Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama
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www.nead.unama.br<br />
força purificadora e ascensional, que não mente nem quebra. Confessemo-nos<br />
sinceramente a Deus, e Deus a todos os h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>s perdoa e sustém.<br />
Como é que a tola perversida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana pô<strong>de</strong> converter a clara e benéfica<br />
fonte <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> alegria, que há no fundo <strong>de</strong>ssa viril visualização cristã da<br />
vida, nesta coisa sombria e horrenda, nesta mascarada <strong>de</strong> mistificações, neste<br />
pesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atrozes artifícios, neste abominável Santo Ofício <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alismos<br />
hipócritas e peçonhentos e <strong>de</strong> mútua espionagem, que a socieda<strong>de</strong> instituiu <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> si mesma e carrega no seio como <strong>um</strong> rolo esfervilhante <strong>de</strong> víboras?<br />
Jesus claro, natural e harmonioso como a Verda<strong>de</strong>, até fabricou vinho em<br />
Caná para a jovialida<strong>de</strong> simples dos homens...<br />
A modéstia é <strong>um</strong>a virtu<strong>de</strong> imensuramente prezada pelo gran<strong>de</strong> número.<br />
Todos a veneram. Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evi<strong>de</strong>ntemente, por<br />
ciúme e inveja. Não há ninguém mais mo<strong>de</strong>sto do que as velha chupadas,<br />
arrependidas... De não haverem pecado. — Não po<strong>de</strong>ndo suprimir os méritos <strong>de</strong><br />
quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor não os reconheça, ou finja não os<br />
reconhecer; quer-se diabolicamente aguar, estragar, atormentar com dúvidas, com<br />
acanhamentos, com terrores e com escrúpulos o prazer natural, irreprimível e<br />
capitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra.<br />
A moral social é <strong>um</strong>a formidável conspiração <strong>de</strong> todos contra cada <strong>um</strong>, para<br />
o triturar, perverter, o <strong>de</strong>svirilizar, o reduzir a <strong>um</strong> ser lamentoso e tortuoso, <strong>um</strong><br />
aleijado sofredor, grotesco e malfazejo. O pátio dos Milagres!<br />
O envai<strong>de</strong>cido enrosca-se e enclavinha-se em si mesmo. Em vez <strong>de</strong> lançar<br />
ao vento as suas pequenas fatuida<strong>de</strong>s e libertar-se <strong>de</strong>las, ele as recolhe, as<br />
ac<strong>um</strong>ula, as afunda lá <strong>de</strong>ntro, e as recoze, e as cultiva em sigilo, como <strong>um</strong> fabricante<br />
<strong>de</strong> venenos, com toda a sorte <strong>de</strong> cautelas, <strong>de</strong> temores, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas, <strong>de</strong> artifícios,<br />
<strong>de</strong> equívocos, <strong>de</strong> dissimulações, e aí temos <strong>um</strong>a franqueza quase inocente<br />
convertida, pelo farisaísmo da virtu<strong>de</strong>, n<strong>um</strong>a podriqueira secreta!<br />
Só o indivíduo que experimenta prazeres <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, sem se enganar sobre<br />
a natureza <strong>de</strong>les, assistindo a essas experiências do sentimento como <strong>um</strong> lúcido<br />
espectador <strong>de</strong> si mesmo, só este é capaz <strong>de</strong> modéstia. Se alg<strong>um</strong> há que não os<br />
conheça, esse não é propriamente <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>sto, é <strong>um</strong> que nasceu com <strong>um</strong>a falha<br />
psicológica, como outros nascem privados da vista ou com <strong>um</strong> pé atrofiado. Não tem<br />
mérito alg<strong>um</strong>. Tem <strong>um</strong> <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> nascença.<br />
A modéstia é a vaida<strong>de</strong> que sorri <strong>de</strong> si mesma. E nesse sorriso vai o<br />
quant<strong>um</strong> satis <strong>de</strong> contra-veneno.<br />
A boa modéstia é a vaida<strong>de</strong> que sorri <strong>de</strong> si mesma para não se rir das<br />
outras, e que às vezes ar<strong>de</strong> e se sublima na chama do sorriso — como <strong>um</strong> balão <strong>de</strong><br />
papel se <strong>de</strong>strói e <strong>de</strong>saparece na própria chama que o eleva.<br />
A vaida<strong>de</strong> paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados na<br />
sua obra, vertendo sangue e clarões!<br />
A boa modéstia é aquela que doma as suas vaida<strong>de</strong>s e as subjuga ao<br />
domínio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paixão forte e bela, como os tigres que puxavam o carro <strong>de</strong> Dionísios.<br />
A serpente, às vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que bolem<br />
ou às sombras que passam, e assim se torna inócua ao picar <strong>um</strong>a rês ou <strong>um</strong><br />
homem. A vaida<strong>de</strong> é muitas vezes como a cobra.<br />
À vaida<strong>de</strong> parece <strong>de</strong>ver-se também <strong>um</strong>a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> horrores:<br />
assassínios, roubos, atrocida<strong>de</strong>s, suicídios. Na realida<strong>de</strong>, ela <strong>de</strong>sempenha apenas o<br />
papel <strong>de</strong> <strong>um</strong> purgante orgânico da comunida<strong>de</strong> social. Em muitos casos, se a <strong>um</strong>a<br />
só causa se po<strong>de</strong>m filiar coisas tão complexas, é a modéstia que <strong>de</strong>ve ser<br />
responsabilizada. Convertida em mandamento irretorquível, comprime e abate a<br />
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