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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.br<br />

A mania das reticências não tarda em semeá-las no próprio pensamento.<br />

Recolhem, como as bexigas. E lá se vai o amor da clarida<strong>de</strong> e da justeza, lá vem o<br />

prazer vicioso do equívoco, do ambíguo, do flutuante.<br />

Os antigos não usavam reticências. Faltou-lhes, pois <strong>um</strong>a boa forma <strong>de</strong><br />

notação, hoje indispensável. Mas o fato é que a estreiteza do sistema <strong>de</strong> suplementares<br />

da palavra tinha as suas vantagens. Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com os<br />

recursos únicos da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez <strong>de</strong> pôr <strong>um</strong> sinal <strong>de</strong><br />

ironia tinham <strong>de</strong> açacalar a ironia através da re<strong>de</strong> dos períodos. Em vez <strong>de</strong> indicar com<br />

que óculos cinzentos ou vermelhos se havia <strong>de</strong> ler o capítulo ou a página, davam à<br />

página ou ao capitulo a tonalida<strong>de</strong> sentimental ou mental conveniente. Era o processo<br />

direto, que penetrava até às carnes e aos nervos do estilo.<br />

Podiam falecer-lhe a este as flexibilida<strong>de</strong>s e esf<strong>um</strong>aturas da sensibilida<strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rna, mas ainda isso era <strong>um</strong>a vantagem, porque era <strong>um</strong>a disciplina. O escritor<br />

havia <strong>de</strong> se resignar, por muito in<strong>de</strong>ciso e ondulante que tivesse o espírito, ao freio<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> métier e havia <strong>de</strong> viver perpetuamente em busca do límpido, do incisivo, do<br />

l<strong>um</strong>inoso. Nunca se entregava senão a construções <strong>de</strong> pensamento com <strong>um</strong>a<br />

classificação e <strong>um</strong> fim. Toda a sua aspiração era fabricar obras acabadas, portáteis,<br />

que representavam aquisições (como diz Emerson a propósito já não lembra <strong>de</strong> que<br />

autor) coisas que se po<strong>de</strong>riam sopesar, palpar, pôr no bolso e levar para casa—<br />

como <strong>um</strong> utensílio, como <strong>um</strong>a jóia, como <strong>um</strong>a fruta.<br />

Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujo<br />

valor não <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> tomar para estribilho. Guardou os originais, acen<strong>de</strong>u <strong>um</strong> cigarro e<br />

perguntou, com <strong>um</strong> sorriso reticente:<br />

— "Então, só <strong>um</strong> excesso <strong>de</strong>... Pontinhos?"<br />

"Só, Nicolau, só. Mas isso mesmo, ó Artista, ó Imaginífico, ó Mistagogo! É<br />

talvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses<br />

escritos retalhados em pequenos parágrafos cada parágrafo seguido <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

secreção <strong>de</strong> pontinhos, tenho logo a idéia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sfilada <strong>de</strong> cabritos.<br />

"Mas, pensando bem, penso que <strong>um</strong> escritor moço precisa <strong>de</strong> ter certa porção<br />

<strong>de</strong> cacoetes e singularida<strong>de</strong>s, até <strong>de</strong> erros, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certo limite porque tudo isto<br />

serve exatamente <strong>de</strong> lhe dar <strong>um</strong> ar <strong>de</strong> viçoso verdor e <strong>de</strong> divinatória inexperiência, a<br />

graça do gênio ainda ignorante <strong>de</strong> si próprio, todo em flor e esperança.<br />

As pequenas carepas envolvem <strong>um</strong>a promessa festiva <strong>de</strong> aperfeiçoamento<br />

ao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperida<strong>de</strong>s da<br />

superfície, <strong>de</strong>ixa ver melhor as imperfeições essenciais da matéria e da construção.<br />

Esses cacoetes, essas singularida<strong>de</strong>s, esses <strong>de</strong>scuidos constituem <strong>um</strong>a<br />

garantia para o escritor. Ninguém suspeita nele <strong>um</strong> gramático, <strong>um</strong> espírito peco e<br />

miúdo, preocupado com a língua e outras superfluída<strong>de</strong>s peróbicas. Perdoam-lhe<br />

por simpatia, n<strong>um</strong>a absolvição geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha a<br />

perpetrar. Ao passo que os escritores corretos dão ganas a todo o mundo <strong>de</strong> lhes<br />

<strong>de</strong>scobrir trincas e manchas.<br />

E isto sempre se consegue: a correção é <strong>um</strong>a zona i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> equilíbrio<br />

instável...<br />

Ia eu assim dissertando, alheio ao bon<strong>de</strong> e ao tempo, quando <strong>um</strong>a brecada<br />

instantânea fez estralejar todo o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bon<strong>de</strong><br />

havia pegado <strong>um</strong>a carroça pela rabeira e arremessado esse veículo, com os seus<br />

dois animais, a três metros <strong>de</strong> distância.<br />

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