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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.br<br />

atravancadas <strong>de</strong> carruagem e caminhões, riscadas <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> metal e pontas <strong>de</strong><br />

cimento, — e <strong>de</strong> que os passageiros sentiam, ou melhor, não sentiam, mas tinham<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar ver uns aos outros a impressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcerto ou<br />

<strong>de</strong>sconveniência que o transviado lhes produzia.<br />

De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto <strong>de</strong> comunicação<br />

próprio do homem. Como o pranto, o riso é <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> linguagem, em gran<strong>de</strong><br />

parte inconsciente, <strong>de</strong>stinada a comunicar o incomunicável, a exprimir o<br />

inexprimível, o que não se po<strong>de</strong>, não se sabe, não se quer ou não se pensa exprimir<br />

por palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se é certo que rimos e choramos a<br />

sós, também é certo que falamos conosco mesmos — e todo pensamento é diálogo<br />

interior — sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social da<br />

linguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação entre<br />

indivíduos, fixação coletiva <strong>de</strong> sinais sonoros). A mímica do pranto e do riso nasceu<br />

provavelmente da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se solidarizarem e coligarem os ânimos, na horda<br />

primeva diante do perigo, da contrarieda<strong>de</strong> ou do benefício com<strong>um</strong> que iam<br />

encontrando pela frente. Seria <strong>um</strong> elemento <strong>de</strong> coesão sublimável. Uma circulação<br />

rápida <strong>de</strong> psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado no<br />

indivíduo, até ass<strong>um</strong>ir <strong>um</strong>a sorte <strong>de</strong> vida inferior, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Mas a inconsciência<br />

do seu mecanismo interindividual aí está para lhe atestar as origens gregárias.—<br />

Somos ovelhas que se vão apenas <strong>de</strong>stacando do rebanho por ligeiras diferenças<br />

<strong>de</strong> pêlo, <strong>de</strong> dimensões ou <strong>de</strong> andadura; mas a alma da ovelha pertence mais ao<br />

rebanho do que a ela própria.<br />

E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para <strong>um</strong> simples passageiro <strong>de</strong><br />

bon<strong>de</strong>, as idéias são como os bilhetes <strong>de</strong> loterias: é preciso jogar em muitas, para<br />

ter probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acertar em alg<strong>um</strong>a. E ainda o melhor é não acertar. Criar fama<br />

<strong>de</strong> rico é <strong>um</strong>a das mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite<br />

<strong>de</strong> tanto n<strong>um</strong>erário. Responsabilida<strong>de</strong> social muito pesada. Admiradores.<br />

Compromissos. Facadas, amabilida<strong>de</strong>s, invejas, intrigas, amofinações... Que bom<br />

travesseiro, a pobreza!<br />

A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-<strong>de</strong>us foi o riso dos outros, tão<br />

saudavelmente natural e estúpido. E foi também o próprio louva-a-<strong>de</strong>us, natural e<br />

bobo como esse riso.<br />

O louva-a-<strong>de</strong>us é talvez <strong>um</strong> simples broto que <strong>de</strong> repente se animou, mexeu<br />

as suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo em<br />

torno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam <strong>de</strong> pôr — e esqueceuse<br />

do papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo in<strong>de</strong>ciso, na sua<br />

irrepreensível casaquinha ver<strong>de</strong>, é como <strong>um</strong> mascarado tanto que não tem coragem<br />

<strong>de</strong> ir ao baile nem sabe se há <strong>de</strong> voltar para casa, e fica a estatelar-se macambúzio<br />

pelas esquinas.<br />

Desconfio agora que o louva-a-<strong>de</strong>us talvez fosse <strong>um</strong> broche que <strong>um</strong> artista<br />

primitivo, das cavernas ou das palafitas, mo<strong>de</strong>lasse, — no barro ver<strong>de</strong>ngo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong><br />

açu<strong>de</strong>, dando-lhe, por inabilida<strong>de</strong> e por fantasia, <strong>um</strong>a feição <strong>de</strong> monstro quimérico e<br />

grotesco. Um dia, a senhora Natureza, n<strong>um</strong> momento <strong>de</strong> nervos, confundindo-o com<br />

os seus mo<strong>de</strong>los infelizes e inacabáveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida,<br />

lançando-o fora; "Enfim! S<strong>um</strong>e-te, diabo!"<br />

Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sido<br />

produzidos pela artífice quando ela ainda não podia <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r a imaginação dos<br />

liames do concreto. A minhoca teria sido tirada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a raiz <strong>de</strong> tubérculo. A serpente,<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a haste <strong>de</strong> foraminífera. O besouro foi talvez copiado <strong>de</strong> <strong>um</strong> caroço <strong>de</strong><br />

mamona. O elefante originar-se-ia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pedra viajada, do período glaciário, quer<br />

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