considerarmos os vários documentos que<br />

existem a seu respeito. A esta altura tornam-se fortes as suspeitas também sobre a<br />

veracidade das outras idades do núcleo familiar.<br />

Um relato transmitido pela Tia Giuseppina Martinelli, mulher de Eliseu <strong>Tirloni</strong>,<br />

e portanto nora de <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta, afirma que os dois jovens teriam feito toda<br />

a viagem por mar, juntos, e teriam chego juntos no Brasil. Tanto é verdade que a tia<br />

Giuseppina contava que nos primeiros dias de sua aventura, os dois andavam juntos<br />

pelas estradas vendendo fósforos.<br />

Essa história não é confirmada por nenhuma prova, mas ela é bem possível.<br />

Seria até possível que os dois já se conhecessem, ou até já seriam namorados, e por<br />

isso tomaram a decisão de enfrentar juntos essa aventura. Se fosse verdadeira essa<br />

suposição, significaria que <strong>Alessandro</strong> não precisou enfrentar todo esse desconhecido,<br />

sozinho!<br />

Infelizmente, depois desse documento, não se sabe mais nada do que ocorreu<br />

com o outros componentes do núcleo familiar dos Colombi. Não se sabe se<br />

permaneceram todos no Brasil, nem se permaneceram todos a viver na região de<br />

Brusque, ou se se deslocaram para outra região. A única notícia que se sabe, no que se<br />

refere à descendência desse grupo, foi fornecida pelo Padre Adilson Colombi que, em<br />

anos recentes, viera para a Itália para visitar-nos, e explicou como ele descendia de<br />

Stefano Colombi, irmão de Elisabetta.<br />

<strong>Alessandro</strong> e Elisabetta casaram-se no dia 07 de junho de1878 (um pouco mais<br />

de um ano depois da chegada de Elisabetta no Brasil), e foram testemunhas os<br />

senhores Agostinho Paloschi e Giacomo Pelissoli. Não há provas efetivas de que o<br />

matrimônio tenha sido celebrado na igreja de Porto Franco, porque naquele tempo<br />

essa comunidade não era considerada como paróquia, mas como parte da paróquia de<br />

Brusque, e a nível municipal, todas essas terras de pioneiros eram consideradas<br />

indistintamente com o nome de “Colônia de Itajaí”. Mas é provável que o casamento


tenha sido celebrado em Porto Franco, por oportunidade de uma visita pastoral do<br />

padre.<br />

Certidao de casamento <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong> – Elisabetta Colombi (ano 1878)<br />

Analisando a certidão de casamento deles, evidencia-se uma forte discrepância<br />

entre as idades declaradas no ato, e as idades efetivas que tinham os dois jovens nessa<br />

data. Para <strong>Alessandro</strong> foi indicada a idade de 21 anos, quando em vez ele tinha 25. E<br />

para Elisabetta foi indicada uma idade de 18 anos, mas na verdade ela tinha 22 ou 23.<br />

Uma outra coisa que deixa fortes dúvidas a propósito da data deste casamento está<br />

presente no registro municipal de Bariano, no qual está indicada como data de<br />

casamento o dia 28 de agosto de 1876, mas essa data está em total contradição com<br />

os documentos de imigração relativos a Elisabetta, e portanto é julgada<br />

absolutamente inadequada.<br />

Vê-se, pois, que no caso de Elisabetta os erros anagráficos são berrantes: em


dois documentos exarados em um ano de diferença, a data de nascimento de<br />

Elisabetta muda bem 4 anos, e parece absolutamente impossível que ela se tenha<br />

casado com apenas 14 anos. Assim como não há dúvidas a respeito da data de<br />

nascimento de <strong>Alessandro</strong> (idêntica em mais documentos) pode-se pensar que se trata<br />

de erros de transcrição ocorridos no momento em que foram redigidos tais atos, ou<br />

talvez de erros de leitura cometidos em nossos dias ao reler os velhos registros, mas<br />

não se pode excluir que, por motivos ignorados por nós, as idades das diversas<br />

pessoas tenham sido voluntariamente comunicadas de forma errada.<br />

O casal <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta se estabeleceu na casa que ainda existe (em<br />

parte, e muito modificada), e está situada na Rua Kennedy, a duas centenas de metros<br />

da igreja, e defronte do rio Itajaí-Mirim, na zona imediatamente acima do “porto<br />

franco” do qual se falou no início. Às costas da casa há uma colina com as encostas<br />

cobertas de capoeira e mato que chegam mesmo a estar por cima da própria casa.<br />

Trata-se de uma das poucas casas de alvenaria construídas naquele tempo. A casa,<br />

como é vista em nossos dias, foi transformada. Ficou muito menor e com o teto<br />

rebaixado. Os tijolos à vista da parte externa foram encobertos por reboco.<br />

Casa della famiglia <strong>Tirloni</strong> a Porto Franco (fotografia - Agosto 2009)<br />

Pelas raras fotos da época nas quais se vê a casa, pode-se notar que as<br />

dimensões originais eram muito grandes (tinha mais de 20 metros de comprimento, e<br />

tinha um andar de sótão habitável). Certamente a casa deve ter tido também uma<br />

função “comercial”, portanto com espaços para depósitos e para a venda de produtos,<br />

bem como dormitórios para acolher aqueles que trabalhavam nas numerosas<br />

propriedades de <strong>Alessandro</strong>. Além de dar acolhimento aos trabalhadores, a casa servia


para dar lugar à numerosa família que veio a se criar. Em nossos dias, um tão grande<br />

número de filhos parece de verdade incrível, mas é preciso considerar que na época<br />

era coisa apenas um pouco acima da normalidade.<br />

Da união de <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta nasceram 12 filhos:<br />

1) Joana (16-07-1880 / 11-03-1934)<br />

Desposou João Morelli (06-12-1874 / 04-02-1940)<br />

2) Rosa (06-12-1881 / 15-06-1839)<br />

Desposou Carlos Tridapalli (06-12-1874 / 27-07-1942)<br />

3) Albina Paschoa (13-04-1884 / 03-03-1968)<br />

Desposou José André Maestri, chamado de “Zio Üsippi” (30-11-1883 / 15-11-1968)<br />

4) João (20-09-1885 / 17-04-1927)<br />

Desposou Narcisa Geselle (04-06-1885 / 20-04-1966)<br />

5) Vittorio (03-11-1887 / 21-10-1966)<br />

Desposou Lucia Cucchi, chamada de “Zia Cia” (08-03-1894 / 06-04-1994)<br />

6) Angela (30-05-1889 / 20-09-1947)<br />

Desposou Agostino Nava (03-09-1884 / 10-10-1953)<br />

7) Emanuele, chamado no Brasil de “Zio Maneca” (27-09-1890 / 28-11-1950)<br />

Desposou Rosa Morosini ( 22-01-1893 / 27-12-1939)<br />

8) Vittoria (21-07-1892 / 03-12-1964)<br />

Desposou Giacomo Costa (23-02-1891 / 11-09-1985)<br />

9) Francesca (30-10-1893 / 22-04-1920)<br />

Desposou Agostino Pesenti (28-03-1890 / 28-06-1969)<br />

10) Eliseo (30-05-1895 / 03-11-1964)<br />

Desposou Giuseppina Martinelli (31-03-1900 / 06-03-1988)<br />

11) Angelo (13-11-1896 - Julho 1909)<br />

12) Antônia (13-06-1899 / 14-07-1957)<br />

Desposou Francesco Galliani (02-05-1889 / 28-09-1948)<br />

Como se pode observar, todos os filhos nasceram num lapso de tempo de 19<br />

anos, e enquanto nos primeiros anos de matrimônio os nascimentos foram bastante<br />

distantes, nos oito anos ente 1884 e 1896 nasceram 10 filhos. Isso permite pensar que<br />

sobretudo nos anos entre 1879 e 1883 teriam ocorrido nascimentos de outros filhos,<br />

que talvez vieram a faltar prematuramente.


Quando nasceu a última filha, os pais já estavam respectivamente com 47 e 43<br />

anos, mas também neste caso não se pode excluir que tenham nascido outros filhos<br />

nos anos imediatamente sucessivos a essa data, e também esses, porém, teriam<br />

prematuramente vindo a faltar.<br />

Lendo as certidões de Batismo dos filhos de <strong>Alessandro</strong>, se tem certeza de que<br />

na colônia de Porto Franco, nesse entremeio, foi edificada uma capela dedicada a são<br />

José, na qual foram batizadas todas essas crianças.<br />

Como já foi mencionado acima, não sabemos nada daquilo que ocorreu com a<br />

família de Elisabetta, mas agrada pensar que os seus irmãos, irmãs e pais<br />

permaneceram na vila de Porto Franco, ou nas terras vizinhas e, portanto, eram uma<br />

verdadeira família – bem assim como na tradição bergamasca – para todas essas<br />

crianças <strong>Tirloni</strong>. Agrada pensar que existiram avós e tios Colombi - pais e irmãos de<br />

Elisabetta, - que divertiam os sobrinhos, que contavam as histórias do passado e das<br />

tradições italianas, contos talvez romanceados para despertar a sua infantil admiração<br />

pela terra italiana, e as perícias da viagem por mar. É uma satisfação pensar que<br />

também essas crianças, - filhos de <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta - como todas as crianças<br />

daquele tempo, tenham podido viver a sua meninice em uma realidade de típica<br />

família patriarcal bergamasca.<br />

2.5. A mente empreendedora<br />

Como era a vida em Porto Franco no final dos anos oitocentos? Seguramente<br />

não era nada fácil!<br />

O único problema que, eu creio, de fato ninguém tinha em Porto Franco era a<br />

fome. O alimento não era de ricos e nem tão variado, mas não faltava. A natureza<br />

selvagem que circundava este pequeno povoado situado no meio das montanhas, por


um lado representava um obstáculo quase intransponível, e de outro lado assegurava<br />

aos pioneiros o sustento necessário para viver. Todos tinham à disposição os frutos<br />

oferecidos pela floresta, a carne dos animais (matavam-se e se comiam macacos,<br />

cobras, veados, pacas, cotias, porcos do mato e muitos outros animais típicos de<br />

engorda) e chegavam a fabricar farinha de milho ou de mandioca, com as quais<br />

preparavam a “polenta” e o “pão”. Observando os indígenas, os colonos moveram-se<br />

cautelosamente, mas chegaram a experimentar também alimentos decididamente<br />

estranhos, como por exemplo, o miolo de uma particular palmeira chamada de<br />

palmito.<br />

Fazendo uma análise geral, deduz-se que além das normais dificuldades que<br />

todo mundo encontrava naqueles tempos, aqui no Brasil acrescentavam-se ainda<br />

outras. Antes de tudo, as vias de comunicação com o resto do mundo eram<br />

absolutamente primitivas. Não sei quando foi aberta a estrada para carros, mas<br />

seguramente a estrada que conduzia a Brusque, por muitos anos permaneceu pouco<br />

mais do que uma picada, e o caminho de comunicação mais usado era o rio. Pode-se,<br />

pois, intuir quanto tempo se empregava para fazer chegar à vila todas as mercadorias<br />

necessárias aos vários habitantes.<br />

O único médico morava em Brusque, e portanto, quando alguém se sentia mal,<br />

ou então sofria um acidente, tinha a sorte marcada! Imagino que, principalmente nos<br />

primeiros tempos da colonização, os casos de intoxicação alimentar fossem bastante<br />

frequentes porque os pioneiros deviam instruir-se sobre a natureza que os circundava,<br />

tão diversa daquela à qual estavam habituados na nativa planície bergamasca. E não<br />

era suficiente observar os hábitos dos indígenas, porque os estômagos não estavam<br />

“preparados” para os alimentos oferecidos pela floresta. Precisavam descobrir aquilo<br />

que era comestível e aquilo que não era, e isto seguramente teria exigido um<br />

pagamento de vidas humanas...<br />

As mulheres eram aquelas que levavam a pior, nesta comunidade arcaica, e<br />

muitas vezes morriam de parto, também porque, sobretudo nos primeiros anos, não<br />

havia a presença de uma parteira. No inverno ocorriam as geadas e com isso as<br />

crianças eram acometidas de doenças respiratórias, como também de febres. As<br />

infecções faziam vítimas indistintamente. Não era fácil ficar velho neste canto do<br />

mundo!<br />

A natureza mesma já era por si só o primeiro elemento que se lançava contra os<br />

colonos. O forte calor do longo tempo de verão (muito mais longo que o nosso, na<br />

Itália), impedia a conservação dos alimentos, mas sobretudo exercia um forte<br />

impacto sobre os animais. Porto Franco surgia, de fato, em meio a uma floresta densa,<br />

onde pululavam sobretudo as serpentes, muitas das quais eram venenosas.<br />

O bisavô Emanuele contava, por exemplo, que próximo de sua casa cresceram<br />

plantas de palmitos, dos quais todos (sobretudo o bisavô) eram gulosos, mas não<br />

podiam aproximar-se porque ali se aninhavam as serpentes. A coisa à qual deviam<br />

estar particularmente atentos era impedir que as cobras entrassem em casa, e para


fazer isto deviam colocar espelhos diante das portas e das janelas, de modo que as<br />

serpentes, vendo-se refletidas no espelho, ficassem paralisadas e assim pudessem ser<br />

capturadas (e eventualmente também comidas)<br />

Dos relatos transmitidos pela tia Giuseppina Martinelli sabemos, também, que<br />

durante uma saída no meio do mato, um dos filhos de <strong>Alessandro</strong> – provavelmente o<br />

Vittorio, mas não sabemos com certeza – confrontou-se com um grande e perigoso<br />

felino (talvez uma onça) que o perseguiu para devorá-lo. O jovem chegou<br />

miraculosamente a subir numa árvore, mas como o animal não desistia de sua ideia,<br />

precisou passar a noite acordado sobre a planta, por causa do medo de cair por terra e<br />

ser devorado. Pela manhã, <strong>Alessandro</strong> organizou uma expedição com os filhos e<br />

alguns homens da comunidade, dividiram-se em grupo, e finalmente encontram o<br />

jovem ainda sobre a planta, tremendo de medo por causa da bruta aventura passada.<br />

Compreende-se, portanto, quais e quantas as dificuldades encontraram essas<br />

pessoas na vida de todos os dias. Sem contar que, para tornar a coisa ainda mais<br />

difícil, às vezes faziam-se presentes os “vizinhos de casa” nem sempre agradáveis: os<br />

Bugres!<br />

Todas essas coisas, por certo, não desencorajaram a gente desta comunidade<br />

que, a despeito de tudo, continuava a crescer e a prosperar. Novos imigrantes<br />

chegavam de contínuo, e muitos se lançaram ainda mais para o interior, na tentativa<br />

de fazer fortuna, desfrutando todas as riquezas que este canto do mundo lhes oferecia.<br />

Como já foi dito precedentemente, fosse qual fosse a atividade que os<br />

imigrantes quisessem empreender, deviam partir todos de um primeiro e fundamental<br />

princípio: “desmatar”. Para criar um lugar para eles, precisavam desmatar a densa<br />

mata que recobria a totalidade da área, e no começo a madeira cortada era utilizada<br />

pelos mesmos pioneiros para erguer as suas casas, nas quais iriam morar. Mas o que<br />

fazer de toda essa madeira que em seguida se continuava a cortar?<br />

A esta altura veio a <strong>Alessandro</strong> a intuição que seria a base de sua riqueza, e lhe<br />

permitiria de evoluir velozmente de sua condição de pioneiro: “a madeira”. Percebeu<br />

que na cidade de Brusque e sobretudo na cidade portuária de Itajaí havia uma<br />

constante procura por madeira para satisfazer a sempre mais crescente necessidade da<br />

cidade, bem como da área portuária e das atividades que floresciam graças ao<br />

comércio portuário.<br />

A cidade de Itajaí vivia em função de seu porto, e todos os dias chegavam<br />

navios carregados de imigrantes e de gêneros comerciais. Pode-se, portanto,<br />

facilmente concluir que a economia estava em contínua e forte expansão, e a procura<br />

por madeira sempre em alta.<br />

A bacia geográfica de utilização do porto compreendia também grandes cidades<br />

que surgiram no interior como, por exemplo, Brusque e Blumenau, das quais<br />

dependiam todos os centros e pequenos povoados que vinham sendo criados e se<br />

desenvolviam no interior, graças aos trabalhos dos vários grupos de imigrantes, os


quais dependiam completamente das mercadorias que chegavam desta mesma cidade<br />

de Itajaí. Pode-se bem compreender que o porto de Itajaí representava, com pleno<br />

direito, o motor pulsante que fazia girar a economia, assegurava a prosperidade, e<br />

garantia a vida de uma vasta região. Do exterior chegavam ao porto os produtos<br />

industriais que seriam distribuídos aos imigrantes, e do interior chegavam ao porto os<br />

produtos que eram produzidos na região.<br />

Para garantir a funcionalidade de toda essa economia em forte crescimento era<br />

necessária muita madeira (seja para construir a infraestrutura civil e comercial, seja<br />

para garantir a funcionalidade do próprio porto). Portanto, a procura por madeira<br />

crescia, e a cidade de Itajaí viria em breve tempo a ser conhecida como “o porto da<br />

madeira”.<br />

<strong>Alessandro</strong> percebeu as potencialidades que podia oferecer um território como<br />

aquele de Porto Franco, no qual, como já foi dito, cada um era obrigado a criar para si<br />

um espaço na densíssima floresta para fazer qualquer coisa, desmatando. Para<br />

<strong>Alessandro</strong>, a natureza selvagem de Porto Franco era o típico caso no qual “nem todo<br />

mal vem para piorar”, e decidiu desfrutar a seu favor aquela que para os outros<br />

parecia ser uma incômoda necessidade: o desmatamento, e assim agindo, decidiu<br />

satisfazer a necessidade da grande cidade portuária, iniciando a sua atividade com as<br />

serrarias e o comércio de madeira.<br />

Obviamente <strong>Alessandro</strong> não era o único que teve a intuição de investir todas as<br />

suas forças no comércio de madeira, mas pode ser que tenha sido o primeiro de Porto<br />

Franco a fazer uma semelhante coisa, e mesmo por isso, chegou a evidenciar-se e a<br />

distinguir-se entre todos os pioneiros da colônia.<br />

É preciso admitir que, sobretudo naquele tempo, não era coisa tão fácil chegar a<br />

se decidir de abandonar o único serviço que se sabia fazer, para o qual se tinha<br />

conhecimentos seguros, (no caso de <strong>Alessandro</strong>: trabalhar como colono) para<br />

empreender qualquer coisa de absolutamente novo e nunca experimentado antes.<br />

Portanto, era preciso render méritos e honras a quem fez uma escolha decididamente<br />

corajosa. Mas como começou tudo isto?<br />

Pode ser que mesmo defronte de sua casa, ao longo da margem do rio, surgisse<br />

a primeira serraria aberta por <strong>Alessandro</strong>. Ainda hoje, mas como também na foto dos<br />

anos 60, de fronte da casa havia um grande espaço vazio com barracões ao lado.<br />

Portanto, tudo faz pensar que na época de <strong>Alessandro</strong> aquele fosse o lugar no qual as<br />

toras cortadas eram empilhadas para depois serem serradas, e onde as tabuas eram<br />

preparadas para serem expedida para a cidade, aproveitando a correnteza do rio.


No círculo vermelho a velha casa <strong>Tirloni</strong> em Porto Franco (foto inicio anos ’60)<br />

Nos primeiros anos nos quais iniciou essa atividade, <strong>Alessandro</strong> teria junto de<br />

si poucas outras pessoas, e o trabalho a realizar teria sido decididamente muito<br />

grande. As árvores eram cortadas e depois levadas para as serrarias para serem<br />

serradas e trabalhadas, a fim de reduzi-las à dimensões exigidas pelo mercado. As<br />

grandes companhias que compravam a madeira davam preferência a pedaços menos<br />

volumosos, e por consequência, mais maleáveis. Para tanto, a madeira era trabalhada<br />

várias vezes antes de poder ser vendida, e para fazer tudo isto era preciso construir<br />

infraestruturas não pequenas.<br />

A escolha do transporte pela água apareceu logo a mais natural e econômica, e<br />

portanto, desde logo, optou por essa solução para todos os deslocamentos que era<br />

preciso fazer com a madeira.<br />

Antes de tudo <strong>Alessandro</strong> providenciou a construção de serrarias nas quais os<br />

maquinários eram movidos pela força das águas. Depois providenciou a construção<br />

de uma rede de canalizações que ligando-se entre elas levavam as toras cortadas até<br />

as serrarias, e daqui até o rio Itajaí Mirim. Todas essas canalizações deviam ser muito<br />

bem organizadas para garantir a suficiente força motriz às rodas que moviam os<br />

maquinários das serrarias, mas deviam também ser bem reguladas para garantir<br />

suficiente quantidade de água, também durante as estações de seca.<br />

Dos relatos dos velhos de Porto Franco, vem-se a saber com precisão,<br />

que o modo de amarrar a madeira era muito preciso. Quando a madeira estava nas<br />

medidas requeridas pelo mercado, eram feitas pilhas, cada uma formada por 24<br />

tábuas bem amarradas entre si, e depois eram lançadas nas águas do rio Itajaí Mirim.<br />

Cada uma destas pilhas era amarrada a outras semelhantes, até formarem um grupo<br />

de 8 pilhas, e só a este ponto toda essa grande balsa era deixada livre de ser


impulsionada pela correnteza, e transportada até a cidade portuária de Itajaí.<br />

Muitos eram os riscos que as pessoas deviam enfrentar para fazer todo este<br />

trabalho, desde o corte das toras na floresta, prosseguindo, depois, nos inconvenientes<br />

da elaboração. Mas a parte mais perigosa estava mesmo no rio, quando era preciso<br />

amarrar junto as várias pilhas, pois era preciso estar dentro da água, e acontecia que,<br />

às vezes, as cordas se rompiam e as tábuas de madeira se soltavam na água,<br />

envolvendo os infelizes.<br />

A viagem ao longo do rio não era, portanto, menos perigosa. Para guiar as<br />

balsas e estar pronto para intervir de imediato, era preciso estar sobre as próprias<br />

balsas, e portanto estar ainda mais à mercê da força das águas do rio. Sobretudo na<br />

região das Águas Negras, muitas vezes os balseiros incorriam em perigos nas<br />

corredeiras que ali o rio formava, ou ao contrario, nos períodos de seca ocorria que as<br />

balsas ficavam trancadas, e mais do que em outros momentos, as cordas se rompiam e<br />

então havia o perigo.<br />

É preciso considerar, também, o fato que, para intervir em caso de acidente ou<br />

perigo, mas também para chegar a governar no rio as balsas de madeira (sobretudo no<br />

pedaço mais tumultuoso do rio entre Porto Franco e Brusque) eram necessários<br />

muitos braços. Portanto, cada vez que ocorria uma expedição de madeira, do pequeno<br />

povoado partiam pelo menos 10 pessoas. Chegados a Brusque, a viagem tornava-se<br />

mais fácil para transportar a madeira até o porto de Itajaí.<br />

A maior parte desses homens não sabia nadar, portanto pode-se bem<br />

compreender que cada viagem representava um risco altíssimo, e a vida de cada um<br />

poderia vir a ser interrompida a cada momento.<br />

Uma vez chegados ao destino e vendida a madeira, o grupo devia enfrentar a<br />

viagem de retorno, a pé, até Porto Franco. Dos relatos dos velhos sabe-se que eram<br />

necessários cerca de quatro ou cinco dias só para essa viagem, e portanto, feita a<br />

conta, ficavam fora de Porto Franco por ao menos uma semana. A viagem de retorno<br />

servia também para parar em Brusque e comprar eventuais provisões para levar à<br />

vila. No entanto, ao menos nos primeiros tempos, o mais pesado era levado<br />

diretamente pelo rio, com as canoas.<br />

Podemos imaginar quais e quantos foram os riscos nos quais incorreu<br />

<strong>Alessandro</strong> nessa atividade. No início, certamente, era obrigado a estar presente<br />

como primeira pessoa a todas essas fases (uma mais arriscada que a outra), e só em<br />

segundo momento, quando a sua atividade já estava bem encaminhada, poderia<br />

permitir-se de encarregar a outros o desempenho das fases mais pesadas e mais<br />

arriscadas de todo esse processo. Enfim, <strong>Alessandro</strong> tinha força e coragem para<br />

vender!<br />

Os outros habitantes de Porto Franco empreendiam outras atividades. A família<br />

Maestri, por exemplo, possuía um forno para secar os tijolos e as telhas. Outras<br />

pessoas dedicavam-se ao cultivo da terra e à engorda de animais. Havia pessoas que


construíram fornos para fazer cal, bem como trabalhadores que trabalhavam nas<br />

minas. Aos poucos formaram-se os mais tradicionais trabalhos, como por exemplo, os<br />

forneiros, os carpinteiros, os ferreiros, e como em todas as aventuras pioneirísticas,<br />

não faltavam as pessoas que procuravam ouro ou as pedras preciosas ao longo dos<br />

vários rios, enquanto outros, ainda, se especializaram num trabalho insólito que os<br />

tornaria famosos, a tal ponto de até hoje se falar deles: os caçadores de Bugres!<br />

<strong>Alessandro</strong>, ao invés, perseverava com a atividade da serraria, tornava-se para<br />

todos os efeitos um empreendedor, e o seu investimento viria, como foi dito, bem<br />

depressa premiado por um retorno econômico tão grande, a ponto de fazer dele o<br />

homem mais rico de toda essa região. Ao fim de sua aventura brasileira chegaria a<br />

possuir decididamente muitas propriedades em terrenos, utilizadas para tirar a<br />

madeira para suas serrarias, as quais se tornaram logo um lugar de procura de<br />

trabalho para muitos imigrantes que vieram trabalhar para ele.<br />

Depois de anos, as crônicas eram concordes em afirmar que o único modo de<br />

fazer dinheiro neste canto do Brasil era, com certeza, entrar no comércio da madeira.<br />

2.6 A vida da família em Porto Franco<br />

Como já foi acentuado em mais ocasiões, a realidade cotidiana em Porto<br />

Franco era um caso mais único do que raro. O fato de que a colônia tenha sido<br />

fundada e habitada por imigrantes pela quase totalidade originários da província de<br />

Bérgamo, fez com que, desde o nascimento, a colônia mesma tivesse uma face<br />

seguramente típica, e por nada cosmopolita. O isolamento ao qual foi relegada por<br />

causa de sua posição geográfica fez com que estes aspectos tenham permanecido


imutáveis até os nossos dias.<br />

Para um turista qualquer dos dias de hoje, Porto Franco (agora chamada de<br />

Botuverá) é uma etapa de viagem certamente muito interessante. Nos primeiros<br />

postos na lista dos municípios do estado de Santa Catarina que melhor preservam a<br />

natureza, Botuverá apresenta-se entre os primeiros lugares. Aqui pode-se visitar<br />

cavernas, tomar banho em cachoeiras de água doce e saborear produtos genuínos,<br />

desde o mel ao vinho. Mas se sois bergamascos, uma parada, aqui, se torna<br />

obrigatória. Vir aqui é muito mais do que simplesmente fazer a clássica viagem de<br />

retorno no tempo.<br />

Em Botuverá estão difundidos todos os bons costumes que distinguem a cultura<br />

bergamasca, mas em um contexto, com toda certeza, bem insólito, pois não é coisa<br />

de todos os dias se poder comer polenta com queijo, ou jogar Boccia e a “morra”<br />

debaixo de palmeiras. Aqui se pode!<br />

Graças ao seu isolamento, os seus habitantes souberam preservar até os dias de<br />

hoje todos aqueles usos importantes da província italiana da qual os seus vós tinham<br />

partido. De pai para filho, por gerações, foram transmitidos todos os hábitos<br />

bergamascos, desde os de culinária até os de jogos. Querendo chegar ao extremo,<br />

penso que até o hábito da gente bergamasca de “blasfemar” aqui poderia vir a ser<br />

considerado como uma “atitude” tipicamente bergamasca, digna de ser conservada.<br />

Aquilo que mais do que outra coisa deixa atônito um visitante hodierno, é que<br />

aqui todos falam um dialeto, que por decênios foi a única “língua oficial” da vila.<br />

Trata-se de uma fala feita por vocábulos que em Bérgamo não se usam mais, faz<br />

decênios, e contaminado por toda uma série de outros dialetos italianos, do<br />

mantovano ao tirolês, bem como do português, ou melhor, aquilo que eles chamam de<br />

“Il brasilian”, misto entre bergamasco e português. Um dialeto estranho, mas<br />

decididamente compreensível, proposto também nas canções do repertório do coral<br />

da vila, fundado em 1920. Em Botuverá se celebra uma vez ao ano uma Missa em<br />

Bergamasco, e se comem os produtos de Bérgamo na festa bergamasca, aliás, orgulho<br />

de toda a comunidade.<br />

Sobrevividos até os nossos dias, os usos e tradições pareceriam, portanto,<br />

estarem destinadas a desparecer, porque, primeiro a estrada asfaltada, depois a<br />

televisão e a internet reduziram as distâncias desta “Bérgamo tropical” e o resto do<br />

Brasil. Mas não obstante a vinda da modernidade, os jovens da comunidade estão<br />

ainda mais que obstinados a conservar com saudável orgulho a sua herança cultural,<br />

na qual estão firmes.<br />

Aquilo que, com certeza, jamais desaparecerá é a hospitalidade da gente de<br />

Botuverá. Pessoalmente estiva nas casas das famílias que vivem ainda no respeito à<br />

natureza e à mais tradicional vida de colônia. As casas espelham aquela singela<br />

beleza tipicamente de colonos. A vocação religiosa das famílias traz à mente as<br />

recordações de quantos hábitos religiosos estavam presentes em nossos avós, que


não começavam uma refeição sem ter rezado alguma oração. Aqui, em cada família<br />

existe ao menos um parente padre ou freira, mesmo como sendo uma boa tradição<br />

bergamasca.<br />

A atmosfera que se respira em Botuverá é como aquela do filme “Albero degli<br />

Zoccoli”, (= A árvore dos tamancos), obra prima de Ermano Olmi que muitos aqui<br />

conhecem.<br />

Idêntica atmosfera, mas com um dialeto diferente, mais parecido com a fala vêneta,<br />

com uma idêntica fixação às próprias raízes e aos valores familiares, encontram-se na<br />

vizinha cidade de Nova Trento, na qual, por ocasião de nossa visita, foram-nos<br />

tributadas honras, a dizer pouco, impensáveis.<br />

Um belo grupo de pessoas deram vida a um caloroso encontro convivial –<br />

improvisado em 24 horas – entre parentes, feito de cantos italianos acompanhados<br />

pela gaita de boca tocada pelo octogenário patriarca. Foi uma jornada de serenidade e<br />

sincera alegria que marcaram indelevelmente, e que não podem mais ser esquecidas.<br />

A oportunidade de nossa viagem às cidades de Botuverá e Nova Trento foi,<br />

além de tudo, uma ocasião para recordar a importância de nossas próprias origens e<br />

dos nossos antepassados, da qual a família descende, e cujos retratos foram exibidos<br />

com veneração. Foi um momento a mais para renovar a tradição dos relatos<br />

transmitidos oralmente aos nossos jovens que, em silêncio, postados ao redor,<br />

escutavam os velhos narrar incríveis histórias verdadeiras de autêntico heroísmo,<br />

sacrifícios e dores suportados com cristã resignação, na esperança de um amanhã<br />

muito melhor.<br />

A população com a qual tivemos contato era composta de pessoas que nos<br />

escutavam com sorriso, que nos mostraram e descreveram os produtos de sua terra<br />

(tão diversos dos nossos), e que se emocionaram só ao saber de nossa proveniência,<br />

vindos daquela Itália de que tantas vezes ouviram falar e nunca viram de perto, mas<br />

tão presente em sua realidade. De fato, tanto amigos encontrados nesta inesquecível<br />

experiência confirma que aquilo que torna única uma viagem são as pessoas que<br />

encontramos!<br />

Aquela que é a realidade dos dias de hoje, outra coisa não é, senão, o resultado<br />

herdado do quanto foi realizado e deixado, em herança, pelos pioneiros que<br />

invadiram todas essas áreas, mais de cento e trinta anos atrás. Dos relatos<br />

transmitidos pelos velhos de Porto Franco, percebe-se que os costumes dos colonos<br />

eram totalmente tomados da vida que costumavam fazer na Itália, antes de emigração.<br />

A única usança comum e inexplicável que contrasta com os costumes bergamascos<br />

era representada pela mudança do horário das refeições principais. De fato, dos<br />

relatos que os velhos dos dias de hoje fazem de sua infância, parece que a refeição<br />

principal e mais substanciosa era realizada pela manhã, e não ao meio dia. E o prato<br />

principal comido por todos era, de fato, a polenta.<br />

Pode ser que este costume diferente de fazer a refeição maior pela manhã tenha<br />

vindo aos pioneiros por causa da necessidade de precisarem aproveitar toda a jornada


de trabalho, sem a necessidade de uma longa interrupção para o almoço.<br />

Por aquilo que se passava na casa <strong>Tirloni</strong>, parece sensato reter que, no começo,<br />

<strong>Alessandro</strong>, em sua atividade, fosse ajudado por poucas pessoas, mas que as suas<br />

serrarias bem depressa iniciaram a atrair pessoas que eram então recrutadas também<br />

entre os novos imigrantes que chegavam a Porto Franco. <strong>Alessandro</strong> então decide<br />

oferecer-lhes, além do trabalho, também a assistência mais elementar e doméstica:<br />

cama e comida.<br />

Muitas vezes esses imigrantes eram pessoas jovens e solteiras, que portanto<br />

precisavam também de alguém que lhes fizesse de comer, que lavassem sua roupa. A<br />

este ponto interveio a família de <strong>Alessandro</strong>, ou seja, a mulher e as filhas que<br />

passaram a ocupam-se com o trabalho de dar esta espécie de assistência. Até mesmo a<br />

alguns dependentes e viajantes era dado um lugar para dormir no sótão da grande<br />

casa, ou talvez nas barracas propositadamente construídas. Também o cuidado de<br />

tudo isto foi confiado às mulheres da casa <strong>Tirloni</strong>.<br />

Este sistema aparentemente assistencialista era, a dizer pouco, dissimulado,<br />

porque permitia a <strong>Alessandro</strong> obter um ulterior retorno econômico em cima de seus<br />

operários.Ele pagava a eles um salário pelo trabalho que faziam, mas em<br />

compensação fazia-se pagar pelos serviços oferecidos de cama e comida, e assim<br />

reduzia ao mínimo o dinheiro gasto.<br />

Os filhos homens ajudavam, desde cedo, o pai no trabalho das serrarias. Eram<br />

sobretudo eles os destinados a “acompanhar” a madeira, quando era lançada ao rio e<br />

expedida para a cidade. Depois de entregar a madeira, precisavam retornar a pé a<br />

Porto Franco, pelo único caminho em meio à floresta. Pelos relatos transmitidos,<br />

sabe-se que para fazer todo esse percurso era preciso ao menos quatro dias. Muitas<br />

vezes ocorria que paravam em Brusque, um ou dois dias, e depois partiam de novo.<br />

Certamente era por ocasião destas viagens que tinham os confrontos com os Bugres,<br />

nos quais esteve envolvido o bisavô Emanuele.<br />

Dos relatos transmitidos pela tia Giuseppina Martinelli, os jovens <strong>Tirloni</strong><br />

participaram juntamente com o pai em outros confrontos – estes últimos planificados<br />

e organizados com cuidados – contra os indígenas. Estes últimos, muitas vezes e de<br />

bom grado, atacavam de noite, e punham fogo às colheitas que os colonos semeavam<br />

e cultivavam em suas terras, liberadas da mata. Então, <strong>Alessandro</strong>, ajudado pelos<br />

filhos maiores, muitas vezes precisava posicionar-se de noite para montar guarda,<br />

para evitar tudo isso. Algumas vezes, para organizar verdadeiras e apropriadas<br />

“missões punitivas” contra os indígenas. O resultado final de cada um desses<br />

confrontos terminava, como sempre, com os indígenas que fugiam, ou com o sangue<br />

que escorria... Era uma vida de fronteira, onde reinava a lei do mais forte e da<br />

sobrevivência.<br />

Com o sempre crescente número de afazeres, e para fazer frente a sempre


crescente procura de madeira, <strong>Alessandro</strong> expandiu as suas propriedades de terras.<br />

Essas terras lhe serviam, antes de tudo, para extrair a madeira, já que o<br />

desmatamento, como foi dito, foi visto, naqueles anos, como um autêntico “maná<br />

caído do céu”. Aliás, também o governo apoiava o desmatamento pois desse modo se<br />

chegava a obter pastos e áreas para a agricultura. Graças ao próprio trabalho dos<br />

imigrantes, o Brasil vivia um período de grande emancipação que levava à fundação<br />

de novas vilas, à criação de infraestruturas, onde antes não havia absolutamente nada,<br />

a não ser a floresta.<br />

<strong>Alessandro</strong> era então o dono de muitas terras deslocadas nas várias localidades<br />

do território de Porto Franco, como: Gabiroba e Águas Negras, (só para citar<br />

algumas, mas seguramente ali também havia outros proprietários), e talvez até na<br />

vizinha cidade de Nova Trento.<br />

Não se sabe com exatidão como teriam começado os relacionamentos<br />

comerciais de <strong>Alessandro</strong> com a comunidade de Nova Trento, cidade cerca de<br />

algumas dezenas de quilômetros distante de Porto Franco, colonizada sobretudo por<br />

imigrantes trentinos. Pode ser que os relacionamentos econômicos tenham começado<br />

por uma questão de vizinhança, mesmo que, naqueles tempos, e com as<br />

infraestruturas absolutamente inexistentes, os não muitos quilômetros que separavam<br />

os dois núcleos pareciam muitíssimo distantes.<br />

Em suma, os proprietários de Águas Negras estavam ao longo da estrada que<br />

levava a Nova Trento, e isto pode ter sido uma realidade positiva para esse<br />

relacionamento. O fato é que a família <strong>Tirloni</strong> tinha muitos contatos com a<br />

comunidade de Nova Trento, tanto que duas filhas de <strong>Alessandro</strong> casaram-se com<br />

gente de Nova Trento. Não se pode excluir que os contatos com Nova Trento tenham<br />

sido iniciados mesmo depois destes matrimônios. Mas a coisa parece muito estranha<br />

porque, naquele tempo, as pessoas não se deslocavam muito, e os casamentos<br />

ocorriam praticamente sempre entre pessoas das mesmas vilas.<br />

<strong>Alessandro</strong> tinha, de fato, um bom faro pelos negócios. Além das propriedades<br />

terrenas, tinha mais serrarias espalhadas pela região, as quais produziam<br />

constantemente o material trabalhado que era exportado pelo rio, para a cidade.<br />

Decidiu então abrir um refeitório para dar de comer aos trabalhadores do lugar, e<br />

abriu também um empório – o único da vila – que vendia produtos de todo tipo aos<br />

habitantes de Porto Franco. Ambas essas atividades eram dirigidas pela mulher e pela<br />

filhas. Graças ao comércio da madeira, <strong>Alessandro</strong> sempre tinha alguém que, ao ir à<br />

cidade, ou dentre aqueles balseadores que faziam a viagem de retorno, paravam para<br />

comprar para ele os eventuais bens de necessidade, que depois ele vendia no seu<br />

empório.<br />

Este empório transformou-se depressa em uma outra boa fonte de riqueza,<br />

porque entre os seus clientes estavam também os procuradores de ouro e de pedras<br />

preciosas, que pagavam os produtos vendidos por Alexandre com pepitas de ouro.


Este não sofria desvalorização, e não era um bem perecível mas, ao contrário,<br />

aumentava sempre mais o seu valor para satisfação de <strong>Alessandro</strong>.<br />

No que se refere à atividade do empório, está ligado um acidente que criaria<br />

não poucos problemas para <strong>Alessandro</strong>. Alguns anos depois da abertura do empório,<br />

uma pessoa de cor (provavelmente um escravo libertado, ou talvez fugido,<br />

não sabemos) iniciou a cometer furtos noturnos no empório. <strong>Alessandro</strong> percebeu<br />

logo os furtos e começou a montar guarda durante as noites, a fim de colher em<br />

flagrante o ladrão. Descoberto o ladrão, o fez restituir o material roubado e o advertiu<br />

que se voltasse a tentar roubar novamente, não lhe seria mais clemente nos seus<br />

confrontos, mas passaria diretamente a atitudes severas. Alguns dias depois, o ladrão<br />

tentou um novo furto, mas <strong>Alessandro</strong> – que provavelmente não havia deixado de<br />

montar guarda – o surpreendeu. O ladrão tentou escapar, mas <strong>Alessandro</strong>, fulo de<br />

raiva, pegou o peso maior da balança (1kg) e o jogou contra o ladrão, acertando-o em<br />

plena testa, matando-o instantaneamente.<br />

Não sabemos como o incidente terminou. Enfim, já não eram mais os primeiros<br />

tempos da emigração, nos quais não existiam nem lei e nem controle. Este fato deverá<br />

ter chegado ao conhecimento das forças da ordem publica, as quais devem ter<br />

cumprido o seu dever. Com certeza o racismo emperrado também se lançava contra o<br />

pobre ladrão de cor, que certamente não vinha sendo tratado exatamente como cada<br />

branco. Mas de todo modo este era um homicídio qualificado, e por certo não passou<br />

escondido, como os homicídios dos indígenas.<br />

<strong>Alessandro</strong> não se limitava à gestão de seu patrimônio e de todas as suas<br />

atividades, mas se empenhava como primeira pessoa onde quer que servisse. Pode-se<br />

imaginar que por diversos anos ele mesmo estivesse naquele lugar dos corajosos<br />

balseadores que arriscavam a vida, descendo pelo rio com as balsas de madeira.<br />

Sempre de acordo com os relatos da tia Giuseppina Martilelli, sabemos que mesmo<br />

nos primeiros tempos, não era só <strong>Alessandro</strong> a estar envolvido como primeira pessoa<br />

na parte arriscada do transporte da madeira. De fato, enquanto ele se achava sobre as<br />

balsas de madeira que desciam pelo rio, sua mulher Elisabetta seguia o percurso da<br />

madeira pela estrada, com a carroça, que servia para ser carregada de todas as<br />

provisões que eram compradas em Brusque durante o caminho de volta.<br />

À luz de tudo quanto foi dito até agora, pode-se facilmente imaginar qual teria<br />

sido o potencial econômico, e sem medo de incorrer em erro, pode-se pois dizer que<br />

ele sozinho representava o fiel da balança da economia de Porto Franco.<br />

O tempo foi passando e os primeiros filhos tornam-se grandes. A filha mais<br />

velha, Joana, enamorou-se com João Morelli, filho de Pietro Morelli, que juntamente<br />

com <strong>Alessandro</strong> estava entre os primeiros pioneiros que chegaram a Porto Franco,<br />

subindo o rio com as barcas.<br />

João Morelli nasceu 6 anos antes do que Joana, na Itália, no município de


Verdello – vila pouco distante de Bérgqamo – e veio para o Brasil com a idade de 2<br />

anos. Ele era o único, entre os velhos parentes do Brasil, que havia nascido na Itália.<br />

Joana e João casaram-se em Porto Franco, no dia 2 de janeiro de 1901, e<br />

<strong>Alessandro</strong> pela primeira vez precisou confrontar-se com aquela que foi, para todo o<br />

resto de sua vida, uma das maiores preocupações: o dote a deixar para as filhas.<br />

Não se sabe se houve problemas neste preciso momento, mas conhecendo o<br />

caráter de <strong>Alessandro</strong>, pode-se crer que não tenha sido fácil para o jovem casal obter<br />

alguma coisa dele. Seja dito que a família Morelli era uma dentre as famílias de bens,<br />

da vila (também porque estavam entre os primeiros colonos, portanto entre os poucos<br />

que fizeram fortuna). Eram proprietários de um belo pedaço de terra, bem no dentro<br />

da hodierna Botuverá. Por isto, portanto, com certeza, o problema econômico não<br />

existiria para este casal.<br />

No ano seguinte nascia o primeiro filho de Joana, Luís Morelli. <strong>Alessandro</strong> e<br />

Elisabetta, a apenas dois anos do nascimento de sua última filha Antônia, na idade<br />

respectivamente de 49 e 45 anos, tornaram-se avós pela primeira vez. Por fim, o<br />

número de netos tornou-se uma vasta estirpe que chegou ao número de 58. Os<br />

últimos dois netos nasceram ambos em 1934<br />

Provavelmente em 1905 na casa <strong>Tirloni</strong> ocorreu o segundo casamento. A<br />

terceira filha Rosa se casou com Carlos Tridapalli, um jovem de Nova Trento, 11 anos<br />

exatos mais velho do que ela. Também ele era filho de uma família originária de São<br />

Bento Pó (vila situada na província de Mântova), que tinha feito fortuna nesta<br />

comunidade. O casal transferiu-se para a cidade de Carlos, Nova Trento.<br />

O terceiro matrimônio ocorreu provavelmente em torno de 1907, quando a<br />

segunda filha, Albina, se casou com José André Maestri, que era um ano mais velho<br />

do que ela. Também ele era filho de um dos primeiros pioneiros chegados a Porto<br />

Franco, junto com <strong>Alessandro</strong>. A família Maestri estava entre os primeiros a ter<br />

construído fornos para secar tijolos e telhas. Embora também eles fossem uma família<br />

de bens, eram de ganhos mais modestos, se compararmos com aquelas citadas acima.<br />

Chegou o início do ano de 1909, um ano particular para a história de nossa<br />

família. A situação em Porto Franco era a seguinte: <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta estavam<br />

casados há quase 31 anos e viviam uma condição de absoluta riqueza. Mas apesar<br />

disso, não pararam seus trabalhos, antes os aumentavam ainda mais.<br />

As três primeiras filhas estavam casadas, e os netos já eram sete. Em casa<br />

viviam ainda nove filhos, dos quais cinco já eram grandes e quatro ainda<br />

adolescentes. A mais jovem – Antônia – tinha dez anos, mas certamente já ajudava a<br />

mãe e as irmãs maiores. Os três filhos homens maiores já deixavam transparecer as<br />

suas intenções para o futuro.<br />

- João tinha vinte e três anos, e ocupava-se da gestão da serraria de águas


Negras. Ele era namorado de uma jovem de Nova Trento, de nome Narcisa<br />

Geselli.<br />

- Vittorio tinha vinte e um anos e estudava num colégio, mas não se sabe<br />

precisamente em que cidade. Parece-me recordar que o meu avô falava de<br />

Florianópolis, mas não é de se excluir que se tratasse de uma outra cidade<br />

mais próxima, como por exemplo, Itajaí ou a própria Brusque. Vittorio talvez<br />

tenha sido o único entre os irmãos a ter recebido uma instrução.<br />

- Emanuele, que tinha 18 anos, ajudava o pai na serraria de Porto Franco, e era<br />

namorado de uma moça, presumivelmente da vila, cujo nome, porém, não<br />

chegou até os nossos dias.<br />

Não obstante a maior parte dos filhos já serem grandes, <strong>Alessandro</strong> continuava<br />

a manter o seu indiscutível poder de chefe de família, e comandava a todos com seu<br />

punho de ferro. Era um homem incrivelmente avarento. Talvez por ter provado em<br />

sua pele a fome e a miséria, não queria regredir da riqueza que havia conquistado<br />

cansativamente, e o modo mais simples de não tornar-se pobre seria continuar a fazer<br />

dinheiro, e obviamente a gastar o menos possível. Mesmo por esse motivo impôs a<br />

toda a família o rigor mais absoluto. Por certo, por isso mesmo, ninguém na família<br />

podia gozar os prazeres da vida, que pelos bens materiais que possuíam, poderiam se<br />

permitir<br />

É preciso dizer que a vida que <strong>Alessandro</strong> vivia no Brasil não era propriamente<br />

um exemplo de honestidade e sentido cívico. Quando partiu em canoa de Brusque,<br />

subindo o rio Itajaí Mirim, certamente tinha abandonado a civilização para entrar em<br />

uma “terra-de-ninguém”, na qual não existia lei. Cada um era livre de fazer aquilo<br />

que queria, e ele aproveitou sempre muito dessa liberdade.<br />

Passados estes primeiros anos, o estado brasileiro, emancipado também pelo<br />

trabalho dos colonos, começou a estabelecer-se e a tomar sempre mais forma de uma<br />

nação burocraticamente governada, e os pioneiros, que já tinham se estabilizado em<br />

sua terras por eles escolhidas, eram ajudados sempre menos. Começavam a chegar os<br />

controles, a lei e, inevitavelmente, também os impostos.<br />

Tudo isto começou a gerar crise em <strong>Alessandro</strong> que, por um lado, não queria<br />

perder a sua liberdade de ação, e de outro, considerava todas as despesas, mesmo as<br />

menores, como qualquer coisa de traumático, com gestos que chegavam a ser<br />

extremos. A este propósito narrava-se um acontecimento que bem descrevia estas<br />

suas reações. Quando o governo decidiu fazer todos pagarem uma determinada taxa<br />

(não se sabe com certeza de que gênero de taxa se tratasse, e a que estava ligada),<br />

<strong>Alessandro</strong> perdeu completamente a luz da razão, e apresentou-se furioso na coletoria<br />

de impostos, tirou a camisa e, mostrando o peito nu, gritou aos incrédulos e<br />

espantados funcionários, com ares de aberto e decidido desafio: Matai-me! Mataime!<br />

Este seu comportamento extremo, como também o seu continuar a conduzir a


sua vida fora da lei, iniciaram a torná-lo mal visto pelos representantes locais do<br />

governo. Tornou-se um personagem difícil de tratar e nada agradável. O fato do<br />

homicídio citado antes não fez outra coisa do que piorar a sua posição, e de repente<br />

lhe veio uma intimação de “ou...ou”. Ou se empenharia em observar as leis e se poria<br />

na linha, ou então seria obrigado a abandonar o Brasil, com métodos coercitivos.<br />

2.7 A escolha de retornar<br />

Apesar de seu caráter duríssimo que bem revelava uma quase total falta de<br />

sentimentos, também <strong>Alessandro</strong> provavelmente sentia um pouco de saudades pela<br />

sua pátria nativa, a Itália. Como já foi dito, todos os imigrantes de Porto Franco eram<br />

muito ligados à sua pátria-mãe, e toda a vida dessa comunidade era vivida ainda<br />

exatamente como se fosse na Itália. Também o isolamento que a colônia tinha do<br />

“mundo evoluído” da cidade, facilitava muito essa manutenção da identidade e dos<br />

costumes que, aliás, permanecem ainda em nossos dias incrivelmente enraizados.<br />

<strong>Alessandro</strong> e Elisabetta eram dois cônjuges cinquentões com saudades da Itália.<br />

Naqueles tempos os cinquentões eram considerados já anciãos. Eles se deram conta<br />

de que os filhos já eram grandes e começavam a se casar e a posicionar as suas vidas<br />

neste novo mundo. Os dois começaram a pensar que seriam obrigados a passar toda a<br />

sua vida no Brasil, sem nunca mais poderem rever o país natal. Se a estas<br />

considerações for unido também o aspecto legal e econômico das taxas para pagar<br />

também nesta terra que antes era livre, pode-se bem compreender que o pensamento


de retornar para a Itália se fazia sempre mais presente, e com certeza causava não<br />

poucas noites de insônia a <strong>Alessandro</strong>.<br />

Não se sabe com segurança que coisa efetivamente induziu o chefe de família a<br />

tomar a decisão final. Não se sabe qual de todos esses aspectos citados tenha<br />

prevalecido em sua mente, mas pode-se crer que defronte de uma decisão tão difícil,<br />

<strong>Alessandro</strong>, habituado a enfrentar tudo sempre de peito aberto e sem hesitações, tenha<br />

parado para refletir e ponderar, mas ao final tomou a sua segunda grande decisão:<br />

retornar para a Itália<br />

Não sabemos como os filhos acolheram essa decisão. Não sabemos se se<br />

encontraram diante de uma escolha irrevogavelmente tomada, ou se foram envolvidos<br />

logo pelas reflexões paternas. É belo imaginar uma cena “tipicamente familiar<br />

doméstica”, na qual toda a família, isto é, a mulher, todos os doze filhos, os três<br />

genros e – porque não – também os netos, se reunissem em torno de uma mesa para<br />

escutar as ideias do pai. Como é belo imaginar que todos, ao ouvir uma tão difícil<br />

proposta, pudessem exprimir os seus variados pontos de vista, também em<br />

consideração à vasta gama de idades e de afetos/interesses das pessoas envolvidas,<br />

para chegarem todos juntos à escolha mais acertada. Conhecendo, porém, o caráter de<br />

<strong>Alessandro</strong>, nada mais fácil de se adivinhar, de que os filhos tenham podido falar<br />

muito pouco, e tenham influído bem pouco na escolha final.<br />

Não sabemos nem sequer se aos vários membros da família foi dada a liberdade<br />

de escolha sobre seus destinos. Com certeza Elisabetta foi obrigada a seguir o marido<br />

por dever conjugal, mas suponho que a ideia de retornar para a Itália, em suma, não<br />

lhe desagradava de todo. Os filhos mais jovens: Francesca, Eliseu, Ângelo e Antônia,<br />

foram praticamente obrigados a seguir os genitores para a Itália. As filhas casadas e<br />

os genros, com certeza, foram deixados livres para decidir por sua conta. Mas que<br />

coisa aconteceu aos cinco filhos grandes ainda não casados?<br />

Boa regra era que as filhas solteiras permanecessem junto dos genitores, porque<br />

naquela época era impensável separarem-se da família. As moças sérias saíam de casa<br />

ou casadas ou freiras. Não lhes era permitido fazer aventuras! Não sabemos se<br />

Ângela e Vittorio tinham namorados em Porto Franco, com os quais poderiam casarse.<br />

Sabemos só que eles foram para a Itália juntamente com os genitores e com os<br />

irmãos mais jovens.<br />

As filhas casadas e os três genros fizeram a escolha obvia de permanecer no<br />

Brasil. A sua vida já havia tomado uma rota bem definida, e não sentiam que<br />

deveriam mudá-la. Mas o que teria sido dito a João, a Vittorio e a Emanuele?<br />

Puderam escolher o seu destino, ou foram obrigados a obedecer à vontade paterna?<br />

É mais do que certo que <strong>Alessandro</strong> queria que os seus três filhos homens, já<br />

grandes, fossem com ele para a Itália para trabalhar na terra que se apressava para<br />

comprar. Não teria sentido comprar uma fazenda a fim de dá-la para trabalhar para<br />

terceiros. Os três filhos representavam uma força de trabalho absolutamente<br />

indispensável para os projetos de <strong>Alessandro</strong>, e portanto não estava absolutamente<br />

disposto a perdê-los.


Comprar terra da outra parte do mundo e mover uma família de dez pessoas<br />

não era, por certo, pouca coisa. Tudo deveria ser organizado meticulosamente, e<br />

<strong>Alessandro</strong> fez de fato as coisas bem feitas. Comunicou ao filho mais velho, João,<br />

que queria partir junto com ele e viajar para a Itália com o intento de inspecionar<br />

algumas fazendas agrícolas, à venda, a fim de comprar uma delas, para a qual pudesse<br />

se transferir. E de fato os dois embarcam direto para a Itália.<br />

Viajantes de primeira e segunda classe (foto primeiros anos ‘900)<br />

Esta era a primeira viagem para João, que provavelmente nunca antes havia<br />

saído de sua região, na qual nascera e crescera, enquanto que para <strong>Alessandro</strong>, esta<br />

viagem representava o justo prêmio, depois de muitos anos de fadiga e de coragem<br />

não pequenas. Agora não viaja mais como emigrante nas condições difíceis e<br />

cansativas da viagem de vinda. Agora ele retornava como vencedor, e podia permitirse<br />

uma viagem decente. Tem como companhia o seu filho maior, e pode portanto<br />

“gozar” a viagem sem precisar manter o olhar sobre toda a sua numerosa família.<br />

Pode-se dizer que, pela primeira vez, depois de 30 anos passados no trabalho e em<br />

meio à gente e aos familiares, finalmente podia gozar da tranquilidade do silêncio e a<br />

calma do repouso, durante a viagem.<br />

O primeiro filho homem que o acompanhava representava para ele quase como<br />

que um troféu para exibir. Uma prova tangível de seu sucesso na vida era: ser agora<br />

um rico senhor economicamente, chegando acompanhado de seu primogênito<br />

homem, filho este que continuaria a sua obra, e que levaria adiante o seu nome. João,<br />

por sua vez, depois de anos de duro trabalho nas serrarias do pai, experimentava pela<br />

primeira vez, e talvez pela única, em sua vida, a beleza restauradora do repouso e da


vida cômoda num navio.<br />

Quem sabe sobre o que teriam falado os dois, durante a longa viagem pelo<br />

mar? Talvez, ao menos nesta ocasião, <strong>Alessandro</strong> chegou a esvaziar a mente de todos<br />

os pensamentos que sempre o envolviam. Talvez tenha chegado por um momento a<br />

tornar-se um bom companheiro de viagem e descrevesse ao filho (com certeza, em<br />

tom menos áspero) as dificuldades de quando, ele, mais ou menos na mesma idade do<br />

filho, havia atravessado este oceano, carregado de esperanças e de sonhos, mas<br />

também com as imagens das dificuldades e da miséria, vividas na Itália, perenemente<br />

diante dos olhos. Infelizmente, ninguém sabe de nada do que possam ter<br />

conversado...<br />

Depois de mais de um mês de navegação, pai e filho chegaram na Itália - muito<br />

provavelmente em Gênova - e daqui partiram para Bérgamo, a terra-mãe. <strong>Alessandro</strong><br />

revia finalmente a sua terra, as suas origens. Já o filho João via, finalmente, estes<br />

lugares tão diferentes da realidade à qual estava habituado, e dos quais, com certeza,<br />

tantas vezes ouvira falar nos relatos dos anciãos de Porto Franco.<br />

A procura de uma fazenda agrícola para comprar induziu os dois a Covo, uma<br />

vila distante poucos quilômetros de Bariano, o lugar onde nascera <strong>Alessandro</strong>. Ali<br />

encontraram, no campo, a sudoeste da vila, ao longo da estrada que conduzia ao<br />

vizinho município de Camisano, uma fazenda de cerca de 54 hectares que Alexandre<br />

decidiu comprar: a Battagliona, chamada de “La Batiuna”, em dialeto Bergamasco.<br />

Enquanto se encontravam na entrada da casa desta fazenda, <strong>Alessandro</strong> iniciou<br />

a descrever ao filho João a ideia que tinha em mente de como iria organizar toda a sua<br />

grande família na fazenda, e iniciou a indicar ao filho onde poderia construir a sua<br />

própria casa. Neste momento aconteceu uma coisa que <strong>Alessandro</strong> nunca teria<br />

esperado. O filho João confessou ao pai que a sua namorada não estava disposta a vir<br />

para a Itália, e ele não queria deixá-la (como, aliás, o fez seu irmão Emanuele, com a<br />

namorada dele). João comunicou ao pai a sua firme decisão de permanecer no Brasil!<br />

Cascina Battagliona: vista della casa dove abitavano i <strong>Tirloni</strong> e vista d’insieme dell’aia (fotografie – anno 2002)<br />

Deste fato há um belo e apaixonante testemunho feito pela velha tia, residente


em Nova Trento, Francisca Andreoli, viúva <strong>Tirloni</strong>. Ela se tornaria nora de João, mas<br />

sem conhecê-lo pessoalmente. Ela ouviu esta história que foi contada pela sogra<br />

Narcisa, viúva de João, que aliás a contava muitas vezes.<br />

A tia ainda conta, num dialeto misto bergamasco/vêneto, no qual aparecem<br />

também termos em português: “só pai del me pore sogro el diseva: “ndom en Italia<br />

perché chê me ma se anse po de stá; ndom a Berghem, scoldem un toc de terra la<br />

‘ndela Italia”. Alura i è andai via e de fatto i ga scoldet sto toc de terra e lù l’ga dit:<br />

“che ti puoi farte una casa per tì là, e vegnem tuti qua n’Italia”. Alura el me sogro<br />

el’ga dit: “vardè, pai, me so vegnit en Italia a acompagnarve voaltre, per discutere,<br />

per fa el negose, ma mi de Nova Trento mi non mato (???) perché mi voro ben alla<br />

Narcisa e mi voi maridarme là e par la Italia no vegno” Traduzindo: “O pai de meu<br />

falecido sogro (<strong>Alessandro</strong>) dizia: “Vamos para a Itália, porque aqui não me agrada<br />

mais permanecer. Vamos a Bérgamo e compremos a terra, lá”. De fato, depois foram<br />

para a Itália e compraram a terra, e ele (<strong>Alessandro</strong>) disse: “Neste lugar poderás<br />

construir uma casa para ti, e viremos todos para a Itália”. Então meu sogro (João)<br />

disse: “Veja, papai, eu vim para a Itália para acompanhá-lo, para discutir, para fazer o<br />

negócio, mas eu de Nova Trento (talvez a tia fez confusão, queria dizer Porto Franco,<br />

em vez de Nova Trento) não sairei, porque quero muito bem a Narcisa, e estou<br />

decidido a casar-me com ela. Portanto, para a Itália eu não virei”<br />

Por este relado, para dizer a verdade, parece que <strong>Alessandro</strong> já sabia onde iria<br />

comprar a terra. Talvez tivesse mantido contatos com a Itália – talvez com os seus<br />

familiares – os quais lhe teriam feito saber onde e como mover-se para comprar terra.<br />

Esta, porém, é somente uma suposição quase seguramente errada.<br />

Esta decisão de João foi uma verdadeira punhalada em <strong>Alessandro</strong>! Pai e filho,<br />

a esta altura, retornaram para o Brasil para organizar o translado da grande família,<br />

mas esta viagem de volta, para ambos, foi seguramente menos relaxante do que a<br />

viagem de ida.<br />

<strong>Alessandro</strong> ficou com raiva, e com certeza também desgostado pela nova<br />

direção que tomaram os fatos. Podemos imaginá-lo, com seus modos bruscos,<br />

tentando convencer o filho a falar com a namorada para “obrigá-la” a segui-lo, ou<br />

então, a deixar a namorada para seguir com a família para a Itália. Conhecendo o<br />

difícil caráter de <strong>Alessandro</strong>, pode-se crer que ficou tão raivoso a ponto de não mais<br />

dirigir a palavra ao filho, ou então, a dizer-lhe que não tinha nenhuma intenção de<br />

presenciar este casamento. Infelizmente não sabemos como se desenvolveram estes<br />

acontecimentos entre pai e filho, e não sabemos nem sequer como a família recebeu<br />

essa notícia, quando os dois chegaram a Porto Franco. Por certo não deve ter sido um<br />

momento fácil.<br />

Agora todos se encontravam juntos em Porto Franco, e considerado o tempo de<br />

percurso dos navios, pode-se imaginar que a viagem dos dois tenha durado pelo<br />

menos quatro meses.<br />

No Brasil havia muitas coisas a fazer antes de partir. Além das inevitáveis<br />

coisas a levar para a Itália, havia também a regularização de todos os aspectos


urocráticos, a venda e a sucessão das várias terras e propriedades aos filhos que<br />

permaneceriam no Brasil.<br />

Ao filho João deixou toda a sua propriedade de Águas Negras, a localidade<br />

situada um pouco distante da vila de Porto Franco, ao longo da estrada que levava<br />

para Nova Trento. Disto há o testemunho da tia Francisca, de Nova Trento, que conta:<br />

““la me puora sogra la disia che l’ga lasat la vaca, i porci, le galine e la casa, casa<br />

de madera, e tutto che ghera e lur i ga ciapà su e i è’ndat tuti enbora con la famiglia<br />

…e lu l’è restà lì” Traduzindo: “A minha defunta sogra contava sempre que ele lhe<br />

deixou a vaca, os porcos, as galinhas, a casa de madeira, e tudo aquilo que ali havia (a<br />

serraria), e eles foram todos embora... e ele ficou ali”.<br />

Para a filha Joana ele deixou (ou mais provavelmente vendeu) uma propriedade<br />

na localidade denominada Gabiroba, e deixou também a atividade do refeitório e o<br />

empório.<br />

Com certeza deixou qualquer coisa ou vendeu algum pedaço de terra também<br />

para a filha Albina, mas disto não existem provas.<br />

Vendeu uma grande propriedade por 1.000.000 de réis para sua irmã Rosa e<br />

cunhado Carlos, e deixou ao co-sogro Pietro Giacomo Morelli (pai de seu genro João<br />

Morelli) a procuração para representá-lo legalmente e tornar-se o intermediário, até<br />

que Rosa e Carlos tivessem saldado a dívida que tinham com <strong>Alessandro</strong>. Não temos<br />

como quantificar o câmbio da época, mas parece que a cifra era deveras muito<br />

grande.<br />

Pelo documento redigido para essa transação, deduz-se que o jovem casal não<br />

tinha o dinheiro suficiente para liquidar o débito (que seria saldado em duas partes de<br />

50%, em dois anos) e mesmo por isso foi registrado no “registro de débitos” oficial.


Acto notarial da divida feita da Rosa <strong>Tirloni</strong> e Carlos Tridapalli com <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong> (ano 1911)<br />

Não se sabe se era uma prática obrigatória, pelo fato de que se vendiam<br />

terrenos, ou se foi feito por vontade de <strong>Alessandro</strong>. Se esta última hipótese, porém,<br />

fosse verdadeira, tudo isso seria incrível, porque demonstraria que quando estava em<br />

jogo o dinheiro, ele não se fiava nem mesmo na palavra dada pelos filhos!


Quando tudo estava preparado, veio o dia da partida. Depois de trinta e três<br />

anos passados no Brasil, <strong>Alessandro</strong> se preparava para deixar definitivamente aquele<br />

pequeno canto do mundo, perdido no mato, onde se falava Bergamasco, o qual<br />

nasceu e se desenvolveu também - ou para dizer melhor:”sobretudo”- por seu mérito.<br />

Havia chegado a estas terras, ainda jovem, carregado de esperanças e de vontade de<br />

vencer. Transformou uma floresta inexplorada em uma colônia fervente de atividades,<br />

e agora com cinquenta e sete anos, se apresentava para enfrentar uma nova aventura<br />

naquela terra que havia deixado por desespero, tantos anos antes.<br />

Nesta nova aventura não estava sozinho, mas sim acompanhado da mulher e da<br />

maior parte dos filhos. Não era um deserdado, mas ao contrário, era um homem rico.<br />

Portanto, tudo fazia pensar que agora, para ele, o caminho era cômodo e em descida.<br />

Segundo minha opinião, porém, não deve ter sido fácil para ele dar este passo e<br />

começar tudo de novo.<br />

Este era o momento de fazer o balanço, e seguramente <strong>Alessandro</strong> olhou ao seu<br />

derredor, procurou captar pela última vez aquelas imagens tantas vezes vistas de<br />

Porto Franco e de sua gente. Abandonar tudo aquilo que fez e foi construído com<br />

suor e cansaço, não era certamente fácil, e com certeza as emoções que teria provado<br />

não devem ter sido muito diferentes daquelas que, quando jovem, havia<br />

experimentado ao partir como emigrante na direção do Brasil.<br />

Com certeza, para os dois cônjuges, o momento da definitiva despedida de seus<br />

filhos deve ter-lhes causado um impacto muito forte. Podemos imaginar o quanto<br />

tenha sido doloroso aquele momento, até mesmo para uma pessoa como <strong>Alessandro</strong>.<br />

A saudação que dirigiram reciprocamente era, de fato, um “Adeus”, e não um “até<br />

logo”. Saudaram-se com a certeza de que não voltariam nunca mais a se ver.<br />

Não temos relatos detalhados sobre este momento, portanto não sabemos com<br />

precisão como foi exatamente esta despedida. É agradável pensar que, ao menos<br />

numa ocasião de uma semelhante despedida, todos estivessem presentes, juntamente<br />

com os amigos e conhecidos da vila.<br />

Com certeza estavam presentes:<br />

- Joana, filha primogênita, que tinha vinte e nove anos, e que oito anos antes<br />

havia contraído um bom matrimônio com João Morelli, que tinha trinta e<br />

cindo anos. Os dois tinham quatro filhos: Luís de sete anos, Maria com<br />

cerca de cinco anos, Anna que tinha três anos, e José que tinha apenas um<br />

ano.<br />

- Albina, segunda filha, que tinha vinte e cindo anos, e estava casada há dois<br />

anos, com José André Maestri, que tinha vinte e seis anos. Este casal tinha<br />

uma filha de pouco mais de um ano, de nome Maria.<br />

- Rosa, a terceira filha, que tinha vinte e quatro anos, e também ela há quatro<br />

anos havia contraído um ótimo casamento com o neotrentino, Carlos<br />

Tridapalli, de trinta e seis anos. Não sabemos quantos filhos tinham, neste<br />

momento, além do primogênito Luís, de 3 anos.


- João, o primeiro filho homem, que como foi dito, tinha vinte e três anos, e<br />

estava próximo<br />

do casamento com uma moça neotrentina, de nome Narcisa Geselle.<br />

Estes eram os familiares que ficaram. Além deles, com certeza, estavam<br />

presentes muitos conhecidos e amigos que saudaram os que partiam: os velhos<br />

“companheiros de aventuras”, isto é, os pioneiros que juntamente com <strong>Alessandro</strong><br />

chegaram por primeiro ao “porto franco”, como por exemplo, o velho Pietro Giacomo<br />

Morelli (1844-1918) com a mulher Anunciata Maria Vvassori (1850-1929), e os<br />

velhos casais Maestri (todos conhecidos de <strong>Alessandro</strong> e Elesabetta). Mas estavam<br />

presentes, também, com certeza, os jovens amigos dos filhos de <strong>Alessandro</strong>, e<br />

certamente também a namorada que Emanuele deixava no Brasil.<br />

Vittorio, o segundo filho homem de <strong>Alessandro</strong>, estava entre aqueles que<br />

saudavam os que partiam, pois permaneceu no Brasil, ainda por um ano, para<br />

terminar os estudos. Ele se reuniria à família um ano depois.<br />

Com certeza houve muitas lágrimas. Sobretudo pode-se imaginar que<br />

Elisabetta, mulher delicada e doce, tenha sofrido muito ao separar-se das filhas e dos<br />

netos. Não se pode excluir, porém, que também um homem do jeito de <strong>Alessandro</strong> se<br />

tenha comovido.<br />

Chegou o momento da definitiva separação. Enquanto todos os daqui ficavam<br />

parados e saudavam os que iam, o grupo de nove pessoas voltava as costas<br />

definitivamente para Porto Franco, para se encaminhar para a Itália. Os que partiam<br />

voltavam-se para trás para olhar, pela última vez, o rosto dos habitantes e dos<br />

familiares, que se tornavam cada vez menores. Pouco a pouco as suas figuras foram<br />

desaparecendo para sempre. À medida que prosseguiam, também a pequena vila de<br />

Porto Franco e o cume das colinas tão familiares, acabaram por serem rapidamente<br />

envolvidas pela densa vegetação, e desaparecerem.<br />

Embarcados em Itajaí, enquanto o navio soltava as amarras e zarpava na<br />

direção da Itália, podemos imaginá-los todos com roupas bonitas, com os rostos<br />

sérios, encaminharem-se para a ponte do navio, e depois voltarem-se na direção da<br />

popa, para saudar pela última vez aquele canto do mundo que lhes deu deveras tanto,<br />

e verem desparecer a terra firme, dizendo dentro deles: “Adio Brasile”!<br />

Como para a viagem empreendida poucos meses antes por <strong>Alessandro</strong> e João,<br />

certamente também desta vez as condições nas quais a família viajava, eram boas.<br />

<strong>Alessandro</strong> tinha as possibilidades econômicas para fazer viajar todos na primeira<br />

classe, mas visto o grande número de viajantes, pode-se presumir que o patriarca<br />

tenha optado por fazer viajar a família numa classe mais econômica, mas de qualquer<br />

modo, na digna segunda classe.


Vida no navio em segunda classe (foto primeiros anos ‘900)<br />

Agora, certamente, era a vez de Elisabetta, depois de tantos anos de duro<br />

trabalho, poder gozar de repouso, e a “vitória social” que o seu status de mulher rica<br />

lhe oferecia. É uma senhora de meia idade (53 anos) pertencente à rica burguesia, e<br />

que viajava em companhia do marido e de numerosos filhos.<br />

Não importava se suas mãos, por certo tão calejadas, revelavam os anos de<br />

duro trabalho e as fadigas às quais foi obrigada a acostumar-se. Já não faziam mal<br />

nem sequer as humilhações infligidas pelo tremendo caráter do marido, e não<br />

queimavam mais todas aquelas vezes que, por obediência conjugal, teve que abaixar<br />

os olhos e engolir em seco, maus tratos esses sempre perpetrados pelo marido. Ela<br />

saiu-se muito bem no seu papel de mulher e de mãe, enquanto seguiu e sempre<br />

ajudou o marido em sua aventura, garantindo-lhe uma numerosa prole, da qual<br />

sempre tomou conta, e que agora podia definir-se, com pleno direito, como uma<br />

mulher rica. Isto era com certeza, muito mais do quanto sonhou como jovem<br />

emigrante, e desta vez era ela quem podia gozar a viagem da vitória, circundada de<br />

seus troféus: os filhos.<br />

Para todos os jovens, esta era a primeira viagem de suas vidas, e portanto, com<br />

certeza, rica de emoções. Talvez o único que não gozava plenamente esta viagem era


Emanuele, e com certeza era ele quem, mais vezes, voltava o seu olhar para a popa do<br />

navio, e olhava a trilha de espuma branca deixada por ele, uma trilha que levava de<br />

volta para o Brasil... Não deve ter sido fácil para ele, jovem obediente e de caráter<br />

suave, deixar a namorada, para seguir os desejos da família. Quem sabe como se<br />

sentia... Talvez como um traidor! Infelizmente, não temos relatos deste fato.<br />

Entre todos os membros da família, <strong>Alessandro</strong> era já um viajante experiente.<br />

Esta era a terceira vez, em poucos meses, que sulcava o mar, e seguramente estava de<br />

tal modo habituado às emoções de tal viagem, que tudo poderia se tornar enfadonho.<br />

Mas, infelizmente, para ele esta viagem estava sendo a pior de todas, destinada a não<br />

ser jamais esquecida, por nenhum daqueles que dela participavam.<br />

Mesmo que não estivessem viajando como emigrantes e em condições<br />

extremamente ruins, um navio permanece sempre um lugar restrito, e os riscos são<br />

sempre possíveis. Se porventura ocorresse uma epidemia, todos os viajantes, também<br />

os de primeira classe, correriam sérios riscos.<br />

Ao embarcar no porto de Itajaí, estavam presentes nove pessoas. Mas somente<br />

oito desembarcaram em Gênova. Não sabemos com exatidão o que ocorreu, e quando<br />

teria acontecido. Talvez tenha sido por causa de uma epidemia, ou talvez tenha sido<br />

simplesmente uma ocorrência infeliz que atingiu uma pessoa, mas infelizmente,<br />

durante a travessia, o penúltimo filho, Ângelo, adoeceu gravemente, e para nada<br />

valeram os cuidados que lhe foram prestados.<br />

Em breve, Ângelo fechava para sempre os seus jovens olhos. Tinha apenas<br />

treze anos.<br />

Podemos bem imaginar a tristeza e o desespero que atingiu toda a família<br />

naquele momento. De Ângelo não temos nem fotografias e nem documentos. Dele<br />

não se sabe praticamente nada. Não sabemos nem sequer com exatidão a sua idade.<br />

Foi citado nas crônicas familiares só e exclusivamente por causa do fato de sua morte.<br />

É muito triste pensar que esse jovem sobreviveu às insídias da natureza selvagem de<br />

Porto Franco, e morreu por “culpa” da vontade paterna de retornar para a Itália.<br />

Talvez Ângelo estivesse entusiasmado com a ideia de embarcar num navio e<br />

fazer uma longa viagem, em direção à terra de origem de seus genitores, da qual<br />

tantas vezes ouvira falar. Talvez, ao contrário, a ideia da viagem o amedrontava e<br />

entristecia, porque perdia os amigos... Não podemos nunca saber, mas aquilo que é<br />

certo é que ele era pequeno, portanto pertencia ao grupo que não tivera outra escolha,<br />

e lhe coube a triste sorte de subir naquela maldita nave.<br />

Diga-se de passagem que, naquele tempo, as pessoas eram muito mais<br />

preparadas e “habituadas” à ideia da morte. Esta era uma companheira que corria<br />

sempre muito próxima de todos, dados os escassos meios da medicina. Bastava, de<br />

fato, pouco ou nada, para enviar uma alma para Deus. Certo é que, no meio do mar,<br />

inerme diante de um evento tão cruel que se lançou sobre um rapaz tão jovem, com<br />

certeza <strong>Alessandro</strong> teria elevado os olhos aos céus, e teria perguntado cheio de<br />

raiva: ... mas por quê?...


Funeral no navio (fotos primeiros anos ‘900)<br />

Infelizmente à desgraça ajuntou-se a desventura. Naqueles tempos os navios<br />

não estavam aparelhados com frigoríficos, e seguramente não tinham à disposição<br />

nem sequer caixões para tornar possível o transporte do corpo até a Itália.<br />

Considerando o fato de que a viagem, por mar, durava mais de um mês, havia<br />

problemas não pequenos de higiene, ao se transportar espólios mortais, especialmente<br />

se a morte dos infelizes ocorresse por causa de doenças contagiosas.<br />

Infelizmente, portanto, também os ricos precisavam acertar as contas com a<br />

desapiedada lei do mar, que privava os familiares até de uma túmulo, sobre o qual<br />

pudessem chorar. O corpo foi colocado num saco branco, talvez coberto pela bandeira<br />

nacional. O funeral do jovem foi celebrado sobre a ponte do navio, oficiado por um


alto oficial, ou talvez pelo próprio comandante. Depois, os restos mortais de Ângelo<br />

foram confiados ao mar.<br />

A última imagem que tiveram dele os atônitos familiares era a do saco branco<br />

que desaparecia nas águas, envolvido pela dança macabra de grandes peixes, até<br />

agora desconhecidos (talvez se tratasse de esqualos). E sobre o navio caiu um triste<br />

silêncio, interrompido apenas pelo pranto dos presentes.<br />

Recentemente surgiu uma versão diferente, relativa a este fato, que se por uma<br />

primeira análise pode parecer estranha e pouco crível, por outra, pode ser muito<br />

possível e verificável, se considerarmos a coragem e a determinação de um<br />

personagem como <strong>Alessandro</strong>. A história, também esta transmitida pela tia<br />

Giuseppina Martilelli, afirma que a morte teria ocorrido provavelmente quando o<br />

navio já se encontrava no mar mediterrâneo, portanto durante os últimos dias de<br />

navegação. E para evitar de precisar incorrer na lei do mar que exigia fazer o típico<br />

funeral como foi descrito acima, a família <strong>Tirloni</strong> decidiu calar tudo e esconder o<br />

cadáver. A morte teria sido comunicada somente no momento em que o navio havia<br />

praticamente chegado em Gênova, e portanto o cadáver teria sido levado para a terra,<br />

e depois das exéquias teria sido sepultado num cemitério de Gênova.<br />

Parece incrível, mas a respeito de Ângelo existem apenas relatos orais, e não se<br />

sabe nem sequer com exatidão quantos anos tinha, ao falecer. Seu nome não foi<br />

lembrado em nenhuma lápide, nem sequer na grande tumba da família, no cemitério<br />

de Covo. Aliás, nenhuma eventual referência escrita a seu respeito, em alguma carta,<br />

chegou aos nossos dias. Como também em nenhum registro municipal ou paroquial<br />

italiano foi anotado o seu prematuro desaparecimento. Talvez, a nível burocrático, em<br />

um caso como este, teriam sido suficientes os registros navais. Infelizmente não<br />

sabemos o nome do navio que trouxe a família <strong>Tirloni</strong> para a Itália. Admitindo que se<br />

soubesse o nome do navio, o século transcorrido desde daqueles fatos até hoje, por<br />

certo lançaria tudo para o esquecimento. Em nenhuma das cartas encontradas da<br />

velha correspondência fala-se dele.<br />

Enquanto sobre o navio a família <strong>Tirloni</strong> fora envolvida pelo triste sofrimento,<br />

no Brasil, os irmãos que permaneceram, sem o conhecimento de tudo quanto havia<br />

ocorrido aos seus familiares na viagem, se reuniam para fazer uma festa. No dia 17 de<br />

julho de 1909, na capela do Sagrado Coração de Jesus de Nova Trento, o filho João<br />

casava-se com Narcisa Geselle, e foi sua testemunha o próprio irmão mais jovem,<br />

Vittorio, que havia permanecido no Brasil para terminar os estudos. Parece incrível,<br />

mas deixa uma impressão de que este casamento tenha sido realizado de propósito<br />

quando todos já estivessem no mar, a fim de que <strong>Alessandro</strong> não pudesse<br />

absolutamente fazer ouvir a sua voz.<br />

João, apenas chegado da viagem à Itália, na qual havia comunicado ao pai a sua<br />

intenção de não ir com a família, ele formalizou o seu pedido de casamento, mas<br />

precisou submeter-se às exigências eclesiais/burocráticas antes de se casar, o que<br />

levava algum tempo. Certamente <strong>Alessandro</strong> também tinha outras exigências a


espeitar pela compra da fazenda Battagliona que o obrigava a estar presente no<br />

território italiano, não depois de uma data determinada. Portanto, foi por isso que a<br />

família não pôde permanecer para presenciar o casamento do filho maior.<br />

Talvez, por outra hipótese, tudo teria caminhado de modo diverso, e a família<br />

estivesse presente ao casamento. Mas os relatos dos parentes do Brasil concordam no<br />

dizer que “todos foram embora, e João permaneceu sozinho”. E no registro Municipal<br />

de Bariano está consignada, a lápis, a nota relativa a <strong>Alessandro</strong>, “transferido para<br />

Covo no dia 24 de julho de 1909”. Portanto, é impossível que a família <strong>Tirloni</strong> se<br />

encontrasse no Brasil, apenas dez dias antes.<br />

Foram feitas várias hipóteses a respeito dessa nota escrita a lápis, mas todas são<br />

consideradas sem fundamento, vista e considerada a breve distância que intercorre<br />

entre as duas datas.<br />

2.8 A nova vida em Covo<br />

A família desembarcou em Gênova com um componente a menos. Não<br />

chegamos a saber como teriam sido os procedimentos no caso da morte de Ângelo.<br />

Talvez a morte de Ângelo devesse ser notificada à capitania dos portos, ou talvez<br />

teriam sido suficientes os registros navais, não sabemos. Cumpridas todas as


eventuais formalidades, os <strong>Tirloni</strong> se dirigiram para a direção das terras bergamascas<br />

e, segundo o registro, chegaram em Covo exatamente nos últimos dias do mês de<br />

julho.<br />

A primeira coisa que fizeram foi comunicar aos irmãos do Brasil a desgraça da<br />

morte de Ângelo, enquanto do Brasil chegava a notícia do casamento, e estas<br />

correspondências deram início a uma comunicação que persiste e liga a nossa família<br />

da Itália e do Brasil, ainda nos nossos dias.<br />

<strong>Alessandro</strong>, por certo, procurou sempre convencer os filhos que permaneceram<br />

no Brasil a virem para junto dele, enquanto os outros filhos, vindos para a Itália,<br />

começaram a sofrer de uma doença até agora desconhecida para eles, que não os<br />

abandonará jamais: a “saudades” da terra natal. Em suas mentes permaneceriam para<br />

sempre as imagens e o sonho do Brasil, como da terra afortunada, na qual poderiam<br />

refugiar-se nos momentos difíceis.<br />

A comunidade de Covo se deu conta, desde logo, da chegada dessa nova<br />

família, também porque se não tratava, por certo, de gente qualquer. Antes de tudo, os<br />

rapazes, em sua primeira aparição na comunidade, foram vítimas de longas risadas<br />

porque vestiam calças xadrez, de cores muito vistosas, como era típico em todos os<br />

“países quentes”. Se pensarmos que, na época, para o homem era só concedido<br />

vestir-se de roupas escuras, os jovens <strong>Tirloni</strong> devem ter parecido muito excêntricos.<br />

Com o tempo, todos começaram a adequar-se à moda local, e este problema foi<br />

superado.<br />

<strong>Alessandro</strong>, de seu lado, impôs-se, desde logo, sobre a sociedade da vila como<br />

um realizador muito rico. Basta pensar que a primeira imagem que dele tiveram os<br />

habitantes do pequeno centro rural Bergamasco foi aquela de um senhor, que<br />

atravessou o oceano juntamente com um filho, para examinar pessoalmente uma<br />

fazenda para comprar, que depois retornou para o Brasil, e que agora se apresentava<br />

juntamente com toda a sua família. Concluíram, portanto, que se tratava de uma<br />

pessoa que se interessava, em primeira mão, dos seus próprios negócios, a ponto de<br />

enfrentar três travessias oceânicas em pouco tempo, bem como de comprar, sem<br />

problemas, uma fazenda, e para ela se transferir com a família. Era evidente que se<br />

tratasse de um dos poucos emigrantes que, na “Merica”, como se costumava dizer<br />

naquele tempo, fez fortuna! Por isso mesmo, foi imediatamente denominado pelos<br />

habitantes de Covo, com fala dialetal bergamasca de: “el siúr Americà”, ou seja, “o<br />

Rico Americano”.<br />

Em bem da verdade, é preciso dizer que a fazenda Battagliona tinha um terreno<br />

de apenas 54 hectares e, em suma, era obviamente pequena, se considerarmos as<br />

enormes potencialidades econômicas das quais dispunha <strong>Alessandro</strong>. Ele podia ser<br />

considerado, para todos os efeitos, como o homem mais rico de Covo. Poderia,<br />

eventualmente, comprar muitos terrenos neste pequeno município, em vez de se<br />

reduzir a viver numa pequena propriedade.


Esta escolha era realmente estranha, e até agora ainda é difícil de se<br />

compreender. Aliás, também porque nos relatos transmitidos até nós, nunca se fez<br />

menção de uma clara explicação dada por <strong>Alessandro</strong>, no que se refere à compra de<br />

uma pequena fazenda. Meu pai, perguntado sobre isso, respondeu que, segundo sua<br />

opinião, foi uma medida de cautela adotada por <strong>Alessandro</strong>, pelo fato de não ter<br />

experiência prática do mercado econômico italiano, e por isso, provavelmente,<br />

preferiu evitar de empenhar, desde logo, muito dinheiro.<br />

Certo é que a liquidez econômica da qual dispunha <strong>Alessandro</strong> era deveras<br />

impressionante. Não se deve esquecer que, quando desembarcou na Itália, tinha<br />

consigo dois sacos cheios de moedas de ouro: eram os 500.000 réis, fruto da venda do<br />

terreno, no Brasil, à filha Rosa e ao Genro Carlos Tridapalli, eram todas as suas<br />

economias feitas no comércio da madeira, eram a venda de outras propriedades em<br />

Porto Franco, bem como os outros 500.000 mil réis, recebidos dois anos depois, como<br />

pagamento da dívida de sua filha Rosa.<br />

O detalhe dos dois sacos cheios de moedas de ouro foi transmitido pelos relatos<br />

dos nossos velhos, de ambas as famílias, seja esta de cá, na Itália, seja a de lá do<br />

oceano, no Brasil. A única discrepância é que os relatos ouvidos na Itália falavam de<br />

“Esterlinas”, enquanto os relatos brasileiros falavam de “Réis”. Pode ser que<br />

<strong>Alessandro</strong>, no Brasil, antes da partida, tenha feito converter todo o dinheiro recebido<br />

(Réis, portanto) em uma moeda corrente, mais facilmente aceita por qualquer banco,<br />

isto é, a Esterlina, que era unanimemente a moeda com a qual se efetuavam as<br />

transições econômicas mundiais, antes do Dólar. Nunca esquecerei a imagem de meu<br />

avô que, enquanto descrevia de modo muito enfático esta história, para melhor<br />

exprimir a ideia, indicava com as mãos a dimensão de cada um destes sacos, que<br />

chegavam a ter 30 cm de comprimento por 10 cm de diâmetro.<br />

Provavelmente este dinheiro foi depositado num banco. Não sei se existia<br />

algum, naqueles tempos, em Covo, mas provavelmente existia pelo menos um posto<br />

bancário. Podemos deduzir isto também porque deve-se considerar o detalhe dos<br />

500.000 mil réis, a serem pagos, do débito de Rosa.<br />

Como teria chegado a <strong>Alessandro</strong> esse dinheiro vindo de Nova Trento? É<br />

improvável que alguém tenha enfrentado uma travessia oceânica para entregá-los<br />

diretamente nas mãos de <strong>Alessandro</strong>. E é absolutamente impossível que tenha sido<br />

expedido. Portanto, a coisa mais provável é que <strong>Alessandro</strong> tenha aberto uma conta<br />

no banco, na qual depois foi depositado o dinheiro com uma simples transação<br />

bancária.<br />

O certo é que ninguém sabe com precisão se os famosos dois sacos cheios de<br />

moedas de ouro tenham sido depositados logo, ou se tenham sido guardados em casa<br />

por <strong>Alessandro</strong>, que talvez os escondeu mesmo como se usava fazer naquele tempo<br />

“debaixo do colchão”.


Quem sabe como foi a vida na fazenda Battagliona nestes primeiros tempos... É<br />

preciso imaginar que todos deviam levar a sua vida normal e seguir os seus costumes.<br />

A comida era diferente, o trabalho era também diferente daquele que faziam no<br />

Brasil, mas sobretudo as condições metereológicas eram muito diversas.<br />

O longo frio invernal era, por certo, uma coisa à qual os jovens <strong>Tirloni</strong> não<br />

estavam preparados, e ao qual <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta já não estavam mais<br />

acostumados. Quem sabe o que teriam experimentado os jovens, durante o primeiro<br />

inverno passado na Itália. As longas horas sombrias e úmidas teriam parecido<br />

intermináveis. O úmido frio que entrava pela carne e chegava aos ossos teria parecido<br />

um obstáculo tremendo, e depois o frio teria piorado ainda mais e teria chegado a<br />

neve. Quem sabe como teriam reagido os jovens diante da primeira nevada de suas<br />

vidas... Quem sabe o que teriam pensado, depois de meses passados no frio mais<br />

impensável... Seguramente teriam pensado em sua pátria nativa, o Brasil, teriam<br />

pensado no calor tórrido do longo verão, e talvez teriam todos pensado que estariam<br />

melhor no meio do mato, com o medo de serem assaltados pelos Bugres , em vez de<br />

estar na Itália a morrer de frio.<br />

Ainda agora os parentes brasileiros não tem uma ideia de que coisa pode<br />

significar uma nevada e viver por meses em meio à neve, porque na região de<br />

Brusque nunca foi vista, e todos dela falam de maneira indefinida, sem precisamente<br />

saber o que estão dizendo. Recordarei sempre os rostos estupefatos das crianças dos<br />

nossos parentes, enquanto escutavam os nossos relatos como se fossem fábulas!<br />

Depois de dois anos da chegada em Covo celebrou-se, em família, o primeiro<br />

casamento italiano. No dia 18 de fevereiro de 1911, a filha maior, Ângela, casou-se<br />

com o conterrâneo Agostinho Nava, cinco anos mais velho do que ela.<br />

Apresentava-se, nesta ocasião, para <strong>Alessandro</strong>, a incumbência do dote a<br />

pagar, e sabemos pelas cartas que vieram do Brasil, escritas alguns anos depois, que a<br />

intercessão da mãe Elisabetta foi fundamental para que Ângela obtivesse um dote<br />

decente, e não ficasse mal no relacionamento com o marido.<br />

A mãe Elisabetta, mulher boa e amável, deve ter tido, desde sempre, um<br />

desempenho determinante na família, como ligação entre o marido <strong>Alessandro</strong> e os<br />

filhos. Também se naquele tempo o desempenho das mulheres na sociedade era de<br />

total marginalização e de cega obediência ao chefe da família, (pai ou marido, que<br />

fosse), sem possibilidades de contestação, Elisabetta deve ter combatido muito contra<br />

o marido, para o bem dos seus filhos. Deve ter sido a única que chegava, com certeza<br />

a preço de enormes fadigas, a fazer o marido raciocinar e rever certas decisões,<br />

quando ele se envolvia em coisas evidentemente erradas. Aliás, prova disso foi o seu<br />

persistente agir nos confrontos com <strong>Alessandro</strong>, quanto ao dote da filha Ângela.<br />

No início do ano seguinte, o filho Vittorio, terminados os estudos colegiais,<br />

embarcou para a Itália e se reuniu à família em Covo. Talvez, foi por ocasião da


chegada de Vittorio que a família reunida fez uma festa, e para essa ocasião foi<br />

chamado um fotografo para a fazenda Battagliona, o qual fez a primeira foto da<br />

nossa família.<br />

Família <strong>Tirloni</strong>: Foto feita na fazenda Battagliona em Covo (foto ano 1912)<br />

Em ordem de esquerda à direita:<br />

Eliseo, Francesca, Vittorio, Emanuele, Vittoria, Antonia<br />

<strong>Alessandro</strong>, Elisabetta<br />

Dessa fotografia foram feitas várias cópias que, aliás, também foram expedidas<br />

para o Brasil. Uma cópia original, feita na época, chegou até os nossos dias. Sempre<br />

naquele mesmo dia foram feitas outras fotografias de <strong>Alessandro</strong> e Elisabetta.<br />

(Conclui-se que foi no mesmo dia porque as vestimentas dos dois são as mesmas da<br />

foto da família, embora a postura seja diferente). Estas fotos de <strong>Alessandro</strong> e<br />

Elisabetta foram, depois, utilizadas para as suas lápides, no cemitério de Covo.<br />

Infelizmente nesta foto falta a filha maior, Angela, que sendo já casada, não<br />

vivia mais em casa. Graças a esta foto podemos finalmente associar um rosto aos<br />

vários protagonistas desta história, da qual tanto temos falado até agora.<br />

Na foto todos estão sérios, como convinha naquele tempo quando alguém se<br />

apresentava para fazer o “litrat” (o retrato), como se dizia em dialeto. A fotografia era


vista como uma coisa importante, e era preciso estar sério. Nesta foto todos estão<br />

impecavelmente elegantes e bem cuidados (coisa não descuidada na época, também<br />

para gente de bens). As moças apresentam penteados particularmente vistosos e ricos,<br />

como deveria estar em moda, naquela época, e todos os jovens levam objetos de<br />

apreciável valor como, por exemplo, colares, cinturas e brincos, e os rapazes exibem<br />

relógios de algibeira, com a corrente bem em evidência sobre os coletes.<br />

<strong>Alessandro</strong>, no momento desta foto, tinha há poucos meses completado 60<br />

anos, e mesmo se, naqueles tempos, já fosse considerado um homem velho, ele<br />

aparece realmente inteiro em sua posição de chefe de família. Está completamente de<br />

cabelos brancos, e seu rosto magro e contraído está moldurado por fortes bigodes<br />

brancos caídos, como era moda na época junto das classes menos abastadas. A<br />

expressão é forte e seriíssima, e o olhar é firme, direto e seguro. A única coisa que<br />

talvez pudesse deixar trair uma qualquer insegurança são as grandes e fortes mãos<br />

que estão apertadas uma na outra. Pode-se compreender isso, devido à pouca<br />

familiaridade com a postura a ser assumida numa fotografia, mais do que a presença<br />

de um real acanhamento. Não parece estar muito cômodo nesta posição, e não lhe<br />

devia ser confortável estar sentado, inativo. Não parece nada relaxado mas, ao<br />

contrário, parece estar com os nervos tensos, pronto para “disparar”.<br />

Elisabetta tinha cerca de 56 anos e, ao contrário do marido, começava apenas a<br />

se tornar grisalha. Na foto, seu rosto, pelos alinhamentos mais marcados, parece<br />

menos envelhecida do quanto poder-se-ia esperar de uma mulher que teve 12<br />

gravidezes e uma vida por certo nada fácil, assinalada pelo trabalho e pelos<br />

sacrifícios. A expressão é suave e bondosa, com um olhar materno, e em suma, ela<br />

aparece doce, mas deixa transparecer olhos revestidos de canseiras que fazem<br />

compreender “terem visto muitas coisas” e terem combatido muito. Ela parece muito<br />

mais relaxada do que o marido e não parece estar desconfortável na posição de<br />

matriarca. As suas grandes e longas mãos nos fazem compreender que o seu trabalho<br />

não foi só aquele doméstico, e que, por certo, não está ainda terminado. Mostra-se<br />

uma mulher delicada, e talvez cansada, mas por certo não resignada.<br />

Na foto, Eliseu tinha quase 17 anos e deixava transparecer ainda uma pequena<br />

cota daquela distração e insegurança de adolescente, da qual pode permitir-se em uma<br />

família como essa. Para ele o tempo dos brinquedos havia acabado, fazia tempo, e de<br />

fato nota-se nele já um forte aceno à seriedade que se aduz a uma pessoa que já faz<br />

fadiga no trabalho, para dar um contributo ao pão de cada dia.<br />

Francesca tinha 18 anos. Aparece, na foto, doce e serena Espontaneamente<br />

apoia a mão sobre o ombro do pai. Ela é a única dentre todos os irmãos que, neste<br />

momento, procura um contato físico com os genitores, e isto deixa entender um<br />

apego nos relacionamentos com os mesmos. Por um certo tempo não se chegou a<br />

associar com certeza um nome a este rosto. Foi muitas vezes confundida com a irmã<br />

maior, Ângela, mas graças às várias fotografias encontradas de ambas, agora se pôde<br />

finalmente associar um nome seguro a cada uma das moças.


Vittorio tinha 24 anos, e na foto é o mais velho dentre os irmãos que voltaram<br />

para a Itália. Ele é talvez aquele que entre os irmãos mais se assemelha esteticamente<br />

ao pai. Tem o mesmo rosto magro e afunilado, mesmo tendo o queixo mais quadrado.<br />

Estava na Itália, fazia pouco, e talvez ainda estivesse se sentindo um pouco<br />

expatriado, ou até estivesse presente, mas não muito a seu gosto. Na foto apresenta<br />

uma imagem de jovem determinado.<br />

Emanuele tinha 21 anos, e na foto é o único que acena um discreto sorriso.<br />

Assemelha-se muito ao irmão Vittorio, mas o seu rosto aparece menos magro, e é<br />

fisicamente mais avantajado. É o mais alto da família, com uma altura que vai além<br />

de 1.80 m. É uma altura com certeza superior à média da época.<br />

Vittoria tinha 19 anos, e na foto é aquela dentre as irmãs que parece mais<br />

segura de si. Tem uma fronte alta e o olhar decidido. Ela é quem mais aparece pelo<br />

elevado grau de cuidado do cabelo, e o perfil do rosto recorda muito aquele do pai e<br />

do irmão Vittorio.<br />

Antônia tinha quase 13 anos. Também para o seu reconhecimento na foto houve<br />

muitas dúvidas, e só pelo encontro de outras fotografias das irmãs maiores é que<br />

agora se pode afirmar com razão a sua identidade. Não obstante a sua estatura ser<br />

praticamente a mesma das irmãs, o seu rosto aparece muito jovem, e a sua testa<br />

levemente abaixada, juntamente com o olhar tímido, deixa transparecer que é a caçula<br />

da família.<br />

No momento em que foi feita esta fotografia, obviamente ninguém poderia<br />

imaginar aquilo que iria acontecer em breve. Aliás, a decisão de não tardar de<br />

fazerem-se retratar foi uma sorte para nós, descendentes, que podemos conhecer no<br />

rosto de nossa matriarca. De fato, essa mãe tão cara e amada, estava destinada a<br />

acabar logo a sua boa obra para o bem dos seus filhos, porque depressa o destino se<br />

desencadearia contra ela.<br />

Pouquíssimo tempo depois de ter podido abraçar o seu filho Vittorio, apenas chegado<br />

do Brasil, no dia 10 de abril de 1912, a mãe Elisabetta, numa rotina comum familiar<br />

em um dia como tantos outros, saiu de casa levando uma cesta cheia de roupas para<br />

lavar, e se dirigiu para o canto nordeste da fazenda onde corria um riacho. Aquele era<br />

o lugar onde se dirigia sempre para lavar a roupa. Infelizmente o destino decidiu que<br />

Elisabetta, naquele dia, não voltaria mais para casa, e não veria mais os seus<br />

familiares.<br />

Passado um pouco de tempo depois de ter saído de casa, a filha menor,<br />

Antônia, não vendo-a voltar para casa, foi à sua procura. Apenas chegada ao riacho,<br />

coube à jovem de treze anos a desventura de encontrar-se sozinha em uma cena,<br />

dentre as mais horríveis que podem acontecer. Antônia viu o corpo da mãe, sem vida,<br />

voltado com a barriga para baixo, flutuando no regato, arrastado em círculos pela leve


correnteza.<br />

Cascina Battagliona: vista della zona dove un tempo c’era la roggia in cui è annegata Elisabetta Colombi (fotografie – anno 2002 e anno 1997)<br />

Provavelmente Elisabetta foi atingida por um mal fatal, enquanto estava<br />

inclinada sobre o regato lavando a roupa, e o mal deve ter sido de tal modo<br />

fulminante que a pobre mulher caiu na água, já morta. Pode-se também supor que<br />

tenha acidentalmente deslizado para dentro do riacho, e os vestidos pesados que<br />

usava naquele tempo, impregnados de água, tenham se transformado em uma<br />

armadilha mortal, das mais cruéis.<br />

Consultada a ata de morte encontrada nos arquivos da paróquia de Covo, sabese<br />

que Elisabetta concluiu o seu cansativo caminho terreno aos 56 anos completos,<br />

dos quais 34 passados ao lado de um homem que, com certeza, lhe deu menos afeto e<br />

atenções do quanto ela merecia. O caso foi registrado como “morte por causas<br />

naturais”. No registro paroquial se lê: “morbo repentino corrupta”, ou seja “atingida<br />

por doença repentina”.<br />

Pessoalmente me permito dizer que a hipótese verdadeira é aquela oficial, e que<br />

à pobre Elisabetta, depois de uma vida de sacrifícios, fadigas, renúncias e<br />

humilhações, não teria sido atingida pela triste sorte de acabar a sua histórias<br />

humana, morrendo no atroz espanto provocado por um afogamento. Prefiro pensar<br />

que, em um instante, sem quase perceber aquilo que estava acontecendo, por um<br />

ataque fatal, tenha recebido o prêmio destinado aos justos, e tenha merecido o eterno<br />

repouso.


Pagina do registro da igreja de Covo com marcada a falecida de Elisabetta Colombi (foto ano 2009)<br />

Uma curiosidade digna de nota que emerge observando a ata de morte é o fato<br />

de que pareceria que a mãe de Elisabetta estivesse ainda viva no momento desta<br />

morte. De fato o seu nome: Francesca Tadini (antes do que Tardini ou Tardina, como<br />

as vezes aparece em outros documentos) não é precedido pela sigla “quond” que,<br />

naqueles tempos, se usava para indicar nos registros oficiais uma pessoa já defunta.<br />

Não é sabido se se trata de um simples esquecimento, ou se, de fato, a mãe de<br />

Elisabetta ainda estivesse viva. Aliás, não sabemos, nem sequer, onde eventualmente<br />

ela poderia estar. Talvez teria ficado no Brasil, ou teria voltado para a Itália junto com<br />

a família <strong>Tirloni</strong>, o genro e os netos. Dando por correta a idade assinalada nos<br />

documentos de emigração, encontrados no Brasil, a mulher teria 78 anos, que para<br />

aquela época era uma idade considerada bastante alta, mas não impossível de<br />

alcançar.<br />

O funeral de Elisabetta foi celebrado dois dias depois da morte e o corpo foi<br />

sepultado no cemitério de Covo. Logo em seguida deste luto, <strong>Alessandro</strong> fez<br />

imediatamente edificar a tumba de família que, aliás, chegou até os dias atuais. Por<br />

muito tempo, até que não morressem os filhos, as lápides sobre este túmulo traziam,<br />

como era costume naquele tempo, os poéticos epitáfios de Elisabetta e de <strong>Alessandro</strong>.<br />

Perdida a presença da mãe, o posto de “regência” (de matriarca) foi assumido<br />

pela filha mais velha que ainda estava em casa: a “terrível” tia Vittoria. Terrível<br />

porque ela, de acordo com o pai, assumiu a política de absoluta parcimônia tão<br />

praticada por ele.<br />

A família se achou, em pouco tempo, sem duas mulheres, porque Ângela já<br />

estava casada há um ano e estava para ter - ou talvez já tivesse tido - uma menina que<br />

se chamou Narcisa, em recordação da tia que vivia no Brasil. Portanto, a situação na<br />

família não estava sendo fácil e <strong>Alessandro</strong> começou a induzir o filho Emanuele, o<br />

único que tinha uma namorada, a casar-se logo, a fim de que entrasse na casa uma<br />

mulher a mais, que pudesse ajudar nos trabalhos domésticos dessa grande família.<br />

Eis, pois, que no dia 16 de novembro de 1912, Emanuele desposou a<br />

conterrânea três anos mais jovem, Rosa Morosina. O casal se estabeleceu obviamente<br />

na fazenda Battagliona, e Rosa se achou no dever de cuidar dessa grande família, sob<br />

a guia do áspero sogro e sob o olhar vigilante da cunhada Vittoria. Depois de menos<br />

de um ano, no dia 6 de outubro de 1913, nasceu um menino para este casal, o


primeiro neto homem de <strong>Alessandro</strong>, nascido na Itália, e a este foi dado o nome de<br />

Ângelo Batista <strong>Tirloni</strong>, em memória do falecido tio, que veio a faltar 4 anos antes,<br />

durante a travessia do oceano, na viagem para a Itália. Por um erro cometido pela<br />

parteira ao registrar o menino, os nomes ficaram invertidos, mas isto não obstou que<br />

ele fosse chamado por toda a sua vida, em casa e em público, “El zio Angel”, o tio<br />

Ângelo.<br />

Um mês depois do nascimento deste menino, no dia 29 de novembro de 1913,<br />

Vittorio se casou com Lucia Cucchi, uma conterrânea sete anos mais jovem do que<br />

ele, e também esses foram morar na fazenda Battagliona.<br />

Luzia era uma mulher alegre, de sorriso fácil, e se uniu logo à cunhada Rosa,<br />

que era uma mulher delicada e disponível. Iniciou-se assim uma amizade entre as<br />

duas cunhadas, que aliás seriam sempre grandes amigas, e juntas tentariam sustentarse<br />

para poderem conviver com o embaraçoso sogro <strong>Alessandro</strong>.<br />

Como já foi dito, durante todos esses anos de vida italiana, os relacionamentos<br />

entre os dois ramos da família (aquela da Itália e a do Brasil) foram mantidos por uma<br />

constante correspondência. Seria desejável que as cartas fossem sempre portadoras de<br />

novidades de ambas as partes, que anunciassem os matrimônios e os novos<br />

nascimentos dos vários netos.<br />

<strong>Alessandro</strong> era quase analfabeto ou, no máximo, seria apenas capaz de ler, mas<br />

não de escrever. É, portanto, pouco provável que suas cartas fossem escritas por ele<br />

mesmo. Com certeza foram ditadas por ele a algum filho, filha e nora.<br />

Inevitavelmente todos os componentes da família receberam uma influência do<br />

linguajar de gírias usadas no Brasil. Para exemplificar, sabe-se que <strong>Alessandro</strong> por<br />

toda a sua vida utilizou o termo “safado” para indicar uma pessoa da qual não se pode<br />

confiar, um embrulhão, ou até mesmo um delinquente. Este era um termo que não<br />

proveio absolutamente da tradição bergamasca, mas ao contrário, tinha uma<br />

derivação tipicamente das colônias portuguesas da América Latina.<br />

Sobre este detalhe, seja dito que na casa <strong>Tirloni</strong> havia uma grande disparidade<br />

entre os níveis de escolarização dos irmãos. Sabemos que Joana e Rosa sabiam ler,<br />

mas não sabemos se elas sabiam escrever. Sabemos que Vittorio estudou num<br />

colégio, que Ângela e Francesca sabiam escrever de maneira decente, e sabemos<br />

também que Emanuelle nunca frequentou uma escola, mas estava apto a ler, e sabia<br />

fazer apenas a sua assinatura. Não sabemos qual a sorte que coube aos outros irmãos,<br />

mas se pode presumir que todos soubessem pelo menos ler.<br />

Uma ajuda para a alfabetização foi dada à família por uma personagem que,<br />

definir como “particular”, “caprichosa” ou até “excêntrica” seria ainda redutivo.<br />

Trata-se da anciã senhorita Luiza Valaguzzi (1863 – 1947), melhor conhecida como<br />

“la Bígia Valagusa” (= a parda de Valagusa), ou então como a “Bígia de Cof”(= a


parda de Covo), que entrou desde logo a fazer parte de nossa família. Sobre esta<br />

personagem convém abrir um parênteses.<br />

Ela era uma ex-obstetra a quem, por motivos envoltos em mistério,<br />

provavelmente dos albores do Fascismo ou até mesmo antes, tinha sido cassada a sua<br />

liberdade de exercer profissão. Era uma mulher dotada de indubitável cultura, e foi<br />

ela quem ensinou a alguns rapazes da família <strong>Tirloni</strong> a ler e escrever. Seu pai era uma<br />

pessoa “incômoda” e, por isso mesmo, ela também havia sido colocada na berlinda.<br />

A Bígia (a parda, a escurinha) era famosa sobretudo como uma poderosa<br />

“curandeira” (dita em linguagem bergamasca “La settimina” ou “la segnuna”(= a<br />

benzedeira). A sua habilidade e os seus conhecimentos dos remédios naturais eram<br />

indiscutíveis, mas o seu aspecto exterior voluntariamente desarrumado ao extremo,<br />

fazia dela uma pessoa que podia muito bem ser aproximada das “bruxas” dos contos<br />

de fada.<br />

Vestida com mais saias, uma por cima da outra, tinha sempre os cabelos<br />

envoltos em variados e bizarros gorros. Contava-se que nunca tomava banho e que<br />

também a casa onde vivia – atualmente reduzida a poucas ruínas, chamadas de<br />

Fazenda Itália – bem espelhava, quer na desarrumação, quer no descuido das coisas,<br />

que tipo de dona de casa ela era.<br />

Como toda curandeira, também a Bígia estava cercada por um elo de mistério e<br />

de sobrenatural que alimentava ainda mais a sua fama de “bruxa”, e naquele tempo as<br />

pessoas, sobretudo por causa da pouca instrução, eram muito propensas a crer nestas<br />

magias e sortilégios, também porque existiam mais curandeiros do que médicos.<br />

Provavelmente ela era mais temida do que respeitada, mas era uma pessoa<br />

muito boa e procurava só ajudar – a seu modo – às pessoas em dificuldade. Jamais<br />

negava os seus serviços a quantos pedissem socorro. Ainda agora, os velhos de Covo<br />

contam de uma família que, por medo dela, a haviam expulsado de forma agressiva, e<br />

ela teria lançado sobre aquela família uma maldição, dizendo: “Agora vós me<br />

expulsais, mas virá o dia em que vós me procurareis” A profecia aconteceu, e quando<br />

naquela família ocorreu um grave caso de doença, logo mandaram chamar a Bígia<br />

que imediatamente se dirigiu para aquela casa para socorrer a pessoa doente.<br />

Com mais de oitenta anos a Bígia começou a ceder sob o peso dos seus anos e<br />

de sua falta de cuidados. Foi levada para o hospital - contra a sua vontade - e ali, a<br />

primeira coisa que os enfermeiros fizeram foi lavá-la, depois de decênios. A coisa<br />

não foi nada fácil porque se conta que a sua combinação estava já completamente<br />

grudada à pele, e não se conseguia tirá-la do seu corpo. A Bígia não queria que a<br />

lavassem e continuava a dizer: “Se me lavais, far-me-eis morrer”!<br />

Também desta vez a sua profecia foi verdadeira e na manhã seguinte a Bígia foi<br />

encontrada sem vida no seu leito de hospital. Depois do funeral religioso foi<br />

sepultada no cemitério de Covo, e até os nossos dias sobre a sua sepultura não faltam


nunca flores frescas... Mas ninguém jamais viu quem as coloca!<br />

Lápide de Luigia Valaguzzi e restos da sua casa (fotos ano 1997)<br />

Muitos são os relatos que em nossa casa têm a Bígia como protagonista. Os<br />

nossos familiares eram afeiçoados àquela bizarra e intrigante velhinha, e ela retribuía<br />

aos os nossos familiares com sincero afeto e úteis conselhos e sortilégios, aptos para<br />

aliviar quanto mais penas possíveis houvesse, quer nas pessoas quer nos animais da<br />

estrebaria, mas também ajudando em coisas diferentes como, por exemplo, na<br />

alfabetização.<br />

A carta mais antiga escrita pelos filhos de <strong>Alessandro</strong>, chegada até os nossos<br />

dias, é datada de 1914. Por esta carta descobrimos que a correspondência não era<br />

sempre portadora de belas e serenas notícias, mas ao contrário, em todas as cartas<br />

encontradas se percebe que elas eram um instrumento de desabafo para os filhos<br />

oprimidos pelo despótico jugo do velho <strong>Alessandro</strong>. Esta primeira carta foi escrita por<br />

Ângela e pelo marido Agostino Nava à irmã Rosa, residente em Nova Trento, no<br />

Brasil. Não está completa, foi rasgada, mas é deveras interessante porque de sua<br />

leitura se veio a saber notícias muito importantes, no que se referia à vida familiar.<br />

Soube-se que:<br />

- <strong>Alessandro</strong> tornou-se sempre mais tacanho, e até piorou em seu já duro<br />

caráter, de tal modo que os filhos do Brasil tinham dificuldades de reconhecêlo.<br />

- Ângela ainda não tinha recebido a sua cota do dote que o pai lhe tinha<br />

concedido, por intercessão da mãe.<br />

- Eliseu, no início do novo ano seguinte, partiria para o serviço militar, não<br />

obstante os esforços feitos pelo pai para mantê-lo em casa.<br />

- Francesca queria casar-se, mas o pai não consentia o casamento, porque<br />

pretendia que ela permanecesse em casa para ajudar a família.<br />

Sobretudo a parte da carta escrita por Agostino Nava nos ajuda a enquadrar<br />

também a situação econômica e social na qual se encontrava a Itália naquele período.<br />

Fazia poucos meses que se iniciara a Primeira Guerra Mundial. Por enquanto a Itália<br />

não havia tomado partido, mas já estava em estado de atenção, e todos os homens


hábeis para as armas foram convocados. Pportanto havia menos gente disponível para<br />

ao trabalho, havia uma grande crise econômica (chamada de carestia) também devido<br />

ao fechamento do trafego internacional. E a pagar a conta, como sempre, eram os<br />

pobres, enquanto ao invés, os ricos agricultores (como <strong>Alessandro</strong>) chegavam a obter<br />

grandes lucros pelo inevitável aumento dos preços dos produtos agrícolas.<br />

<strong>Alessandro</strong> provavelmente percebeu as consequências futuras dessa situação<br />

econômica e política e se, por um lado, se empenhou para que o filho Eliseu não<br />

viesse a ser chamado para a guerra, pelo outro lado se fechou ainda mais em sua<br />

trincheira de medo de perder dinheiro.´<br />

Pode ser, também, que o seu empenho de evitar que Eliseu fosse para a guerra<br />

tivesse sido sobretudo devido ao fato de não querer perder a sua força de trabalho na<br />

fazenda, e não tanto de medo pela sorte do filho...<br />

Nessa carta Agostino escreveu uma passagem que, em vista da situação que se<br />

vivia na Itália, lhe agradaria muito se pudesse ir para o Brasil, mas infelizmente não<br />

podia porque também ele havia sido chamado para as armas. Ele ajudou a<br />

compreender muito bem como a lembrança do Brasil, como sendo uma terra<br />

afortunada, tinha contagiado também os novos membros chegados à família.<br />

Sempre nesta carta, Agostino nos remete pela primeira vez ao conhecimento de<br />

um detalhe familiar muito importante porque, enquanto descreve a precária situação<br />

econômica que se vivia na Itália, escreveu à cunhada: “Faço-vos saber, também, do<br />

tio de Caravaggio, que passa dias pouco bons”... Este breve aceno faz imediatamente<br />

intuir que a família do Brasil conservava relacionamentos com os velhos parentes<br />

italianos. Não sabemos quem seja este tio, não sabemos se seria um familiar de<br />

<strong>Alessandro</strong> ou de Elisabetta mas, como se suspeitava, temos a prova que <strong>Alessandro</strong> e<br />

Elisabetta mantiveram os contatos com ao menos alguns membros de sua família.<br />

Os relatos transmitidos pela nora Giuseppina Martinelli deram ulterior<br />

confirmação de que algum relacionamento com os velhos parentes foi feito de fato,<br />

pois <strong>Alessandro</strong>, ao menos uma vez ao ano, se fazia levar ao longo da estrada baixa<br />

que ligava Bariano a Caravaggio (denominada “estrada dei fossi” ou “estrada delle<br />

morle”) e dali prosseguia até junto de uma fazenda. Não se sabe que fazenda seria e<br />

quem ali habitasse precisamente, mas se sabe que se tratava de parentes do velho<br />

<strong>Alessandro</strong>, talvez seus irmãos, ou mais provavelmente irmãos da mulher (originária<br />

aliás de Caravaggio). Esta é uma ulterior prova da existência deste “tio de<br />

Caravaggio”, do qual se escreveu.<br />

Apesar de todos os esforços feitos por <strong>Alessandro</strong>, Eliseu partiu como soldado<br />

e, inexplicavelmente, <strong>Alessandro</strong> deu o seu consentimento ao matrimônio da filha<br />

Francesca. No dia 01 de fevereiro de 1915 se casou com o conterrâneo Agostino<br />

Pesenti, de quem até hoje não sabemos quantos anos deveria ter, pois não foi<br />

encontrado documento inerente à sua vida.


Ao final da Grande Guerra, também Emanuele foi convocado, mas foi julgado<br />

inábil por causa de “dentes gastos” e, portanto, pôde permanecer em casa para<br />

trabalhar. Não sabemos o que sucedeu a Vittorio, mas também ele evitou a partida<br />

para a frente de guerra. Pode-se suspeitar que ao menos neste caso <strong>Alessandro</strong> tenha<br />

chegado a fazer valer o poder do seu dinheiro para corromper os oficiais e reter os<br />

dois filhos em casa. Esta foi uma solução destinada a durar pouco, porque por causa<br />

dos resultados adversos da longa guerra, de pressa se compreendeu que as coisas<br />

estavam destinadas a mudar radicalmente.<br />

O êxito desastroso da batalha de Caporetto do dia 24 de outubro de 1917<br />

impeliu o exército a<br />

recrutar uma massiva turma de homens, e dois cartões postais de ordem chegaram à<br />

fazenda Batagliona. Emanuele e Vittorio foram novamente visitados por militares,<br />

julgados capazes, e também a eles coube partirem para a frente de guerra. A casa<br />

ficou totalmente privada de homens e <strong>Alessandro</strong> caiu no desespero mais profundo.<br />

Tentou por todos os meios de impedir a partida dos seus filhos, mas precisou renderse<br />

à evidência dos fatos, e foi obrigado a tomar decisões que mudam radicalmente a<br />

impostação familiar.<br />

Na segunda carta encontrada no Brasil, escrita sempre por Ângela à irmã Rosa,<br />

no dia 4 de novembro de 1917, encontram-se todas essas notícias e se descobre que:<br />

- Agostino estava entre os primeiros a partir para a frente de guerra e fazia<br />

muito tempo que não se tinha notícias suas, não se sabia nem sequer se estava vivo...<br />

- Emanuele e Vittorio partiram para a frente de guerra no dia seguinte à data<br />

desta carta, não obstante todos os esforços de <strong>Alessandro</strong><br />

- <strong>Alessandro</strong>, encontrando-se sem mais os filhos que trabalhavam, decidiu<br />

alugar a terra da fazenda aos vizinhos Colzani, e se transferiu com toda a família para<br />

uma pequenina fazenda situada no centro da vila, mesmo às costas da igreja, e<br />

chamou para junto de si as duas filhas casadas, Ângela e Francesca porque os seus<br />

maridos estavam todos na frente de guerra.<br />

- Eliseu estava na Albânia mas, em suma, a sua situação foi descrita como a<br />

mais tranquila.<br />

Nesta carta se vê pela primeira e, talvez, pela única vez, o aspecto humano de<br />

<strong>Alessandro</strong>. Pode-se perceber o seu espanto diante da importância desta situação<br />

muito maior do que ele. Experimentou comprar com seu dinheiro a liberdade dos<br />

filhos do jugo da guerra, mas não venceu, e agora foi atingido também nos seus<br />

interesses monetários, enquanto se encontrou obrigado a alugar os seus terrenos, a sua<br />

casa e, único homem que permaneceu na família, precisava cuidar de quatro filhas,<br />

duas noras e quatro netos.<br />

Nesta carta se percebia, também, que o relacionamento entre <strong>Alessandro</strong> e o<br />

filho Vittorio não era por nada bom, e os dois já não se falavam a seis meses, e<br />

deixava a impressão de que a irmã Ângela havia tomado a defesa do pai, antes da do


irmão... Provavelmente Ângela neste momento, colhendo as dificuldades e a<br />

fraqueza do pai <strong>Alessandro</strong>, envolvido pela gravidade desse momento, por sua vez se<br />

sente no dever de correr em ajuda ao pai, e abandonou a antipatia que não faltava<br />

nunca de deixar transparecer nas sua cartas, nos seus difíceis relacionamentos com o<br />

genitor.<br />

Dos relatos ouvidos no Brasil, sabemos que Emanuele foi ferido em uma perna,<br />

mas chega a sobreviver e não teve lesões permanentes. Ao passo que Agostino Nava,<br />

depois de anos de trincheira, ficou muito doente e precisou tratar-se por muitos anos.<br />

Não sabemos qual a sorte que tiveram os outros homens da família.<br />

Afortunadamente a grande guerra acabou e a família <strong>Tirloni</strong> não se viu<br />

constrangida a pagar o preço de vidas humanas. Todos os homens retornaram para<br />

casa, e a preço de muita fadiga a vida pôde recomeçar.<br />

Não é claro o que aconteceu no começo, após a guerra. Infelizmente é difícil<br />

de se chegar a fazer concordar os relatos dos nossos avós, com as provas escritas,<br />

mas a versão mais acreditada é que a fazenda foi retomada para a gestão da família, e<br />

nos anos seguintes, cedida novamente em aluguel.<br />

As filhas casadas voltaram a viver em suas casas juntamente com seus maridos,<br />

e na Bataggliona se encontravam para viver: Vittorio com sua mulher e dois filhos,<br />

Emanuele com a mulher e dois filhos, e os três filhos mais jovens ainda não casados,<br />

Vittoria, Eliseu e Antônia.<br />

Deste período imediatamente depois do fim da grande guerra, há uma carta<br />

escrita por Eliseu, a sua mais antiga carta encontrada no Brasil. Tem a data do dia 16<br />

de dezembro de 1919 e as notícias nela contidas são um autêntico tesouro:<br />

- Eliseu voltou para casa somente no dia 30 de outubro, (isto é, quase um ano<br />

depois do fim da guerra,) depois de quase cinco anos de sofrimentos e perigosa vida<br />

militar.<br />

- Também Vittorio e Emanuelle voltaram da frente de guerra, e estavam todos<br />

bem.<br />

- <strong>Alessandro</strong> decidiu comprar um pouco de terra a mais para fazer frente às<br />

necessidades da família que estava aumentando em número.<br />

- Poucos dias antes. a família havia recebido notícias de um tio residente em<br />

Porto Alegre que comunicava o desaparecimento de outros dois tios: Batista e Fermo.<br />

Analisando as notícias trazidas nesta preciosa carta, aparece em toda sua<br />

evidencia, antes de tudo, a brutalidade que Eliseu (e todos os soldados!) precisou<br />

aprender para sobreviver. Com certeza muitas vezes até a esperança de rever a<br />

própria casa e os próprios familiares ficou menor, e Eliseu deve ter-se desencorajado<br />

de viver, diante das imagens de cruas violências que a guerra apresentava.<br />

A notícias ligada à terra é muito útil porque nos leva ao conhecimento do fato<br />

de que provavelmente <strong>Alessandro</strong>, no passado, não havia comprado mais


propriedades em terrenos, mas simplesmente havia tomado em aluguel as terras de<br />

outros. Este fato é relatado pela frase: “(A terra) que tínhamos antes por sete anos,<br />

não podemos mais tê-la)<br />

Uma notícia que de verdade atingiu e pôs em movimento toda uma série de<br />

conjeturas é aquela ligada aos tios, enquanto alimenta uma forte suspeita que se<br />

enraíza sempre mais. Não temos ideia de quem seja esse tio de Porto Alegre, e não<br />

temos certeza nem sequer sobre a identidade dos outros tios defuntos. Provavelmente<br />

se tratava de parentes da mãe Elisebatta. Talvez o “tio Pedro de Porto Alegre” seria<br />

um dos dois irmãos de Elisabetta, e um dos tios defuntos seria o marido da irmã de<br />

Elisabetta. Mas quem seria o último tio de quem se faz menção? Os nomes não nos<br />

ajudam por nada porque nenhum dos irmãos de Elisabetta corresponde a estes nomes,<br />

e é mesmo por isso que toma pé sempre mais uma estranha hipótese: poderia ser uma<br />

pura coincidência, mas os nomes Battista e Fermo são os nomes de dois dos irmãos<br />

maiores de <strong>Alessandro</strong>.<br />

O primeiro, assinalado no Registro Anagráfico de Bariano com o nome<br />

completo “Giovanni Battista (abreviado em “GioBatta”) é aquele solteiro, a quem é<br />

creditada a nota “América”. Fermo é aquele assinalado como sendo casado e com<br />

duas crianças. Obviamente não se quer chegar a conclusões arriscadas, também<br />

porque o nome “Batista” – como todos os nomes de origem bíblica – eram muito<br />

comuns, mas permanece o fato de que o nome “Fermo”, ainda que usado na idade<br />

média, não era absolutamente de uso comum, e era muito raro também nos anos<br />

oitocentos. Na nossa família este nome foi dado a um irmão de <strong>Alessandro</strong>, enquanto<br />

era o nome do avô, o nosso avô mais antigo de quem se tenha notícia até agora. Uma<br />

ulterior confirmação a essa tese nos chega mesmo do Brasil, do velho tio João <strong>Tirloni</strong><br />

(o neto mais velho e ainda vivo do patriarca) o qual recorda que sua mãe, a tia<br />

Narcisa Geselle, falava de ao menos um irmão de <strong>Alessandro</strong> residente no estado do<br />

Rio Grande do Sul, do qual não se tinha mais notícias há muito tempo.<br />

Esta descoberta revoluciona todas as teorias e suposições feitas até agora, mas<br />

ainda não está claro como aconteceram cronologicamente os eventos. Há várias<br />

possibilidades. Primeira: <strong>Alessandro</strong> teria partido para o Brasil, não sozinho, mas com<br />

dois irmãos; segunda: <strong>Alessandro</strong> esteve unido aos irmãos em um segundo tempo;<br />

terceira: foi <strong>Alessandro</strong> que foi se unir aos irmãos emigrados antes dele. Seja como<br />

for, se as coisas andaram exatamente assim, isto significa que outros parentes <strong>Tirloni</strong>,<br />

de nós desconhecidos, estão agora residindo no sul do Brasil.<br />

Na casa <strong>Tirloni</strong> todos os membros da família são observados pela figura do<br />

velho <strong>Alessandro</strong>, cujo caráter piora e se endurece sempre mais, com o passar dos<br />

anos. Como foi dito, a coisa que mais o caracterizou foi a sua sovinice que chegava<br />

ao inverossímil, unida à grande operosidade e a uma fibra fortíssima. Era um<br />

trabalhador infatigável até à idade avançada. Nunca ficava doente, acordava-se todas<br />

as manhãs às 4 horas da manhã e ia bater na porta dos quartos de dormir dos seus<br />

filhos, insistindo que se levantassem logo. Comandava a todos com punho de ferro e


tinha o pleno controle da economia familiar. Diante de seus olhos passavam os livros<br />

contábeis, os quais controlava meticulosamente.<br />

Naqueles tempos não se pagava a cada compra feita. O comerciante marcava<br />

nos cadernos as contas de cada família, e a dívida chegava em dias estabelecidos. Era<br />

então que <strong>Alessandro</strong>, enquanto todos dormiam, iniciava a sua revisão das contas, e<br />

se não se enquadravam naquilo que ele pensava, começavam os problemas, porque<br />

isto significava que tinha sido comprado alguma coisa sem o seu conhecimento. Meu<br />

avô Peppino recordava uma cena do velho nono <strong>Alessandro</strong> que procurava<br />

compreender o porquê de uma conta, a seu dizer, particularmente exagerada, e<br />

pensando em voz alta dizia: “Por que 3,80 liras? As mulheres teriam comprado o<br />

sabão?...<br />

Ora, o sabão era um daqueles bens de luxo que não se podia permitir todos os<br />

dias. Era exatamente como o açúcar que era comprado somente em caso de doenças.<br />

Chegado na Itália com dois sacos cheios de moedas de ouro, <strong>Alessandro</strong> fazia<br />

viver a família quase na miséria Era seu costume comprar as frutas que estavam já<br />

apodrecendo (em dialeto se dizia:”col pulesì bagnat”= com o pinto molhado) pois<br />

assim podia pagá-las menos.<br />

<strong>Alessandro</strong> recorria muitas vezes à nora Rosa, que era alfabetizada, para fazê-la<br />

escrever suas as cartas para os filhos que estavam no Brasil. Não abandonou nunca a<br />

esperança de que um dia viessem para a Itália. Para convencê-los, em várias cartas<br />

sugeriu à nora que escrevesse que na Itália “havia sempre a primavera”. Não perdia,<br />

porém, a ocasião de denegrir essa nora, a Rosa, diante de todos, todas as vezes que se<br />

apresentava alguma ocasião. Rosa, passados alguns anos, se tornou uma senhora<br />

robusta, e infelizmente começou a sofrer de cardiopatia, para a qual, naquele tempo,<br />

não havia tratamento adequado. “Ogne tant el dutur ghe daa de bif argot, ma prope<br />

quant la staa mal. Traduzindo: “De vez em quando o médico lhe dava algum<br />

remédio para tomar, mas somente quando ela ficava mal”, recordava a tia Luzia, por<br />

todos chamada “ tia Cia”. Muitas vezes faltava-lhe o ar e as forças, e tinha<br />

necessidade de alimentar-se mais e melhor do que aquilo que a mesa da casa Triloni<br />

lhe oferecia todos os dias. Mas o velho <strong>Alessandro</strong> implicava até nisso. Numa dessas<br />

ocasiões, a família se achava reunida à mesa, e Emanuele renunciou à sua porção de<br />

alimentos para dá-los à mulher que já tinha terminado de comer a parte que lhe cabia.<br />

A cena foi notada por <strong>Alessandro</strong> que, subitamente, interveio em voz alta dizendo:<br />

“Ecco, te ta mangiareset anche le gambe del taol” Traduzindo: “ Eia! Tu comerias<br />

até as pernas da mesa”.<br />

Como em toda a realidade daquele tempo, também na casa <strong>Tirloni</strong>, na qual<br />

certamente o dinheiro não faltava, a procura do alimento era um problema que mais<br />

afligia a todos, e por isso <strong>Alessandro</strong> impôs a todos que fossem parcos a todo custo, a<br />

fim de evitar as despesas. Além disso, era quase impossível escapar à vigilância da<br />

jovem Vittoria, que desde a morte da mãe, tinha assumido o cargo de “ regência”, ou


seja, de “matriarca”. Vittoria era a única, no seu gênero, dentre os irmãos. Seguia à<br />

letra os desejos de seu pai, e nada escapava de seu controle. Sobre o expresso querer<br />

do pai, chegava até a contar, todas as manhãs, os frutos nas plantas de pêssegos, para<br />

se inteirar de que ninguém os tivesse roubado de noite.<br />

Um dia, as duas cunhadas, Rosa e Luzia, movidas pela fome, decidiram<br />

realizar um “furto” nos bens da família. Perceberam que uma árvore de pêssegos,<br />

naquele ano, havia produzido muitos frutos, tantos que a própria Vittoria tinha<br />

dificuldades de manter a contagem. Elas então decidiram recolher alguns pêssegos<br />

crescidos em pontos difíceis de serem vistos, na planta. Os pêssegos eram ainda<br />

verdes e por isso a tia Luzia decidiu escondê-los debaixo da cama, a fim de que<br />

ficassem maduros. Os pêssegos eram deveras lindos e chegaram depressa a<br />

amadurecer, enchendo de seu característico perfume todo o quarto. A coisa provocou<br />

não poucos problemas porque as “ladras” foram inevitavelmente desmascaradas pelo<br />

próprio velho <strong>Alessandro</strong>, o qual foi literalmente à cólera, seja com as duas noras,<br />

seja com a filha Vittoria, por não ter percebido o furto.<br />

Também o meu avô Peppino se envolveu em alguns “ais” por causa dos<br />

alimentos. Ele tinha cerca de dois anos quando, induzido pela fome, pediu à sua mãe<br />

que lhe desse um pedaço de queijo. A mãe, escondida de todos, o levou para a<br />

cozinha e lhe deu uma pequena fatia, recomendando-lhe de ficar com muita atenção<br />

para não ser visto por ninguém, sobretudo pela tia Vittoria. O pequeno Peppino<br />

escondeu entre as mãos o pedaço de queijo e saiu da cozinha com as mãos por detrás<br />

das costas. Infelizmente, ao sair da cozinha esbarrou na tia Vittoria que, vendo-o com<br />

as mãos às costas, se insurgiu e lhe disse: “Deixa-me ver o que é que você esconde<br />

nas mãos!” Meu avô lhe respondeu: “No, perché me mama ma dit de fatel mia vet.”<br />

“Não, porque a mamãe me disse de não te fazê-lo ver!”<br />

<strong>Alessandro</strong> dava às noras ordens precisas para evitar que a família crescesse<br />

com as mãos livres, tornando inútil toda a fadiga feita por ele para tornar-se rico, e<br />

era por isso que a nora Rosa se encontrava no dever de inculcar a ideia de poupança e<br />

da parcimônia aos seus filhos ainda crianças.<br />

Meu avô Peppino contava que, aos quatro anos, sua mãe já lhe havia ensinado<br />

o conceito de interesse, tudo por vontade do velho <strong>Alessandro</strong>.<br />

Entre os habitantes de Covo, a única pessoa que podia fazer concorrência, do<br />

ponto de vista econômico a <strong>Alessandro</strong>, era um outro proprietário de terras: o velho<br />

senhor Cesar Bosetti ( 29-6-1844 – 3-11-1920). Este sempre foi famoso em Covo<br />

como benfeitor e filantropo. À sua mesa, além de sua numerosíssima família<br />

composta de treze filhos e tantas outras noras e genros, e mais um número incrível de<br />

netos, havia sempre alguma pessoa indigente que, batendo à sua porta, encontrava ali<br />

pessoas boas e dispostas a acolher qualquer um que estivesse em dificuldades. A<br />

filosofia do Senhor Bosetti e de sua mulher Ângela Martinelli (1850 – 1936) estava<br />

resumida em um simples conceito: “Um prato quente há sempre para todos”!


Cesare Bosetti e Angela Martinelli<br />

Inicialmente os dois se tornaram amigos, mesmo que, pelo caráter, fossem<br />

realmente antípodas. Diferente de <strong>Alessandro</strong>, o venho senhor Bosetti não era nada<br />

avarento, e não deixava de, algumas vezes, permitir-se algum pequeno luxo para<br />

tornar a vida mais doce, e por isso, nos domingos à tarde, gostava de dirigir-se ao bar,<br />

com os amigos, para conceder-se algumas horas de distração e alegria, animado por<br />

uma partida de cartas e em companhia de um bom copo de vinho.<br />

<strong>Alessandro</strong> foi convidado muitas vezes para esses encontros de convivência<br />

entre senhores bem de vida, mas evidentemente não podia sempre ser “o convidado”,<br />

e por isso, às vezes, seria também a sua vez de pagar a conta. Por causa dessa<br />

despesa, tornou-se inevitável que, bem depressa, <strong>Alessandro</strong> se lamentasse deste<br />

amigo, a quem passou a considerar como um irresponsável esbanjador, e a sua<br />

frequência junto dos amigos diminuiu sempre mais. Meu avô Peppino, contando este<br />

fato, repetia as palavras exatas de <strong>Alessandro</strong> que na sua crítica, dizia: “Me ghe sto pò<br />

con Busett, lù l’va al bar e l’bif le butiglie. Traduzindo: “Eu não vou mais com o<br />

Bosetti, ele vai ao bar e bebe as garrafas”.<br />

Para <strong>Alessandro</strong>, os “caçadores de dotes” (os que procuravam casar com moças<br />

ricas) devem ter sido, desde sempre, um grande pesadelo, e com certeza não deve ter<br />

feito nada para escondê-lo. Isto era de tal modo conhecido em Covo que, uma manhã,<br />

na porta de fora da casa da fazenda Batagliona foi encontrado, pendurado, um cartão<br />

difamatório com este escrito:<br />

Al siùr Americà


che l’ga le fiole de maridà<br />

ghe metarom na sentinela<br />

perchè nùsù ghe le porte viá<br />

Ao rico Americano<br />

Que tem as filhas para casar<br />

Colocaremos uma sentinela<br />

Para que ninguém as possa levar<br />

Os maiores indiciados deste bilhete eram os habitantes da vizinha fazenda<br />

Bolognina, e <strong>Alessandro</strong>, decididamente aborrecido, organizou uma resposta com a<br />

cumplicidade dos parentes Colzani. Pouco dias depois, em frente à casa da fazenda<br />

Bolognina apareceu um cartão de resposta, não menos poético, mas certamente um<br />

pouco mais indecente, cujo texto meu avô Peppino não recordava mais, ou mais<br />

provavelmente fingia de te-lo esquecido, salvo um pequeno pedaço no qual o nome<br />

de um habitante da Bolognina vinha colocado em rima com “...büs de drê ...”buraco<br />

de trás” (obviamente, entendendo-se uma parte fisiológica).<br />

Enfim, também as duas últimas filhas se casaram, pois o velho <strong>Alessandro</strong><br />

concedeu a sua aprovação às suas uniões. Antônia se casou no dia 9 de outubro de<br />

1919 com Francesco Galliani, um jovem de Covo, 10 anos mais velho do que ela.<br />

Francesco era o pimpolho de uma rica família que fez fortuna com as empresas de<br />

construção. Francesco era grande amigo de Pietro Bosetti, que era um dos filhos de<br />

Cesar Bosetti. Pouco mais tarde Pietro tornou-se cunhado de Francesco porque<br />

desposou a sua irmã menor, e este mesmo lhe serviu de testemunha de casamento.<br />

Pode-se supor que a este casamento de Antônia e Francesco, estivesse presente toda a<br />

gente rica de Covo, e seguramente o velho <strong>Alessandro</strong> ficou contente de ter feito<br />

casar muito bem a sua filha.<br />

Vittoria casou-se provavelmente no ano seguinte com um jovem pedreiro de<br />

Cálcio, vila confinante de Covo, um ano mais velho do que ela. Deste matrimônio<br />

ainda não foi encontrada a documentação.<br />

Ambas as irmãs receberam um tratamento favorável do velho <strong>Alessandro</strong>, que<br />

concedeu a ambas um bom dote. Um gesto tão estranho, se considerarmos a avareza<br />

de <strong>Alessandro</strong>, é facilmente compreensível se pensarmos que Vittoria era, com<br />

certeza, a filha preferida, porque estava em perfeita sintonia com a política de<br />

absoluta parcimônia de <strong>Alessandro</strong>; enquanto que Antônia, por ser a filha caçula,<br />

pode ser que tenha se beneficiado de um “olho fechado” do velho e terrível pai.


2.9 Os últimos anos<br />

Enquanto ocorreram todas essas coisas relatadas acima, na família se consuma<br />

uma autêntica tragédia que tem tudo de incrível, e revela de maneira inequívoca a<br />

dura e impiedosa crueldade do velho <strong>Alessandro</strong>.<br />

Ainda antes de começar a grande guerra, a filha Francesca, casada havia só dois<br />

anos, começou a sofrer de uma misteriosa doença que nenhum médico chegou a<br />

diagnosticar e debelar. A jovem, ajudada pela família do marido, dirigiu-se a cada<br />

especialista conhecido, a fim de procurar a sua cura. Todas as tentativas, porém,<br />

foram vãs, e as suas condições de saúde pioravam sempre mais. Tinha necessidade<br />

constante de remédios, mas em determinado momento já não tinha mais dinheiro para<br />

comprá-los.<br />

O marido Agostino Pesenti foi obrigado a emigrar para a França, a fim de<br />

ganhar o dinheiro necessário para a cura da jovem esposa, que neste meio tempo<br />

gerou duas crianças. A esta altura, Francesca começou a dirigir-se para o pai,<br />

pedindo-lhe uma ajuda econômica. Mesmo defronte de uma semelhante desgraça, o<br />

velho <strong>Alessandro</strong> coçou a cabeça e disse que agora, sendo casada, não cabia mais a


ele providenciar o pagamento da cura, mas ao seu marido.<br />

O quadro clínico de Francesca piorava sempre mais. Depois de um Calvário<br />

que durou mais de três anos, espantada por sua sorte que parecia já inevitável,<br />

dilacerada pela preocupação com as crianças pequenas, tendo o marido distante, mas<br />

também psicologicamente destruída pela crueldade do pai que se recusava pagar os<br />

remédios, Francesca recolheu as últimas forças para escrever uma desesperada carta<br />

para a irmã Rosa, do Brasil.<br />

Covo, 24-02-1920<br />

Caríssima irmã e cunhado.<br />

Com muita dor, preciso fazer-te conhecer as minhas tristíssimas condições de<br />

saúde.<br />

Faz 36 meses que estou doente, a ponto de não poder servir-me a mim mesma,<br />

em nada.<br />

Procurei todos os meios para tentar recuperar a minha saúde. Procurei em<br />

casa, e por dois meses, no hospital de Bérgamo. Aconselharam-me a recorrer a um<br />

especialista em Gênova, e estive lá por quatro meses no hospital, com as despesas de<br />

11 liras por dia. Agora estou em casa, piorando de dia para dia.<br />

Uma coisa que agrava a minha longa e sofrida doença, é o “nosso pai!”, com<br />

aquele egoísmo do dinheiro! Acredite-me [porque eu o digo] como num juramente<br />

meu, e em nome de meus dois queridos filhinhos: nosso pai não me ofereceria nem<br />

sequer um copo d’água, porque custaria cinco centésimos de lira.<br />

Sabes o que acontece? Além daquilo [que Ângela já escreveu até agora] há o<br />

fato de que nosso pai já fez o testamento, e nós o sabemos como foi feito: para nós,<br />

filhas, ele concedeu 5.000 liras, enquanto que, em vez, aos filhos concedeu mais de<br />

60.000 liras cada um. Vês qual é a proporção? E não se pode lhe dizer<br />

absolutamente nada. Ele continua com aquele mau caráter.<br />

Termino com a esperança de que com a tua próxima [carta que escreverás<br />

para a Itália] quererás dizer algumas coisas ao nosso pai a meu respeito, porque<br />

agora estou precisando muito de socorro.<br />

Ao ver o quanto meu marido e a família dele fizeram por mim, quanto e quanto<br />

dinheiro gastaram por mim, e o nosso pai que possui muito mais do que a família<br />

Pesenti, nunca colaborou nem sequer com uma pequena importância para me ajudar.<br />

Nunca, nunca, nunca!<br />

Muitas vezes eu te escrevi, mas nunca obtive uma resposta diretamente para<br />

mim.<br />

Saudações infinitas para ti e toda tua família. Saúda em meu nome também aos<br />

nossos irmãos, e informa-os a respeito das minhas tristíssimas condições de saúde.<br />

Termino porque já não posso aguentar, ó minha cara irmã, pois estou<br />

desfalecida, e as forças físicas vão desaparecendo cada dia mais. Tenho uma perna<br />

morta, e devo me sustentar com as muletas e suportar o colete metálico, dia e noite.<br />

Infinitas saudações.<br />

Sou tua irmã amada,<br />

Francisca


Esta carta não precisa de comentários! É o triste desabafo de uma jovem<br />

senhora desanimada pelas injustiças perpetradas pelo próprio pai, em nome do deus<br />

dinheiro. Uma vez pago o dote, a filha pertencia toda ao marido, como se fosse uma<br />

mercadoria, e ele – <strong>Alessandro</strong> - já não tinha mais obrigações de qualquer tipo, em<br />

relação a ela. Graças a esta carta endereçada à irmã Rosa, de Nova Trento, e<br />

conservada por ela, carta que chegou até os nossos dias, a figura do velho <strong>Alessandro</strong><br />

foi desmascarada e legada ao juízo dos parentes futuros, em toda a sua real crueldade.<br />

Não sabemos o que sucedeu logo após esta carta. Não sabemos como se<br />

comportaram os irmãos do Brasil. Não sabemos se o velho <strong>Alessandro</strong> se converteu<br />

de suas absurdas convicções. Mas já não havia mais tempo para fazer nada: dois<br />

meses depois, na manhã do dia 22 de abril, depois de ter recebido o conforto<br />

religioso, Francesca chegou à paz eterna, com apenas 26 anos.<br />

Quem sabe se <strong>Alessandro</strong> foi atingido por algum sentimento de culpa...<br />

Uma coisa que nos deixa estupefatos é o fato de que alguns dias antes da morte<br />

de Francesca, ter chegado outra carta ao Brasil, escrita por Eliseu no dia 30 de março.<br />

Ele iniciou a carta assegurando a todos os irmãos brasileiros que todos os<br />

componentes da família gozavam de perfeita saúde. Escreveu textualmente:<br />

“Ficamos todos muito contentes de saber que a vossa saúde está perfeitamente ótima,<br />

assim também posso assegurar-vos da parte de todos nós, na família.<br />

Estas notas, de fato, eram usadas como pura formalidade no início da<br />

correspondência, mas causa espanto pensar que, enquanto Eliseu escrevia estas<br />

coisas, Francesca estava vivendo o seu último mês de vida. É provável que com essa<br />

declaração, Eliseu quisesse referir-se somente aos residentes na Battagliona, e<br />

portanto não incluía Francesca, que já não vivia na casa paterna.<br />

A desesperada carta de Francesca nos oferece a oportunidade de descobrir uma<br />

coisa interessante, porque a revelação do testamento nos permite quantificar a riqueza<br />

do velho <strong>Alessandro</strong>, que em 1920 possuía uma fazenda e 275.000 liras. A fazenda<br />

era pequena, mas a liquidez que tinha à disposição era, de fato, naquele tempo, muito<br />

considerável!<br />

Se nos dias de hoje nos causa uma má impressão a disparidade de tratamento<br />

entre os filhos homens e as filhas mulheres, é preciso dizer que, naqueles tempos, era<br />

tudo muito diferente, e era praxe deixar às filhas só uma cota chamada “a legítima”.<br />

Não sabemos se essa cota era um percentual fixo bem preciso, mas no caso em<br />

questão, as filhas receberam somente 8,5% da cota destinada aos filhos homens. A<br />

diferença entre as duas cifras é muito grande!<br />

Ainda conforme a carta que Eliseu escreveu para o Brasil, no dia 30 de março<br />

de 1920, chegou-se a saber que, no Brasil, os nossos parentes se movimentavam para<br />

mandar os filhos para a escola, e Eliseu se alegrou com a escolha. Mas aproveitou<br />

para reprovar o pai <strong>Alessandro</strong> que, pelo contrário, nunca cuidou de dar cultura aos<br />

filhos, destinado-os a se tornarem “grandes e asnos”!


Nesta mesma carta, Eliseu fez uma comparação do quanto havia aumentado o<br />

custo de vida na Itália nos últimos períodos, e se percebia claramente a presença de<br />

uma fortíssima inflação causada pelo conflito bélico.<br />

Nos primeiros meses do ano seguinte, a troca de cartas entre as duas partes da<br />

família se fez muito frequentes, e na distância de apenas quinze dias, foram expeditas<br />

para o Brasil três cartas que revelavam o que estava ocorrendo em Covo.<br />

A primeira carta foi escrita por Ângela, a qual não deixou de acentuar o detalhe<br />

do caráter do pai, que havia se tornado ainda pior do que quando estava no Brasil.<br />

Descobrimos, com isto, que <strong>Alessandro</strong> sempre foi um homem duro e de caráter<br />

péssimo.<br />

Por essa carta chegamos a saber que:<br />

- Agostino Nava não estava ainda completamente restabelecido das doenças<br />

contraídas na trincheira de guerra.<br />

- O velho <strong>Alessandro</strong>, já passados de 10 anos, ainda não havia pago totalmente<br />

o dote que Ângela cansativamente obteve por intercessão de sua mãe<br />

Elisebatta.<br />

- Vittoria e Antônia, ao contrário, haviam recebido um muito bom dote, e<br />

sobretudo esta última tinha uma vida realmente folgada.<br />

- Vittorio e sua família, não podendo mais suportar o velho <strong>Alessandro</strong>, saíram<br />

de casa e passavam por uma situação deveras difícil.<br />

A segunda carta foi escrita por Agostino Nava que, além de tecer um belíssimo<br />

elogio a respeito da defunta sogra Elisabetta, reafirmou todas as coisas citadas pela<br />

mulher, aliás com maiores riquezas de detalhes, e acrescentou um outro detalhe<br />

importante, isto é, que o velho <strong>Alessandro</strong> havia cedido a casa da fazenda e a terra,<br />

em aluguel.<br />

A terceira carta foi escrita por Vittorio que desabafou com a irmã, por causa da<br />

situação absurda na qual precisava viver, e não escondeu as grandes dificuldades nas<br />

quais precisava viver. No entanto, enfraqueceu o tom de crítica em seus confrontos<br />

com o velho pai, demonstrando com isso não ter perdido o seu respeito filial.<br />

Da análise das cartas se deduz que Vittorio, em seguida aos contínuos conflitos<br />

com o pai, decidiu sair de casa, mas infelizmente estava se deparando com uma forte<br />

crise econômica e com falta de trabalho, e sendo filho de um homem muito rico, não<br />

estava sendo ajudado pela assistência social, pois era considerado pessoa de bens.<br />

<strong>Alessandro</strong>, não se sabe por quais motivos, cedeu a casa da fazenda e a terra em<br />

aluguel, e por causa da própria crise econômica, agora o alugador passava a ganhar<br />

muito dinheiro com a venda dos produtos agrícolas, e <strong>Alessandro</strong> precisava contentarse<br />

com a renda do aluguel. Obviamente isto indispunha muitíssimo todos os<br />

familiares, tanto que o genro Agostino Nava não teve escrúpulos de definir como<br />

“uma tolice” aquela escolha do sogro, e tornou presente que o velho <strong>Alessandro</strong> se<br />

encontrava cheio de imprecações feitas por seus filhos, que com o aluguel da fazenda


se acham agora sem terra para trabalhar, e sem teto.<br />

Parece de fato incrível que uma pessoa com tão grande faro para os negócios,<br />

tenha incorrido num semelhante erro... Parece quase impossível que se refira à mesma<br />

pessoa que, do nada, criou uma fortuna!<br />

Esta descoberto nos ajuda, porém, a refletir sobre os comportamentos de<br />

<strong>Alessandro</strong> que, com efeito, desde que chegou à Itália, parece ter perdido toda a sua<br />

capacidade de empreendedor. Inicialmente comprou uma fazenda pequena, talvez<br />

para evitar de empenhar muito dinheiro em um mercado desconhecido, - escolha que<br />

parecia sensata e cautelosa, como já foi dito - mas coisa muito estranha, pois em um<br />

decênio não aumentou em nada as suas posses. O seu processo de emancipação<br />

parou, e todos os seus cuidados e o seu empenho fossilizaram-se em poupar a todo<br />

custo.<br />

Se parecia sensata e cautelosa a escolha inicial, pareceu, ao invés, estranho todo<br />

o resto. Não se sabe o que causou todo esse arrefecimento de suas capacidades de<br />

empreendedor. Meu pai, comentando as sucessivas escolhas de <strong>Alessandro</strong>, criou<br />

como hipótese uma explicação, em suma, oportuna. <strong>Alessandro</strong> teria se achado velho<br />

em uma realidade de mercado completamente diferente daquela tão arcaica e<br />

embrionária, na qual se moveu habilmente por mais de 30 anos no Brasil. As regras<br />

da economia italiana eram muito diferentes e complexas para a sua forma mental, e<br />

era talvez muito velho para chegar a adaptar-se. Isto o fez “espantar-se”, e a resposta<br />

mais imediata que encontrou foi, de fato, aquela de evitar totalmente todo risco, a<br />

fim de preservar o seu patrimônio.<br />

Por outra carta escrita por Eliseu, ao final de outubro de 1921, soube-se que a<br />

situação parecia ser sempre mais indigesta para todos, por causa do caráter do velho<br />

<strong>Alessandro</strong> que todos consideravam, a dizer pouco, como absurdo e despótico.<br />

Como em todas as cartas, também nesta ele iniciou assegurando aos parentes<br />

do Brasil que era boa saúde de todos os membros da família. Mas logo Eliseu iniciou<br />

o seu desabafo, por nada diferente daquele dos irmãos, talvez ainda mais crítico e<br />

forte.<br />

Em certa passagem de sua carta diz, textualmente, frases de pesadíssima crítica<br />

do tipo: “Não posso suportar o papai... Não se pode andar de acordo com ele um<br />

minuto... nos faz ficar todos loucos”. Depois dessas afirmações, como que se<br />

envergonhou do que escrevera, porque eram críticas feitas por um filho que deveria,<br />

por certo, manter o respeito e o obséquio nos confrontos com um genitor. Chegou<br />

mesmo a pedir desculpas para a irmã, a quem dirigia a carta, porque percebeu que os<br />

parentes do Brasil não podiam ficar tranquilos lendo todas essas críticas que<br />

chegavam de todas as partes. E assim escreveu “Perdoar-me-eis, se vos tenho<br />

ofendido em qualquer coisa, ou se fiz mal ao dizer-vos tudo que vos disse”.<br />

Enfim, passado o momento de grande crise devido à Grande Guerra, nas cartas<br />

seguintes se leem, pela única vez, as notícias mostrando um velho <strong>Alessandro</strong><br />

vacilante, frágil e impotente. Todas as cartas seguintes sempre começavam a parecer<br />

semelhantes, e cada uma se tornava uma mera crítica mais ou menos extrema, por


causa dos relacionamentos difíceis com o velho <strong>Alessandro</strong>. O quadro que disso<br />

transparecia não era por nada edificante para o velho patriarca, que era apresentado<br />

como um autêntico monstro de egoísmo e perfídia, capaz de qualquer malcriada ação.<br />

Sempre nesta carta, Eliseu sublinhou o fato de que o velho pai, com seu<br />

comportamento extremo, chegou a desesperar o irmão Emanuele por causa de uma<br />

situação tão tensa e difícil vivida na família. Ainda pior para Emanuele, que tinha um<br />

caráter muito suave e paciente.<br />

Eliseu, porém, ousou mais do que os seus irmãos. Ele era o mais jovem dos<br />

filhos homens e provavelmente era movido pelos furores e pelos extremismos de sua<br />

jovem idade. Enquanto todos os outros se limitavam a pedir aos irmãos do Brasil de<br />

interceder por eles, e de procurarem fazer raciocinar o velho pai, Eliseu chegou a<br />

pedir aos irmãos do Brasil que fizessem uma coleta e lhe enviassem o dinheiro<br />

necessário para vir para o Brasil, porque ele, na Itália, não queria mais permanecer!<br />

Os relatos transmitidos pela família narravam que, com efeito, os irmãos do<br />

Brasil ficaram muito sensibilizados pelo pedido de Eliseu, recolheram o dinheiro e o<br />

expediram para a Itália, em ajuda ao irmão. Mas a esta altura ocorreu uma coisa<br />

muito desagradável: o velho <strong>Alessandro</strong> embargou a carta que continha o dinheiro<br />

para Eliseu, e o requereu sem dizer nada ao filho, o qual esperou em vão o dinheiro,<br />

por muito tempo. Eliseu só descobriu depois de muito tempo esta tomada de posição<br />

do velho <strong>Alessandro</strong>, o qual, enfim, mentindo, mandou dizer aos filhos do Brasil que<br />

Eliseu havia recebido o dinheiro e o mantivera para pagar os gastos do futuro<br />

casamento.<br />

Que propósito teria impelido o velho <strong>Alessandro</strong> a fazer coisa semelhante? Ele<br />

não queria absolutamente que o filho Eliseu saísse de casa, e sobretudo ficou<br />

estupefato com a atitude dos filhos, no Brasil, de terem chegado a organizar uma<br />

coleta entre eles para ajudar Eliseu. Mais. Para evitar que no futuro se repetissem<br />

semelhantes coisas, <strong>Alessandro</strong> preferiu divulgar notícias falsas que desacreditassem<br />

esse filho aos olhos dos irmãos.<br />

Na última carta que chegou até nós, datada de 14 de junho de 1922, a filha<br />

Ângela continuou a acentuar o fato de que <strong>Alessandro</strong> não se comportava nunca de<br />

maneira justa. As escolhas e os comportamentos extremos de <strong>Alessandro</strong> acabavam<br />

criando um endurecimento de opiniões também de todos os filhos, e inevitavelmente<br />

também o relacionamento entre os próprios irmãos se tornava muito tenso, e a arcar<br />

com as consequências eram sobretudo Ângela e Vittorio.<br />

<strong>Alessandro</strong>, chegado aos 70 anos - idade para aqueles tempos considerada<br />

como admirável - vivia em casa com o filho Emanuele, a nora Rosa e os seus três<br />

filhos. Junto com eles vivia ainda o filho mais jovem, Eliseu, mas só por pouco<br />

tempo. Quando também ele se casou, entrou em casa a jovem mulher, Giuseppina<br />

(chamada de Pina), que junto com a família do cunhado Emanuele, tomaram, como<br />

encargo, a difícil gestão do velho e embaraçoso sogro.


Gli adulti della famiglia durante gli ultimi anni di vita del patriarca:<br />

il patriarca <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong><br />

i coniugi Rosa Morosini ed Emanuele <strong>Tirloni</strong>; i coniugi Eliseo <strong>Tirloni</strong> e Giuseppina MArtinelli<br />

Uma nota digna de mérito no comportamento de <strong>Alessandro</strong> foi o fato de que,<br />

diferente de alguns velhos, amava contar – talvez até com uma ponta de orgulho – a<br />

sua história pessoal, e contava-a muitas vezes, desde quando partiu como emigrante,<br />

com todas as travessias que percorreu. Mesmo por isso, o meu avô Peppino<br />

recordava muito bem a figura do velho patriarca que vivia em casa com eles. Aliás, é<br />

grande o mérito daquela sua vontade de contar a sua história, porque assim, em<br />

nossos dias, ainda se pode fazer memória daqueles fatos.<br />

Para <strong>Alessandro</strong>, meter a mão no bolso era um verdadeiro trauma. Meu avô<br />

recordava que só em ocasiões de festa na vila é que <strong>Alessandro</strong> colocava dois dedos<br />

no bolso do colete e retirava alguma moeda para dar aos netos, para que comprassem<br />

as castanhas cozidas. Este era o único presente que o velho <strong>Alessandro</strong> dava às<br />

crianças.<br />

Uma outra recordação muito viva na memória de meu avô Peppino estava<br />

ligada ao momento da cobrança dos impostos. Na torre da Igreja de Covo havia um<br />

sino que era tocado precisamente nesta ocasião. Para <strong>Alessandro</strong>, toda vez que o sino<br />

tocava era como uma condenação. Ficava atacado por verdadeiras crises de<br />

ansiedade, e quando se refazia um pouco, iniciava a investir contra o Estado ladrão<br />

que o espoliava do suor de sua fronte. Meu avô recordava as palavras textuais de seu<br />

típico desabafo nestas ocasiões: “A Roma i solc i va sö a vagù e vagù; ah, ma se rie a<br />

metighe dent una ma... Traduzindo: Para Roma (para o Governo...) o dinheiro vai de<br />

vagão em vagão; ah, mas se eu chegar a colocar dentro a minha mão...” (e fazia o


típico gesto da mão que surripia)<br />

Ligado a este período há uma recordação citada pela nora Giuseppina que<br />

conheceu o sogro somente nos últimos anos de vida, mas pôde experimentar, em sua<br />

própria pele, a sua desmesurada avareza. <strong>Alessandro</strong>, como é do conhecimento,<br />

mantinha fechada a carteira a ponto de toda a família chegar a passar fome, porque<br />

também a comida era racionada. Em casa estavam as jovens mulheres grávidas ou no<br />

período de aleitamento. O estômago estava sempre vazio, e por isso as mulheres se<br />

uniram e criaram um plano para escapar aos seus controles.<br />

Ocorreu que, à noite, na mesa, elas continuavam a colocar sempre mais vinho<br />

no copo do patriarca, ao ponto de embebedá-lo. Depois o levavam para a cama e elas,<br />

depois de fecharem a cozinha, começavam a amassar as “foiade” (o macarrão<br />

grosso) que depois imediatamente cozinhavam e comiam. Vistos os ótimos resultados<br />

da trama, decidiram repetir a coisa diversas vezes. O velho <strong>Alessandro</strong> percebeu que a<br />

quantidade de farinha continuava a diminuir mais velozmente do que de costume,<br />

mas felizmente ele nunca chegou a descobrir a aventura. Ao menos naquela ocasião<br />

as barrigas se encheram, sem problemas!<br />

O seu comportamento extremo e o seu tremendo egoísmo o condenaram a<br />

passar os últimos anos de vida malvisto pela maior parte dos filhos que, como bem<br />

foi demonstrado pela carta de Vittorio, lhe prestavam sempre o dever do respeito<br />

filial, como aliás era praticamente obrigação naquele tempo, mas ficaram sem provar<br />

um autêntico afeto, tão belo e importante entre pai e filhos.<br />

Como foi escrito até agora, se pode bem ver que nada lhe foi poupado na sua<br />

vida terrena, e no pleno calor do verão de 1924, <strong>Alessandro</strong> foi colhido por uma<br />

última tremenda notícia de sua vida. Chegou uma carta do Brasil, uma como tantas<br />

outras que estava habituado a receber, e talvez inicialmente suspeitasse que seria<br />

portadora das costumeiras admoestações que os filhos do outro lado do oceano,<br />

ouvindo as notícias incríveis que chegam dos irmãos da Itália, provavelmente não<br />

deixavam de lhe fazer. Talvez imaginasse que seriam aquelas costumeiras<br />

recomendações para o calmo viver em família, às quais ele seguramente não dava a<br />

mínima atenção. Ou ao contrário, seria mais uma carta que traria notícias de pouca<br />

importância. Ele iniciou a fazê-la ler, ou pessoalmente a lê-la, tranquilamente.<br />

Desta vez, a carta levou a todos o conhecimento de uma grande desgraça<br />

ocorrida ao seu filho primogênito João, aquele no qual tinha depositado todas as suas<br />

esperanças de jovem pai, e que quinze anos antes lhe havia dado aquela<br />

decepcionante desilusão de não querer ir para a Itália. A carta comunicou a morte do<br />

filho João, que tinha apenas 38 anos, morte ocorrida depois de um acidente que lhe<br />

aconteceu na serraria de Águas Negras.


Joao <strong>Tirloni</strong> nell’unico ritratto giunto fino ai giorni nostri (fotografia – anni ‘10)<br />

Pode também ser que em todos aqueles anos, <strong>Alessandro</strong> tenha mantido sua<br />

raiva para com o filho agora morto, pela escolha que fizera de não seguir o pai para a<br />

Itália. Mas com certeza a notícia da sua morte foi um duro e último golpe dado pelo<br />

destino ao velho <strong>Alessandro</strong>, no que diz respeito à sua família!<br />

Um outro duríssimo golpe que fez vacilar o velho <strong>Alessandro</strong> veio-lhe do<br />

Estado da Itália, que o atingiu mesmo no seu interesse mais importante: o dinheiro.<br />

Na Itália, pouco mais de dois anos antes da Marcha sobre Roma, havia assumido<br />

Benito Mussolini – conhecido como “Il Duce” – e o governo ditatorial fascista<br />

iniciava a colocar em ato todas as manobras consideradas necessárias para levar a<br />

ganhar força a economia italiana, que estava de joelhos.<br />

Um ponto deveras difícil de superar era o de fazer crescer o poder aquisitivo da<br />

moeda italiana. Naquele tempo, a comparação era feita com a Esterlina inglesa, e para<br />

comprar uma esterlina eram necessárias pouco mais de 150 liras italianas. O perigoso<br />

objetivo fascista foi aquele de valorizar a moeda italiana em 40%, até chegar a um<br />

patamar de câmbio igual a 90 liras por uma esterlina. Foi a famosa “Quota 90”!<br />

A política desinflacionária lançada pelo governo nos inícios de 1925 consistia<br />

em uma brusca diminuição dos preços, que repercutiria numa imediata diminuição<br />

dos preços de todos os produtos de comércio. Isto levou a uma recessão econômica,<br />

denunciada inicialmente sobretudo pelos empresários, e que depois repercutiu em


cadeia sobre a economia da população toda. Caindo os preços, caíram os salários e<br />

caiu o valor de cada coisa. Isto pesou fortemente sobre a renda e sobre os ganhos do<br />

velho <strong>Alessandro</strong> que vê, em pouco tempo, diminuir sensivelmente todas as suas<br />

riquezas.<br />

<strong>Alessandro</strong>, não obstante tudo isso, chegou a não se dar por vencido totalmente<br />

pelos acontecimentos. Graças à sua teimosia e à sua coragem, despertou-se o seu<br />

aguçado tino para os negócios e chegou – não se sabe como – a correr às<br />

compensações, evitando a bancarrota. Ainda uma vez chegou a emergir das<br />

dificuldades e limitar parcialmente os danos, mas infelizmente, para ele, o seu<br />

império econômico tinha sido fortemente dizimado.<br />

Este ato de força e de coragem seria o último de sua vida. No início do mês de<br />

maio, a forte fibra de <strong>Alessandro</strong> dava os primeiros avisos do eminente<br />

comprometimento. Foi acometido de fortes febres que não cediam. Foi a primeira vez<br />

que os seus familiares viram o velho genitor enfermo, e logo pareceu claro a todos,<br />

inclusive a <strong>Alessandro</strong>, que a sua sorte estava assinada.<br />

Aquele que até há poucos dias era um homem da têmpera e de coração de aço,<br />

agora jazia impotente por dias inteiros, naquele leito, no qual estava acostumado a<br />

passar apenas poucas horas noturnas. A sua fragilidade de homem velho emergiu em<br />

toda a sua naturalidade e o destinava aos últimos olhares dos seus familiares, em uma<br />

veste na qual ninguém até então estava habituado a vê-lo. É agradável pensar que, ao<br />

menos naquele momento, todos os rancores com os filhos tenham sido superados pela<br />

piedade cristã do extremo momento, e que todos tenham ido a render-lhe a última<br />

saudação.<br />

Provavelmente, durante as intermináveis horas transcorridas como moribundo<br />

naquele leito, <strong>Alessandro</strong> chegou a rever toda a sua vida. Por certo, reviu-se como<br />

jovem enérgico e carregado de entusiasmo, enquanto zarpava na direção do<br />

desconhecido; reviu a baía do rio de Porto Franco onde aportou com as canoas quase<br />

meio século antes; reviu a sua gente, aquela com a qual combateu pela emancipação<br />

social naquele canto remoto do sul brasileiro. Reviu aquela primeira vez que cruzou o<br />

olhar com Elisabetta, a brava mulher que suportou o seu tremendo caráter, e que treze<br />

anos antes o havia precedido no além. Repensou, com certeza, em todas as vezes nas<br />

quais o seu desenfreado egoísmo fez sofrer aquelas pessoas a ele mais queridas.<br />

Talvez até tivesse chegado a arrepender-se seriamente por todo o mal que fez,<br />

por aquela filha que deixou morrer ainda jovem, e talvez tenha pedido perdão a todos<br />

os seus filhos, numa extrema tentativa de reabilitação. Talvez tenha chegado a pensar<br />

que poderia haver ainda o tempo para remediar algumas coisas... mas já era muito<br />

tarde, e estava chegando a hora em que o velho leão precisava zarpar na direção da<br />

viagem mais longa, na direção da meta mais desconhecida. A mente se ofuscou e os<br />

olhos se perderam nas névoas da breve agonia.


Às 4,30 do dia 9 de maio de 1925, mesmo na hora em que por toda a vida<br />

estava acostumado a acordar e iniciar as suas operosas jornadas, o seu forte coração<br />

que tinha suportado tantas provas sem mais ceder, para de bater... para sempre. Tinha<br />

72 anos.<br />

Pagine del registro parrocchiale di Covo in cui viene annotata la morte di <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong> (fotografia – anno 2009)<br />

Foi sepultado no cemitério de Covo ao lado da mulher, e os restos mortais dos<br />

dois cônjuges jazem ainda agora na mesma tumba da família. Atualmente os seus<br />

nomes, comentados por longos e poéticos epitáfios, como aliás se usava na época,<br />

não se encontram mais sobre as lápides. Foram tirados nos anos 60 para dar lugar aos<br />

nomes de todos os outros descendentes que, neste meio tempo, foram sepultados na<br />

tumba da família. Mas permanecem em sua memória as fotografias feitas no mesmo<br />

dia no qual posavam para a famosa fotografia da família.<br />

Elisabetta Colombi e <strong>Alessandro</strong> <strong>Tirloni</strong><br />

Analisando a sua vida pode-se bem dizer que aquele filho “capitão”, - não<br />

desejado,- de dois camponeses bergamascos, destinado a permanecer para sempre no


anonimato, graças a uma obstinação e a uma força incrível, abriu espaço para ocupar<br />

o seu posto na história, e a sua recordação foi destinada a durar ainda por muito<br />

tempo.<br />

Deu vida a uma família interminável, e é também mérito seu se, em nossos dias,<br />

um pequeno canto do Brasil seja um florescente centro efervescente de vida e de<br />

atividades: Botuverá. No momento de sua morte, 3 de seus 12 filhos já o haviam<br />

precedido para a eternidade, era avô de 48 netos, e mais outros 10 se lhe seriam<br />

unidos no decênio seguinte. Não estamos certos, mas provavelmente era já bisavô,<br />

porque no Brasil os netos maiores, filhos de Joana, já eram casados.<br />

Nos dias de hoje, de todos os seus netos permanecem vivos ainda seis, e três<br />

destes eram já nascidos no momento de sua morte. O mais velho de todos, João<br />

<strong>Tirloni</strong>, vive no Brasil, o qual, naquele dia da morte de <strong>Alessandro</strong> tinha nove anos, e<br />

ainda lembra da notícia da morte daquele nono que ele nunca havia visto.<br />

A sua descendência é composta de 256 bisnetos, mais de 600 trisnetos e mais de<br />

200 quadrinetos. Agora estão nascendo também os primeiros filhos destes últimos.<br />

Um ótimo resultado para um filho de camponeses, destinado a permanecer no<br />

anonimato!


Tomba di famiglia <strong>Tirloni</strong> nel cimitero di Covo (fotografia – anno 2009)

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