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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.br<br />

— "Mais ou menos. Quer dizer <strong>um</strong>a bonda<strong>de</strong> sentida, consciente, feita <strong>de</strong><br />

compreensão e <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>, mas que não tenta esforços por se mostrar e por atuar<br />

cá fora. Porque sabe talvez que toda exteriorização é espetáculo e todo espetáculo<br />

perverte."<br />

— "Mais ou menos isso!"<br />

— "Mas por que pensa que aí estaria o meio <strong>de</strong> libertação?"<br />

— "Ora, essa! Meu amigo! Pelo que vejo, não conhece os homens. Os<br />

homens só nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas projeções<br />

exteriores. E essas projeções, para terem valor, se hão <strong>de</strong> articular com as<br />

necessida<strong>de</strong>s, os <strong>de</strong>sejos, as conveniências, as aspirações dos que nos ro<strong>de</strong>iam.<br />

Valem pela soma <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> c<strong>um</strong>plicida<strong>de</strong> que levam consigo.<br />

Mas <strong>um</strong> indivíduo realmente e simplesmente bom é o mais <strong>de</strong>svalioso dos<br />

homens. É talvez <strong>um</strong>a árvore frutífera, mas que produz frutos quando é sazão, e fora<br />

disso não produz mais nada; ali está, no seu lugar, quieta, sem movimento, sem<br />

iniciativa, sem préstimo, sem solicitu<strong>de</strong>s, sem graça.<br />

Apenas dá sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aos<br />

homens <strong>um</strong>a árvore que dá sombra! A sombra aproveita-se, quando a<strong>de</strong>rga, gozase,<br />

saboreia-se, mas não se tem nenh<strong>um</strong>a gratidão para a planta equânime que não<br />

no-la reservou para nós, que a dará ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, a<br />

árvore <strong>de</strong> boa sombra vive realmente isolada, cercada por <strong>um</strong>a <strong>de</strong>nsa muralha <strong>de</strong><br />

impenetrabilida<strong>de</strong> própria e <strong>de</strong> alheia indiferença."<br />

"Diga ao seu amigo que faça isso."<br />

Palhares sorriu, pôs <strong>um</strong> confeito na língua e, a remexê-lo na boca, perguntou:<br />

— "Quer jantar comigo?"<br />

— "Obrigado."<br />

— "Sem cerimônia. Temos hoje lá em casa <strong>um</strong> peixe que me mandaram do<br />

litoral, <strong>um</strong> esplêndido robalo. Presente <strong>de</strong> <strong>um</strong> amigo."<br />

— "Tem amigos amáveis."<br />

— "Mas, naturalmente. Prestei a esse <strong>um</strong> serviço <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância,<br />

que só eu estava em condições <strong>de</strong> prestar."<br />

— "Gratidão, nesse caso."<br />

— "Qual!"<br />

— "Esperança <strong>de</strong> novo serviço..."<br />

— "Talvez"<br />

— "Afeto h<strong>um</strong>ano!"<br />

— "Afetos verda<strong>de</strong>iros e sólidos! Passam <strong>de</strong>pressa, nada mais fugitivo, não há<br />

dúvida; mas verda<strong>de</strong>iros e sólidos porque se firmam na realida<strong>de</strong> viva das relações<br />

úteis. Não há outra. Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, não há outra. É<br />

isso. É assim. Mas quer ou não quer comer o bom peixe do meu amigo?"<br />

RUFINA<br />

Tornei a ver a minha Rufina, afinal.<br />

Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosida<strong>de</strong> vaga, sem garra<br />

nem asa, que nos resta nas horas <strong>de</strong> fadiga. Vi n<strong>um</strong> banco <strong>de</strong> trás o prático <strong>de</strong><br />

farmácia, com <strong>um</strong> livro <strong>de</strong> Allan Kar<strong>de</strong>c sobre os joelhos e a fazer gracinhas a <strong>um</strong>a<br />

criança, cuja mãe era <strong>um</strong>a guapa mocetona. Vi o simpático Berredo, inimigo da<br />

Medicina, médico amador. Benzi-me em espírito com a canhota, e <strong>de</strong>sviei os olhos:<br />

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