Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama
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www.nead.unama.br<br />
Quanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas quantas se acham<br />
consagradas pelo gosto das classes respeitáveis.<br />
Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia,<br />
eu po<strong>de</strong>ria tomar o meu amigo como <strong>um</strong> compêndio vivo das filtrações eruditas e<br />
literárias <strong>de</strong> segunda mão na mentalida<strong>de</strong> média da burguesia nacional, e explorá-lo<br />
metodicamente. Daria para <strong>um</strong> belo estudo <strong>de</strong> Psicologia Idiomática, cheio <strong>de</strong><br />
conseqüências para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para o<br />
alienista, — <strong>um</strong> belo estudo que, sem dúvida, não seria lido senão pelos indivíduos<br />
que a Providência <strong>de</strong>stacasse para lhe meterem a lenha.<br />
As expressões frias do Sr. Cesário são algo <strong>de</strong> suculento e <strong>de</strong> opíparo.<br />
Alg<strong>um</strong>as, as menos repolhudas, as meãs, ele as profere com plena serenida<strong>de</strong>. Mas<br />
como aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja lá <strong>um</strong> jeitinho <strong>de</strong> as<br />
empregar, soltando-as com <strong>um</strong> certo ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes o<br />
aspecto original <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que acha graça nas crepitações do próprio<br />
pensamento.<br />
Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas, referências às<br />
"trevas da ignorância", ao "santuário do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara do<br />
anonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi <strong>um</strong> dia em que estava impressionado<br />
com a onda <strong>de</strong> crimes, suicídios e pouca-vergonhas que por aí vai "n<strong>um</strong> crescendo<br />
assustador". Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a<br />
<strong>de</strong>sconfiar que me tivesse na conta <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos responsáveis.<br />
De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom à<br />
conversação, e o Sr. Cesário se <strong>de</strong>sata em chuveiros <strong>de</strong> preciosida<strong>de</strong>s.<br />
A propósito <strong>de</strong> política, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos<br />
<strong>de</strong>scontentes", que "vivem a semear a cizânia" com seus "cantos <strong>de</strong> sereia". Mas<br />
também, por <strong>um</strong> estríqueto "<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong>", não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> "verberar<br />
o impatriotismo <strong>de</strong> certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas<br />
<strong>de</strong> leite os postos <strong>de</strong> sacrifício a eles confiados pelo povo, a eterna besta <strong>de</strong> carga".<br />
Terminou res<strong>um</strong>indo-se n<strong>um</strong>a sentida peroração:<br />
"Enfim, meu caro amigo! É a tal crise <strong>de</strong> caráter.<br />
"Mas que quer? Nem a majesta<strong>de</strong> da religião escapa a esse referver <strong>de</strong><br />
paixões subalternas! Até no seio das irmanda<strong>de</strong>s se intromete a politicagem rasteira!<br />
Até lá, indivíduos sem entranhas vão pondo a garra, com. pés <strong>de</strong> lã, e... Homem!<br />
paremos por aqui.<br />
"O tempora!"<br />
De on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> inferir que o Sr. Cesário andava às voltas com alg<strong>um</strong><br />
<strong>de</strong>saguisado na paróquia.<br />
A <strong>um</strong> espírito assim ricamente organizado não podia faltar <strong>um</strong> certo aparelho<br />
<strong>de</strong> erudição leve. Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, como<br />
convém a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral:<br />
"Laborônia vince — Cosivá ilmondo — Senon évéro... — Lemon<strong>de</strong>marche —<br />
Arraite! — Tâimismónei — Savá sandire — Via crúcis — Tante grácie, cabalhero! —<br />
Por mares nunca dantes navegados—Festim <strong>de</strong> Baltazar — Ci<strong>um</strong>ento como <strong>um</strong><br />
Otelo — As trevas da Ida<strong>de</strong> Média — Cruelda<strong>de</strong> neroniana — Justiça imanente —<br />
Psicologia das multidões Os meio intelectuais — O poverélo <strong>de</strong> Assis — As lições da<br />
sociologia — A ciência <strong>de</strong> Ádan-Esmite — O último romântico — Os tonéis da<br />
Danai<strong>de</strong> — Vá <strong>de</strong>rrétro!"<br />
Enfim, gran<strong>de</strong> caçador <strong>de</strong> frases perante o Eterno!<br />
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