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Guilhermina Jorge - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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<strong>Guilhermina</strong> <strong>Jorge</strong> *<br />

ALGUMAS REFLEXÕES EM TORNO DAS EXPRES-<br />

SÕES IDIOMÁTICAS ENQUANTO ELEMENTOS<br />

QUE PARTICIPAM NA CONSTRUÇÃO DE<br />

UMA IDENTIDADE CULTURAL<br />

A i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> gera-se na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> em aceitar a diferença. A<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo, <strong>de</strong> uma cultura não po<strong>de</strong> ser encara<strong>da</strong>, tendo<br />

em conta a miscegenação dos povos e a universali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos valores,<br />

como “o carácter do que é uno, permanente e semelhante” 1 .<br />

Hoje em dia, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> constrói-se obrigatoriamente na alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

na convivência do “eu” e do “outro”, idêntico (enquanto ser humano)<br />

e diferente (quanto à raça, à crença, à cor, à língua..., mas também<br />

à personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, aos gostos...). A i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve pois ser vista como<br />

uma nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong> emergente <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, que se <strong>de</strong>ve<br />

centrar na humani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O termo <strong>de</strong> “globalização” 2 acompanha esta mesma evolução e variação.<br />

Novos paradigmas <strong>de</strong>verão ser encontrados, novas componentes<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural <strong>de</strong>verão ser traça<strong>da</strong>s. Num tempo em que as<br />

fronteiras tradicionais se esbatem é necessário reconstruir outros<br />

valores, recriar a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, e é interessante verificar um renascer, ou<br />

pelo menos, um novo olhar pelo passado, pelos seus valores culturais,<br />

pela plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s suas manifestações.<br />

* Leitora <strong>de</strong> Francês do Departamento <strong>de</strong> Linguística Geral e Românica <strong>da</strong> <strong>Facul<strong>da</strong><strong>de</strong></strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.<br />

1 Resumo <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição proposta pelo Petit Robert (entra<strong>da</strong> lexical: ‘i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>’).<br />

2 A entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Portugal para a UE trouxe para a língua portuguesa neologismos e<br />

novos sentidos. A ‘globalização’, encara<strong>da</strong> neste contexto, constitui não um novo<br />

termo mas um alargamento <strong>da</strong> esfera semântica <strong>da</strong> palavra, entendi<strong>da</strong> não só na<br />

sua vertente pe<strong>da</strong>gógica (cf. o Dicionário Universal <strong>da</strong> Língua Portuguesa, on-<br />

-line, 1999), mas também na sua vertente económica e na criação <strong>de</strong> um espaço<br />

mais abrangente e mais livre (cf. o Dictionnaire Universel Francophone, on-line,<br />

1997).<br />

polifonia, <strong>Lisboa</strong>, Edições Colibri, n.º 4, 2001, pp. 215-222


216 polifonia<br />

A língua portuguesa, mas isto também é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> para outras<br />

línguas 3 , viu surgir, nos últimos <strong>de</strong>z anos, um número importante <strong>de</strong><br />

dicionários sobre a fraseologia em geral e mais especificamente sobre<br />

as expressões idiomáticas 4 . Acreditamos que este novo olhar sobre a<br />

cultura popular, sobre a língua do povo, se pren<strong>de</strong> com este novo<br />

contexto globalizante que atravessamos e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acentuar as<br />

particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s intrínsecas a uma cultura, a uma língua, salvaguar<strong>da</strong>ndo,<br />

assim, pela diferença, a sua própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Do mesmo modo, notamos um crescente fervor pela investigação<br />

em torno <strong>da</strong> idiomatici<strong>da</strong><strong>de</strong>, nas suas várias componentes científicas,<br />

acentuando o seu carácter interdisciplinar e registando uma alteração<br />

na concepção <strong>de</strong>ste objecto enquanto objecto <strong>de</strong> análise científica.<br />

Note-se que os anos oitenta e noventa foram fun<strong>da</strong>mentais para a<br />

implementação <strong>da</strong> vertente científica <strong>de</strong>ste objecto que até aí era visto<br />

por alguns linguistas (por exemplo, Guiraud, 1961) como o campo <strong>da</strong><br />

heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>, do <strong>de</strong>svio, <strong>da</strong>s anomalias e, <strong>de</strong>ste modo, um campo<br />

diverso e pouco propício a análises ditas científicas 5 .<br />

As expressões idiomáticas (EIs) <strong>de</strong>screvem, pelas imagens que<br />

sugerem, o mundo real, os lugares, as experiências quotidianas, os<br />

sentires... Mantêm intacto o colorido <strong>de</strong> um povo, constituem uma voz<br />

rica <strong>de</strong> sabedoria que soube imprimir na linguagem a sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Este tipo <strong>de</strong> estruturas ilustra uma parte <strong>de</strong>sse saber, <strong>de</strong>sse colorido.<br />

Conhecê-las implica conhecer o povo, a cultura que lhes <strong>de</strong>u vi<strong>da</strong>,<br />

estabelecer entre elas e os homens relações, conhecer mais profun<strong>da</strong>mente<br />

a língua e as múltiplas formas <strong>de</strong> expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. As expressões<br />

integram o melhor sistema <strong>de</strong> símbolos para representar uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cultural.<br />

Constituem, pois, um objecto importante <strong>de</strong> uma língua natural,<br />

uma manifestação <strong>de</strong> um saber plural, um enriquecimento do idiolecto<br />

do sujeito, facilitam a comunicação, estabelecem conivências e partilhas.<br />

Por outro lado, permitem instituir um diálogo interdisciplinar,<br />

aproximando e salientando interrelações fun<strong>da</strong>mentais, permitindo<br />

3 A literatura em torno <strong>da</strong> fraseologia em geral aumentou consi<strong>de</strong>ravelmente nos<br />

últimos anos. Destaque-se sobre esta questão a relevância <strong>da</strong> investigação inglesa,<br />

francesa, russa e alemã, entre outras. As áreas <strong>da</strong> lexicografia, <strong>da</strong> sintaxe, <strong>da</strong> semântica<br />

e <strong>da</strong> psicolinguística foram algumas <strong>da</strong>s áreas mais contempla<strong>da</strong>s nestas<br />

abor<strong>da</strong>gens contemporâneas.<br />

4 Para o português, e sem querermos ser exaustivos, dispomos <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z dicionários<br />

publicados a partir dos anos oitenta, sendo a maior parte <strong>de</strong>les publicações<br />

dos anos noventa.<br />

5 Cite-se, a título <strong>de</strong> exemplo, alguns trabalhos <strong>de</strong>senvolvidos nos anos 80 para o<br />

francês por Ruwet (1982), Gross (1982), para o alemão Greciano (1983) e para o<br />

inglês Gibbs (1980 e 1985) e Lattey (1986).<br />

– UNIL –


Três questões sobre língua e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> 217<br />

uma interpenetração com a experiência humana, com a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, propiciando<br />

ao saber uma certa humanização.<br />

Campo inesgotável <strong>de</strong> florilégios <strong>da</strong> linguagem, as EIs percorreram<br />

um longo caminho e an<strong>da</strong>ram <strong>de</strong> boca em boca, mantendo, assim, um<br />

elo com os nossos antepassados, próximos ou longínquos. Outras há<br />

que nascem no dia a dia, participando no dinamismo e na mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong><br />

língua. São também o resultado <strong>da</strong>s miscigenações culturais, dos contactos<br />

entre línguas e <strong>da</strong>s partilhas entre povos – <strong>de</strong>spedir-se à francesa<br />

6 , falar francês como uma vaca espanhola, ver-se grego, per<strong>de</strong>r o<br />

seu latim, ser para inglês ver, ser chinês. Outras ilustram traços intrínsecos<br />

<strong>de</strong> um povo, <strong>de</strong> uma cultura, preservando uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> geográfico-cultural<br />

– ver navios do alto <strong>de</strong> Santa Catarina, passar as passas<br />

do Algarve, ser mais antigo/velho que a Sé <strong>de</strong> Braga, meter o Rossio<br />

na rua <strong>da</strong> Betesga, man<strong>da</strong>r para a Casa Pia, ser do tempo dos<br />

Afonsinhos, ser amigo <strong>de</strong> Peniche 7 , ou traços <strong>de</strong> alguém – o que fala<br />

<strong>de</strong>mais é um fala barato, o que tem medo an<strong>da</strong> com o credo na boca,<br />

o que está triste fica com cara <strong>de</strong> enterro, o distraído é um cabeça <strong>de</strong><br />

vento, o maldizente tem a língua afia<strong>da</strong>...<br />

Mas a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma língua, <strong>de</strong> uma cultura, constrói-se<br />

também nas suas diferenças e na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que o homem <strong>de</strong>monstra<br />

em li<strong>da</strong>r com esta plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> para a construção <strong>de</strong> um todo. As EIs<br />

ilustram diferenças (lexicais, morfológicas, idiolectais, regionais,<br />

sociais...) e a sua riqueza advém também <strong>da</strong>s suas múltiplas formas <strong>de</strong><br />

expressão, <strong>da</strong>s suas variantes (subvertendo parcialmente a sua própria<br />

lexicalização e permitindo algumas substituições num paradigma<br />

sempre finito).<br />

As variantes po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> vários tipos:<br />

a) variantes verbais:<br />

atirar areia para os olhos / <strong>de</strong>itar areia para os olhos<br />

acertar as contas a alguém / ajustar as contas a alguém<br />

afogar-se num copo <strong>de</strong> água / ferver num copo <strong>de</strong> água<br />

<strong>de</strong>itar água na fervura / pôr água na fervura<br />

6 Veja-se o equivalente francês – ‘filer à l’anglaise’ (o equivalente inglês é idêntico<br />

ao português – ‘to take french leave’). Cf. <strong>Jorge</strong> (1997: 40) “(...) to<strong>da</strong>s as expressões,<br />

embora com referentes diferentes, acabaram por adquirir um mesmo sentido,<br />

o que pressupõe uma interpenetração cultural que ultrapassa as fronteiras nacionais,<br />

criando zonas <strong>de</strong> miscigenação cultural”.<br />

7 Cf. os seguintes exemplos <strong>de</strong> francês: ‘se porter comme le Pont-Neuf’, ‘faire une<br />

promesse <strong>de</strong> gascon’, ‘donner une réponse <strong>de</strong> normand’, ‘faire son cours à Asnières’,<br />

‘avoir l’air <strong>de</strong> revenir <strong>de</strong> Pontoise’, etc.<br />

– UNIL –


218 polifonia<br />

b) variantes nominais:<br />

atirar areia para os olhos / atirar poeira para os olhos<br />

custar os olhos <strong>da</strong> cara / custar os <strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> boca / custar coiro e<br />

cabelo<br />

pintar a manta / pintar a macaca / pintar o diabo<br />

c) variantes do numeral<br />

<strong>da</strong>r dois <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> conversa / <strong>da</strong>r quatro <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> conversa<br />

receber com duas pedras na mão / receber com sete pedras na mão<br />

meter-se numa camisa <strong>de</strong> sete varas / meter-se numa camisa <strong>de</strong><br />

onze varas<br />

d) variantes do morfema <strong>de</strong> número:<br />

passar a mão pelo lombo / passar as mãos pelo lombo<br />

an<strong>da</strong>r na boca do mundo / an<strong>da</strong>r nas bocas do mundo<br />

mor<strong>de</strong>r no calcanhar / mor<strong>de</strong>r nos calcanhares<br />

e) variantes <strong>de</strong> morfemas <strong>de</strong>rivacionais:<br />

diminutivos:<br />

an<strong>da</strong>r com pés <strong>de</strong> lã / an<strong>da</strong>r com pézinhos <strong>de</strong> lã<br />

ser <strong>de</strong> falas mansas / ser <strong>de</strong> falinhas mansas<br />

ter macacos no sótão / ter macaquinhos no sótão<br />

tirar o cavalo <strong>da</strong> chuva / tirar o cavalinho <strong>da</strong> chuva<br />

aumentativo:<br />

levar um aperto / levar um apertão<br />

f) variantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminantes (presença ou ausência)<br />

procurar agulha em palheiro / procurar agulha num palheiro<br />

g) omissão <strong>de</strong> elementos:<br />

fazer chorar as pedras (<strong>da</strong> calça<strong>da</strong>)<br />

pôr (tudo) em pratos limpos<br />

engolir sapos (vivos)<br />

arranjar um (lindo) trinta e um<br />

arranjar um (lindo) molho <strong>de</strong> bróculos<br />

h) variantes sinonímicas<br />

cair em cesto roto / cair em saco roto<br />

pôr a careca à mostra / pôr a calva à mostra<br />

per<strong>de</strong>r a fala / per<strong>de</strong>r a voz<br />

mentir como um cão / mentir como um cachorro<br />

i) variantes <strong>de</strong> preposição:<br />

não enxergar um palmo adiante do nariz / não enxergar um palmo<br />

à frente do nariz<br />

pôr a carroça diante dos bois / pôr a carroça à frente dos bois<br />

j) variantes <strong>de</strong> níveis <strong>de</strong> língua 8 :<br />

8 Os níveis <strong>de</strong> língua constituem um elemento importante a ter em conta na abor<strong>da</strong>gem<br />

lexicográfica <strong>da</strong>s expressões idiomáticas. No entanto, esta variação levanta<br />

– UNIL –


Três questões sobre língua e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> 219<br />

meter na cabeça / meter nos cornos<br />

pôr nos píncaros <strong>da</strong> lua / pôr nos cornos <strong>da</strong> lua<br />

não <strong>da</strong>r conversa / não <strong>da</strong>r cavaco<br />

per<strong>de</strong>r a fala / per<strong>de</strong>r o pio<br />

mentir como um cão / mentir como um cachorro<br />

Como já referimos, a diferença gera-se a vários níveis, tanto a nível<br />

individual 9 como social, e são estas diferenças que acentuam o po<strong>de</strong>r<br />

criativo e expressivo <strong>de</strong>stas estruturas e a sua extrema riqueza, mas ao<br />

mesmo tempo a sua estranheza para o aprendiz <strong>de</strong> uma língua (no<br />

contexto <strong>de</strong> uma língua estrangeira ou língua segun<strong>da</strong>).<br />

Conhecer o léxico <strong>de</strong> uma língua, não é conhecer uma lista individualiza<strong>da</strong><br />

e alfabetiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> palavras, pois se assim fosse o dicionário<br />

satisfaria essa necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas sim conhecer as múltiplas combinatórias<br />

que criam a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma língua, a sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>. E as<br />

EIs, como os provérbios, as máximas, as sentenças, as frases feitas,<br />

<strong>de</strong>monstram que as palavras enquanto itens individualizados, constituem<br />

um objecto abstracto, <strong>de</strong>sligado <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva, <strong>da</strong> língua<br />

enquanto todo.<br />

Para ilustrar algumas <strong>da</strong>s observações feitas propomo-nos tecer<br />

algumas consi<strong>de</strong>rações sobre a tradutologia <strong>da</strong>s expressões idiomáticas,<br />

realçando dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s inerentes a este processo.<br />

Imaginem-se no papel do tradutor que tem <strong>de</strong> transpor para outra<br />

língua o seguinte excerto <strong>de</strong> José Sesinando (a partir do Dicionário <strong>de</strong><br />

Orlando Neves, Dicionário <strong>de</strong> Frases Feitas):<br />

Em lugar <strong>de</strong> ir chatear Camões, o melhor é ir chegando. José Maria Pincel<br />

po<strong>de</strong> não ser um José Quintolas (...). Man<strong>da</strong>r para a Casa Pia <strong>de</strong>ve ser<br />

punido com ser man<strong>da</strong>do para a gaiola. (...). A Maria <strong>da</strong>s Pernas compri<strong>da</strong>s<br />

po<strong>de</strong> dissolver uma Maria <strong>da</strong> Fonte. Mata-Gran<strong>de</strong> é <strong>Lisboa</strong>; Mata-<br />

-Limpa é Coimbra. A menina do olho não é só o singular <strong>da</strong> menina dos<br />

olhos. Moer torresmos é <strong>de</strong> fazer moer os fígados(...) 10 .<br />

O tradutor <strong>de</strong> Italo Calvino, <strong>de</strong> Eco (entre outros) diz-nos que “um<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> tradução é aquele que traz para outra língua e para outro<br />

público as conotações que o autor quis <strong>da</strong>r, o que implica tentar<br />

inúmeros problemas. É difícil encontrar uma grelha clara e objectiva. Cf. a ‘componente<br />

hierárquica’ proposta por Misri (1990), pp. 143-163.<br />

9 Ruwet (1982: 12) diz-nos: “il n’y a pas <strong>de</strong>ux sujets parlants qui possè<strong>de</strong>nt exactement<br />

le même stock d’expressions idiomatiques, et la familiarité avec telle ou telle,<br />

sa relative transparence, son <strong>de</strong>gré <strong>de</strong> figement, varient <strong>de</strong> l’un à l’autre, et<br />

changent avec le temps chez le même sujet (...)”.<br />

10 Artigo <strong>de</strong> José Sesinando “Refazendo frases feitas”, Jornal <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, “<strong>de</strong>bate-<br />

-papo”, 3 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1991.<br />

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220 polifonia<br />

escrever como o autor escreveria em português” 11 . Com a tradução <strong>da</strong><br />

fraseologia esta posição torna-se problemática. O tradutor propõe uma<br />

transposição por equivalências próprias <strong>da</strong> língua <strong>de</strong> chega<strong>da</strong>. Tradução<br />

ou a<strong>da</strong>ptação? Escrita ou re-escrita? Autor-tradutor? Ou autor –<br />

autor tradutor? 12<br />

G. Misri, ao reflectir sobre a tradução <strong>da</strong>s expressões lexicaliza<strong>da</strong>s<br />

na perspectiva <strong>da</strong> teoria interpretativa <strong>da</strong> tradução, rejeita e con<strong>de</strong>na a<br />

tradução palavra a palavra ou tradução literal e constrói um enquadramento<br />

teórico que privilegia a equivalência pensa<strong>da</strong> em termos <strong>de</strong><br />

quatro componentes (informativa, hierárquica, colocativa e <strong>de</strong> conformi<strong>da</strong><strong>de</strong>)<br />

13 . A. Berman opõe-se a esta perspectiva e diz-nos que isso leva<br />

à “<strong>de</strong>struição <strong>da</strong>s expressões”, substituir uma expressão idiomática<br />

pelo seu equivalente é, segundo o autor, um acto <strong>de</strong> etnocentrismo. Jogar<br />

com a equivalência é atentar contra a matéria falante <strong>de</strong> uma língua.<br />

Traduzir, na perspectiva do autor, não é procurar equivalências.<br />

Substituir é esquecer que existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós uma consciência-<strong>da</strong>-<br />

-lexicalização que i<strong>de</strong>ntificará a nova lexicalização como o estrutura-<br />

-irmã <strong>de</strong> uma lexicalização local. Berman <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> não uma simples<br />

palavra a palavra mas um jogo com os significantes, privilegiando os<br />

jogos <strong>de</strong> palavras, as sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, os efeitos... Atentar contra a matéria<br />

falante <strong>de</strong> uma língua é, segundo nós, <strong>de</strong>struir a sua própria i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

14 .<br />

A tradução <strong>de</strong>ve ser encara<strong>da</strong> como interacção. Traduzir é estabelecer<br />

um contacto, que está em interacção com outros contactos. Traduzir<br />

é também, por vezes, esbarrar com contextos culturais marcantes<br />

<strong>de</strong> um povo, <strong>de</strong> uma cultura, e que, só dificilmente, encontram eco<br />

numa outra cultura, numa outra língua.<br />

Partimos do pressuposto que estes lexemas contêm e ilustram a<br />

sabedoria popular, são repositórios e carregam às suas costas o peso<br />

<strong>da</strong> história <strong>de</strong> uma língua, mais ou menos longa, transportando ao<br />

longo <strong>de</strong>sse percurso valores que se foram cristalizando, tornando-se<br />

estáticos e transparentes para o falante <strong>de</strong>ssa língua, mas constituindo<br />

11 Cf. a entrevista <strong>de</strong> António Cabrita a José Colaço Barreiros (Jornal Expresso,<br />

Janeiro <strong>de</strong> 1995).<br />

12 Traduzir expressões como ‘passar as passas do Algarve’ ou ‘meter o Rossio na rua<br />

<strong>da</strong> Betesga’ por expressões equivalentes existentes numa outra língua pressupõe,<br />

do nosso ponto <strong>de</strong> vista, per<strong>da</strong> e apagamento do texto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> <strong>de</strong> referentes culturais<br />

importantes para a construção do sentido. A procura <strong>de</strong> equivalentes não <strong>de</strong>veria<br />

levar a esse apagamento. No entanto, estamos convictos que não existe uma<br />

solução i<strong>de</strong>al para a tradução <strong>da</strong>s expressões idiomáticas e que a noção <strong>de</strong> per<strong>da</strong><br />

acompanha o acto tradutológico em geral.<br />

13 Cf. Misri (1990), pp. 143-163.<br />

14 Cf. Berman (1985), “La traduction <strong>de</strong> la lettre ou l’auberge du lointain”, in Les<br />

Tours <strong>de</strong> Babel.<br />

– UNIL –


Três questões sobre língua e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> 221<br />

um mistério para o falante <strong>de</strong> uma outra língua que tenta penetrar, enquanto<br />

‘Outro’, nessa língua. As línguas têm maneiras muito diferentes<br />

<strong>de</strong> se expressar, <strong>de</strong> traduzir os seus sentimentos, as suas emoções,<br />

as suas sensações, <strong>de</strong> <strong>de</strong>notar ou <strong>de</strong> conotar certos lexemas...<br />

Tal como Berman <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos que não existe uma teoria geral <strong>da</strong><br />

tradução, mas várias teorias que <strong>de</strong>veriam ser activa<strong>da</strong>s no acto <strong>da</strong><br />

tradução. O binómio experiência/reflexão substituiria o <strong>de</strong> prática/teoria.<br />

E como Derri<strong>da</strong> diremos que “rien n’est plus grave qu’une traduction”<br />

15 . Traduzir é correr riscos, traduzir é arriscar. E quando se trata<br />

<strong>de</strong> expressões idiomáticas, esses riscos aumentam, a experiência alia<strong>da</strong><br />

à reflexão estará presente e orientará o tradutor nas suas opções.<br />

E para <strong>de</strong>itar mais achas à fogueira abrasadora <strong>da</strong> política actual, e<br />

à fogueira incan<strong>de</strong>scente e inesgotável <strong>da</strong> fraseologia <strong>da</strong> língua portuguesa,<br />

<strong>de</strong>ixamos, para simples reflexão tradutológica e fraseológica,<br />

o seguinte receituário:<br />

Antes <strong>de</strong> mais, o político perfeito tem <strong>de</strong> saber o terreno que pisa, saber<br />

os cantos à casa, saber o que a casa gasta, conhecer os bois pelos nomes e<br />

saber on<strong>de</strong> está o gato. Não precisa <strong>de</strong> saber a potes, mas tem <strong>de</strong> saber <strong>de</strong><br />

que lado lhe chove, saber as linhas com que se cose, saber mexer os cor<strong>de</strong>linhos,<br />

saber mais a dormir do que muitos acor<strong>da</strong>dos, saber levar a<br />

água ao seu moinho e saber ven<strong>de</strong>r o seu peixe. Também <strong>de</strong>ve saber<br />

como elas lhe mor<strong>de</strong>m – e saber como elas lhe doem – sempre que lhe sai<br />

o tiro pela culatra. O político perfeito tem, em suma, <strong>de</strong> ser sabido – astuto,<br />

esperto, manhoso, matreiro e experiente – se não quiser ouvir um dia<br />

alguém dizer: ‘Afinal ele sabe tanto disto como eu <strong>de</strong> lagares <strong>de</strong><br />

azeite!’ 16 .<br />

Com estes breves apontamentos quisemos afirmar que as expressões<br />

idiomáticas, enquanto parte integrante <strong>de</strong> uma língua natural,<br />

constituem um óptimo veículo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

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15 Citado in artigo <strong>de</strong> João Barrento, Jornal Público, 25 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1993.<br />

16 Cf. artigo <strong>de</strong> Alfredo Barroso “A bem <strong>da</strong> nação”, Jornal In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, 2 <strong>de</strong> Fevereiro<br />

<strong>de</strong> 1996, p. 68.<br />

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222 polifonia<br />

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– UNIL –

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