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Navios Portugueses<br />

dos Séculos XV e XVI<br />

<strong>Francisco</strong> Contente Domingues<br />

C A D E R N O S D O M U S E U D E V I L A D O C O N D E


título<br />

Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI<br />

produção e edição<br />

Câmara Municipal <strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong><br />

Museu <strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong><br />

copyright<br />

Câmara Municipal <strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong><br />

autor<br />

<strong>Francisco</strong> Contente Domingues<br />

coor<strong>de</strong>nação editorial<br />

António Ponte<br />

Ilídio Silva<br />

tiragem<br />

500 exemplares<br />

isbn<br />

978-972-9453-81-6<br />

<strong>de</strong>pósito legal<br />

248399/06<br />

<strong>de</strong>sign<br />

Marta Braz<br />

impressão<br />

Minerva, artes gráficas<br />

2


Para os meus filhos Rita e <strong>Francisco</strong><br />

3


Um Mundo por Descobrir


As navegações portuguesas nos séculos XV e XVI<br />

foram leva<strong>da</strong>s a cabo com embarcações <strong>de</strong> diversos tipos,<br />

que resultaram quer <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação dos recursos disponíveis<br />

aos problemas levantados pelas viagens que se dirigiam a<br />

mares <strong>de</strong>sconhecidos, quer <strong>da</strong> procura <strong>de</strong> novas soluções<br />

que permitissem optimizar as suas características. Como em<br />

tudo o que diz respeito aos aspectos técnicos <strong>da</strong> navegação,<br />

não faltou a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inovar quando o que se<br />

conhecia não se mostrava a<strong>de</strong>quado para os fins pretendidos.<br />

Como sempre acontece na História <strong>da</strong>s Técnicas, não<br />

são os inventos mecânicos que criam as condições para a<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas são eles que permitem saltos qualitativos que<br />

<strong>de</strong> outro modo não se po<strong>de</strong>riam verificar quando o Homem<br />

procura fazer mais rápido ou ir mais longe.<br />

Os portugueses não criaram <strong>de</strong> novo, no sentido em<br />

que não surgiram embarcações que representassem uma<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong> radical em relação ao que era conhecido antes;<br />

e resta saber, aliás, se alguma vez isso aconteceu no domínio<br />

<strong>da</strong> História <strong>da</strong>s Navegações, uma vez que qualquer tipo<br />

<strong>de</strong> navio aparece sempre como uma forma <strong>de</strong> evolução <strong>de</strong><br />

algo que já era conhecido, ou talvez seja mais correcto dizer<br />

como uma a<strong>da</strong>ptação para respon<strong>de</strong>r a novos problemas,<br />

sejam eles carregar mais carga com menor custo, fazê-lo<br />

mais <strong>de</strong>pressa, ou explorar mares ignorados. O que aconteceu<br />

com as navegações portuguesas foi o resultado <strong>de</strong> uma<br />

constatação simples: quando se tratou <strong>de</strong> singrar por mares<br />

que não se conheciam, indo mais longe do que se fora até<br />

então, foi preciso partir <strong>da</strong>s técnicas <strong>de</strong> navegação conheci<strong>da</strong>s,<br />

usá-las na medi<strong>da</strong> do possível e criar soluções novas.<br />

Se, antes dos navegadores portugueses, outros an<strong>da</strong>ram por<br />

paragens para as quais aqueles agora se dirigiam, pouco interessava.<br />

Das memórias difusas <strong>de</strong> navegações antigas, <strong>de</strong><br />

que se encontra eco por exemplo no cronista que relatou as<br />

7


viagens leva<strong>da</strong>s a cabo sob a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do Infante<br />

D. Henrique, Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, na<strong>da</strong> tinha ficado do<br />

que era importante para os navegadores do século XV: saber<br />

como navegar nessas águas. E se alguma coisa distinguiu<br />

as viagens portuguesas <strong>da</strong>quelas que teriam sido feitas antes<br />

do século XV, como os périplos do continente africano<br />

<strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> ou as explorações marítimas medievais, foi<br />

precisamente o seu carácter repetitivo: on<strong>de</strong> os portugueses<br />

foram e quiseram voltar, voltaram; e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les navegadores<br />

<strong>de</strong> outras nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s aju<strong>da</strong>ram a estabelecer uma<br />

teia <strong>de</strong> rotas marítimas que com o tempo levou os navios europeus<br />

a percorrer todos os mares e oceanos. Dito <strong>de</strong> outra<br />

forma, muito mais importante do que ir uma vez foi a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> saber voltar. Também por isso as navegações dos<br />

séculos XV e XVI representaram uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> radical em<br />

relação ao que tinha sido feito até então; e ain<strong>da</strong> porque,<br />

ao contrário do que suce<strong>de</strong>ra anteriormente, os marinheiros<br />

<strong>de</strong>sta época <strong>de</strong>ixaram memória e testemunho do que viram<br />

e observaram. Além dos textos escritos, <strong>da</strong> mais diversa índole,<br />

como os relatos <strong>de</strong> viagens ou os diários <strong>de</strong> bordo, a<br />

cartografia espelhou-o perfeitamente: as cartas que serviam<br />

para os pilotos se orientarem mostravam os novos mundos<br />

que iam sendo <strong>de</strong>scobertos, não no sentido em que eram<br />

vistos pela primeira vez, mas no <strong>de</strong> passarem a integrar uma<br />

nova percepção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> geográfica, uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

não existia apenas na expressão gráfica dos mapas mas era<br />

visita<strong>da</strong> continua<strong>da</strong>mente pelos navegadores, passando assim<br />

a integrar o património colectivo do conhecimento geográfico<br />

europeu.<br />

A principal contribuição portuguesa para a navegação<br />

europeia foi a criação <strong>da</strong> náutica astronómica, ou seja, a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> as tripulações dos navios se po<strong>de</strong>rem orientar<br />

no mar alto pela observação dos astros, permitindo-lhes<br />

8


1 “Tavoa <strong>da</strong> Agua<strong>da</strong> do Xeque”: nas ilustrações prepara<strong>da</strong>s para acompanhar<br />

dois dos roteiros <strong>de</strong> D. João <strong>de</strong> Castro, <strong>da</strong>táveis do segundo quartel do século<br />

XVI, avulta este <strong>de</strong>senho aguarelado que é talvez a melhor representação conheci<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> navios portugueses <strong>da</strong> época, nele figurando as principais embarcações<br />

em que se baseou o po<strong>de</strong>r naval português no Índico - a nau, o galeão, a caravela<br />

redon<strong>da</strong>, a galé e os bergantins e fustas (Tábuas dos Roteiros <strong>da</strong> Índia <strong>de</strong><br />

D. João <strong>de</strong> Castro).<br />

9


assim ultrapassar as limitações <strong>da</strong>queles que precisavam <strong>de</strong><br />

seguir junto à costa por não terem meios para singrar em<br />

mar aberto por longos períodos. Mas navegar mais longe e<br />

por mais tempo também só foi possível porque se passou<br />

a dispor <strong>de</strong> navios capazes para o efeito. Tal como acontecia<br />

com a arte <strong>de</strong> navegar anterior às gran<strong>de</strong>s viagens <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scobrimento marítimo, foi igualmente necessário a<strong>da</strong>ptar<br />

os navios que existiam às novas condições <strong>de</strong> navegação.<br />

A par <strong>da</strong> arte <strong>de</strong> navegar, os navios dos séculos XV e XVI<br />

tornaram-se no meio <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> contacto com os<br />

novos mundos: surgiram então embarcações mais eficazes<br />

e com melhores condições para a navegação <strong>de</strong> longo curso,<br />

fosse <strong>de</strong> guerra ou comércio. Também neste aspecto a<br />

contribuição portuguesa foi <strong>de</strong>cisiva, e é precisamente disso<br />

que trata este livro.<br />

O especialista <strong>de</strong> arqueologia naval, como se <strong>de</strong>signa<br />

– aliás não com muita felici<strong>da</strong><strong>de</strong> – a disciplina que estu<strong>da</strong> as<br />

características dos navios sob as mais diversas vertentes,<br />

não precisa certamente <strong>de</strong> o ler, e também não é para ele<br />

que este livro se dirige, mas antes para quantos alguma vez<br />

se perguntaram: “como eram os navios dos <strong>de</strong>scobrimentos?”.<br />

Ao contrário do que possa parecer, a resposta não é<br />

fácil, por uma razão simples: são muitas e diversas as opiniões<br />

emiti<strong>da</strong>s pelos estudiosos a propósito <strong>de</strong> quase tudo,<br />

mas o leitor terá <strong>de</strong> percorrer a bibliografia especializa<strong>da</strong><br />

para as encontrar, <strong>de</strong>parando com facili<strong>da</strong><strong>de</strong> em minudências<br />

que po<strong>de</strong>m não lhe interessar, e per<strong>de</strong>ndo seguramente<br />

uma visão geral <strong>de</strong> síntese que i<strong>de</strong>ntifique temas e problemas,<br />

que é o que procura quem se preten<strong>de</strong> informar sobre<br />

um qualquer assunto. Neste caso há uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> particular:<br />

há muito poucas obras que permitam adquirir essa<br />

visão geral, e as que há ou estão <strong>de</strong>sactualiza<strong>da</strong>s ou não<br />

se encontram disponíveis no mercado livreiro. Preten<strong>de</strong>-se<br />

10


que este volume supra tal carência, sem o fazer também recorrendo<br />

à publicação <strong>de</strong> aparato: as imagens preten<strong>de</strong>m<br />

apenas documentar e conferir maior legibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao texto,<br />

ilustrando explicações ou i<strong>de</strong>ias cuja compreensão seria<br />

mais difícil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r sem este suporte.<br />

Quer-se portanto que este seja um livro <strong>de</strong> síntese, feito<br />

a partir do que é conhecido sobre os navios portugueses<br />

dos séculos XV e XVI, cuja leitura seja mais agradável que<br />

académica, e por isso o texto não tem notas justificativas<br />

<strong>da</strong>s afirmações nele exara<strong>da</strong>s, excepto quando se trata <strong>de</strong><br />

citações directas <strong>de</strong> outros autores; mas inclui no fim um<br />

conjunto <strong>de</strong> sugestões <strong>de</strong> leitura que po<strong>de</strong>m auxiliar quem<br />

quiser saber mais sobre os navios dos <strong>de</strong>scobrimentos portugueses.<br />

11


Barcas e Barinéis


O termo barca aparece com muita frequência até ao século<br />

XV, em que se iniciaram os <strong>de</strong>scobrimentos, <strong>de</strong>signando<br />

pequenas embarcações utiliza<strong>da</strong>s na pesca, na navegação<br />

fluvial e <strong>de</strong> cabotagem; e continua a surgir nos documentos<br />

até ao século XIX, com o mesmo sentido, chegando à toponímia<br />

<strong>de</strong> uma forma que evi<strong>de</strong>ncia a sua inserção no quotidiano<br />

<strong>da</strong>s populações que <strong>de</strong>las se serviam para múltiplas<br />

<strong>final</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong>s: um local conhecido como porto <strong>da</strong>s barcas na<br />

margem <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> água mostra que ali acostavam as<br />

que serviam para o transporte entre as margens do rio; ponte<br />

<strong>da</strong> barca quer seguramente dizer que no local foi construí<strong>da</strong><br />

uma ponte sobre barcas encosta<strong>da</strong>s umas às outras (solução<br />

que a engenharia militar usou até tar<strong>de</strong>, na falta <strong>de</strong> melhor<br />

alternativa); e outros exemplos po<strong>de</strong>riam ser <strong>da</strong>dos.<br />

A diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> situações em que encontramos referi<strong>da</strong>s<br />

as barcas, o longo espaço temporal em que o termo aparece,<br />

enfim as <strong>de</strong>nominações que lhe são associa<strong>da</strong>s, mostram<br />

que não estamos face a um tipo <strong>de</strong> navio específico, mas<br />

antes perante um termo genérico que aparece com um sentido<br />

relativamente preciso: barca é uma embarcação pequena,<br />

com muitas funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, assim como navio é a <strong>de</strong>signação<br />

geral <strong>da</strong>s embarcações <strong>de</strong> maior porte. Nos documentos<br />

medievais percebe-se que a barca se caracteriza pela função<br />

que lhe é <strong>da</strong><strong>da</strong>, mais do que por características próprias e distintivas:<br />

assim, dá-se conta <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> barcas <strong>de</strong> carga,<br />

<strong>de</strong> carreto, do con<strong>da</strong>do, <strong>de</strong> congregar, <strong>de</strong> mercadorias, <strong>de</strong><br />

mercee, <strong>de</strong> passagem, <strong>de</strong> pesca, <strong>de</strong> sardinha, <strong>de</strong> sal, e aparece<br />

até uma enigmática barca seeira, <strong>de</strong> significado algo obscuro,<br />

entre outras <strong>de</strong>signações. Esta relação continua<strong>da</strong> entre<br />

a <strong>de</strong>signação e a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> não termina aqui; voltaremos<br />

a ela mais à frente, a propósito <strong>de</strong> um caso similar.<br />

As dimensões <strong>da</strong>s barcas referi<strong>da</strong>s nos documentos do<br />

século XV são bastante variáveis, embora as <strong>de</strong> maior porte<br />

15


não <strong>de</strong>vessem ultrapassar os 30 tonéis. Provavel-mente teriam<br />

apenas tilhas (coberturas) à popa e proa, para protecção<br />

<strong>de</strong> tripulantes e bens diversos, sem os pavimentos corridos<br />

<strong>de</strong> popa à proa que aparecem nos navios <strong>de</strong> maior porte e a<br />

que se dá o nome <strong>de</strong> cobertas.<br />

16<br />

A tonelagem dos navios é a melhor medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> comparação entre<br />

as suas dimensões relativas. Cumpre porém dizer que na época em que<br />

nos situamos a medição <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> era um problema real, por não<br />

haver processo rigoroso <strong>de</strong> o fazer. Nem isso era particularmente premen-<br />

te em relação a estas pequenas embarcações e ao tipo <strong>de</strong> navegação<br />

que praticavam, pelo menos na maioria dos casos. Mas situações como<br />

o cálculo dos montantes a reembolsar pelos armadores subvencionados<br />

pelo po<strong>de</strong>r régio, como suce<strong>de</strong>u pontualmente quando os monarcas que-<br />

riam incentivar a construção naval, ou a <strong>de</strong>finição do valor <strong>da</strong> construção<br />

<strong>de</strong> um navio, fixado contratualmente em função do número <strong>de</strong> tonéis, foi<br />

obrigando à experimentação <strong>de</strong> fórmulas e processos <strong>de</strong> cálculo cuja<br />

eficácia não foi porém assegura<strong>da</strong> senão muito mais tar<strong>de</strong>. Seja como<br />

for, tudo se resumia <strong>de</strong> uma forma simples: a tonelagem dos navios era<br />

calcula<strong>da</strong> em função do número <strong>de</strong> tonéis que podia transportar. Tomava-<br />

-se como medi<strong>da</strong> o tonel, que servia para armazenagem e transporte <strong>de</strong><br />

mercadorias sóli<strong>da</strong>s e líqui<strong>da</strong>s, tendo a medi<strong>da</strong> padrão <strong>de</strong> 1,5 metros <strong>de</strong><br />

altura por 1 metro <strong>de</strong> largura máxima (valores naturalmente aproximados<br />

numa época em que não era possível obtê-los com gran<strong>de</strong> precisão).<br />

O aparelho <strong>de</strong>stas embarcações tem sido objecto <strong>de</strong><br />

controvérsia. Afirmou-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre que armavam pano<br />

redondo, num único mastro, mas é bem possível que pelo menos<br />

em algumas <strong>de</strong>las fosse latino, pelas evi<strong>de</strong>ntes facili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

que po<strong>de</strong>ria oferecer nas viagens <strong>de</strong> exploração empreendi<strong>da</strong>s<br />

na costa oci<strong>de</strong>ntal africana. A utilização <strong>da</strong> vela latina não<br />

constituiria qualquer espécie <strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois era conheci<strong>da</strong><br />

no Mediterrâneo havia muito; na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, julgamos que se afirmou<br />

o contrário apenas acentuar o que alguns preten<strong>de</strong>ram<br />

ser o carácter radicalmente inovador <strong>da</strong> caravela latina.


Designa-se por aparelho o conjunto <strong>da</strong>s velas (velame), dos ca-<br />

bos (massame) e <strong>da</strong>s peças (poleame) por on<strong>de</strong> passam os cabos. Nos<br />

textos <strong>de</strong> arqueologia naval aparelho é por vezes usado como sinónimo<br />

<strong>de</strong> velame, embora isso não seja correcto, em rigor.<br />

As viagens a man<strong>da</strong>do <strong>de</strong> D. Henrique em <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />

do Bojador tiveram o seu início pelos começos dos anos vinte<br />

do século XV. Pelo testemunho <strong>da</strong> Crónica <strong>da</strong> Guiné <strong>de</strong><br />

Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara percebe-se que a partir <strong>de</strong> 1421 as<br />

viagens organiza<strong>da</strong>s pelo Infante passaram a ter o objectivo<br />

<strong>de</strong> ultrapassar o cabo Bojador, tido até essa altura como limite<br />

do mar navegável:<br />

E, <strong>final</strong>mente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> doze anos, fez o Infante<br />

armar uma barca, <strong>da</strong> qual <strong>de</strong>u capitania a um<br />

Gil Eanes, seu escu<strong>de</strong>iro (que ao <strong>de</strong>pois fez cavaleiro<br />

e agasalhou muito bem), o qual, seguindo a<br />

viagem dos outros, tocado <strong>de</strong> aquele mesmo temor<br />

não chegou mais que às ilhas <strong>de</strong> Canária, don<strong>de</strong><br />

trouxe certos cativos com que se tornou para o<br />

Reino. E foi isto no ano <strong>de</strong> Jesus Cristo <strong>de</strong> 1433.1<br />

Os navios do Infante não an<strong>da</strong>vam pelo mar apenas<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1421. Disso é prova bastante o facto <strong>de</strong> poucos anos<br />

antes ter ocorrido o <strong>de</strong>scobrimento aci<strong>de</strong>ntal <strong>da</strong>s ilhas <strong>de</strong><br />

Porto Santo e Ma<strong>de</strong>ira. As ilhas já eram conheci<strong>da</strong>s e estavam<br />

cartografa<strong>da</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os meados do século XIV, mas<br />

po<strong>de</strong> falar-se com proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um “<strong>de</strong>scobrimento henriquino”,<br />

no sentido em que, a partir <strong>de</strong> então, passaram a ser<br />

povoa<strong>da</strong>s e a tornar-se um <strong>de</strong>stino comum <strong>de</strong> navegação.<br />

Tal como acontecia já antes com as Canárias, aquelas ilhas<br />

foram seguramente alcança<strong>da</strong>s por navios do Infante que se<br />

1 Gomes Eanes <strong>de</strong> Zurara, Crónica dos Feitos <strong>da</strong> Guiné (ou Crónica <strong>da</strong> Guiné),<br />

cap. IX.<br />

17


2 Representação <strong>da</strong> barca <strong>de</strong> Gil Eanes, <strong>de</strong> João Brás <strong>de</strong> Oliveira. Não existem<br />

informações seguras sobre qualquer <strong>da</strong>s características <strong>de</strong>ste navio, pelo que o <strong>de</strong>senho<br />

é meramente hipotético.<br />

18


<strong>de</strong>dicavam ao comércio e ao corso na costa africana próxima,<br />

como era usual na época: “filhar” (como se dizia então)<br />

gentes e bens não constituía uma activi<strong>da</strong><strong>de</strong> propriamente<br />

ilícita, pelo menos nos termos em que passou a ser entendi<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>pois.<br />

A barca era portanto uma embarcação que tinha <strong>de</strong><br />

aliar quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s marinheiras a alguma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> carga,<br />

mas sem per<strong>de</strong>r o carácter <strong>de</strong> pequeno navio ligeiro. I<strong>de</strong>al,<br />

pois, para se servirem <strong>de</strong>la os que tentaram progredir para<br />

Sul por or<strong>de</strong>m do Infante, em mares e condições físicas <strong>de</strong><br />

navegação que não podiam ser bem conheci<strong>da</strong>s; por isso,<br />

embora na<strong>da</strong> o prove – o que se <strong>de</strong>ve acrescentar em boa<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> –, não <strong>de</strong>ve ser posta <strong>de</strong> lado a hipótese referi<strong>da</strong>, a<br />

<strong>de</strong> algumas armarem já pano latino.<br />

Foi numa barca que Gil Eanes dobrou o cabo Bojador,<br />

em 1434, mas logo <strong>de</strong> segui<strong>da</strong> ela ce<strong>de</strong>u o passo a navios<br />

<strong>de</strong> maior porte.<br />

Aparece nos documentos <strong>de</strong>sta época o termo barcha.<br />

As opiniões divi<strong>de</strong>m-se entre os que consi<strong>de</strong>ram que a <strong>de</strong>signação<br />

diz respeito a um tipo distinto <strong>da</strong> barca, sendo <strong>de</strong><br />

origem nórdica, ou os que pensaram tratar-se simplesmente<br />

<strong>de</strong> grafias diferentes para a mesma embarcação. A primeira<br />

<strong>de</strong>stas hipóteses carece sem dúvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> melhor e mais fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

informação concreta para po<strong>de</strong>r ser realmente leva<strong>da</strong> em<br />

linha <strong>de</strong> conta: é preciso ter presente que não há uniformi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

na grafia <strong>da</strong>s palavras, no século XV (nem nos seguintes),<br />

e este tipo <strong>de</strong> situação é usual, ou seja, a mesma palavra<br />

aparece com frequência escrita <strong>de</strong> formas diversas, sem que<br />

isso queira dizer que significam coisas diferentes.<br />

De concreto, pois, sabemos muito pouco sobre a barca<br />

com que se iniciaram as viagens <strong>de</strong> exploração e <strong>de</strong>scobrimento.<br />

E nem valerá a pena enfatizar o carácter hipotético,<br />

quando não ce<strong>de</strong> completamente o passo à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

19


expressão artística, <strong>da</strong> iconografia antiga e mo<strong>de</strong>rna que a<br />

reproduz.<br />

Por seu turno, o barinel, segundo João <strong>de</strong> Barros (o<br />

autor <strong>da</strong>s Déca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Ásia e um dos gran<strong>de</strong>s cronistas do<br />

Renascimento português) era o maior dos navios até então<br />

empregues nas viagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento, surgindo a partir<br />

do momento em que se verificou serem infun<strong>da</strong>dos os receios<br />

<strong>de</strong> que os baixios que se supunha existirem a sul do Bojador<br />

impedissem a navegação <strong>de</strong> embarcações com maior porte<br />

que a pequena barca <strong>de</strong> Gil Eanes. Diz então Barros:<br />

20<br />

O ano seguinte <strong>de</strong> trinta e quatro, como o Infante<br />

estava informado por Gil Eanes <strong>da</strong> maneira <strong>da</strong> terra,<br />

e <strong>da</strong> navegação ser menos perigosa do que se<br />

dizia, mandou armar um barinel, que foi o maior navio,<br />

que até então tinha enviado, por já estar fora<br />

<strong>de</strong> suspeita, que se tinha dos baixios, e parcel, que<br />

diziam haver além do Cabo. A capitania do qual <strong>de</strong>u<br />

a Afonso Gonçalves Bal<strong>da</strong>ia seu copeiro, e em sua<br />

companhia foi Gil Eanes em sua barca, os quais<br />

com bom tempo, além do Cabo já <strong>de</strong>scoberto, cor-<br />

reram obra <strong>de</strong> trinta léguas. 2<br />

Tal como a barca, e em comum com os navios <strong>de</strong> pequeno<br />

porte, o barinel podia mover-se a remos em ocasiões<br />

<strong>de</strong> recurso. Arvorava dois mastros, provavelmente com pano<br />

latino, mas <strong>de</strong>le não se conhece muito mais: são escassas<br />

as referências documentais <strong>de</strong> que dispomos relativas a barinéis<br />

navegados por portugueses nas viagens <strong>de</strong> exploração<br />

e reconhecimento e dizem apenas respeito ao século<br />

XV. Esta carência <strong>de</strong> informações <strong>de</strong>ve-se porventura ao facto<br />

<strong>de</strong> ter quase <strong>de</strong> imediato cedido o lugar à caravela latina.<br />

2 João <strong>de</strong> Barros, Ásia, Déca<strong>da</strong> I, <strong>Livro</strong> I, cap. V.


Caravelas Latinas e Redon<strong>da</strong>s


A palavra caravela encontra-se <strong>de</strong> 1255 a 1766 em<br />

documentos portugueses, e mais não seria preciso para se<br />

subenten<strong>de</strong>r a gran<strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos arquitectónicos e<br />

funcionais agrupados sob este termo genérico. De facto, a<br />

caravela pescareza do século XIII na<strong>da</strong> tem a ver com a caravela<br />

redon<strong>da</strong> ou <strong>de</strong> arma<strong>da</strong>, do século XVI, e isto apenas<br />

para citar dois casos em que a própria <strong>de</strong>signação <strong>de</strong>ixa à<br />

parti<strong>da</strong> clara a distinção entre os tipos.<br />

A caravela latina <strong>de</strong> um mastro era um tipo <strong>de</strong> navio<br />

comum (dizem-lhe seguramente respeito as primeiras referências<br />

documentais), mormente na navegação fluvial e<br />

costeira, mas houve que a aperfeiçoar e habilitar a cumprir<br />

os requisitos exigidos pela extensão e obstáculos inerentes<br />

à progressiva extensão <strong>da</strong> viagem. É assim que surge a caravela<br />

latina <strong>de</strong> dois mastros, a caravela dos <strong>de</strong>scobrimentos<br />

ou caravela <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir, como é por vezes conheci<strong>da</strong><br />

e cita<strong>da</strong> nas fontes.<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que este navio foi especialmente preparado<br />

para o fim em vista – ou até inventado <strong>de</strong> raíz, como já se<br />

afirmou –, tem levado a exageros que amiú<strong>de</strong> passam por<br />

cima do suporte documental <strong>de</strong> que dispomos. Em função<br />

<strong>da</strong> situação particular <strong>da</strong> arquitectura naval portuguesa,<br />

que integrou experiências diversas (a costa portuguesa foi<br />

ponto <strong>de</strong> passagem e paragem obrigatório no tráfego marítimo<br />

que a partir do século XIII ligou o Sul ao Norte <strong>da</strong> Europa,<br />

o que <strong>de</strong>u azo à absorção <strong>de</strong> técnicas diferencia<strong>da</strong>s<br />

provenientes <strong>de</strong> duas tradições distintas <strong>de</strong> arquitectura<br />

naval), ter-se-á <strong>de</strong> reconhecer que o êxito <strong>da</strong> caravela latina<br />

<strong>de</strong> dois mastros radicou por igual na optimização <strong>de</strong> soluções<br />

técnicas que lhe são anteriores. O problema é apurar<br />

a justa medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> incorporação <strong>da</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

E isto porque novos circunstancialismos, como os então<br />

presentes, resultam com frequência em modificações mais ou<br />

23


3 Caravela latina <strong>de</strong> dois mastros, pinta<strong>da</strong> c. 1520, é provavelmente a melhor reprodução<br />

<strong>de</strong> um navio <strong>de</strong>ste tipo que chegou até nós (Retábulo <strong>de</strong> Santa Auta, Museu Nacional<br />

<strong>de</strong> Arte Antiga).<br />

24


menos profun<strong>da</strong>s que po<strong>de</strong>m inclusivé <strong>da</strong>r origem a alterações<br />

importantes no traçado do navio e, <strong>de</strong>correntemente,<br />

nas suas características e aptidões; a experiência adquiri<strong>da</strong><br />

pelos mareantes portugueses, com a verificação local<br />

dos condicionalismos <strong>da</strong> navegação, foi sem dúvi<strong>da</strong> um<br />

factor <strong>de</strong> peso que não <strong>de</strong>ve ser subestimado. Veremos<br />

adiante que foi sensivelmente idêntica a situação que, entre<br />

outras, levou ao intervalo <strong>de</strong> tempo que me<strong>de</strong>ia entre a<br />

chega<strong>da</strong> a Lisboa <strong>de</strong> Bartolomeu Dias (1488) e a saí<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Vasco <strong>da</strong> Gama (1497).<br />

Muito controversa é porém a <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong> influência<br />

<strong>de</strong>ssa prática adquiri<strong>da</strong> no processo que teria levado<br />

a um novo traçado <strong>da</strong> caravela latina, e penso não haver<br />

fun<strong>da</strong>mento para crer que no século XV a construção naval<br />

portuguesa obe<strong>de</strong>cesse estritamente aos ditames <strong>de</strong><br />

qualquer organização que nela superinten<strong>de</strong>sse, como<br />

um grupo <strong>de</strong> peritos ou enti<strong>da</strong><strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadora encarregue<br />

<strong>de</strong> compilar e planear os conhecimentos técnicos <strong>da</strong><br />

época, e bem assim a sua execução, como houve já quem<br />

preten<strong>de</strong>sse que tivesse acontecido. Há referência a uma<br />

Junta Técnica no século XVII – no período filipino e no quadro<br />

<strong>de</strong> uma regulamentação dos organismos <strong>de</strong> marinha<br />

ligados ao aparelho <strong>de</strong> Estado que não tem paralelo na<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa antes <strong>de</strong> 1580, o que é bom frisar –,<br />

e a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse ter-se mantido secretamente em<br />

funcionamento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> um período muito anterior sem que<br />

chegasse até nós o mínimo indício <strong>da</strong> sua existência, afigura-se-me<br />

francamente improvável. Esta i<strong>de</strong>ia foi avança<strong>da</strong><br />

por João <strong>da</strong> Gama Pimentel Barata, como parte <strong>de</strong><br />

uma concepção global <strong>da</strong> empresa dos <strong>de</strong>scobrimentos<br />

em que esta aparece como produto <strong>de</strong> uma direcção antecipa<strong>da</strong>mente<br />

planea<strong>da</strong>, cientificamente planea<strong>da</strong>, mesmo,<br />

e <strong>de</strong> uma execução abrangi<strong>da</strong> pelo mais rigoroso segredo<br />

25


<strong>de</strong> Estado, o que por sua vez radica na tese do sigilo <strong>de</strong><br />

Jaime Cortesão.<br />

A formulação <strong>da</strong> política <strong>de</strong> sigilo, tal qual ela aparece<br />

na obra <strong>de</strong> Cortesão, não é hoje em dia aceitável:<br />

questiona<strong>da</strong> por Duarte Leite (apesar dos reparos que a<br />

sua crítica merece), veio <strong>de</strong>pois Damião Peres a terreiro<br />

esclarecer <strong>de</strong>finitivamente a questão. E não se me afigura<br />

igualmente verosímil a i<strong>de</strong>ia do planeamento técnico rigoroso<br />

do traçado dos navios portugueses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo do<br />

Infante D. Henrique. Na<strong>da</strong> ficou escrito, que nos tenha chegado,<br />

quanto ao traçado <strong>da</strong> caravela latina quatrocentista.<br />

Ao invés <strong>de</strong> tomarmos o facto como consequência do sigilo,<br />

notemos antes o que se passou na náutica ou na cartografia:<br />

as medi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sigilo que, aí sim, po<strong>de</strong>m ser documenta<strong>da</strong>s<br />

(mas apenas pontualmente), <strong>de</strong> maneira nenhuma impediram<br />

a circulação do saber português pela Europa: os técnicos<br />

viajavam e trabalhavam ao serviço <strong>de</strong> outros países; os<br />

estrangeiros nunca se viram coibidos <strong>de</strong> obter em Portugal<br />

as informações que buscavam; e se não o faziam às claras<br />

encontravam meios subreptícios <strong>de</strong> chegar on<strong>de</strong> queriam. A<br />

compra do planisfério anónimo português <strong>de</strong> 1502, por um<br />

espião italiano ao serviço do duque <strong>de</strong> Ferrara (por isso também<br />

conhecido por planisfério <strong>de</strong> Cantino, segundo o nome<br />

do agente italiano, Alberto Cantino), é disso mesmo um bom<br />

exemplo: mesmo uma carta geográfica cuja existência estava<br />

ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> do maior secretismo acabou por ser copia<strong>da</strong> e<br />

envia<strong>da</strong> para o estrangeiro.<br />

Há argumentos <strong>de</strong> peso contrários à pretensão <strong>de</strong> um<br />

sigilo <strong>da</strong> caravela portuguesa:<br />

a) não se conhece o traçado <strong>da</strong> caravela latina quatrocentista,<br />

logo, não há por on<strong>de</strong> afirmar que tenha sido alterado<br />

e muito menos por quem;<br />

b) nos tratados <strong>de</strong> arquitectura naval, que já são bem<br />

26


mais tardios, abun<strong>da</strong>m as remissões para que vários <strong>de</strong>talhes<br />

<strong>da</strong> construção - mormente no caso do remate <strong>da</strong>s superestruturas<br />

- sejam <strong>de</strong>ixados ao critério casuístico dos<br />

mestres;<br />

c) e, <strong>final</strong>mente, po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r – e está documentado<br />

– que se alimente o sigilo em relação a uma carta<br />

geográfica ou a um regimento náutico; mas como fazê-lo em<br />

relação a uma embarcação, cuja existência se torna patente<br />

a todos a partir do momento em que é lança<strong>da</strong> à água?<br />

Preten<strong>de</strong>r manter secreta uma carta geográfica era<br />

possível, o que que não dizer que tivesse sido empresa<br />

sempre bem sucedi<strong>da</strong>. Preten<strong>de</strong>r que um navio que an<strong>da</strong><br />

no mar, que po<strong>de</strong> ser apresado, <strong>da</strong>r à costa ou sofrer qualquer<br />

aci<strong>de</strong>nte que o <strong>de</strong>ixe à mercê <strong>de</strong> outrém, que é no<br />

mínimo visto por marinheiros experientes <strong>de</strong> outras nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

torna-se uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Os documentos comprovam o que a evidência contesta:<br />

sabemos hoje que carpinteiros navais portugueses<br />

estiveram na Flandres a construir caravelas – oficialmente –,<br />

ain<strong>da</strong> no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> primeira meta<strong>de</strong> do século XV.<br />

Foi o Car<strong>de</strong>al Saraiva (<strong>Francisco</strong> Justiniano Saraiva, 1766-1845)<br />

o primeiro a aventar a hipótese <strong>de</strong> ter havido algum encobrimento nas<br />

navegações portuguesas, ao <strong>de</strong>tectar uma visível diferença entre o<br />

número <strong>de</strong> documentos que <strong>de</strong>veriam ter sido produzidos no tempo<br />

dos <strong>de</strong>scobrimentos, e aqueles que eram efectivamente conhecidos<br />

no seu tempo, atribuindo o facto ao “pru<strong>de</strong>nte e cauteloso segredo, em<br />

que os nossos Principes, ao principio, reservavam aquelas memórias<br />

e relações”3.<br />

Alguns historiadores aventaram <strong>de</strong>pois a hipótese <strong>de</strong> ter havido um<br />

segredo <strong>de</strong> Estado (ou uma política <strong>de</strong> sigilo) que sistematicamente ocul-<br />

tou os resultados <strong>da</strong>s navegações portuguesas: cônscios <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>-<br />

<strong>de</strong> dos meios técnicos que tinham ao seu dispor, os monarcas tê-los-iam<br />

3 Car<strong>de</strong>al Saraiva, Obras Completas, tomo V, Lisboa, 1875, p. 48.<br />

27


4 Caravela latina portuguesa do século XV, segundo <strong>de</strong>senho do cartógrafo e marinheiro<br />

espanhol Juan <strong>de</strong> la Cosa, c. 1500: é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s representações mais<br />

fi<strong>de</strong>dignas <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> embarcação.<br />

28


esguar<strong>da</strong>do dos concorrentes estrangeiros para salvaguar<strong>da</strong>r a priori-<br />

<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s navegações portuguesas.<br />

É indubitável que em alguns momentos se fez reserva <strong>de</strong><br />

informação importante, como é aliás normal em to<strong>da</strong>s as circuns-<br />

tâncias. Mas creio que não há razão que possa sustentar que logo<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo do Infante D. Henrique se tivesse assim procedido por<br />

sistema. A falta <strong>de</strong> informação <strong>de</strong>ve-se por vezes ao facto <strong>de</strong> ela não<br />

ter simplesmente sido produzi<strong>da</strong>, ao seu <strong>de</strong>saparecimento por causas<br />

naturais – por exemplo, os registos oficiais <strong>da</strong> navegação para a Índia<br />

per<strong>de</strong>ram-se com o terramoto que em 1755 <strong>de</strong>struíu a baixa <strong>de</strong> Lisboa,<br />

mas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o Car<strong>de</strong>al Saraiva escreveu e até aos nossos dias, a<br />

pesquisa nos arquivos tem permitido revelar muitos documentos que<br />

se julgavam perdidos, inclusivamente em consequência <strong>de</strong>sta suposta<br />

política <strong>de</strong> sigilo. O caso que se citou acima é exemplar: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> du-<br />

rante muito tempo vários autores terem afirmado que a caravela era um<br />

navio secreto – insisto: e como podia ser secreto um navio que navegava<br />

à vista <strong>de</strong> todos? –, <strong>de</strong>scobriu-se há pouco que carpinteiros portugueses<br />

construíram caravelas na Flandres, ain<strong>da</strong> antes <strong>de</strong>stas embarcações te-<br />

rem surgido nas explorações marítimas promovi<strong>da</strong>s pelo Infante.<br />

Quer isto dizer que a caravela que nos documentos<br />

aparece como caravela <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir era um tipo <strong>de</strong> navio<br />

comum? Não necessariamente. É sabido que as embarcações<br />

eram especialmente prepara<strong>da</strong>s para a dureza <strong>da</strong>s viagens<br />

a efectuar em mares que não se conheciam, mas julgo<br />

que, a partir <strong>da</strong>s escassas referências documentais conheci<strong>da</strong>s<br />

que dão algumas pistas nesse sentido, essa preparação<br />

residiria sobretudo no reforço do equipamento sobresselente<br />

e <strong>da</strong>s estruturas do casco. E assim, caravela <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />

po<strong>de</strong> significar exactamente o quê? É frequente que a <strong>de</strong>nominação<br />

<strong>da</strong>s embarcações i<strong>de</strong>ntifique a sua funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

como se viu atrás a propósito <strong>da</strong> barca. Penso que a expressão<br />

em causa, e outras similares, se reporta a caravelas<br />

empregues nas viagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento, e tão só isso, remetendo<br />

para algumas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s particulares mas não<br />

29


para um tipo <strong>de</strong> navio estruturalmente diferente <strong>de</strong> todos os<br />

outros.<br />

Na<strong>da</strong> sabendo <strong>de</strong> concreto, portanto, quanto ao traçado<br />

<strong>da</strong> caravela latina do século XV, só numa miscelânea<br />

documental compila<strong>da</strong> pós 1630 encontramos o regimento<br />

para uma caravela <strong>de</strong> 25 tonéis <strong>de</strong> arqueação. Esta situação<br />

<strong>de</strong>ixa-nos uma larga margem <strong>de</strong> imprecisão na tentativa<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar rigorosamente as suas características principais,<br />

como acontece em relação a todos os navios nestas<br />

condições: é que <strong>de</strong>corre cerca <strong>de</strong> um século e meio entre<br />

1421, a <strong>da</strong>ta em que se viu terem início as expedições envia<strong>da</strong>s<br />

pelo Infante na tentativa <strong>de</strong> dobrar o cabo Bojador,<br />

e 1570, altura por volta <strong>da</strong> qual o padre Fernando Oliveira<br />

escreveu em latim um tratado sobre arte <strong>de</strong> navegar que<br />

continha uma parte sobre a construção dos navios. Ou, dito<br />

<strong>de</strong> outra forma, os navios portugueses foram do Bojador até<br />

ao Japão antes <strong>de</strong> ter sido escrito fosse o que fosse sobre<br />

as suas características por oficiais do ofício ou outros sabedores<br />

<strong>da</strong> arte: restam pinturas, <strong>de</strong>senhos, observações<br />

escritas <strong>de</strong> vária or<strong>de</strong>m, mas não documentos técnicos. O<br />

facto prejudica naturalmente a nossa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> termos<br />

hoje uma visão muito rigorosa sobre o que seriam os navios<br />

<strong>da</strong> época.<br />

Tanto quanto po<strong>de</strong>mos saber através <strong>da</strong>s fontes <strong>de</strong> informação<br />

disponíveis, a caravela latina <strong>de</strong> dois mastros era<br />

um navio robusto, bom veleiro, podia ser movi<strong>da</strong> a remos se<br />

necessário, e tinha um calado relativamente pequeno em<br />

função do seu porte, permitindo-lhe vantagens evi<strong>de</strong>ntes na<br />

navegação <strong>de</strong> alto mar, costeira ou fluvial, em relação às<br />

embarcações suas prece<strong>de</strong>ntes nas viagens portuguesas<br />

<strong>de</strong> longo curso.<br />

Como características morfológicas principais po<strong>de</strong>mos<br />

apontar a existência <strong>de</strong> uma coberta – pavimento<br />

30


5 Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> uma caravela latina <strong>de</strong> três mastros, embarcação que <strong>de</strong>verá ter surgido<br />

pelos finais do século XVI (Alfân<strong>de</strong>ga Régia – Museu <strong>da</strong> Construção Naval em Ma<strong>de</strong>ira<br />

– Vila do Con<strong>de</strong>).<br />

31


6 Caravelas redon<strong>da</strong>s ou <strong>de</strong> arma<strong>da</strong> do terceiro quartel do século XVI (<strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Lisuarte<br />

<strong>de</strong> Abreu).<br />

32


corrido <strong>da</strong> proa à popa –, e um pequeno castelo <strong>de</strong> popa,<br />

com um pavimento. Regra geral, a arqueação <strong>de</strong>via an<strong>da</strong>r<br />

pelos 40 a 60 tonéis. Graças ao seu velame navegava à<br />

bolina com facili<strong>da</strong><strong>de</strong> (comparando-a uma vez mais com<br />

as embarcações que a prece<strong>de</strong>ram), o que tudo junto a<br />

tornava uma embarcação i<strong>de</strong>al para singrar em mares<br />

com regimes <strong>de</strong> ventos e correntes <strong>de</strong>sconhecidos. Era<br />

artilha<strong>da</strong> com bocas <strong>de</strong> fogo <strong>de</strong> pequeno calibre, falcões<br />

e berços. Uma particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> notável consistiria no facto<br />

<strong>da</strong> superfície vélica an<strong>da</strong>r pelo dobro do que era então<br />

usual nos navios similares do Mediterrâneo, e, provavelmente,<br />

era isto o que mais distinguia a caravela portuguesa.<br />

O reconhecimento <strong>de</strong>ste conjunto <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os<br />

resultados efectivos <strong>da</strong> sua utilização na exploração do<br />

Atlântico Sul não torna pois surpreen<strong>de</strong>nte a abundância<br />

<strong>de</strong> representações iconográficas que nos chegaram, embora,<br />

como já ficou dito, <strong>de</strong>va estar presente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

em geral não são muito fiáveis para a análise <strong>de</strong>stas ou <strong>de</strong><br />

outras particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s técnicas.<br />

Por vezes era impossível ao piloto conduzir o navio direitamen-<br />

te <strong>de</strong> um ponto para outro, sobretudo se o vento não era favorável à<br />

progressão <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>. Praticava-se então a “navegação à bolina”: o<br />

navio fazia ziguezagues sucessivos do ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> até ao pon-<br />

to <strong>de</strong> chega<strong>da</strong>, permitindo-lhe contornar a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer<br />

a rota pretendi<strong>da</strong>, mas esta era uma manobra <strong>de</strong> recurso que exigia<br />

esforço e tempo que i<strong>de</strong>almente se <strong>de</strong>veriam poupar. To<strong>da</strong>via era a<br />

solução possível quando os marinheiros se internavam em mares nos<br />

quais <strong>de</strong>sconheciam os ventos dominantes. Bartolomeu Dias utilizou<br />

frequentemente a navegação à bolina para progredir ao longo <strong>da</strong> costa<br />

africana antes <strong>de</strong> atingir o cabo <strong>da</strong> Boa Esperança, porquanto tinha<br />

ventos contrários ao sentido em que pretendia prosseguir. Já Vasco<br />

<strong>da</strong> Gama fez <strong>de</strong>pois uma volta pelo largo, percorrendo uma distância<br />

maior mas com mais facili<strong>da</strong><strong>de</strong> por ter ventos favoráveis. Daí a impor-<br />

tância <strong>da</strong> caravela latina nas viagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento.<br />

33


Sem apresentar gran<strong>de</strong>s diferenças, surge mais tar<strong>de</strong><br />

uma caravela latina <strong>de</strong> três mastros, <strong>de</strong>sta feita com um porte<br />

<strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 60 a 80 tonéis. Data-se aproxima<strong>da</strong>mente do<br />

último quartel <strong>de</strong> Quatrocentos.<br />

Por seu turno, a caravela redon<strong>da</strong> ou <strong>de</strong> arma<strong>da</strong> arvorava<br />

quatro mastros com pano redondo no traquete (o mais<br />

chegado à proa), e latino nos restantes; insere-se numa outra<br />

tipologia, inicia<strong>da</strong> em finais do século XV ou inícios do<br />

XVI. Os tratados dão-nos <strong>de</strong>la uma noção mais precisa, e no<br />

<strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças <strong>de</strong> Carpintaria <strong>de</strong> Manuel Fernan<strong>de</strong>s (1616)<br />

<strong>de</strong>paramos com os primeiros <strong>de</strong>senhos técnicos conhecidos<br />

<strong>da</strong> caravela – <strong>da</strong> caravela <strong>de</strong> arma<strong>da</strong>, a qual na<strong>da</strong> tem a ver<br />

com a caravela latina dita dos <strong>de</strong>scobrimentos. Tinha onze<br />

ou doze rumos <strong>de</strong> quilha, segundo os regimentos do <strong>Livro</strong><br />

Náutico (uma miscelânea <strong>de</strong> documentos do <strong>final</strong> do século<br />

XVI, que inclui alguns textos técnicos) e do <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Manuel<br />

Fernan<strong>de</strong>s, cerca <strong>de</strong> 150 a 180 tonéis, e artilhava-se com<br />

cerca <strong>de</strong> duas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> artilharia, predominando<br />

falcões e berços.<br />

A palavra rumo usava-se em duas acepções: o rumo<br />

que o navio segue, e a medi<strong>da</strong> linear usa<strong>da</strong> na construção<br />

naval, equivalente a c. <strong>de</strong> 1,5m. A quilha dos navios maiores<br />

(naus e galeões) media-se em rumos, mas também se usava<br />

dizer navio <strong>de</strong> 18 rumos <strong>da</strong> mesma forma que se dizia navio<br />

<strong>de</strong> 500 tonéis. A caravela redon<strong>da</strong> tinha portanto um máximo<br />

<strong>de</strong> 18m <strong>de</strong> quilha.<br />

Aplica-se-lhe a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> caravela <strong>de</strong> arma<strong>da</strong><br />

porque era geralmente incorpora<strong>da</strong> nas frotas como navio<br />

<strong>de</strong> apoio. Nos elencos <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s que foram envia<strong>da</strong>s<br />

para a Índia a partir do século XVI há muitas referências a<br />

caravelas, mas, <strong>da</strong><strong>da</strong> a insuficiência <strong>da</strong> caravela latina para<br />

uma viagem tão longa (o que não quer dizer que esporadicamente<br />

não a pu<strong>de</strong>sse fazer), a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> com que<br />

34


aparecem estas menções só po<strong>de</strong> significar que se tratavam<br />

<strong>de</strong> caravelas redon<strong>da</strong>s.<br />

É este facto que nos sugere que estamos perante um<br />

navio <strong>de</strong> guerra.<br />

Se compararmos a caravela redon<strong>da</strong> com os gran<strong>de</strong>s<br />

navios que faziam regularmente a Rota do Cabo, constatamos<br />

uma diferença fun<strong>da</strong>mental: a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> carga.<br />

Estes últimos tinham normalmente 500 ou 600 tonéis, e por<br />

vezes mais, no século XVI, enquanto a caravela redon<strong>da</strong> tinha<br />

um quarto <strong>de</strong>sta arqueação, como vimos. Pelo facto <strong>de</strong><br />

ser um navio <strong>de</strong>ste tipo as suas linhas eram mais afila<strong>da</strong>s,<br />

e as superestruturas, os castelos <strong>de</strong> popa e proa, que se<br />

erguiam acima do convés, eram evi<strong>de</strong>ntemente mais baixos<br />

que os dos gran<strong>de</strong> navios. Requeria uma tripulação mais reduzi<strong>da</strong>,<br />

como é óbvio, mas no cômputo geral o resultado é<br />

in<strong>de</strong>smentível: melhores quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s para navegar mas muito<br />

menos espaço disponível para transportar carga. Dito <strong>de</strong><br />

outra forma, ca<strong>da</strong> quilo <strong>de</strong> especiaria que viesse do Oriente<br />

numa caravela redon<strong>da</strong> seria mais caro que o que viesse<br />

numa nau ou galeão, <strong>de</strong>vido ao custo <strong>de</strong> transporte. Não<br />

obstante vêm-se caravelas redon<strong>da</strong>s nas arma<strong>da</strong>s do Oriente;<br />

e, por vezes, são envia<strong>da</strong>s esquadras compostas exclusivamente<br />

por navios <strong>de</strong>ste tipo. A conclusão que se impõe<br />

é uma apenas: sendo contraproducente empregá-las para<br />

o comércio, por um lado, e tendo em vistas as suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

como veleiro (navio rápido e <strong>de</strong> manobra fácil, em<br />

termos comparativos), torna-se evi<strong>de</strong>nte que estas caravelas<br />

redon<strong>da</strong>s eram envia<strong>da</strong>s para cumprir missões militares,<br />

começando pela protecção dos navios <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte que<br />

voltavam ajoujados <strong>de</strong> mercadorias.<br />

Quando o corso começou a ameaçar os gran<strong>de</strong>s navios<br />

<strong>de</strong> carga que vinham do Oriente, procurou atacá-los<br />

junto às ilhas dos Açores, on<strong>de</strong> faziam a última paragem an-<br />

35


tes <strong>de</strong> rumarem a Lisboa, ou no trajecto entre o arquipélago<br />

e o continente. Fragilizados por uma viagem longa, estavam<br />

mais expostos numa rota que também era mais acessível<br />

para os corsários europeus, que assim evitavam internaremse<br />

no mar alto. Tornou-se portanto necessário organizar esquadras<br />

que esperavam os navios nos Açores para <strong>de</strong>pois<br />

os acompanhar até à costa portuguesa. E essas esquadras<br />

eram compostas maioritariamente por caravelas redon<strong>da</strong>s,<br />

mais rápi<strong>da</strong>s e militarmente mais capazes que os gran<strong>de</strong>s<br />

navios, po<strong>de</strong>ndo assim enfrentar os adversários melhor que<br />

estes.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a caravela redon<strong>da</strong>, também dita <strong>de</strong> arma<strong>da</strong>,<br />

é o primeiro navio <strong>de</strong> vela preparado para a guerra no<br />

alto mar por qualquer nação europeia.<br />

36


Naus e Naus <strong>da</strong> Índia


Dobrado o cabo <strong>da</strong> Boa Esperança e cumprido o reconhecimento<br />

do Atlântico no que interessava para a navegação<br />

em direcção ao Oriente, impôs-se a utilização <strong>de</strong><br />

navios capazes <strong>de</strong> suportar a dureza <strong>de</strong> uma viagem longa<br />

<strong>de</strong> meses, entre Lisboa e o Oriente. Os mareantes tiveram<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo consciência disso mesmo, conforme nos mostra<br />

Gaspar Correia, nas Len<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Índia: a arma<strong>da</strong> <strong>de</strong> Bartolomeu<br />

Dias era composta por caravelas latinas (além <strong>de</strong> uma<br />

embarcação auxiliar), mas iam naus na <strong>de</strong> Vasco <strong>da</strong> Gama,<br />

quase <strong>de</strong>z anos mais tar<strong>de</strong>.<br />

O trecho do cronista é longo mas vale a pena segui-lo,<br />

porquanto evi<strong>de</strong>ncia muito bem o que foram as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

senti<strong>da</strong>s e como <strong>de</strong> imediato se enten<strong>de</strong>u ser necessário<br />

empregar um outro tipo <strong>de</strong> navio, que não a pequena caravela<br />

latina, para fazer a Carreira <strong>da</strong> Índia, como se <strong>de</strong>signou<br />

<strong>de</strong>pois a viagem que se fazia anualmente. Note-se porém<br />

que o nome <strong>de</strong> Bartolomeu Dias não ocorre, surgindo João<br />

Infante, que capitaneava a segun<strong>da</strong> caravela <strong>da</strong> pequena<br />

frota que dobrou o cabo <strong>de</strong>pois chamado <strong>da</strong> Boa Esperança,<br />

como interlocutor <strong>de</strong> D. João II:<br />

El Rei Dom João, com seu gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo,<br />

falou com um João Infante homem estrangeiro tratante,<br />

que muitas vezes vinha a Lisboa, que muito<br />

sabia <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> navegar, e fez com ele concerto<br />

que lhe <strong>da</strong>ria navios e gente, e todo o necessario<br />

sem ele gastar mais que o trabalho, e que lhe fosse<br />

correr a costa <strong>de</strong> Benim, e corresse por ella quanto<br />

mais po<strong>de</strong>sse (...). E <strong>de</strong> todo bem concertado se<br />

partiu (...); e tanto andou até que a costa foi voltando<br />

pera o mar, achando os ventos contrarios, e<br />

porfiando em voltas, ora para terra, ora para o mar,<br />

com gran<strong>de</strong>s temporais, e tão gran<strong>de</strong>s mares<br />

que lhe comiam os nauios; e quando viu que os<br />

39


7 Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> nau dos inícios do século XVI (Alfân<strong>de</strong>ga Régia – Museu <strong>da</strong> Construção<br />

Naval em Ma<strong>de</strong>ira – Vila do Con<strong>de</strong>)<br />

40


ventos eram geraes, sem nunca fazerem mu<strong>da</strong>nça,<br />

havendo quatro meses que ali an<strong>da</strong>vam voltando<br />

ao mar, e a terra, e que indo pera o mar achava<br />

os mares tão gran<strong>de</strong>s que os não podia nauegar<br />

com as carauelas, (...) arribou, e se tornou a El Rei,<br />

e lhe <strong>de</strong>u conta <strong>da</strong> sua viagem e dizendo que se<br />

levara navios altos com que fora mais ao mar, que<br />

fora muito avante, porque quando tornava a ver a<br />

terra achava terras que não tinha visto; mas que<br />

com navios gran<strong>de</strong>s que sofressem o mar, que assim<br />

em voltas corresse a costa, até lhe <strong>de</strong>scobrir o<br />

cabo, sem dúvi<strong>da</strong> tinha certa esperança, que além<br />

<strong>de</strong>le, acharia gran<strong>de</strong>s terra. (...) Pelo que logo El<br />

Rei mandou cortar ma<strong>de</strong>ira em charnecas e matos,<br />

que os carpinteiros e mestres man<strong>da</strong>vam cortar,<br />

que se trouxe a Lisboa, on<strong>de</strong> logo se começaram<br />

tres navios pequenos, <strong>da</strong> grandura que João Infan-<br />

te mandou...” 4<br />

Este lapso <strong>de</strong> tempo entre 1488 e 1497 tem sido motivo<br />

<strong>de</strong> longa discórdia entre os autores que se <strong>de</strong>bruçaram<br />

sobre a questão, e suscitou a atenção particular dos <strong>de</strong>fensores<br />

<strong>da</strong> política <strong>de</strong> sigilo: segundo estes, na<strong>da</strong> justificaria<br />

uma paragem tão longa nos preparativos e na execução <strong>da</strong><br />

viagem que havia <strong>de</strong> ligar pela primeira vez Lisboa à Índia,<br />

se não se consi<strong>de</strong>rar que o tempo foi aproveitado para complementar<br />

a recolha <strong>de</strong> informações através do recurso a viagens<br />

secretas posteriores à <strong>de</strong> 1487-8. Armando Cortesão,<br />

que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u <strong>de</strong>no<strong>da</strong>mente esta tese, chegou a <strong>de</strong>dicar-lhe<br />

um livro a que apôs o sugestivo título <strong>de</strong> O Mistério <strong>de</strong> Vasco<br />

<strong>da</strong> Gama 5.<br />

4 Gaspar Correia, Len<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Índia, cap. II.<br />

5 Lisboa, Junta <strong>de</strong> Investigações do Ultramar, 1973.<br />

41


Armando Cortesão, e muitos outros autores que foram<br />

na sua esteira, partiram <strong>de</strong> um raciocíno simples: não é<br />

possível aceitar que para coman<strong>da</strong>r uma viagem <strong>de</strong> tal importância<br />

tivesse sido escolhido um homem sem qualquer<br />

preparação náutica. Mas se não há qualquer suporte documental<br />

que prove a suficiência <strong>de</strong> Vasco <strong>da</strong> Gama nestes<br />

domínios, então ela só po<strong>de</strong> ter sido adquiri<strong>da</strong> em viagens<br />

secretas, as viagens que teriam sido organiza<strong>da</strong>s durante<br />

este lapso <strong>de</strong> tempo para preparar a expedição <strong>de</strong> 1497-<br />

1499.<br />

42<br />

Este raciocínio envolve um mundo <strong>de</strong> questões, mas é impor-<br />

tante <strong>de</strong>ixar claro que parte <strong>de</strong> uma premissa erra<strong>da</strong>: os capitães dos<br />

navios que iam para a Índia não sabiam <strong>de</strong> navegação, a começar por<br />

Vasco <strong>da</strong> Gama (há naturalmente excepções, mas são raríssimas). O<br />

capitão era um representante do armador, normalmente o rei, um ho-<br />

mem <strong>de</strong> confiança para chefiar uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> missão. A condução<br />

do navio pertencia ao piloto, um profissional experiente no ofício, a<br />

quem competia a parte náutica propriamente dita. O caso <strong>da</strong> arma<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> Vasco <strong>da</strong> Gama ilustra bem esta distinção: o coman<strong>da</strong>nte foi no-<br />

meado pelas suas características pessoas e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> chefia<br />

para uma missão com cariz comercial, político, diplomático e militar; os<br />

pilotos dos navios <strong>da</strong> arma<strong>da</strong> foram cui<strong>da</strong>dosamente escolhidos entre<br />

os mais competentes <strong>de</strong> que o reino dispunha na altura.<br />

Efectivamente, se se viu confirma<strong>da</strong> a suspeita (ou reconfirma<strong>da</strong><br />

a certeza) <strong>de</strong> que havia ligação marítima entre<br />

os oceanos Atlântico e Índico; se, <strong>de</strong>correntemente, se pô<strong>de</strong><br />

acreditar que a rota mais curta para ligar Lisboa ao Oriente<br />

era a segui<strong>da</strong> até então pelos navegadores portugueses;<br />

porquê esperar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1488, <strong>da</strong>ta do regresso <strong>de</strong> Bartolomeu<br />

Dias, até 1497, ano que em partiu a arma<strong>da</strong> capitanea<strong>da</strong> por<br />

Vasco <strong>da</strong> Gama? Porque não se enviou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo a arma<strong>da</strong><br />

que, como diríamos hoje, havia <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o caminho<br />

marítimo para a Índia, quando o essencial já estava feito?


O problema é intrincado e há muito a dizer sobre ele,<br />

mas não é este o local a<strong>de</strong>quado para o fazer sob pena <strong>de</strong><br />

nos <strong>de</strong>sviarmos dos nossos objectivos. Digamos apenas<br />

que comprovar a exequibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma rota não bastava;<br />

era necessário assegurar simultaneamente um conjunto <strong>de</strong><br />

factores que na altura não estavam garantidos. Acrescentese<br />

ain<strong>da</strong> que o espantoso seria ter visto partir <strong>de</strong> imediato a<br />

arma<strong>da</strong> <strong>de</strong> Gama; não há <strong>de</strong> facto necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> construir<br />

hipóteses mais ou menos fantasiosas para justificar o que se<br />

explica por razões e circunstâncias normais.<br />

De facto não existe tal mistério, até porque o hiato em<br />

apreço é só entre Dezembro <strong>de</strong> 1488 (<strong>da</strong>ta que se presume<br />

ser a do retorno <strong>de</strong> Dias) e Março <strong>de</strong> 1493, com a arriba<strong>da</strong> a<br />

Lisboa <strong>de</strong> Cristóvão Colombo, que veio baralhar totalmente<br />

os <strong>da</strong>dos do problema. Por outro lado sabemos que o cui<strong>da</strong>do<br />

<strong>de</strong> D. João II não se limitara a enviar Bartolomeu Dias<br />

à exploração marítima, pois ao mesmo tempo fizera seguir<br />

por terra dois emissários a saber informações do Oriente (ir<br />

por mar on<strong>de</strong> e a quê, seriam as perguntas a respon<strong>de</strong>r).<br />

Um <strong>de</strong>les, Pêro <strong>da</strong> Covilhã, que viajou extensamente pelas<br />

margens do Oceano Índico, sobreviveu à missão; e se alguma<br />

vez os resultados do seu longo peregrinar chegaram ao<br />

conhecimento do monarca português, isso não aconteceu<br />

antes dos finais <strong>de</strong> 1492 ou inícios <strong>de</strong> 1493; por isso, a <strong>de</strong>scoberta<br />

do caminho marítimo para o Oriente, efectiva<strong>da</strong> por<br />

Bartolomeu Dias, estava longe <strong>de</strong> se ter concluído com ele.<br />

No meio tempo outros problemas colheram a atenção<br />

do Príncipe Perfeito. Um <strong>de</strong>les, que não era <strong>de</strong> somenos importância,<br />

teve precisamente a ver com a ina<strong>de</strong>quação dos<br />

navios usados até esse momento para a viagem que se divisava.<br />

As caravelas <strong>de</strong> Diogo Cão e Bartolomeu Dias tinham-se<br />

revelado navios apropriados para as explorações oceânicas,<br />

43


8 Corte longitudinal em mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> caravela <strong>de</strong> três mastros (Alfân<strong>de</strong>ga Régia – Museu<br />

<strong>da</strong> Construção Naval em Ma<strong>de</strong>ira – Vila do Con<strong>de</strong>)<br />

44


mas <strong>de</strong>ixaram claro, ao mesmo tempo, as suas limitações:<br />

falta <strong>de</strong> porte para viagens muito longas, falta <strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> carga para assegurar o embarque dos provisionamentos<br />

indispensáveis para tripulações que permaneciam<br />

longos meses a bordo, fazendo-as <strong>de</strong>baterem-se com a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> reabastecimentos frequentes (sobretudo por<br />

causa <strong>da</strong> água potável, que não podia ser embarca<strong>da</strong> em<br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>). É significativo que qualquer <strong>da</strong>queles dois navegadores<br />

tenha tido problemas <strong>de</strong> abastecimento, como<br />

reporta João <strong>de</strong> Barros quando <strong>de</strong>screve os navios que saíram<br />

para o Atlântico sob o comando <strong>de</strong> Dias:<br />

dois navios <strong>de</strong> até cinquenta tonéis ca<strong>da</strong> um, e<br />

uma naveta para levar mantimentos sobresselentes<br />

por causa <strong>de</strong> muitas vezes <strong>de</strong>sfalecerem aos<br />

navios <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>scobrimento, com que se tornavam<br />

pera o Reino.6<br />

O testemunho é claro: os mantimentos faltavam nas viagens<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento, e por isso os navios tinham <strong>de</strong> voltar<br />

ao reino. Jorge Semedo <strong>de</strong> Matos encontrou aqui uma explicação<br />

verosímil – a meu ver a mais provável – para justificar o<br />

termo <strong>da</strong>s expedições <strong>de</strong> Diogo Cão na costa oci<strong>de</strong>ntal africana7:<br />

face a uma costa que parecia inóspita por não oferecer<br />

gran<strong>de</strong>s oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> reabastecimento, o navegador optou<br />

pru<strong>de</strong>ntemente por voltar para trás, <strong>de</strong>ixando claro, com<br />

esta atitu<strong>de</strong>, o quão limita<strong>da</strong>s eram as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> armazenamento<br />

<strong>de</strong> víveres <strong>da</strong>s caravelas para as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

dos exploradores quatrocentistas. A solução foi a encontra<strong>da</strong><br />

para a viagem <strong>de</strong> Bartolomeu Dias: um navio <strong>de</strong> apoio para<br />

6 João <strong>de</strong> Barros, Ásia, Déca<strong>da</strong> I, <strong>Livro</strong> III, cap. IV.<br />

7 Jorge Semedo <strong>de</strong> Matos, “A Marinha Joanina (9) A passagem do Cabo <strong>da</strong> Boa<br />

Esperança”, Revista <strong>da</strong> Arma<strong>da</strong>, nº 322, 1999, p. 16.<br />

45


transportar mantimentos extra, o qual foi <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>smantelado.<br />

Mas esta era, obviamente, uma solução <strong>de</strong> recurso.<br />

Urgia resolver o problema que, como vimos, foi perfeitamente<br />

i<strong>de</strong>ntificado por Gaspar Correia.<br />

O trecho que citámos acima <strong>da</strong>s Len<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Índia coloca<br />

uma série <strong>de</strong> questões: quer porque Gaspar Correia<br />

não cita Bartolomeu Dias, como se disse, quer porque a<br />

sua visão dos acontecimentos quanto aos preparativos <strong>da</strong><br />

arma<strong>da</strong> <strong>de</strong> Vasco <strong>da</strong> Gama não é concor<strong>de</strong> com outros<br />

testemunhos. Duarte Pacheco Pereira, um dos gran<strong>de</strong>s<br />

navegadores do seu tempo que serviu como perito na<br />

<strong>de</strong>legação portuguesa que preparou o Tratado <strong>de</strong> Tor<strong>de</strong>silhas,<br />

muito provavelmente acompanhou os preparativos,<br />

e afirmou que foi D. Manuel a organizar a arma<strong>da</strong> <strong>de</strong> Vasco<br />

<strong>da</strong> Gama: quatro navios pequenos, com não mais <strong>de</strong><br />

cem tonéis porque não se requeria que fossem maiores,<br />

havendo particular cui<strong>da</strong>do em levar material <strong>de</strong> sobra<br />

para as contingências - “três esquipações <strong>de</strong> velas ca<strong>da</strong><br />

nau, e assi amarras e outros aparelhos, e cordoalha três e<br />

quatro vezes dobra<strong>da</strong> além do que costumam trazer”; e a<br />

“louça dos tonéis (...) to<strong>da</strong> foi arquea<strong>da</strong> com muitos arcos<br />

<strong>de</strong> ferro, que ca<strong>da</strong> peça levava por segurar o que <strong>de</strong>ntro<br />

tinha”8.<br />

Quer dizer: in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> tudo o resto,<br />

tornou-se patente que as caravelas não serviam já para<br />

enfrentar com sucesso a dureza <strong>da</strong> viagem; que ela impunha<br />

cui<strong>da</strong>dos especiais quanto aos abastecimentos; e foi<br />

necessário preparar uma arma<strong>da</strong> com navios <strong>de</strong> características<br />

diferentes e maior robustez. Não se po<strong>de</strong> pensar<br />

que tudo se faria <strong>de</strong> um instante para o outro. O compasso<br />

8 Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo <strong>de</strong> Situ Orbis, livro IV, cap. II.<br />

46


9 Representações <strong>de</strong> naus do terceiro quartel do século XVI: note-se a gran<strong>de</strong> superfície<br />

vélica <strong>de</strong>stas embarcações, um dos traços distintivos dos navios portugueses (<strong>Livro</strong> <strong>de</strong><br />

Lisuarte <strong>de</strong> Abreu).<br />

47


<strong>de</strong> espera que se seguiu <strong>de</strong>u origem à entra<strong>da</strong> em cena,<br />

nas navegações portuguesas, dos navios oceânicos <strong>de</strong> alto<br />

bordo.<br />

A rota segui<strong>da</strong> por Vasco <strong>da</strong> Gama torna claro que<br />

tinham já sido reconhecidos os regimes <strong>de</strong> ventos e correntes<br />

no Atlântico Sul: ao invés <strong>de</strong> procurar o cabo <strong>da</strong> Boa<br />

Esperança <strong>de</strong>scendo penosamente junto à costa oci<strong>de</strong>ntal<br />

africana, a arma<strong>da</strong>, como fariam <strong>de</strong>pois as <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia,<br />

seguiu até Cabo Ver<strong>de</strong> na rota usual <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Mina<br />

– integrava-a uma embarcação que para lá se dirigia – e<br />

<strong>de</strong>pois do reabastecimento efectuado em Santiago navegou<br />

pelo largo a partir do momento em que atingiu a latitu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

Serra Leoa, <strong>de</strong>screvendo então um largo arco que a aproximou<br />

<strong>da</strong> costa do Brasil para contornar os ventos gerais dominantes<br />

(alíseos do sueste) e as correntes que dificultavam<br />

a progressão costeira.<br />

Nestas condições era possível empreen<strong>de</strong>r a viagem<br />

com navios <strong>de</strong> pano redondo, assim chamado por causa do<br />

efeito visual provocado nas velas pelo vento, que se chegavam<br />

menos que as caravelas à linha do vento. Por outras palavras,<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tinham em navegar “contra<br />

o vento”, como é usual – mas errado – dizer-se, tornavam-se<br />

navios eficazes a partir do momento em que o conhecimento<br />

prévio dos condicionalismos físicos a que estavam sujeitos<br />

lhes permitia navegar com vento pela popa, ou tanto quanto<br />

possível próximo disso. Tanto a nau como o galeão vão<br />

obe<strong>de</strong>cer a estes ditames, juntando-lhes outras vantagens:<br />

tinham maior porte que a caravela, maior resistência à dureza<br />

<strong>da</strong>s viagens <strong>de</strong> longo curso, maior capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> carga,<br />

fun<strong>da</strong>mental para a activi<strong>da</strong><strong>de</strong> comercial e para o carrego<br />

<strong>da</strong>s vitualhas <strong>da</strong> tripulação, e também guerreira – eram susceptíveis<br />

<strong>de</strong> ser artilha<strong>da</strong>s com peças <strong>de</strong> grosso calibre, e<br />

sofriam menos as injúrias do fogo inimigo.<br />

48


10 Nau portuguesa do primeiro quartel do século XVI, representando provavelmente a<br />

“Santa Catarina do Monte Sinai”: o exagerado gigantismo dos castelos <strong>de</strong> popa e proa<br />

é característico <strong>da</strong> época, que ten<strong>de</strong>u a ser corrigido posteriormente. Note-se também<br />

a gran<strong>de</strong> área <strong>de</strong> velame, que se observa na iconografia dos navios portugueses e era<br />

muito provavelmente distintiva em relação aos outros países (Museu <strong>da</strong> Marinha, cópia<br />

do quadro original).<br />

49


As naus <strong>de</strong> Quinhentos típicas tinham três ou quatro<br />

cobertas, castelos <strong>de</strong> popa e proa cuja arquitectura estava<br />

perfeitamente integra<strong>da</strong> na estrutura do casco, e três mastros<br />

com pano redondo nos <strong>de</strong> vante (traquete e gran<strong>de</strong>), e<br />

latino no <strong>de</strong> ré (mezena). Os construtores navais ain<strong>da</strong> no<br />

século XVII disputavam sobre a vantagem <strong>da</strong>s naus <strong>de</strong> três<br />

cobertas sobre as <strong>de</strong> quatro, e vice-versa, o que entre outros<br />

factores tinha a ver com a tonelagem. Como disse atrás, a<br />

arqueação do navio calculava-se pelo número <strong>de</strong> tonéis que<br />

o navio podia transportar nas cobertas inferiores em condições<br />

normais, sem consi<strong>de</strong>rar o convés e os pavimentos<br />

dos castelos <strong>de</strong> popa e proa.<br />

50<br />

Para efeitos fiscais contava apenas a carga transporta<strong>da</strong> abaixo<br />

do convés, o último pavimento a contar <strong>de</strong> baixo que corria o navio <strong>de</strong><br />

popa à proa. Isto quer dizer que tudo o que vinha no próprio convés<br />

ou nos pavimentos dos castelos <strong>de</strong> popa e proa estava isento <strong>de</strong> pa-<br />

gamento. Em consequência a distribuição <strong>da</strong> carga a bordo não seria<br />

sempre a mais conveniente para assegurar as melhores condições <strong>de</strong><br />

navegação, nomea<strong>da</strong>mente aquando <strong>da</strong> aproximação aos portos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stino, e é <strong>de</strong> crer que o exagerado gigantismo <strong>da</strong>s superestruturas<br />

dos navios que se verifica na iconografia dos princípios do século XVI<br />

fosse resultado do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transportar mercadorias isentas <strong>de</strong> taxa.<br />

Com o correr do tempo este tipo <strong>de</strong> opção foi abandonado, <strong>da</strong>do o<br />

prejuízo que causava às boas condições <strong>de</strong> navegação.<br />

No tempo <strong>de</strong> Vasco <strong>da</strong> Gama as naus não teriam mais<br />

que 120 tonéis <strong>de</strong> porte, para atingirem os 400 no <strong>de</strong>curso<br />

do reinado <strong>de</strong> D. Manuel, em valores médios, e <strong>de</strong>pois os<br />

800 ou mais. O seu exagerado gigantismo levou D. Sebastião<br />

a <strong>de</strong>terminar que as naus <strong>da</strong> Índia não ultrapassassem<br />

os 450 tonéis, porquanto a tonelagem média <strong>da</strong>s restantes<br />

embarcações era francamente inferior, não chegando sequer<br />

perto <strong>da</strong>queles números, como se po<strong>de</strong> verificar pelos<br />

registos existentes.


Os armadores e técnicos <strong>de</strong> construção naval encontraram<br />

forma <strong>de</strong> contornar a disposição régia <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> mais<br />

estrita legali<strong>da</strong><strong>de</strong>: bastou-lhes elevar as estruturas <strong>de</strong> popa<br />

e proa, ganhando espaço para a acomo<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> mercadorias<br />

sem que isso fosse contabilizado na medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do navio. O aumento <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s <strong>de</strong> naus na Carreira<br />

tem directamente a ver, também, com estas crescentes<br />

dimensões: pesa<strong>da</strong>s, ronceiras, construí<strong>da</strong>s ca<strong>da</strong> vez mais<br />

apressa<strong>da</strong>mente e com materiais <strong>de</strong>ficientes para respon<strong>de</strong>r<br />

às exigências do tráfego, iam vendo diminuir as suas<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s náuticas e militares, para o que contribuía por<br />

igual a rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>susa<strong>da</strong> e negligente com que se faziam<br />

as reparações no termo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> viagem, ou nas escalas<br />

intermédias. Os autores portugueses, sobretudo a partir <strong>da</strong><br />

segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XVI, queixam-se amargamente<br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong> a sorte <strong>de</strong> problemas que iam tirando longevi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e segurança aos navios: construção, reparações, utilização<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras inapropria<strong>da</strong>s (ou ver<strong>de</strong>s, com progressiva referência),<br />

o excessivo carrego que dificultava a manobra e o<br />

disparo <strong>da</strong> artilharia, e a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> os carpinteiros<br />

chegarem a certos pontos do navio quando se tratava <strong>de</strong><br />

proce<strong>de</strong>r a alguma reparação durante a viagem. Por estes<br />

motivos se per<strong>de</strong>u um número significativo <strong>de</strong> navios, como<br />

sabemos <strong>de</strong> fonte segura a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> ser praticamente<br />

impossível inventariar com exactidão as causas <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s,<br />

que muitas vezes se <strong>de</strong>veram mais à confluência <strong>de</strong> factores<br />

adversos que apenas a um motivo específico. É to<strong>da</strong>via<br />

certo que foram razões intrínsecas à navegação e construção<br />

dos navios as que <strong>de</strong>terminaram quase sempre o seu<br />

<strong>de</strong>stino, como o fogo a bordo – um dos piores temores dos<br />

homens do mar –, as intempéries ou os erros <strong>de</strong> pilotagem.<br />

Naus <strong>da</strong> Índia, expressão que se encontra com frequência,<br />

era a que se aplicava às que faziam a Carreira.<br />

51


Não correspon<strong>de</strong> a qualquer tipo distintivo; as naus <strong>da</strong> Índia<br />

não tinham arquitectonicamente diferenças significativas<br />

<strong>da</strong>s restantes, excepto na tonelagem e dimensão. Tal como<br />

sucedia com a barca pescareza ou a caravela <strong>de</strong> arma<strong>da</strong>, é<br />

a funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> que justifica a <strong>de</strong>signação costumeira.<br />

As naus portuguesas forma resistindo com dificul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

crescente aos concorrentes ingleses e holan<strong>de</strong>ses, que ironicamente<br />

louvavam as suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Quando tomaram<br />

a “S. Valentim”, em 1602, os ingleses atribuíram-lhe um porte<br />

<strong>de</strong> 1600 tonéis – embora exagerando, como frequentemente<br />

suce<strong>de</strong>u com testemunhos <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> valorizar feitos ou<br />

explicar <strong>de</strong>saires sofridos.<br />

O século XVII seria paulatinamente dominado pelos<br />

galeões ingleses e pelas fluyt holan<strong>de</strong>sas. A sua ligeireza,<br />

o custo do transporte ou o rácio tripulação-mercadorias são<br />

argumentos normalmente empregues nestas circunstâncias<br />

para justificar as vantagens adquiri<strong>da</strong>s. Abstraindo <strong>de</strong> outros<br />

motivos tão ou mais importantes – cite-se como exemplo<br />

o problema do financiamento <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s –, verifica-se que<br />

o sucesso do esforço tecnológico <strong>de</strong> resolução dos problemas<br />

levantados pelas exigências específicas <strong>da</strong> navegação<br />

oceânica em larga escala não correspon<strong>de</strong>, a partir <strong>da</strong>quela<br />

altura, às crescentes solicitações qualitativas e quantitativas<br />

<strong>da</strong>s diversas carreiras atlânticas e do Oriente. Ao percurso<br />

solitário <strong>da</strong> Rota do Cabo suce<strong>de</strong>u a concorrência sempre<br />

em crescendo a partir <strong>de</strong> 1595; ao monopólio suce<strong>de</strong>u a disputa<br />

<strong>de</strong> posições. Não há que escamotear o <strong>de</strong>clínio naval<br />

português do século XVII – real, embora indubitavelmente<br />

menos evi<strong>de</strong>nte, dramático e rápido do que por vezes se<br />

afirma – mas o padrão <strong>de</strong> referência, o domínio exclusivo <strong>da</strong><br />

maior rota transoceânica <strong>da</strong> era <strong>de</strong> Quinhentos, era <strong>de</strong>masiado<br />

elevado para que pu<strong>de</strong>sse ser mantido, fossem quais<br />

fossem as circunstâncias ou os recursos existentes.<br />

52


O Galeão Português


Se a nau aparece essencialmente vocaciona<strong>da</strong> para o<br />

trânsito comercial, o galeão apresenta características morfológicas<br />

mais apropria<strong>da</strong>s para um vaso <strong>de</strong> guerra. Com<br />

quatro mastros, por via <strong>de</strong> regra, armando pano latino nos<br />

<strong>de</strong> mezena e contra-mezena (os dois <strong>da</strong> ré), o galeão era<br />

mais baixo e longilíneo que uma nau <strong>de</strong> idêntico porte. Melhor<br />

veleiro, com manobra mais fácil e pior alvo para a artilharia<br />

inimiga, surge durante o primeiro quartel do século XVI<br />

especialmente vocacionado para a guerra no mar, como é<br />

usual dizer-se; e distinto dos galeões espanhóis, ingleses ou<br />

italianos, apesar <strong>da</strong> familiarie<strong>da</strong><strong>de</strong> terminológica.<br />

A diferenciação morfológica resulta do estudo comparativo<br />

<strong>da</strong> documentação técnica, restando saber até que<br />

ponto a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s circunstâncias e <strong>da</strong>s tarefas cometi<strong>da</strong>s<br />

à marinha portuguesa <strong>de</strong> alto mar suportaria a radical<br />

distinção funcional entre navios <strong>de</strong> comércio e <strong>de</strong> guerra.<br />

Mesmo na altura a distinção não era clara, a ponto <strong>de</strong> nos<br />

documentos o mesmo navio ser frequentemente citado como<br />

galeão ou nau. Nos finais do século XVI – quando começamos<br />

a dispor <strong>de</strong> elementos mais seguros – não há também<br />

diferenças apreciáveis a outros níveis: nos orçamentos para<br />

a construção <strong>de</strong> navios que conhecemos verifica-se que os<br />

encargos com a artilharia são semelhantes entre naus e galeões<br />

(c. <strong>de</strong> 25% dos custos totais, compreen<strong>de</strong>ndo nestes<br />

a construção do casco), e as peças a embarcar eram em<br />

tudo idênticas, cerca <strong>de</strong> 40 bocas <strong>de</strong> fogo por navio, meta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> médio e grosso calibre, meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> pequeno calibre.<br />

Ressalve-se to<strong>da</strong>via que não há um paralelismo estrito, pois<br />

a regra é que os valores se apliquem a galeões <strong>de</strong> tonelagem<br />

ligeiramente inferior à <strong>da</strong>s naus – 500 e 600 tonéis <strong>de</strong><br />

arqueação, respectivamente.<br />

Mas olhemos para as três fontes iconográficas mais<br />

importantes sobre as embarcações do século XVI.<br />

55


11 Nesta excelente gravura aguarela<strong>da</strong> do segundo quartel do século XVI, nota-se<br />

melhor do que em qualquer outra imagem conheci<strong>da</strong> <strong>da</strong> época a diferença entre a nau<br />

e o galeão português, e bem assim as características fun<strong>da</strong>mentais <strong>de</strong>ste - mais longo<br />

e afilado que a nau, com quatro mastros, dois dos quais com pano latino (Tábuas dos<br />

Roteiros <strong>da</strong> Índia <strong>de</strong> D. João <strong>de</strong> Castro).<br />

56


O <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Lisuarte <strong>de</strong> Abreu9 é pródigo em pormenores<br />

notáveis: arma<strong>da</strong>s com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> caravelas<br />

redon<strong>da</strong>s, acções contra posições em terra, ilustração do<br />

po<strong>de</strong>r ofensivo <strong>da</strong>s naus; só que, <strong>de</strong> acordo com a <strong>de</strong>finição<br />

geralmente aceite para o aparelho do galeão, vista<br />

acima, nem um dos navios aí <strong>de</strong>senhados correspon<strong>de</strong> a<br />

essa classificação. E outro tanto se po<strong>de</strong> dizer <strong>da</strong>s ilustrações<br />

do chamado <strong>Livro</strong> <strong>da</strong>s Arma<strong>da</strong>s10. Mas em ambos<br />

os casos, convém dizê-lo, os ilustradores representaram os<br />

navios <strong>de</strong> acordo com aquilo que conheciam na época em<br />

que fizeram os <strong>de</strong>senhos: eles correspon<strong>de</strong>m às embarcações<br />

do terceiro quartel do século XVI, sem haver registo<br />

<strong>da</strong> diferença – que a houve, e bem visível – entre as primeiras<br />

naus que rumaram o Oriente, nos inícios do século,<br />

e aquelas que fizeram a mesma rota 60 ou 70 anos mais<br />

tar<strong>de</strong>.<br />

Não é pois sem surpresa que folheamos as Tábuas<br />

dos Roteiros <strong>da</strong> Índia <strong>de</strong> D. João <strong>de</strong> Castro11: na “Tábua <strong>da</strong><br />

Agua<strong>da</strong> do Xeque” figura em primeiro plano um navio <strong>de</strong><br />

casco longilíneo, por oposição ao que é indubitavelmente<br />

uma nau <strong>de</strong> traçado <strong>de</strong>senho redondo, com a estrutura <strong>da</strong><br />

proa levanta<strong>da</strong>, ao passo que a do primeiro se prolonga<br />

para a frente (sugerindo um esporão, que não o é <strong>de</strong> facto);<br />

a nau tem três mastros, o outro navio quatro, com pano<br />

latino na mezena e contra-mezena e redondo no gran<strong>de</strong> e<br />

traquete. Um galeão, sem dúvi<strong>da</strong> alguma.<br />

9 Edição facsímile: Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos<br />

Portugueses, 1992. Trata-se <strong>de</strong> um manuscrito que contém várias partes<br />

distintas, compilado no terceiro quartel do século XVI, e entre elas <strong>de</strong>senhos <strong>da</strong>s<br />

arma<strong>da</strong>s envia<strong>da</strong>s anualmente para o Oriente até essa altura.<br />

10 Edição facsímile: Memórias <strong>da</strong>s Arma<strong>da</strong>s, Macau, Instituto Cultural <strong>de</strong> Macau,<br />

1995. É uma outra compilação ilustra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s arma<strong>da</strong>s, coligi<strong>da</strong> pela mesma altura.<br />

11 Tábuas dos Roteiros <strong>da</strong> Índia <strong>de</strong> D. João Castro, Lisboa, Edições Inapa, 1988.<br />

57


A iconografia do “S. João”, ou “Botafogo”, um dos<br />

maiores navios do seu tempo, que foi objecto <strong>de</strong> um pedido<br />

do Imperador Carlos V a D. João III para que capitaneasse<br />

a arma<strong>da</strong> que atacou Tunes em 1535, ou a comparação<br />

dos regimentos <strong>de</strong> construção naval, entre outros factores,<br />

levam-nos a concluir que em algum momento do século<br />

XVI se tentou fazer em Portugal um navio <strong>de</strong> alto bordo distinto<br />

dos <strong>de</strong> carga, mais vocacionado para a guerra naval.<br />

Que essa distinção nunca foi marcante, funcional e morfologicamente,<br />

parece também claro; porque é que essa<br />

especialização não foi totalmente efectiva, é questão em<br />

aberto.<br />

Em resumo, as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> carga do galeão<br />

português, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> possuir maior vocação<br />

militar naval que a nau, fizeram <strong>de</strong>le um navio bifuncional:<br />

servia para a guerra sem nunca ter <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser também<br />

plenamente empregue no transporte <strong>de</strong> mercadorias. Mas<br />

na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> não era preciso que esta embarcação se especializasse<br />

como vaso <strong>de</strong> guerra: essa função já estava<br />

cometi<strong>da</strong> à caravela redon<strong>da</strong>.<br />

58


Navios <strong>de</strong> Remo<br />

e Embarcações Auxiliares


As navegações portuguesas dos séculos XV e XVI<br />

não se esgotaram nas viagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento no Atlântico,<br />

ou nas carreiras comerciais estabeleci<strong>da</strong>s para o<br />

Oriente. Antes pelo contrário: a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> situações<br />

foi suficiente para que tivessem que ter sido usados diversos<br />

tipos <strong>de</strong> embarcações, consoante as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

específicas <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> momento e espaço.<br />

To<strong>da</strong>s elas, porém, po<strong>de</strong>m ser dividi<strong>da</strong>s em duas<br />

gran<strong>de</strong>s categorias, em função do meio principal <strong>de</strong> propulsão:<br />

navios <strong>de</strong> vela e <strong>de</strong> remo. Veremos sucintamente<br />

as principais características <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes tipos, e<br />

ain<strong>da</strong> a utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pequenas embarcações auxiliares,<br />

que não sendo propriamente vasos <strong>de</strong> guerra ou meios <strong>de</strong><br />

comércio, tiveram um papel <strong>de</strong>terminante em várias ocasiões.<br />

Os navios que referimos até agora, barcas e barinéis,<br />

caravelas, naus e galeões, são todos eles navios <strong>de</strong><br />

vela, por ser este o seu meio <strong>de</strong> propulsão principal, muito<br />

embora os mais pequenos, como a barca ou a caravela<br />

latina, pu<strong>de</strong>ssem usar remos em circunstâncias especiais:<br />

na entra<strong>da</strong> na foz <strong>de</strong> um rio, na aproximação à costa ou<br />

em circunstâncias similares fazia-se uso dos remos como<br />

solução <strong>de</strong> recurso. Já as naus e galeões eram <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente<br />

gran<strong>de</strong>s para que tal pu<strong>de</strong>sse acontecer. Se uma<br />

caravela ficava imobiliza<strong>da</strong> por absoluta falta <strong>de</strong> vento podia<br />

recorrer a esse meio <strong>de</strong> propulsão auxiliar; mas um<br />

padre jesuíta que viajava numa nau <strong>da</strong> Carreira <strong>da</strong> Índia<br />

nos meados do século XVI testemunhou que o navio ficou<br />

“ao pairo” durante 48 dias, isto é, completamente imobilizado<br />

sem que soprasse a mais pequena aragem, <strong>de</strong>baixo<br />

<strong>de</strong> um calor tórrido, e aos navios <strong>de</strong> maior porte que se<br />

encontraram nestas circunstâncias não restava senão esperar<br />

que o vento lhes permitisse enfim seguir viagem.<br />

61


Estes navios <strong>de</strong> vela <strong>de</strong>signavam-se também pelo<br />

tipo <strong>de</strong> velame predominante: se, como as naus e galeões,<br />

usavam essencialmente pano redondo (com uma vela latina<br />

no mastro <strong>da</strong> ré, como no caso <strong>da</strong> nau), então aplicava-se<br />

a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> navio redondo, simplificando a expressão<br />

navio <strong>de</strong> pano redondo. Se, como a caravela, tinham só ou<br />

predominantemente velas latinas, então chamavam-se-lhes<br />

navios latinos: <strong>da</strong>í que se use também caravela latina. Já<br />

quanto à caravela redon<strong>da</strong> o caso é ligeiramente diferente:<br />

o facto <strong>de</strong> ter um mastro com pano redondo, à vante, levou<br />

a uma <strong>de</strong>signação que a individualizava em relação às caravelas<br />

latinas <strong>de</strong> um, dois ou três mastros, sempre só com<br />

velas latinas.<br />

Navios <strong>de</strong> alto bordo é um outra <strong>de</strong>signação comum.<br />

As embarcações do tipo <strong>da</strong> nau e do galeão são notoriamente<br />

boju<strong>da</strong>s e altas em relação à linha <strong>de</strong> água. Conforme<br />

os tratados explicam, são navios em que a relação<br />

entre o comprimento e a boca (a largura máxima) é <strong>de</strong> 3<br />

para 1: ou seja, a largura é um terço do comprimento. Como<br />

se compreen<strong>de</strong> facilmente, este tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho favorece<br />

a navegação em mar alto e a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> carga, a<strong>final</strong><br />

aquilo <strong>de</strong> que os portugueses careciam para a empresa <strong>da</strong><br />

navegação <strong>de</strong> longo curso on<strong>de</strong> se transportavam mercadorias<br />

preciosas, mas sobretudo muito volumosas, como as<br />

especiarias. Ca<strong>da</strong> navio para sua funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>: as pequenas<br />

caravelas latinas eram <strong>de</strong>sa<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s para a Rota do<br />

Cabo, mas continuaram a ser empregues no Atlântico quer<br />

por causa <strong>da</strong> sua rapi<strong>de</strong>z, quer porque serviam perfeitamente<br />

quando se tratava do transporte <strong>de</strong> mercadorias <strong>de</strong> alto<br />

valor com pequeno volume. Eram as caravelas que iam a S.<br />

Jorge <strong>de</strong> Mina, no Golfo <strong>da</strong> Guiné, para o comércio do ouro:<br />

e foi por causa <strong>da</strong> sua rapi<strong>de</strong>z que foram usa<strong>da</strong>s no comércio<br />

do Brasil no século XVII, por vezes com meia carga para<br />

62


12 Galé portuguesa do segundo quartel do século XVI (segundo os Roteiros <strong>de</strong> D. João<br />

<strong>de</strong> Castro)<br />

63


13 Desenho técnico <strong>de</strong> um navio <strong>de</strong> remos no <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças <strong>de</strong> Carpintaria <strong>de</strong> Manuel<br />

Fernan<strong>de</strong>s (1616). A quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> navios <strong>de</strong> remo neste manuscrito<br />

sugere que o seu autor era provavelmente especialista na sua construção.<br />

64


melhorar as suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s marinheiras e assim escapar<br />

aos navios <strong>de</strong> corso que cruzavam o Oceano.<br />

Navegar no mar alto e transportar gran<strong>de</strong>s quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> homens e mercadorias eram então as vantagens<br />

dos navios <strong>de</strong> alto bordo. A principal <strong>de</strong>svantagem residia<br />

no facto <strong>de</strong> o navio à vela ir para on<strong>de</strong> o vento o levava, e<br />

não sempre para on<strong>de</strong> se queria. Quando D. João I reuniu<br />

mais <strong>de</strong> 200 embarcações para atacar a praça <strong>de</strong> Ceuta em<br />

1415, a frota era composta por navios <strong>de</strong> remo e <strong>de</strong> vela. Os<br />

<strong>de</strong> remo foram direitos <strong>da</strong> costa portuguesa a Ceuta; os <strong>de</strong><br />

vela foram parar à costa espanhola, quase comprometendo<br />

o efeito <strong>de</strong> surpresa que se pretendia com aquele ataque.<br />

Quando os navios têm nos remos o principal meio <strong>de</strong><br />

locomoção, apresentam a vantagem <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem ser dirigidos<br />

para on<strong>de</strong> se preten<strong>de</strong> (em condições normais <strong>de</strong> navegação),<br />

além <strong>de</strong> terem uma manobrabili<strong>da</strong><strong>de</strong> muito superior.<br />

Nesta característica resi<strong>de</strong> a razão pela qual as galés<br />

tinham sido os navios <strong>de</strong> guerra emblemáticos do Mediterrâneo,<br />

continuando a sê-lo ain<strong>da</strong> até ao século XVIII. A galé,<br />

arma<strong>da</strong> <strong>de</strong> esporão para investir os navios contrários (e a<br />

partir do século XVI <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> artilharia monta<strong>da</strong>s à proa),<br />

foi uma arma <strong>de</strong> guerra por excelência. Sem prejuízo <strong>de</strong> ter<br />

havido a<strong>da</strong>ptações que melhoraram a sua a<strong>de</strong>quação às<br />

exigências do comércio marítimo, nunca <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> apresentar<br />

os óbices <strong>de</strong>vidos a esta tipologia: tinham um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> remadores, e os mantimentos que era necessário<br />

transportar para a sua subsistência <strong>de</strong>ixavam pouco espaço<br />

para a carga. Ain<strong>da</strong> assim não podiam permanecer sem reabastecimento<br />

muito tempo: a galé navegava mais próximo<br />

<strong>da</strong> costa e necessitava <strong>de</strong> paragens frequentes, apresentando<br />

uma autonomia reduzi<strong>da</strong> – tudo isto, evi<strong>de</strong>ntemente, em<br />

comparação com os navios <strong>de</strong> vela. O próprio <strong>de</strong>senho do<br />

casco era uma consequência <strong>da</strong> sua principal <strong>final</strong>i<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

65


<strong>da</strong>s exigências do tipo <strong>de</strong> locomoção, apresentando uma<br />

relação entre o comprimento e a largura que chegava a 9:1.<br />

Estes são os valores extremos: a caravela redon<strong>da</strong><br />

podia ter uma relação <strong>de</strong> 4:1, e havia galés com 6:1. Ain<strong>da</strong><br />

sim <strong>de</strong>finem muito a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente dois tipos <strong>de</strong> navios: os<br />

<strong>de</strong> alto bordo, para o transporte <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

carga na navegação oceânica, e os <strong>de</strong> baixo bordo, mais<br />

manobráveis e próprios para a guerra em mares não alterosos.<br />

Os portugueses usaram os navios <strong>de</strong> remo para fins<br />

diversos: na navegação <strong>de</strong> vigilância <strong>da</strong>s costas, no corso,<br />

em acções militares navais no Mediterrâneo na costa marroquina,<br />

e, logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os inícios do século XVI, no Oriente.<br />

No Índico os gran<strong>de</strong>s navios <strong>de</strong> vela asseguravam o controle<br />

<strong>da</strong> navegação e <strong>da</strong>s rotas, mas eram ina<strong>de</strong>quados para<br />

muitas outras funções: combates navais e aproximação à<br />

costa, ligações rápi<strong>da</strong>s entre diversos pontos eram algumas<br />

<strong>de</strong>las. As arma<strong>da</strong>s, se bem que basea<strong>da</strong>s em naus e galeões,<br />

eram secun<strong>da</strong><strong>da</strong>s por pequenas embarcações como<br />

as fustas e os bergantins, navios do tipo <strong>da</strong> galé mas <strong>de</strong> menor<br />

dimensão (geralmente com um remador por remo, quando<br />

as galés chegavam a ter quatro remadores por remo).<br />

Designava-se por fustalha o conjunto <strong>de</strong> pequenos navios<br />

<strong>de</strong>ste tipo, como se vê com frequência nas crónicas que<br />

relatam as campanhas no Norte <strong>de</strong> África.<br />

A chega<strong>da</strong> ao Oriente exigiu que os meios navais se<br />

a<strong>de</strong>quassem ao tipo <strong>de</strong> missões que era preciso assegurar:<br />

sem meios <strong>de</strong> os construir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo nos estaleiros navais,<br />

como vieram a fazer pouco mais tar<strong>de</strong>, as primeiras embarcações<br />

a remo que foram empregues no Oriente chegaram<br />

lá <strong>de</strong>smantela<strong>da</strong>s, transporta<strong>da</strong>s no bojo dos navios <strong>de</strong> vela<br />

para po<strong>de</strong>rem ser monta<strong>da</strong>s no local. Infelizmente a documentação<br />

conheci<strong>da</strong> não nos eluci<strong>da</strong> quanto à forma<br />

66


como isto era feito, mas o facto é suficiente para fazer prova<br />

<strong>da</strong> notável habili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos construtores navais portugueses.<br />

Usaram-se ain<strong>da</strong> outros tipos <strong>de</strong> embarcações, como<br />

a barcaça, que era uma espécie <strong>de</strong> plataforma flutuante <strong>de</strong><br />

artilharia naval, pesa<strong>da</strong>mente protegi<strong>da</strong>. Cumpre porém<br />

chamar a atenção para uma <strong>de</strong>stas embarcações auxilares<br />

em particular: o batel.<br />

Os gran<strong>de</strong>s navios <strong>de</strong> remo tinham uma embarcação<br />

<strong>de</strong> apoio, a que se <strong>da</strong>va o nome <strong>de</strong> batel, cuja importância<br />

não é geralmente ressalva<strong>da</strong>, quando é certo que <strong>de</strong>sempenhou<br />

um papel fun<strong>da</strong>mental nas navegações, permitindo<br />

apoiar e a acção <strong>de</strong> naus e galeões.<br />

Os batéis tinham normalmente um terço <strong>da</strong> quilha do<br />

navio gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> comprimento. Quer dizer, uma nau <strong>de</strong> 18<br />

rumos <strong>de</strong> quilha teria um batel <strong>de</strong> 6 rumos, ou seja 9 metros.<br />

Ia armado com uma pequena peça <strong>de</strong> fogo à proa e arvorava<br />

um mastro com pano latino. Nele podiam ir e combater até<br />

20 homens.<br />

Para que servia o batel? Na eminência <strong>de</strong> um<br />

naufrágio servia como salva-vi<strong>da</strong>s, para usar a expressão<br />

que mo<strong>de</strong>rnamente se emprega. Mas tinha outras<br />

funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s bem mais importantes, e que po<strong>de</strong>mos<br />

resumir assim: 1) son<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>s condições <strong>de</strong> abrigo para<br />

as naus – verificação <strong>de</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> água e dos ventos;<br />

2) <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> contingentes armados; 3) exploração<br />

costeira e <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> reconhecimento; 4) agua<strong>da</strong> e<br />

abastecimento – os batéis iam a terra para prover o navio<br />

gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> água potável e caça, por exemplo; 5) acções<br />

ofensivas - eram usados em combate com embarcações<br />

mais pequenas, sobretudo quando o navio maior não<br />

podia intervir; 6) auxílio aos navios maiores – como quando<br />

estavam em perigo <strong>de</strong> encalhar; 7) transporte e elemento <strong>de</strong><br />

ligação.<br />

67


14 Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> nau dos inícios do século XVI: note-se a localização do batel (Alfân<strong>de</strong>ga<br />

Régia – Museu <strong>da</strong> Construção Naval em Ma<strong>de</strong>ira – Vila do Con<strong>de</strong>).<br />

68


Aparecem outras <strong>de</strong>signações <strong>de</strong> navios: patachos<br />

e galizabras (vela), galeotas (remo), esquifes (equivalente ao<br />

batel mas mais pequeno), entre tantas mais. Há <strong>de</strong>signações<br />

diferentes para a mesma embarcação, ou nomes iguais para<br />

embarcações diferentes. No estado actual dos nossos conhecimentos<br />

não nos é ain<strong>da</strong> possível, por falta <strong>de</strong> informações<br />

credíveis suficientemente <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>strinçar to<strong>da</strong>s<br />

as situações e caracterizar rigorosamente ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las.<br />

O problema não é <strong>de</strong> agora. Os documentos do século<br />

XVI referem-se por vezes ao mesmo navio <strong>de</strong> forma diferente:<br />

mesmo em documentos técnicos é frequente que<br />

uma mesma embarcação seja <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> por nau e por galeão,<br />

garantindo-nos que a distinção não era completamente<br />

clara para os homens do tempo.<br />

O primeiro tratadista português <strong>de</strong> construção naval,<br />

Fernando Oliveira, disse tudo numa simples frase:<br />

Os nomes <strong>da</strong>s espécies, ou maneiras dos navios<br />

e barcos, assim <strong>de</strong> um género como do outro,<br />

são quase incompreensíveis, assim por serem<br />

muitos, como pela muita mu<strong>da</strong>nça que fazem<br />

<strong>de</strong> tempo em tempo, e <strong>de</strong> terra em terra.12<br />

12 Fernando Oliveira, <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus, manuscrito <strong>da</strong> Biblioteca Nacional<br />

<strong>de</strong> Portugal, p. 46.<br />

69


Teoria <strong>da</strong> Arquitectura Naval


Não se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> incluir neste livro uma menção<br />

à literatura técnica portuguesa <strong>de</strong> arquitectura e construção<br />

naval, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua relevância no contexto europeu. Na<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> referir, ain<strong>da</strong> que brevemente, todos os<br />

textos técnicos conhecidos até à primeira meta<strong>de</strong> do século<br />

XVII, para construir um quadro contextual perceptível e justificativo<br />

<strong>de</strong>ssa mesma importância, limitar-nos-emos a uma<br />

breve apresentação dos mais importantes <strong>de</strong> entre eles.<br />

A teoria <strong>da</strong> arquitectura naval teve o seu início na Europa<br />

com os textos italianos escritos entre os meados dos séculos<br />

XV e XVI, dizendo naturalmente respeito à construção<br />

<strong>da</strong>s tipologias <strong>de</strong> navios correntes no Mediterrâneo. E um<br />

aspecto que convém realçar resi<strong>de</strong> precisamente no facto<br />

<strong>de</strong> os tratados que se lhes seguiram feitos em outros países<br />

europeus já se reportarem ao tipo <strong>de</strong> embarcações <strong>de</strong> que<br />

tratamos aqui: os navios para a navegação oceânica.<br />

O primeiro texto europeu <strong>de</strong> arquitectura naval, <strong>de</strong>pois<br />

dos italianos, é a Ars Nautica do padre Fernando Oliveira,<br />

que terá sido escrita c. 1570, uma <strong>da</strong>ta aproxima<strong>da</strong><br />

porquanto o manuscrito autógrafo tem várias partes distintas,<br />

presumivelmente redigi<strong>da</strong>s em momentos distintos. Na<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> trata-se <strong>de</strong> uma enciclopédia <strong>de</strong> assuntos vários<br />

relativos às activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s marítimas, on<strong>de</strong> a arte <strong>de</strong> navegar<br />

ocupa a primeira e mais importantes <strong>da</strong>s partes em que se<br />

divi<strong>de</strong>; é apenas na segun<strong>da</strong> parte que o autor versa a matéria,<br />

com especial <strong>de</strong>talhe (em relação ao que seria <strong>de</strong> esperar,<br />

aparentemente) para questões filológicas ou relativas<br />

a navios <strong>de</strong> remo, como outros humanistas fariam ou fizeram<br />

<strong>de</strong> facto.<br />

Estamos perante um tratado enciclopédico, pioneiro<br />

na Europa <strong>de</strong>ntro do seu género, mas essencialmente teórico.<br />

É notória uma larga margem <strong>de</strong> afirmação do que são<br />

as convicções pessoais do autor, no quadro <strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong><br />

73


15 Desenho técnico <strong>da</strong> Ars nautica, primeiro texto técnico escrito por um autor português<br />

sobre arquitectura naval.<br />

74


normativização que o animou (e que refere constantemente),<br />

em <strong>de</strong>trimento do que seria por vezes a prática usual. Não<br />

há preocupação sistemática em reflectir esta última, e, por<br />

isso, excepto as situações em que Fernando Oliveira afirma<br />

explicitamente que se reporta à prática dos estaleiros (às<br />

vezes contra o seu parecer), não é esta que se espelha na<br />

sua obra.<br />

Ao tratado escrito em latim segue-se c. 1580 o <strong>Livro</strong><br />

<strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus, que no fundo é uma reescrita aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

e em português <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> Ars. Incompleto,<br />

o manuscrito já <strong>de</strong>nota uma maior atenção à vertente técnica,<br />

em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> perspectiva humanista, mas não é<br />

esse o ponto mais marcante: o <strong>Livro</strong> é uma peça única nesta<br />

série porque procura justificar as opções <strong>da</strong> arquitectura naval<br />

para lá <strong>de</strong>ssa dimensão meramente técnica do problema.<br />

O que está em causa, aqui, é a própria fun<strong>da</strong>mentação<br />

do conhecimento – questão que emerge apenas e só neste<br />

tratado.<br />

Para Fernando Oliveira, a arte (leia-se, mo<strong>de</strong>rnamente,<br />

a ciência) <strong>de</strong>ve imitar a Natureza, pois esta, cria<strong>da</strong> por Deus,<br />

não é senão a imagem <strong>da</strong> sua perfectibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao Homem,<br />

que é imperfeito por condição, está ve<strong>da</strong><strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> alcançar essa dimensão; e para querer copiá-la <strong>de</strong>verá<br />

buscar um mo<strong>de</strong>lo a seguir. Se Deus fez os peixes para<br />

an<strong>da</strong>rem na água, a morfologia <strong>da</strong>s obras vivas do navio (a<br />

parte submersa) terá portanto <strong>de</strong> se aproximar o mais possível<br />

<strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo; e é a partir <strong>de</strong>ste raciocínio que Oliveira<br />

<strong>de</strong>senvolve uma reflexão marcante pela sua originali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Não estava só nesta maneira <strong>de</strong> ver as coisas: pelos<br />

anos <strong>de</strong> 1570 o inglês Mathew Baker, que era filho <strong>de</strong> James<br />

Baker, mastershipwrighter <strong>de</strong> Henrique VIII (isto é, supervisor<br />

<strong>da</strong> construção naval nos estaleiros por conta do rei) e<br />

<strong>de</strong>sempenhava funções semelhantes às do pai, iniciava<br />

75


a compilação <strong>de</strong> um ca<strong>de</strong>rno on<strong>de</strong> registava apontamentos<br />

úteis à sua activi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O manuscrito, que é mais um ca<strong>de</strong>rno<br />

<strong>de</strong> notas que um tratado <strong>de</strong> arquitectura naval, conhece-se<br />

hoje pelo nome <strong>de</strong> Fragments of Ancient English Shiwrightry<br />

e possui alguns <strong>de</strong>senhos notáveis: num <strong>de</strong>les, o casco <strong>de</strong><br />

um navio <strong>de</strong>senha-se sobre um peixe, aproximando-se <strong>da</strong><br />

sua forma, na perfeita ilustração do que Fernando Oliveira<br />

escrevera ou havia ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> escrever. Um mesmo horizonte<br />

<strong>de</strong> conhecimento, ou a coincidência é fruto do ascen<strong>de</strong>nte<br />

que Oliveira ganhou <strong>de</strong> alguma forma junto <strong>da</strong> corte <strong>de</strong><br />

Henrique VIII - on<strong>de</strong> muito provavelmente conheceu James<br />

Baker -, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a galé francesa em que servia <strong>de</strong> piloto<br />

ter sido apresa<strong>da</strong> no Canal <strong>da</strong> Mancha por um navio inglês?<br />

Não o sabemos ao certo neste caso particular, mas numa<br />

outra situação é possível documentar a influência europeia<br />

<strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Fernando Oliveira. Trata-se do facto <strong>de</strong> os <strong>de</strong>senhos<br />

técnicos <strong>da</strong> Ars Nautica terem sido copiados pelo holandês<br />

Nicolaes Witsen no seu Aelou<strong>de</strong> en he<strong>de</strong>n<strong>da</strong>egsche<br />

scheeps-bouw en bestier, publicado em 1671, isto é, um século<br />

<strong>de</strong>pois. Witsen pô<strong>de</strong> ter acesso à biblioteca do gran<strong>de</strong><br />

humanista flamengo Isaac Vossius, que obteve o exemplar<br />

autógrafo <strong>da</strong> Ars para a sua biblioteca particular por vias<br />

que <strong>de</strong>sconhecemos.<br />

A obra <strong>de</strong> Fernando Oliveira teve maior projecção<br />

europeia do que seria <strong>de</strong> supôr aten<strong>de</strong>ndo ao facto <strong>de</strong> ter<br />

ficado manuscrita. Jogaram a favor <strong>da</strong> divulgação dois factores:<br />

o ter sido escrita na língua culta do tempo, o latim,<br />

e a apetência conheci<strong>da</strong> e amplamente documenta<strong>da</strong> que<br />

na Europa se sentia por todo o género <strong>de</strong> informações que<br />

dissessem respeito à vertente técnica <strong>da</strong>s navegações portuguesas.<br />

Em vários aspectos, o <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus<br />

sobreleva o texto anterior: é mais extenso, mais pormenorizado,<br />

melhor explicado e mais atreito às questões meramente<br />

76


16 Desenhos técnicos <strong>da</strong> Instrucción Náutica <strong>de</strong> Diego Garcia <strong>de</strong> Palacio (Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

México, 1587)<br />

77


técnicas, em <strong>de</strong>trimento, como dissémos, por exemplo <strong>da</strong>s<br />

discussões filológicas (embora também por lá passem); não<br />

se estranha to<strong>da</strong>via a falta <strong>de</strong> eco <strong>de</strong> um manuscrito que<br />

estava escrito em português e nunca saíu do país.<br />

Porque é que Fernando Oliveira o escreveu, ou que<br />

conhecimento tinha em concreto <strong>da</strong> activi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos estaleiros,<br />

são questões para as quais não é fácil encontrar resposta.<br />

Nascido em 1507, foi educado no convento <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> S. Domingos em Évora, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> fugiu com cerca <strong>de</strong> 25<br />

anos, para <strong>da</strong>r início a uma vi<strong>da</strong> aventurosa, que, sabemolo,<br />

lhe fez ganhar certa reputação nos meios náuticos <strong>da</strong><br />

época; to<strong>da</strong>via Oliveira notabilizou-se sobretudo como autor<br />

<strong>da</strong> primeira Gramática <strong>da</strong> Linguagem Portuguesa, publica<strong>da</strong><br />

em 1536, e <strong>de</strong> um outro livro, a Arte <strong>da</strong> Guerra no Mar,<br />

<strong>de</strong> 1555, on<strong>de</strong>, a par do pioneirismo <strong>da</strong> matéria que tratou,<br />

<strong>de</strong>ixou expressas opiniões tão radicais que lhe custaram a<br />

prisão: entre elas negou a existência do milagre <strong>de</strong> Ourique,<br />

e afirmou que os portugueses tinham sido os inventores do<br />

tráfico <strong>de</strong> escravos. Foi piloto <strong>de</strong> galés ao serviço do rei <strong>de</strong><br />

França e esteve nas boas graças <strong>da</strong> corte do monarca inglês:<br />

on<strong>de</strong> é que apren<strong>de</strong>u os preceitos <strong>da</strong> arte <strong>de</strong> construir<br />

navios é que não se sabe, embora hoje em dia seja claro<br />

que aquilo que escreveu no <strong>Livro</strong> estava bem mais próximo<br />

<strong>da</strong> prática dos estaleiros do que era usual pensar-se até<br />

há relativamente pouco tempo, ou seja, que era um autor<br />

essencialmente teórico.<br />

Pouco <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> re<strong>da</strong>cção do <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s<br />

Naus, Diego Garcia <strong>de</strong> Palacio fazia publicar o primeiro texto<br />

técnico <strong>de</strong> arquitectura naval a ser divulgado em letra impressa,<br />

incluso na sua Instrucción Náutica (México, 1587),<br />

obra que também não versava o assunto em exclusivo; não<br />

traduz to<strong>da</strong>via um conhecimento <strong>de</strong> ponta, tal como aconteceria<br />

mais tar<strong>de</strong> com outro autor espanhol, o canarino Tomé<br />

78


17 O mestre construtor naval Manuel Fernan<strong>de</strong>s é representado no início do <strong>Livro</strong><br />

<strong>de</strong> Traças <strong>de</strong> Carpintaria empunhando os instrumentos do seu ofício (manuscrito <strong>da</strong><br />

Biblioteca do Palácio <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong>, Lisboa)<br />

79


Cano, cuja Arte para Fabricar y Aparejar Naos (1611) reconhecia<br />

a primazia qualitativa <strong>da</strong> construção naval portuguesa,<br />

mas até na forma – o livro está escrito em diálogo<br />

– se afastava do que começavam a ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros tratados<br />

<strong>de</strong> engenharia naval. To<strong>da</strong>via o livro <strong>de</strong> Garcia <strong>de</strong> Palacio<br />

tinha uma vantagem apreciável sobre os dos outros autores<br />

seus contemporâneos: era impresso, tendo maior impacto<br />

e circulação do que obras que estavam tecnicamente mais<br />

adianta<strong>da</strong>s mas que permaneciam em forma manuscrita.<br />

O primeiro texto dos que po<strong>de</strong>m merecer aquela classificação<br />

(embora um pouco abusiva para o tempo, reconheçamo-lo)<br />

leva por título <strong>Livro</strong> Primeiro <strong>de</strong> Architectura Naval,<br />

<strong>da</strong>ta dos últimos anos século XVI, e é <strong>da</strong> autoria <strong>de</strong> uma notável<br />

figura dos meios técnicos e científicos <strong>da</strong> época: João<br />

Baptista Lavanha, <strong>de</strong> ascendência e naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesas,<br />

e cuja carreira foi no essencial passa<strong>da</strong> ao serviço dos<br />

reis <strong>de</strong> Espanha, porque então também <strong>de</strong> Portugal. O seu<br />

trabalho revela uma profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> no tratamento dos assuntos<br />

que não tinha então paralelo.<br />

Tal como acontece com Oliveira, também não se<br />

percebe exactamente o que levou este autor a <strong>de</strong>dicar-se<br />

ao estudo <strong>da</strong> arquitectura naval, apesar <strong>de</strong> se ter interessado<br />

por assuntos muito diferenciados. Nascido por volta<br />

<strong>de</strong> 1555, Lavanha veio a falecer em Madrid em 1624, tendo<br />

alcançado gran<strong>de</strong> notorie<strong>da</strong><strong>de</strong> ao serviço dos reis <strong>de</strong><br />

Castela e Portugal, essencialmente como técnico – foi matemático,<br />

cosmógrafo e cartógrafo –, mas também como<br />

historiador e literato. O que suce<strong>de</strong> é que <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as suas<br />

obras se po<strong>de</strong> dizer que <strong>de</strong>correm do seu envolvimento profissional<br />

ou <strong>de</strong> encomen<strong>da</strong>s régias: mas do <strong>Livro</strong> Primeiro<br />

não; a obra parece escrita sem motivação ou incumbência<br />

alguma que não o interesse do autor. Apesar disso, trata-se<br />

<strong>de</strong> um texto notável: é o primeiro a apresentar o arquitecto<br />

80


naval como alguém que <strong>de</strong>ve ter uma formação técnico-<br />

-científica completa, e, também pela primeira vez, se diz que<br />

a construção do navio começa pelo plano em papel, só <strong>de</strong>pois<br />

se iniciando o trabalho <strong>de</strong> estaleiro. Quer dizer: era necessário<br />

planificar antes <strong>de</strong> executar, em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar tudo<br />

ao arbítrio <strong>da</strong>queles que no estaleiro dirigiam a construção<br />

dos navios. Nestes dois aspectos resi<strong>de</strong> talvez a maior novi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> contribuição <strong>de</strong> Lavanha.<br />

O caso do <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças <strong>de</strong> Carpintaria <strong>de</strong> Manuel<br />

Fernan<strong>de</strong>s é diferente: é o único <strong>de</strong>stes tratados que po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>da</strong>tar precisamente (1616) e o único também que é <strong>da</strong><br />

lavra <strong>de</strong> um oficial <strong>da</strong> Ribeira. Mas, mais uma vez, não conhecemos<br />

as circunstâncias que levaram à sua elaboração.<br />

O <strong>Livro</strong> não é evi<strong>de</strong>ntemente um manual <strong>de</strong> construtores, ou<br />

seja, um instrumento prático <strong>de</strong> trabalho; asseguram-no-lo o<br />

gran<strong>de</strong> formato e as mais <strong>de</strong> duas centenas e meia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos,<br />

boa parte polícromos. Muito provavelmente foi feito<br />

a pedido <strong>de</strong> alguém que pretendia ter na sua biblioteca um<br />

livro com <strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> construção <strong>da</strong>s principais tipologias <strong>de</strong><br />

navios então em uso; era uma prática habitual, esta, e graças<br />

e ela, <strong>de</strong>ve acrescentar-se, chegaram até nós documentos <strong>de</strong><br />

notável valia.<br />

Voltando a Manuel Fernan<strong>de</strong>s: a explicação que sugiro<br />

é a que a meu ver mais facilmente justifica certas perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

que a análise do <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças suscita, nomea<strong>da</strong>mente<br />

as várias incongruências entre texto e <strong>de</strong>senhos.<br />

Repare-se, por exemplo, que a parte dos textos se inicia<br />

com o regimento para a construção <strong>de</strong> uma nau <strong>de</strong> quatro<br />

cobertas, e os <strong>de</strong>senhos que lhe <strong>de</strong>viam ser correspon<strong>de</strong>ntes<br />

mostram-nos uma nau com apenas três cobertas. Portanto<br />

esta <strong>de</strong>ve ser sobretudo uma obra <strong>de</strong> compilação, feita<br />

a mando do oficial <strong>da</strong> Ribeira, <strong>da</strong> qual teria encarregue um ou<br />

mais copistas: eventualmente um para a primeira parte, a dos<br />

81


textos, e outro para os <strong>de</strong>senhos. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> não tem sido<br />

posto em causa que se trata <strong>de</strong> um autógrafo, mas também<br />

é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que na<strong>da</strong> nos permite afirmar que o livro saiu directamente<br />

do punho do homem que se apresenta como seu<br />

autor.<br />

Seja como for: são justamente esses <strong>de</strong>senhos que notabilizam<br />

o <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças <strong>de</strong> Carpintaria, pois não há outra<br />

obra semelhante no seu conjunto.<br />

Quanto a Manuel Fernan<strong>de</strong>s, pouco ou na<strong>da</strong> se sabe,<br />

excepto o que está escrito na legen<strong>da</strong> do retrato que abre o<br />

seu <strong>Livro</strong>: era oficial <strong>da</strong> Ribeira e, a avaliar pela imagem, teria<br />

uns 40 anos em 1616. Há fortes probabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> ser natural<br />

<strong>de</strong> Vila do Con<strong>de</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> teria saído para a Ribeira <strong>da</strong> Naus,<br />

em Lisboa, e eventualmente para a Índia. Percebe-se que seria<br />

um dos principais responsáveis pela construção naval do<br />

seu tempo; mas não se po<strong>de</strong> adiantar mais.<br />

A documentação técnica portuguesa <strong>de</strong> arquitectura e<br />

construção naval não se fica por estes tratados: surge em<br />

muitas outras obras, quer sobre a forma <strong>de</strong> comentários ou<br />

discursos <strong>de</strong> natureza vária, quer sob a forma <strong>de</strong> regimentos<br />

práticos <strong>de</strong> construção. Já se afirmou até que, para o período<br />

<strong>de</strong> c. 1550 a c. 1650, Portugal dispõe <strong>da</strong> mais rica colecção<br />

<strong>de</strong> documentos sobre a matéria existente em to<strong>da</strong> a Europa<br />

(Pimentel Barata), o que provavelmente po<strong>de</strong>rá ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

e é-o <strong>de</strong> certeza quanto aos ensaios <strong>de</strong> conceptualização<br />

que se <strong>de</strong>notam em Oliveira e Lavanha; o que resta por explicar<br />

é a concomitância <strong>de</strong>ste esforço <strong>de</strong> normativização com<br />

o aparecimento dos primeiros sintomas <strong>de</strong> um processo que<br />

levaria, mais tar<strong>de</strong> (mais tar<strong>de</strong> e mais lentamente do que por<br />

vezes se afirma) ao termo <strong>da</strong> supremacia naval portuguesa,<br />

em gran<strong>de</strong> parte erecta sobre a maestria técnica visível na<br />

construção e funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos navios oceânicos <strong>de</strong> alto<br />

bordo.<br />

82


O Processo <strong>de</strong> Construção


Tanto Fernando Oliveira como João Baptista Lavanha<br />

<strong>de</strong>ixaram exara<strong>da</strong>s por escrito as normas básicas do<br />

processo <strong>de</strong> construção dos navios, o primeiro em relação<br />

aos navios em geral, mas tendo em consi<strong>de</strong>ração os navios<br />

redondos <strong>de</strong> alto bordo, o segundo tomando como exemplo<br />

uma nau <strong>da</strong> Índia <strong>de</strong> quatro cobertas. Num caso como<br />

noutro, a escolha não é difícil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r: a Carreira<br />

<strong>da</strong> Índia percorria a mais importante e longa <strong>da</strong>s rotas estabeleci<strong>da</strong>s<br />

com regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, e simultaneamente exigia o<br />

concurso dos navios <strong>de</strong> maior dimensão e complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Seguiremos estes autores numa exposição genérica<br />

<strong>da</strong>s diversas etapas <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> um navio, a partir dos<br />

preceitos <strong>da</strong> arquitectura naval. Deve-se a esta passagem<br />

do articulado teórico para o trabalho do estaleiro a razão<br />

<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> tal opção: não cabe abrir um capítulo autónomo<br />

nem inserir este tema na referência específica a qualquer<br />

navio (que teria <strong>de</strong> ser a nau), porque antes <strong>de</strong> tudo o mais<br />

estamos perante um problema <strong>de</strong> método. Não existem muitas<br />

diferenças na forma <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o que os textos estipularam,<br />

quanto ao ponto <strong>de</strong> vista do processo técnico; a<br />

interpretação <strong>da</strong> maneira como a arquitectura naval impera<br />

sobre ou condiciona a construção naval é que tem <strong>da</strong>do<br />

origem a interpretações historiográficas totalmente distintas<br />

umas <strong>da</strong>s outras.<br />

Segundo João Baptista Lavanha, o arquitecto naval<br />

<strong>de</strong>via principiar o trabalho pelo lançamento dos planos do<br />

navio em papel, passando <strong>de</strong> segui<strong>da</strong> para a construção do<br />

mo<strong>de</strong>lo. Como já disse, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>sta sequência representa<br />

uma gran<strong>de</strong> novi<strong>da</strong><strong>de</strong> face aos documentos técnicos<br />

<strong>da</strong> época, mas tudo leva a crer que não passou disso mesmo:<br />

Lavanha <strong>de</strong>terminou um procedimento que, tanto quanto<br />

é possível apurar, não correspondia à prática estabeleci<strong>da</strong>.<br />

Quanto aos mo<strong>de</strong>los, é o próprio a <strong>de</strong>ixar enten<strong>de</strong>r<br />

85


que os mestres evitavam fazê-los, talvez pressionados pela<br />

redução <strong>de</strong> custos <strong>de</strong>sejável por parte dos armadores ou<br />

contratadores (Diogo do Couto afirmou-o também <strong>de</strong> uma<br />

forma clara). No que diz respeito aos planos, não há traço<br />

<strong>de</strong>les na documentação: é evi<strong>de</strong>nte que o <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças é<br />

sobretudo um livro <strong>de</strong> planos e <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> navios,<br />

mas são mais ilustrações dos regimentos que planos<br />

para a construção <strong>de</strong> partes dos navios; são duas coisas<br />

completamente diferentes. Nos regimentos técnicos, gerais<br />

(relativos a um tipo <strong>de</strong> navio) ou especiais (relativos a um<br />

navio em particular), não há um único plano, mas apenas<br />

regras escritas. Encontramo-los apenas nas obras dos dois<br />

primeiros tratadistas, que seguramente não passaram para<br />

as mãos dos construtores navais, nem foram por eles copiados<br />

ou adoptados, neste ou noutro pormenor.<br />

Esta fase prévia <strong>de</strong> conceptualização <strong>da</strong> obra marca<br />

bem a distância que vai <strong>de</strong> Oliveira para Lavanha, separando<br />

o trabalho do técnico <strong>da</strong> realização do engenheiro.<br />

Oliveira fica-se por um nível mais imediato na aproximação<br />

concreta ao seu objecto, Lavanha conceptualiza-o antes <strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>r início à fase <strong>da</strong> construção. Menos atenta aos pormenores<br />

e mais genérica na <strong>de</strong>scrição do processo em geral,<br />

a exposição <strong>de</strong> Oliveira torna-se mais acessível para o<br />

acompanhamento <strong>da</strong>s diversas etapas <strong>da</strong> fábrica do navio.<br />

Sigo-o por esse motivo e por uma outra diferença muito notória<br />

em relação a Lavanha, que <strong>de</strong>ixa o <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica<br />

<strong>da</strong>s Naus bem mais próximo dos regimentos técnicos: é<br />

que no <strong>Livro</strong> Primeiro <strong>de</strong> Arquitectura Naval subenten<strong>de</strong>-se<br />

que a concepção do navio fica a cargo do arquitecto naval<br />

(<strong>de</strong>nominação que surge pela primeira vez com Lavanha),<br />

enquanto a fábrica é entregue ao construtor, muito embora<br />

o seu autor não o estabeleça explicitamente. No <strong>Livro</strong> <strong>da</strong><br />

Fábrica e nos regimentos é claro que quem pensa o navio é<br />

86


também quem o constrói, ou, vistas as coisas pela inversa,<br />

o mestre construtor i<strong>de</strong>aliza e dirige a execução <strong>da</strong> obra,<br />

cometi<strong>da</strong> aos carpinteiros navais.<br />

Segundo Fernando Oliveira, conformemente aos regimentos<br />

técnicos, a construção do navio iniciava-se pela <strong>de</strong>terminação<br />

do comprimento <strong>da</strong> quilha, a que chama “certa<br />

parte”, o que quer dizer a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> referência a partir <strong>da</strong><br />

qual se tiravam to<strong>da</strong>s as outras:<br />

Esta certa parte na fábrica <strong>da</strong>s naus <strong>de</strong> carrega<br />

é a quilha. A esta se referem a largura e altura<br />

<strong>da</strong> nau, e o fundo e graminhos, e lançamentos, e<br />

boca, e outras partes principais <strong>de</strong> que to<strong>da</strong>s as<br />

mais pen<strong>de</strong>m. Por esta se compreen<strong>de</strong> camanha,<br />

e <strong>de</strong> que porte há-<strong>de</strong> ser a nau: por que sabi<strong>da</strong> a<br />

longura <strong>da</strong> quilha, sabe-se quão larga, e quão alta<br />

há-<strong>de</strong> ser, e quanto há-<strong>de</strong> lançar para proa, e para<br />

popa, e o que po<strong>de</strong> levar pouco mais ou menos. E<br />

por esta via tornando ao revés, se sabe camanha<br />

hão-<strong>de</strong> lançar a quilha, quando o senhorio diz,<br />

que lhe façam a sua nau <strong>de</strong> tantos tonéis. Por que<br />

os senhorios, que não sabem o modo por on<strong>de</strong><br />

proce<strong>de</strong> esta fabrica, pe<strong>de</strong>m o tamanho <strong>da</strong>s naus<br />

e não o <strong>da</strong>s quilhas. Portanto quando pe<strong>de</strong>m, ou<br />

man<strong>da</strong>m que lhe façam uma nau <strong>de</strong> seiscentos<br />

tonéis, sabem os carpenteiros, que hão-<strong>de</strong> lançar<br />

a quilha <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito rumos, dos quais resulta uma<br />

nau <strong>da</strong>quele porte.13<br />

A primeira frase <strong>de</strong>ste trecho não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curiosa,<br />

porque o preceito era aplicável a todos os navios (inclusivamente<br />

os <strong>de</strong> remo), e não apenas às “naus <strong>de</strong> carrega”.<br />

13 Fernando Oliveira, <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus, manuscrito <strong>da</strong> Biblioteca Nacional<br />

<strong>de</strong> Portugal, p. 69-70.<br />

87


É <strong>de</strong> supor que Oliveira quisesse enfatizar que trataria <strong>da</strong><br />

construção <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> navio em particular, muito embora<br />

<strong>de</strong>rivasse <strong>de</strong>pois para aspectos laterais ao seu objectivo<br />

primeiro, como fez sempre em tudo o que escreveu.<br />

Definido o comprimento <strong>da</strong> quilha, em função <strong>da</strong> tonelagem<br />

pretendi<strong>da</strong>, a construção do navio iniciava-se por<br />

aí: a quilha, <strong>de</strong> preferência <strong>de</strong> uma só peça para as embarcações<br />

mais pequenas, era coloca<strong>da</strong> no chão, sobre<br />

as ataca<strong>da</strong>s, seguindo-se os lançamentos <strong>de</strong> proa e popa,<br />

que faziam com que o comprimento total <strong>de</strong>ssa estrutura<br />

multiplicasse o <strong>da</strong> quilha quase uma vez e meia.<br />

88<br />

A quilha do navio era coloca<strong>da</strong> sobre uma espécie <strong>de</strong> cubos feitos<br />

<strong>de</strong> paus <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, as ataca<strong>da</strong>s, que serviam exclusivamente para a<br />

elevar em relação ao nível do chão. Depois do assentamento <strong>da</strong> quilha<br />

acrescentava-se o ca<strong>da</strong>ste (ou co<strong>da</strong>ste) à popa, ou seja uma peça <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira disposta obliquamente que suportava o leme (governalho).<br />

Já a proa implicava um processo <strong>de</strong> construção mais complica-<br />

do, para fechar em curva o navio pela frente. Tanto para a inclinação do<br />

ca<strong>da</strong>ste como para a ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> proa (a parte do navio que se estendia<br />

para além <strong>da</strong> quilha) Oliveira e Lavanha <strong>de</strong>ram regras geométricas, ali-<br />

ás não coinci<strong>de</strong>ntes. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente disso, é certo que os mestres<br />

experimentados tinham as suas próprias maneiras <strong>de</strong> resolver ambos os<br />

problemas.<br />

O ca<strong>da</strong>ste rematava o navio pela popa, ligado à quilha<br />

por um conjunto <strong>de</strong> peças cuja rigi<strong>de</strong>z era fun<strong>da</strong>mental para<br />

assegurar o bom sucesso <strong>da</strong> construção e, posteriormente,<br />

<strong>da</strong> navegação (era o couce <strong>de</strong> popa), e reclinava-se segundo<br />

uma regra que variava <strong>de</strong> construtor para construtor.<br />

Oliveira é muito claro nesta explicação, embora assuma<br />

que preconiza uma regra ligeiramente diferente do que era<br />

costume. Aliás, <strong>da</strong>s várias alternativas que se costumavam<br />

seguir:


18 Desenho técnico do couce <strong>da</strong> popa <strong>de</strong> uma nau, segundo o <strong>Livro</strong> Primeiro <strong>de</strong><br />

Arquitectura Naval <strong>de</strong> João Baptista Lavanha. Trata-se do ponto <strong>de</strong> ligação <strong>da</strong> quilha ao<br />

ca<strong>da</strong>ste, talvez o mais importante dos conjuntos <strong>de</strong> peças <strong>da</strong> construção do navio<br />

89


19 Desenho técnico do ca<strong>da</strong>ste <strong>de</strong> uma nau <strong>de</strong> 4 cobertas, no <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças <strong>de</strong><br />

Carpintaria <strong>de</strong> Manuel Fernan<strong>de</strong>s: trata-se <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s peças (ou conjunto <strong>de</strong> peças)<br />

mais importantes do navio, <strong>de</strong> cuja resistência estrutural <strong>de</strong>pendia muito <strong>da</strong> robustez <strong>da</strong><br />

embarcação<br />

90


O lançamento <strong>da</strong> popa não é tamanho, nem<br />

se faz em ro<strong>da</strong>, como o <strong>da</strong> proa; mas lança o co<strong>da</strong>ste<br />

direito, encostando-o para trás. Co<strong>da</strong>ste é<br />

aquele pau grosso, que se alevanta pelo meio <strong>da</strong><br />

popa acima, <strong>da</strong> quilha até ao gio. O qual também<br />

como a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> proa, é <strong>de</strong> ser grosso, e forte, e <strong>da</strong><br />

mesma ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> que é a quilha: porque assim<br />

como a quilha é alicerce <strong>de</strong>sta fábrica, também<br />

o co<strong>da</strong>ste é como cunhal <strong>de</strong>la; e sustenta muita<br />

parte <strong>da</strong> nau, em especial o governalho, no qual<br />

carrega muita força dos mares (…). Eu or<strong>de</strong>no<br />

este lançamento por esta arte, que agora direi,<br />

mais certa, e mais fácil. Alevanto sobre a quilha o<br />

co<strong>da</strong>ste a prumo, e ponho o compasso no canto<br />

que ele faz com a quilha, que há-<strong>de</strong> ser canto<br />

direito, e lanço sobre este canto uma quarta <strong>de</strong><br />

círculo do co<strong>da</strong>ste até à quilha, e parto esta quarta<br />

em sete partes iguais; e ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>stas partes<br />

é o lançamento, que o co<strong>da</strong>ste <strong>de</strong>ve lançar para<br />

trás: o qual vem a ser quase o mesmo, que <strong>de</strong><br />

quatro e meio, que é o mais acostumado.14<br />

O leme articulava-se com o ca<strong>da</strong>ste por um sistema<br />

<strong>de</strong> machos-fêmeas, <strong>de</strong>vendo ro<strong>da</strong>r perfeitamente sem passar<br />

água entre eles. Era rematado pelo gio, uma grossa peça<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira que se lhe sobrepunha perpendicularmente e<br />

travejava o painel <strong>de</strong> popa.<br />

O lançamento <strong>da</strong> proa era feito em ro<strong>da</strong>, recorrendo<br />

a cálculos geométricos um pouco mais complexos. Mais<br />

uma vez, existiam soluções diferentes para <strong>de</strong>terminar este<br />

encurvamento para vante e remate do navio. Neste caso e<br />

no do lançamento do ca<strong>da</strong>ste, se fosse seguido um método<br />

14 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, pp. 81-82.<br />

91


20 Forro liso – <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> construído o “esqueleto” do navio, este é revestimento por um<br />

forro em que as tábuas têm os topos justapostos (<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Ian Friel).<br />

21 Forro trincado - as tábuas são parcialmente sobrepostas, e <strong>de</strong>pois do casco feito as<br />

cavernas são então coloca<strong>da</strong>s (<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> Ian Friel).<br />

92


geométrico igual ou similar ao preconizado por Oliveira,<br />

o mestre era obrigado a recorrer ao papel, compasso e<br />

esquadro, para fazer o <strong>de</strong>senho antes <strong>da</strong> execução, tal<br />

como aparece estipulado na “Regra geral para navios <strong>de</strong><br />

alto bordo <strong>de</strong> setenta ate trezentas tonela<strong>da</strong>s”, um conjunto<br />

<strong>de</strong> instruções, único do seu género, <strong>da</strong>tável dos finais<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1580. Paradoxalmente, o anónimo re<strong>da</strong>ctor<br />

<strong>da</strong> regra afirma que se <strong>de</strong>via proce<strong>de</strong>r assim no traçado<br />

<strong>da</strong> ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> proa do navio <strong>de</strong> oitenta tonéis, mas não nos<br />

outros, sendo certo que a tarefa é tanto mais exigente<br />

quanto maior é o tamanho do navio.<br />

Depois <strong>da</strong> quilha e dos lançamentos, chegava a altura<br />

<strong>de</strong> colocar a caverna mestra, que <strong>de</strong>cidia o <strong>de</strong>senho do<br />

casco do navio e era uma <strong>da</strong>s peças estruturais mais importantes.<br />

A partir <strong>da</strong> colocação <strong>da</strong> mestra <strong>de</strong>terminava-se a<br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras até às almogamas, quer dizer, as últimas<br />

cavernas cuja colocação sobre a quilha era calcula<strong>da</strong> por<br />

regras. O <strong>de</strong>senho <strong>da</strong> mestra e cálculo do ponto <strong>da</strong> quilha<br />

sobre o qual era assente, variava, uma vez mais, consoante<br />

o construtor. Cabia-lhe ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>cidir dos tipos <strong>de</strong> réguas<br />

gradua<strong>da</strong>s (graminhos) que iria usar para obter a redução<br />

<strong>da</strong> largura <strong>da</strong>s cavernas, <strong>de</strong> modo a que a sua colocação<br />

progressiva fosse <strong>de</strong>finindo o estreitamento <strong>da</strong>s linhas do<br />

casco para vante e para ré. Segundo Fernando Oliveira, as<br />

cavernas <strong>de</strong>viam ser coloca<strong>da</strong>s em número igual aos dos<br />

rumos <strong>da</strong> quilha para vante e para ré a partir <strong>da</strong> mestra.<br />

Quilha, lançamentos e cavernas constituiam o esqueleto<br />

do navio. Este processo <strong>de</strong> construção, não por acaso,<br />

<strong>de</strong>signa-se em inglês por skeleton-first, ou carvel-built system.<br />

Em português é a junção pelos topos <strong>da</strong>s ma<strong>de</strong>iras<br />

do forro que origina a expressão forro liso, por oposição ao<br />

forro trincado em que as placas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira são justapostas<br />

como as telhas, com um rebordo <strong>de</strong> uma sobre outra.<br />

93


Retomando a primeira <strong>da</strong>s <strong>de</strong>signações inglesas, isto<br />

significa que se constrói primeiro o “esqueleto”, que é em<br />

segui<strong>da</strong> forrado pelas tábuas (o forro era especialmente<br />

reforçado nos navios preparados para viagens excepcionalmente<br />

duras, como as <strong>da</strong> Rota do Cabo). A técnica, característica<br />

do Sul <strong>da</strong> Europa e do Mediterrâneo em geral,<br />

opõe-se à do shell-first, ou forro trincado, na qual, como o<br />

próprio nome o indica, a construção do casco prece<strong>de</strong> a<br />

colocação <strong>da</strong>s cavernas, que são assim peças <strong>de</strong> reforço<br />

estruturais. Mais comum no Norte <strong>da</strong> Europa, a técnica do<br />

forro trincado era conheci<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a orla marítima europeia,<br />

mas no Sul serviu sobretudo para as embarcações<br />

mais pequenas, enquanto a Norte era usa<strong>da</strong> em todos os<br />

tipos <strong>de</strong> construção. As evi<strong>de</strong>ntes limitações do shell-first,<br />

por falta <strong>de</strong> garantia <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z estrutural, levaram a que a<br />

técnica oriun<strong>da</strong> do Sul fosse geralmente adopta<strong>da</strong> e nos<br />

inícios do século XVI já era comum em to<strong>da</strong> a parte. Em Portugal<br />

não se conheceu outra para a construção <strong>de</strong> navios<br />

oceânicos; Fernando Oliveira não faz qualquer comentário<br />

a tal propósito, porque não se punha sequer em causa que<br />

as naus pu<strong>de</strong>ssem ser construí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> outro modo.<br />

Esta técnica é também conheci<strong>da</strong> por carvel method,<br />

além <strong>de</strong> carvel-built system. Nos estudos <strong>de</strong> origem<br />

anglo-saxónica é ain<strong>da</strong> muito frequente a expressão carvel<br />

planking, para <strong>de</strong>signar o método do forro liso. Já foi <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong><br />

a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que estas expressões <strong>de</strong>rivam <strong>da</strong> caravela<br />

portuguesa, ou seja, que os navegadores do Norte e<br />

Noroeste <strong>da</strong> Europa passaram a i<strong>de</strong>ntificá-la com os primeiros<br />

navios que teriam visto serem construídos por este<br />

processo.<br />

Sabe-se que houve portugueses a construir navios na<br />

Flandres para o duque Filipe o Bom, como disse, e que em<br />

1438 construíram uma caravela, a que se seguiram mais,<br />

94


sendo os trabalhos acompanhados pela duquesa Isabel, filha<br />

<strong>de</strong> D. João I; portanto ain<strong>da</strong> antes do aparecimento <strong>da</strong><br />

caravela latina <strong>de</strong> dois mastros nas navegações portuguesas<br />

ao longo <strong>da</strong> costa africana. Serão to<strong>da</strong>via precisos mais<br />

<strong>da</strong>dos para garantir que a expressão inglesa <strong>de</strong>rive do nome<br />

do navio português.<br />

Voltando à nau. Com a colocação <strong>da</strong>s peças estruturais<br />

do esqueleto do navio fica concluí<strong>da</strong> uma primeira fase<br />

<strong>da</strong> construção. Mas o mestre construtor é logo chamado a<br />

intervir:<br />

Chegamos ao mais duvidoso <strong>de</strong> to<strong>da</strong> esta<br />

fábrica, porque não tem certas regras por on<strong>de</strong> se<br />

governe, isto é, o alevantar do liame do fundo até<br />

à boca. Na qual parte os mestres <strong>de</strong>sta obra têm<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para mostrar suas habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e nisto<br />

po<strong>de</strong>m fazer boa obra, se souberem. Isto é o que<br />

escon<strong>de</strong>m, e guar<strong>da</strong>m para si sós, e são nisto tão<br />

avarentos que o não querem ensinar, nem a seus<br />

filhos.15<br />

Esta passagem é uma <strong>da</strong>s mais importantes do <strong>Livro</strong><br />

<strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus e, porque não dizê-lo, <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a documentação<br />

técnica portuguesa.<br />

Como já se percebeu, uma boa parte <strong>da</strong> fábrica <strong>da</strong>s<br />

naus ficava ao arbítrio dos construtores. As regras ain<strong>da</strong> vão<br />

mais além <strong>de</strong>sta primeira fase que acompanhámos sumariamente,<br />

embora nem Oliveira nem Lavanha tenham acabado<br />

os seus navios, por assim dizer (em ambos os livros não está<br />

concluí<strong>da</strong> a explicação total do processo). Nos outros regimentos<br />

existentes encontram-se <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s<br />

para a construção do casco até à primeira coberta, embora<br />

15 Fernando Oliveira, op. cit., p. 108.<br />

95


com escassas indicações sobre os procedimentos. Mas ficava<br />

muita coisa por fazer, nomea<strong>da</strong>mente a erecção dos<br />

castelos <strong>de</strong> popa e proa.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se facilmente que a morfologia do navio<br />

e as suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s marinheiras <strong>de</strong>pendiam em muito <strong>da</strong><br />

maneira como os mestres construíam as superestruturas,<br />

para o que existem nos documentos algumas indicações <strong>de</strong><br />

medi<strong>da</strong>s, por exemplo <strong>da</strong> tol<strong>da</strong> e do chapitéu, os pavimentos<br />

do castelo <strong>da</strong> popa; mas na<strong>da</strong> que se compare às instruções<br />

para a fase anterior, não dispensando, portanto, uma larga<br />

margem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão do mestre.<br />

Fernando Oliveira acrescenta um <strong>da</strong>do importante: o<br />

mestre <strong>de</strong>cidia também o levantamento do liame (isto é, o<br />

conjunto <strong>da</strong>s peças que <strong>de</strong>finia o esqueleto do navio), do<br />

fundo até à boca (largura máxima <strong>da</strong> embarcação), e todos<br />

os profissionais do ofício ro<strong>de</strong>avam <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> segredo a<br />

maneira <strong>de</strong> o fazer.<br />

Importa nesta altura esclarecer uma confusão terminológica<br />

frequente. A palavra caverna ocorre tanto nos documentos<br />

como nos textos historiográficos para <strong>de</strong>signar aquilo<br />

que é na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a baliza, ou seja, a peça <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />

em forma <strong>de</strong> ‘U’ que assenta sobre a quilha e constitui parte<br />

<strong>da</strong> “ossatura” do navio. Para exemplificar com a imagem do<br />

próprio Fernando Oliveira, a quilha seria a espinha e as balizas<br />

as costelas.<br />

A baliza divi<strong>de</strong>-se em três partes: caverna, braço e<br />

apostura, ou haste, como ocorre em Oliveira. No sentido<br />

estrito, caverna é a peça <strong>de</strong> baixo, posta a direito sobre a<br />

quilha na qual assenta. O ponto em que começa a curvar<br />

para cima chama-se côvado, e aí começa o braço.<br />

A palavra caverna tem por isso um significado próprio<br />

que não é equivalente ao sentido que se toma por facili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> expressão, talvez por <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> ser a parte mais<br />

96


importante <strong>da</strong> baliza, passando a <strong>de</strong>signá-la por extensão.<br />

Um hábito que se tornou confuso, sem dúvi<strong>da</strong>, mas o certo<br />

é que se encontra a expressão “caverna mestra” com muita<br />

frequência, e quando acompanha<strong>da</strong> por um <strong>de</strong>senho é<br />

<strong>da</strong> baliza que se trata. Acontece assim, por exemplo, com<br />

uma <strong>da</strong>s figuras do <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus, que leva<br />

por título “Figura dos braços, e hastes <strong>da</strong>s cavernas mestras,<br />

e rol <strong>de</strong>las”.<br />

Aquilo que Oliveira diz no trecho <strong>da</strong> sua obra <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

se extractou a passagem cita<strong>da</strong> acima é que as regras só<br />

explicavam a colocação <strong>da</strong> caverna propriamente dita. O<br />

prolongamento a partir do côvado ficaria integralmente por<br />

conta do mestre, o quer quer dizer que este <strong>de</strong>cidia <strong>da</strong> forma<br />

do casco, em última análise. Há regimentos que são<br />

mais completos, nomea<strong>da</strong>mente no <strong>Livro</strong> <strong>de</strong> Traças <strong>de</strong> Carpintaria,<br />

a partir do qual Pimentel Barata estudou a recontituição<br />

geométrica do traçado <strong>da</strong> mestra por comparação<br />

com a regra <strong>da</strong><strong>da</strong> por Lavanha. Fica por explicar o sentido<br />

exacto <strong>da</strong> frase <strong>de</strong> Oliveira, à qual tem <strong>de</strong> se <strong>da</strong>r o relevo<br />

<strong>de</strong>vido neste lugar.<br />

A leitura atenta dos tratados e regimentos técnicos <strong>de</strong><br />

arquitectura naval <strong>de</strong>ixa claro que o navio podia ser construído<br />

até ao convés (a coberta que tem uma parte aberta<br />

ao ar livre) seguindo regras estipula<strong>da</strong>s, mas a partir <strong>da</strong>í<br />

tudo <strong>de</strong>pendia do arbítrio do mestre. A fábrica dos navios,<br />

até à época <strong>da</strong> tratadística e incluindo-a, é essencialmente<br />

empírica, no sentido em que as mais rigorosas <strong>da</strong>s regras<br />

<strong>de</strong>ixavam o remate <strong>da</strong> obra entregue a um critério <strong>de</strong> execução<br />

que <strong>de</strong>corria em absoluto <strong>da</strong> prática. O resultado <strong>final</strong><br />

tinha que o reflectir. Nestas circunstâncias, compreen<strong>de</strong>-se<br />

melhor o que queria dizer Fernando Oliveira quando afirmava<br />

que no fundo ninguém sabia bem o que esperar como<br />

resultado <strong>final</strong> <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> um navio:<br />

97


22 Figura dos braços e hastes <strong>da</strong>s cavernas mestras, segundo Fernando Oliveira.<br />

98


posto que tenha regras por on<strong>de</strong> se há-<strong>de</strong> governar<br />

no principal, nas miu<strong>de</strong>zas, e partes em que<br />

se comete ao entendimento dos mestres, tem<br />

tanta varie<strong>da</strong><strong>de</strong> que quase é infinita: por que não<br />

abasta ser tanta como são os mestres, conforme<br />

ao provérbio vulgar, que diz quantas são as cabeças<br />

tantos são os sentidos; mas nem os mesmos<br />

mestres se conformam consigo mesmos: porque<br />

muitas vezes acontece um mestre fazer dois navios<br />

juntamente em um tempo, em um varadouro, a par<br />

um do outro, <strong>da</strong> mesma ma<strong>de</strong>ira, com as mesmas<br />

medi<strong>da</strong>s, e do mesmo tamanho, e sair um melhor<br />

que outro; e não somente um bom e outro melhor,<br />

mas um muito bom e outro muito ruim. Quero dizer<br />

que um navega muito bem e outro navega muito<br />

mal, sem o mestre enten<strong>de</strong>r o porquê disto.16<br />

Ter-se-ia <strong>de</strong> esperar muito mais tempo para que a engenharia<br />

naval viesse a ser capaz <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizar um navio ao<br />

mínimo pormenor, <strong>de</strong>ixando ao estaleiro apenas a parte <strong>da</strong><br />

execução. Mas no início nessa longa caminha<strong>da</strong> pontificaram<br />

os primeiros autores dos tratados portugueses <strong>de</strong> arquitectura<br />

naval, que em muitos aspectos lançaram os primórdios<br />

<strong>da</strong> arte.<br />

16 Fernando Oliveira, op. cit., pp. 49-50.<br />

99


100


Antologia


PRÓLOGO<br />

<strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus<br />

<strong>de</strong> Fernando Oliveira17<br />

Para a arte <strong>da</strong> navegação os mais necessários instrumentos<br />

são navios, sem os quais se não po<strong>de</strong> executar esta<br />

arte; nem se po<strong>de</strong> cui<strong>da</strong>r, como houvesse jamais navegação<br />

sem navios, <strong>de</strong> qualquer maneira que fossem, ain<strong>da</strong> que imperfeitos,<br />

e não tão acabados como agora são. Porque nenhuma<br />

arte teve instrumentos perfeitos em seus princípios;<br />

nem os navios logo no começo foram perfeitos; mas quanto<br />

mais os homens usam <strong>de</strong>les, mais enten<strong>de</strong>m as faltas que<br />

neles há, e as vão emen<strong>da</strong>ndo: como fazem em to<strong>da</strong>s as<br />

artes, e instrumentos <strong>de</strong>las. E porquanto os navios são necessários<br />

para a arte <strong>da</strong> navegação, e a navegação para a<br />

gente <strong>de</strong>sta terra <strong>de</strong> Portugal, cujas viven<strong>da</strong>s em muita parte<br />

pen<strong>de</strong>m do mar: não somente as do povo, mas também a do<br />

estado real, que pelo mar tem muitas ilhas, e terras, e conquistas:<br />

as quais se não po<strong>de</strong>m conquistar, nem governar<br />

sem navegação. Portanto consi<strong>de</strong>rando eu quanto releva a<br />

este reino ter bons navios, e carpinteiros que os façam, <strong>de</strong>terminei<br />

escrever este livro <strong>da</strong> fábrica <strong>da</strong>s naus: no qual ponho<br />

esta arte em regras, e preceitos or<strong>de</strong>nados, e claros; <strong>de</strong><br />

maneira, que os possa enten<strong>de</strong>r, e usar to<strong>da</strong> pessoa: porque<br />

até agora andou isto escondido em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> homens avarentos,<br />

que o não queriam ensinar; e se ensinavam alguém,<br />

17 Fernando Oliveira, <strong>Livro</strong> <strong>da</strong> Fábrica <strong>da</strong>s Naus, ms. 3702 dos Reservados <strong>da</strong><br />

Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Portugal. Vertido para português mo<strong>de</strong>rno, mantendo a<br />

pontuação original, a partir <strong>da</strong> fixação do texto in <strong>Francisco</strong> Contente Domingues,<br />

Os Navios <strong>da</strong> Expansão, Dissertação <strong>de</strong> Doutoramento apresenta<strong>da</strong> à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Lisboa, vol. II, 2000, pp. 13-169.<br />

103


era imperfeitamente: por que ensinavam somente algumas<br />

coisas poucas por palavra, e prática muito vulgar. E também<br />

me parece, que não ensinavam bem esta arte, por que a não<br />

entendiam bem: porque os mestres que enten<strong>de</strong>m mal o que<br />

ensinam são escuros na prática, assim como os seus entendimentos<br />

estão escuros nas matérias que praticam. Desta<br />

maneira an<strong>da</strong>va esta arte às escondi<strong>da</strong>s, e não vinha a lume<br />

para se emen<strong>da</strong>r, e acrescentar pelos juízos dos homens <strong>de</strong><br />

bons entendimentos, que o costumam fazer nas outras artes,<br />

como eu <strong>de</strong>sejo que se faça nesta <strong>da</strong>qui por diante, e que<br />

as pessoas que isto enten<strong>de</strong>rem melhor que eu, escrevam,<br />

e emen<strong>de</strong>m o que me a mim falta: por que nisso me farão<br />

honra e não afronta; porquanto eu pretendo aproveitar aos<br />

que <strong>de</strong>sejam saber, e não pretendo próprio louvor, nem interesse;<br />

mas antes para mim será glória, e gosto <strong>da</strong>r eu causa<br />

a se apurar esta arte: porque para isso tomei muito trabalho<br />

an<strong>da</strong>ndo por muitos portos <strong>de</strong> mar <strong>da</strong> Espanha, e França,<br />

Italia, Inglaterra, e alguns <strong>de</strong> terra <strong>de</strong> mouros, vendo suas taracenas,<br />

e praticando com seus carpinteiros, e apren<strong>de</strong>ndo<br />

seus estilos, e modos <strong>de</strong>sta carpintaria, e fábrica. Da qual<br />

ninguém escreveu até agora, em nossa língua, nem grega,<br />

nem latina, nem outra alguma que eu saiba; nem há outra<br />

escritura que trate <strong>de</strong>sta matéria, somente a segun<strong>da</strong> parte<br />

<strong>da</strong> minha arte <strong>da</strong> navegação, que escrevi em língua latina;<br />

porém essa também é minha, e nasceu <strong>de</strong> meu trabalho, e<br />

diligência, como esta. E para que a doutrina <strong>de</strong>ste livro fosse<br />

mais certa, cotejei o que vi pelas outras terras com o estilo<br />

<strong>da</strong> ribeira <strong>de</strong> Lisboa, que agora prece<strong>de</strong> a to<strong>da</strong>s as que eu<br />

vi; assim por que <strong>de</strong>la se fazem as mais gran<strong>de</strong>s, e importantes<br />

navegações <strong>de</strong> todo o mundo, as quais têm necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> bons navios; como também, por que nela têm carrego<br />

<strong>de</strong>sta fábrica homens nobres, e graves, encarregados disso<br />

por Elrei nosso senhor: os quais põem muita diligência<br />

104


para que se faça com to<strong>da</strong> a perfeição possível. To<strong>da</strong> esta<br />

diligência, e mais, é necessária para coisa que tanto releva.<br />

Mais releva esta fabrica, que a <strong>da</strong>s casas, e procuram os<br />

arquitectores <strong>de</strong> se esmerar em seu ofício; pois muito mais<br />

se <strong>de</strong>vem esmerar, e solicitar os nossos carpinteiros navais,<br />

cuja falta, ou <strong>de</strong>scuido po<strong>de</strong> fazer mais <strong>da</strong>no que o dos arquitectores.<br />

Mais certo é o <strong>da</strong>no, e perigo <strong>de</strong> uma nau mal<br />

feita, e sem proporção <strong>de</strong> medi<strong>da</strong>s, que <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong>sproporciona<strong>da</strong>:<br />

por que uma casa esconça, torta, <strong>de</strong>sigual,<br />

e sem medi<strong>da</strong>s proporcionais, muito larga, muito estreita,<br />

muito alta, muito baixa, e com outras faltas fora <strong>da</strong>s regras<br />

<strong>da</strong> sua fábrica, se for bem fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em bons alicerces, e tiver<br />

boas pare<strong>de</strong>s, e telhado, só com isto fará seu ofício, que é<br />

cobrir, e acolher os que nela moram, sem perigo, nem <strong>da</strong>no,<br />

que por sua causa venha; mas uma nau ain<strong>da</strong> que tenha boa<br />

ma<strong>de</strong>ira, e bem prega<strong>da</strong>, e seja forte, se não tiver boa simetria,<br />

não prestará para na<strong>da</strong>. Se for mais baixa do que <strong>de</strong>ve<br />

ser, afoga-la-á o mar; se for mais alta emborca-la-á o vento;<br />

se for muito estreita, não sofrerá vela; se for muito larga,<br />

não governará; se tiver um costado maior que outro, pen<strong>de</strong>rá<br />

com gran<strong>de</strong> prejuízo dos que forem <strong>de</strong>ntro nela. E assim<br />

com qualquer outro <strong>de</strong>feito que tenha uma nau, por pequeno<br />

que seja, não será boa, nem fará bem seu ofício. Portanto,<br />

pois na arquitectura se esmeram muito os homens oficiais<br />

<strong>de</strong>la, e escrevem preceitos, e regras <strong>de</strong>la, fazendo disso<br />

muito caso, e encomen<strong>da</strong>ndo muito que se guar<strong>de</strong>m suas<br />

regras, e encarecendo-as; e o mesmo fazem os <strong>da</strong> agricultura,<br />

e <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras artes ca<strong>da</strong> um na sua; não é muito,<br />

nem <strong>de</strong>ve ser estranhado, nem havido por <strong>de</strong>snecessário<br />

fazer-se outro tanto nesta fábrica <strong>da</strong>s naus; cujos erros são<br />

mais prejudiciais, que os <strong>da</strong> arquitectura, nem outra alguma<br />

arte; e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> errados têm menos emen<strong>da</strong>: porque ou são<br />

ocultos, e não se enten<strong>de</strong>m; ou são em partes tão principais,<br />

105


que para se emen<strong>da</strong>rem é necessário <strong>de</strong>sfazer a máquina<br />

to<strong>da</strong>. Mas antes se <strong>de</strong>vem espantar os homens que sentem<br />

quanto isto importa, do muito <strong>de</strong>scuido que há em coisa tão<br />

importante como é esta; e <strong>de</strong> como nunca houve quem se<br />

lembrasse <strong>de</strong> escrever <strong>de</strong>sta fábrica, havendo tanta curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

nos homens, que buscam vai<strong>da</strong><strong>de</strong>s sem proveito <strong>de</strong><br />

que escrevam; e esta arte tão necessária <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> todo<br />

esqueci<strong>da</strong>: tanto que zombam <strong>de</strong> mim, porque escrevo <strong>de</strong>la;<br />

e são estes os mesmos a que ela mais releva; <strong>de</strong>les porque<br />

não sentem sua per<strong>da</strong>, e <strong>de</strong>les porque não querem que seja<br />

senti<strong>da</strong>: porque diz Deus, que os que mal fazem fogem <strong>da</strong><br />

luz, por seu erro não ser visto. A or<strong>de</strong>m que leva este livro,<br />

é tratar primeiro <strong>da</strong>s ma<strong>de</strong>iras acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s para a fábrica<br />

naval, e <strong>de</strong> suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s; e do tempo em que <strong>de</strong>vem ser<br />

colhi<strong>da</strong>s, e por que modo; Depois trata dos achegos que<br />

com a ma<strong>de</strong>ira são necessários: que são pregadura, estopa,<br />

breu, e outros semelhantes. Depois <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s, e simetria<br />

<strong>da</strong>s naus, e suas partes, em ca<strong>da</strong> género, e espécie <strong>de</strong>las;<br />

e <strong>de</strong> seus aparelhos, que são governalho, mastros, vergas,<br />

velas, remos, enxárceas, cabres, âncoras, bombas, e outras<br />

máquinas, e instrumentos necessários para o serviço <strong>da</strong>s ditas<br />

naus, e <strong>da</strong>s taracenas, e varadouros. Dos quais também<br />

por <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro se dirá alguma coisa: e do modo, e engenhos,<br />

<strong>de</strong> varar, e lançar as naus. Nisto acabará o presente livro,<br />

com o favor, e aju<strong>da</strong> do senhor Deus, para proveito dos sisudos,<br />

e diligentes.<br />

106


<strong>Livro</strong> Primeiro <strong>da</strong> Arquitectura Naval<br />

<strong>de</strong> João Baptista Lavanha18<br />

Cap. IIII<br />

Da Arquitectura e Arquitecto Naval<br />

A esta nossa Arquitectura Naval e ao seu professor<br />

pertence o que se disse <strong>da</strong> Arquitectura e do Arquitecto Universal,<br />

e assim é ela gera<strong>da</strong> <strong>da</strong> Prática e <strong>da</strong> especulação e<br />

ambas convém que tenha o seu Arquitecto sendo prático no<br />

lavor <strong>da</strong> matéria, <strong>de</strong> que esta Arte se serve (que é ma<strong>de</strong>ira) e<br />

muito especulativo para <strong>de</strong>monstrar e <strong>de</strong>clarar a proporção<br />

e Arte com que or<strong>de</strong>na o seu navio para que assim satisfaça<br />

as perguntas dos sábios e se livre <strong>da</strong>s zombarias dos<br />

ignorantes. É mais necessário, que saiba traçar e <strong>de</strong>buxar<br />

e tenha alguma boa notícia <strong>da</strong> Astronomia e muita <strong>da</strong> Aritmética,<br />

<strong>da</strong> Geometria e <strong>da</strong> Mecânica que são partes <strong>da</strong>s<br />

Matemáticas porque com a traça representará suas obras e<br />

com o <strong>de</strong>buxo lhes <strong>da</strong>rá a graça que sem ele não po<strong>de</strong>m ter,<br />

com a aritmética orçará a <strong>de</strong>spesa do Navio que preten<strong>de</strong><br />

fazer e enten<strong>de</strong>rá as proporções <strong>da</strong>s suas medi<strong>da</strong>s. A Geometria<br />

o ensinará medir to<strong>da</strong>s as partes <strong>da</strong> sua fábrica e<br />

nivela-as esquadra-as, e compassa-las, Arquear os Navios e<br />

usar <strong>da</strong>s Linhas dos ângulos, e <strong>da</strong>s superficies, e <strong>de</strong> outras<br />

muitas coisas, que <strong>de</strong>sta ciência <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m, <strong>da</strong> Astronomia<br />

há mister o conhecimento dos tempos acomo<strong>da</strong>dos para o<br />

corte <strong>da</strong>s ma<strong>de</strong>iras segundo o sítio <strong>da</strong> Província em que nas-<br />

18 João Baptista Lavanha, <strong>Livro</strong> Primeiro <strong>da</strong> Architectura Naval, Cod. 9/1068 <strong>da</strong><br />

Colecção Salazar y Castro, Biblioteca <strong>da</strong> Real Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> la História (Madrid).<br />

Vertido para português mo<strong>de</strong>rno, mantendo a pontuação original, a partir <strong>da</strong><br />

fixação do texto por Susana Münch Miran<strong>da</strong>, in João Baptista Lavanha, <strong>Livro</strong><br />

Primeiro <strong>da</strong> Architectura Naval, Lisboa, Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Marinha, 1996, pp. 15-63.<br />

107


cem, e se criam em respeito do Céu e <strong>de</strong> suas influências,<br />

e assim as notícias <strong>da</strong>s Marés <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do movimento<br />

<strong>da</strong> lua e <strong>da</strong>s suas conjunções e oposições para <strong>de</strong>itar os<br />

Navios ao mar, ou tirá-los a Monte. A Mecânica lhe dá to<strong>da</strong>s<br />

as Máquinas, <strong>de</strong> que se serve na sua fábrica naval, como<br />

são as Envasaduras, os Guin<strong>da</strong>stes, Cabrestantes, Cabres<br />

e Polés. Esta ciência mostra a razão <strong>da</strong> Querena do governo<br />

do Leme e <strong>da</strong> navegação com os Remos, nela está fun<strong>da</strong>do<br />

todo o manejo <strong>da</strong> enxárcia, e com o seu conhecimento se<br />

inventarão outras muitas Máquinas a tempo e a lugar convenientes<br />

e necessárias.<br />

E porque esta nossa Arquitectura Naval consta também<br />

<strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nação, Disposição, Correspondência, Ornato,<br />

Decoro e Distribuição, convém que o seu Arquitecto guar<strong>de</strong><br />

com gran<strong>de</strong> observância to<strong>da</strong>s estas partes nas suas obras,<br />

pelo que usando <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>nação é necessário, primeiro que<br />

tudo, que forme na sua imaginação, uma figura do Navio,<br />

que quer fabricar, e que esta perfeiçoe com o entendimento,<br />

e com as regras <strong>da</strong> sua Arte, para que emen<strong>da</strong><strong>da</strong>, por este<br />

modo, <strong>da</strong>s faltas, e inconvenientes, que se lhe representarem,<br />

a possa logo (servindo-se <strong>da</strong> Disposição) traçar, em todos<br />

os cinco modos, <strong>de</strong> que usa esta Parte. E assim fará as<br />

Plantas do seu Navio, que nesta Fábrica, serão as figuras, <strong>da</strong><br />

Quilha, <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> Proa, do Co<strong>da</strong>ste, do Gio, dos Revesados,<br />

<strong>da</strong> Caverna mestra, do Braço <strong>da</strong> Apostura, <strong>da</strong> Abertura<br />

do Navio on<strong>de</strong> é mais largo, e assim <strong>da</strong>s cobertas e do mais<br />

que quiser <strong>de</strong>senhar por este modo. Fará logo Montras <strong>da</strong><br />

Popa, <strong>da</strong> Proa, e <strong>de</strong> um ou do outro Costado do Navio. E<br />

com o Perfil mostrará as suas partes interiores, cortando-o<br />

ao longo, <strong>de</strong> Popa à Proa, ou através, por qualquer lugar que<br />

quiser que se vejam. Porá <strong>de</strong>pois em Perspectiva to<strong>da</strong> esta<br />

fábrica segundo a vista e sítio, que escolher. E ultimamente<br />

o que mais importa, obrará <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>ira um Mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>la, no<br />

108


qual conhecerá melhor as faltas que na imaginação e assim<br />

emen<strong>da</strong><strong>da</strong>s o acabará para que por ele se faça com muita<br />

perfeição o Navio que <strong>de</strong>termina fabricar. E não pareça<br />

ao Professor <strong>de</strong>sta Arte que quer merecer o nome <strong>de</strong> Arquitecto<br />

<strong>de</strong>la, que po<strong>de</strong> escusar o uso <strong>de</strong>stas cinco Partes <strong>da</strong><br />

Disposição e que lhe basta saber as medi<strong>da</strong>s do proposto<br />

navio para sem as ditas partes o po<strong>de</strong>r acabar sem o que<br />

se enganará gran<strong>de</strong>mente e cometerá muitos erros. E para<br />

fugir <strong>de</strong>les, convém que faça o Mo<strong>de</strong>lo, no qual primeiro os<br />

emen<strong>de</strong>, e este perfeito lhe sirva <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> e exemplar pelo<br />

qual fabrique todos os Navios <strong>da</strong>quele género e gran<strong>de</strong>za.<br />

Mas como o Mo<strong>de</strong>lo custe tempo, e dinheiro, dá-se por mal<br />

gasta<strong>da</strong> a <strong>de</strong>spesa <strong>de</strong> ambos e não se faz consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong><br />

muito que importa a fábrica <strong>de</strong> uma Nau <strong>da</strong> Índia, para com<br />

cem cruzados mais (mais é o que po<strong>de</strong> custar o seu mo<strong>de</strong>lo)<br />

fazer-se acerta<strong>da</strong> e sem erros.<br />

Deve mais o nosso Arquitecto consi<strong>de</strong>rar com gran<strong>de</strong><br />

cui<strong>da</strong>do, outras três partes <strong>da</strong> Arquitectura que são a<br />

Correspondência, o Ornato, e o Decoro, e procurar que se<br />

vejam nas suas obras, para o que lhe será <strong>de</strong> muito momento<br />

a construção e presença do mo<strong>de</strong>lo, porque busca<strong>da</strong>s e<br />

acha<strong>da</strong>s nele estas 3 Partes as terá também o Navio, que<br />

por ele se houver <strong>de</strong> fabricar. E assim convém que nas suas<br />

partes se guar<strong>de</strong> a Correspondência, não bastando que to<strong>da</strong>s<br />

elas tenham suas <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s, senão que estas<br />

convenham <strong>de</strong> tal maneira entre si, que se respon<strong>de</strong>rão<br />

proporciona<strong>da</strong>mente, para que nenhuma coisa sobeje nem<br />

falte com a proporção, a obra seja firme e a Arte que se faz<br />

maravilhosa. Tal é por certo esta nossa porque ver a Correspondência<br />

em um Navio, na sua Quiha, no Co<strong>da</strong>ste, no<br />

Gio, nos Lançamentos, nos Delgados, na Caverna Mestra,<br />

na Altura <strong>da</strong>s Cobertas, na Maior Largura, no comprimento<br />

e grossura dos Mastros, e vergas no tamanho <strong>da</strong>s velas, na<br />

109


Gran<strong>de</strong>za <strong>da</strong>s Gáveas, no sítio e distribuição <strong>de</strong> alguns lugares,<br />

e assim em to<strong>da</strong>s as outras coisas como se verá adiante.<br />

Não é menos para admirar que a Artificiosa composição do<br />

Corpo humano, no qual (sendo bem proporcionado) assim<br />

como qualquer parte parte sua é comum medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> todo<br />

e com ela só se po<strong>de</strong> vir em conhecimento <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a sua<br />

gran<strong>de</strong>za e compostura, do mesmo modo qualquer parte do<br />

Navio fabricado com Arte o me<strong>de</strong> todo, e por ela, se po<strong>de</strong>rá<br />

conhecer o seu tamanho, e fazer outro Navio em tudo semelhante<br />

ao <strong>de</strong>sfeito. Tendo a fábrica do nosso Arquitecto esta<br />

Correspondência tão necessária, to<strong>da</strong>s as suas larguras,<br />

comprimentos e alturas se respon<strong>de</strong>rão entre si com gran<strong>de</strong><br />

Harmonia, como uma bem tempera<strong>da</strong> viola, <strong>de</strong> que receberá<br />

a obra uma agradável formosura e <strong>de</strong>leitosa vista, que é a<br />

outra parte <strong>da</strong>s três chama<strong>da</strong> Ornato. E quando se guar<strong>da</strong>r<br />

na mesma fábrica a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> ao tempo e ao lugar<br />

fazendo os Navios conforme aos Mares por que hão-<strong>de</strong><br />

Navegar aos Portos em que hão-<strong>de</strong> entrar e ao serviço que<br />

<strong>de</strong>les se há-<strong>de</strong> ter, conseguir-se-á o Decoro.<br />

É também necessário que além <strong>da</strong>s Partes ditas que<br />

se hão-<strong>de</strong> manifestar nas obras do Arquitecto Naval, se enxergue<br />

nele a Distribuição para que usando <strong>de</strong>la gaste com<br />

temperança as matérias <strong>da</strong> sua obra e a faça com a mais<br />

mo<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> <strong>de</strong>spesa que pu<strong>de</strong>r, acomo<strong>da</strong>ndo-se a terra on<strong>de</strong><br />

fabrica servindo-se do que nela há e não procurando a que<br />

se não po<strong>de</strong> alcançar sem gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>spesa porque com tal<br />

varie<strong>da</strong><strong>de</strong> obra neste mundo inferior a Natureza que em uma<br />

Província produz Teca, o Angelim em outra o Sôvaro, o Carvalho,<br />

o Pinho, em outra o Lerez, o Abeto e em outra diferentes<br />

ma<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong>m fazer Navios, em uma parte<br />

há Linho e Cânhamo em outra supre esta falta com Cairo em<br />

uma dão as Árvores Breu e em outra há certo Bitume, que<br />

serve ao mesmo efeito, com as quais varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s orna<strong>da</strong> a<br />

110


terra, é mais formosa que se to<strong>da</strong> ela produzira tudo. Use pois o<br />

nosso Arquitecto <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s estas coisas, segundo o lugar on<strong>de</strong> estiver<br />

com que exercitando a Distribuição, e servindo-se <strong>da</strong>s outras<br />

cinco partes <strong>da</strong> Arquitectura, e acompanhado <strong>da</strong>s ciências com<br />

que o ornamos será perfeito na sua profissão e merecerá com Justo<br />

título o nome <strong>de</strong> Arquitecto Naval.


Novas Leituras<br />

113


114


O leitor que quiser aprofun<strong>da</strong>r os seus conhecimentos<br />

sobre os navios portugueses dos Descobrimentos tem à<br />

sua escolha uma panóplia <strong>de</strong> leituras razoável, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o pequeno<br />

texto <strong>de</strong> divulgação até às obras eruditas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

extensão. Nestas sugestões incluem-se sobretudo livros em<br />

português, <strong>de</strong> modo geral relativamente acessíveis.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma selecção que se assume como tal: a<br />

ausência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado título resulta <strong>de</strong> uma escolha<br />

proposita<strong>da</strong> e não <strong>de</strong> omissão, em função dos temas e na<br />

forma como foram tratados no texto, o que também teve<br />

consequências nas opções que se seguem. Outros temas<br />

ou outro tipo <strong>de</strong> tratamento dos assuntos levariam a escolhas<br />

diferentes.<br />

Não se incluem artigos em revistas eruditas; essas referências<br />

mais específicas encontra-las-á o leitor no aparato<br />

erudito <strong>da</strong>s obras cita<strong>da</strong>s abaixo.<br />

OBRAS DE REFERÊNCIA<br />

Dicionário <strong>de</strong> História dos Descobrimentos Portugueses, dir. <strong>de</strong> Luís<br />

<strong>de</strong> Albuquerque e coord. <strong>de</strong> <strong>Francisco</strong> Contente Domingues, 2 vols.,<br />

Lisboa, Círculo <strong>de</strong> Leitores e Editorial Caminho, 1994.<br />

LEITÃO, Humberto (com colab. <strong>de</strong> José Vicente Lopes), Dicionário<br />

<strong>da</strong> Linguagem <strong>de</strong> Marinha Antiga e Actual, 3ª edição, Lisboa, Edições<br />

Culturais <strong>da</strong> Marinha, 1990.<br />

PICO, Maria Alexandra Tavares Carbonell, A Terminologia Naval Portu-<br />

guesa Anterior a 1460, Lisboa, Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lingua Portuguesa,<br />

1964.<br />

115


BIBLIOGRAFIA<br />

DOMINGUES, <strong>Francisco</strong> Contente, Arqueologia naval portuguesa. Histó-<br />

ria, conceito, bibliografia, Lisboa, Edições Culturais <strong>da</strong> Marinha, 2003.<br />

ARQUEOLOGIA NAVAL DOS SÉCULOS XV-XVI<br />

HOWARD, Frank, Sailing Ships of War 1400-1860, Londres, Conway<br />

Maritime Press, 1987.<br />

UNGER, Richard, ed., Cogs, Caravels and Galleons. The Sailing Ship<br />

1000-1650, Londres, Conway Maritime Press, 1994.<br />

INTRODUÇÃO GERAL AOS NAVIOS DOS DESCOBRIMENTOS<br />

ANDRADE, Ama<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Carvalho, Os navios que <strong>de</strong>scobriram o Mun-<br />

do, Lisboa, Museu <strong>de</strong> Marinha, 1980.<br />

BARRETO, Luís Filipe, Os navios dos Descobrimentos, Lisboa, Cor-<br />

reios <strong>de</strong> Portugal, 1991.<br />

MENDONÇA, Henrique Lopes <strong>de</strong>, Estudos Sobre Navios Portugueses<br />

dos Séculos XV e XVI, Lisboa, Typographia <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Real <strong>da</strong>s<br />

Sciencias, 1892. Reedição: Lisboa, Ministério <strong>da</strong> Marinha, 1969.<br />

[Trata-se do livro clássico sobre o tema, que iniciou os estudos <strong>de</strong> arqueologia<br />

naval em Portugal; a sua leitura é ain<strong>da</strong> útil, apesar <strong>de</strong> estar ultrapassado em<br />

alguns aspectos]<br />

NAVIOS PORTUGUESES DOS SÉCULOS XV E XVI<br />

BARATA, João <strong>da</strong> Gama Pimentel, Estudos <strong>de</strong> Arqueologia Naval, 2 vols.,<br />

Lisboa, Imprensa Nacional-Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 1988.<br />

[Colectânea dos trabalhos publicados em vi<strong>da</strong> do autor, interessando sobretudo o<br />

estudo geral intitulado “Os navios” e os <strong>de</strong>dicados à caravela e ao galeão]<br />

116


CASTRO, Filipe Vieira <strong>de</strong>, A Nau <strong>de</strong> Portugal. Os navios <strong>da</strong> conquista do<br />

Império do Oriente 1498-1650, Lisboa, Prefácio, 2003.<br />

PIRES, António Tengarrinha, Caravelas dos Descobrimentos–II (D-Ca-<br />

ravela <strong>de</strong> meados do séc. XV), Lisboa, Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Marinha, 1990.<br />

PEDROSA, Fernando Gomes, “Os Navios”, in História <strong>da</strong> Marinha Por-<br />

tuguesa. Navios, Marinheiros e Arte <strong>de</strong> Navegar 1139-1499, Lisboa,<br />

Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Marinha, 1999, pp. 1-183.<br />

PISSARRA, José Virgílio Amaro, Chaul e Diu 1508 e 1509. O Domínio<br />

do Índico, Lisboa, Prefácio, 2002.<br />

SALGADO, Augusto, Os Navios <strong>de</strong> Portugal na Gran<strong>de</strong> Arma<strong>da</strong>. O po<strong>de</strong>r<br />

naval português 1574-1592, Lisboa, Prefácio, 2004.<br />

CONSTRUÇÃO NAVAL<br />

COSTA, Maria Leonor Freire, Naus e galeões na Ribeira <strong>de</strong> Lisboa.<br />

A construção naval para a Rota do Cabo no século XVI, Cascais,<br />

Patrimonia, 1997.<br />

OLIVEIRA, Aurélio <strong>de</strong>, Porto. Comércio e Construção Naval, Porto,<br />

Porto <strong>de</strong> Leixões, 2004.<br />

TEORIA DA ARQUITECTURA NAVAL<br />

DOMINGUES, <strong>Francisco</strong> Contente, Os Navios do Mar Oceano. Teo-<br />

ria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII,<br />

Lisboa, Centro <strong>de</strong> História <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, 2004.<br />

XAVIER, Hêrnani Amaral, Novos Elementos para o Estudo <strong>da</strong> Arquitec-<br />

tura Naval Portuguesa Antiga, Lisboa, Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Marinha, 1992.<br />

117


118


Índice<br />

Um Mundo por Descobrir 5<br />

Barcas e Barinéis 13<br />

Caravelas Latinas e Redon<strong>da</strong>s 21<br />

Naus e Naus <strong>da</strong> Índia 37<br />

O Galeão Português 55<br />

Navios <strong>de</strong> Remos e Embarcações Auxiliares 61<br />

Teoria <strong>da</strong> Arquitectura Naval 73<br />

O Processo <strong>de</strong> Construção 85<br />

Antologia 107<br />

Novas Leituras 113<br />

119


120

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