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Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná<br />
Setor <strong>de</strong> Ciências Humanas, Letras e Artes – SCHLA<br />
Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais – DECISO<br />
Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: o proce<strong>de</strong>r científico entre imagens e<br />
publicida<strong>de</strong>s<br />
Anna Carolina Horstmann Amorim<br />
Curitiba, 2010.
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná<br />
Setor <strong>de</strong> Ciências Humanas, Letras e Artes – SCHLA<br />
Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais – DECISO<br />
Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: o proce<strong>de</strong>r científico entre imagens e<br />
publicida<strong>de</strong>s<br />
Monografia apresentada como requisito<br />
parcial para a obtenção do grau <strong>de</strong><br />
Bacharelado, do curso <strong>de</strong> Ciências Sociais,<br />
Setor <strong>de</strong> Ciências Humanas, Letras e Artes<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.<br />
Orientadora: Profa. Dra. Marlene Tamanini.<br />
Curitiba, 2010.<br />
2
Dedico este trabalho à<br />
Ingrid e Juliana, duas mulheres<br />
fontes <strong>de</strong> inspiração.<br />
3
AGRADECIMENTOS<br />
Agra<strong>de</strong>ço a todos que <strong>de</strong> alguma forma fizeram parte <strong>de</strong>ste trajeto.<br />
Especialmente à minha família, meu pai Clésio e sua esposa Mirian, pelo carinho e<br />
pelo apoio, essenciais para a completu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste caminho. Em particular à minha mãe Ingrid e<br />
minha irmã Juliana, pela compreensão durante os longos dias <strong>de</strong> esforços para manter o<br />
silêncio da casa, pela <strong>de</strong>dicação intensa que tornou este trabalho possível, pelos momentos em<br />
que dividimos anseios e expectativas e, sobretudo, pelo in<strong>de</strong>scritível amor e companheirismo.<br />
Vocês são fundamentais.<br />
À professora e orientadora incansável Marlene Tamanini, pela sua paciência e pelo<br />
trabalho cuidadoso que oferece a cada um <strong>de</strong> seus orientandos, por sua postura séria e<br />
exigente e ainda assim, compreensiva, que continuamente nos incita a ir mais longe. Suas<br />
orientações e atenção foram indispensáveis para a realização <strong>de</strong>ste trabalho em um tão curto<br />
período <strong>de</strong> tempo.<br />
Ao meu gran<strong>de</strong> amigo David, pessoa maravilhosa que me acompanhou a cada dia<br />
nestes últimos quatro anos, que me incentivou e se <strong>de</strong>dicou junto a mim na realização <strong>de</strong>sta<br />
monografia. Obrigada por seus constantes sorrisos.<br />
Aos gran<strong>de</strong>s amigos Ana, Aline Rezen<strong>de</strong>, Brenda, Karina, Gabriela Becker, Larissa,<br />
Arthur, Érica, Flávia, Pardal, Nádia, Gabriela Prado, Pamela, Diógenes, Eduardo e Aline<br />
Franco. Pessoas indispensáveis para a alegria cotidiana, com quem aprendi lições para vida e<br />
com quem compartilhei alegrias, festas, realizações, i<strong>de</strong>ias, inquietações sociológicas, anseios,<br />
medos e por vezes tristezas que sempre nos ensinaram o valor da amiza<strong>de</strong>.<br />
E não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer às antigas amigas, com quem festejei o inicio <strong>de</strong>sta<br />
aventura acadêmica e com quem irei comemorar minha chegada ao final, Michelli, Mirian,<br />
Silmara e, em especial minha quase irmã, Tary, que sempre esteve ao meu lado, mesmo<br />
quando a distância se fez sentir. Vocês são alegrias e memórias inesquecíveis.<br />
4
RESUMO<br />
Esta monografia tem como objetivo analisar as concepções e valores sociais presentes<br />
no proce<strong>de</strong>r científico voltado à reprodução humana. Neste sentido, nos <strong>de</strong>bruçamos em<br />
particular sobre as informações publicitárias e as imagens presentes nos sites das clínicas<br />
brasileiras <strong>de</strong> reprodução assistida, filiadas a Re<strong>de</strong> Latino Americana <strong>de</strong> Reprodução<br />
Assistida. Organizamos um mapeamento das principais imagens e publicida<strong>de</strong>s contidas nos<br />
sites e analisamos estas imagens <strong>de</strong> acordo com alguns eixos temáticos relacionados ao<br />
assunto <strong>de</strong> cada imagem e propaganda. Acreditamos que estes discursos têm cumprido a<br />
função <strong>de</strong> informar os casais que a<strong>de</strong>ntram o universo online das clínicas e, assim, têm<br />
associado à prática científica a valores habitualmente relacionados à reprodução humana,<br />
como as premissas da família heterossexual e a sacralida<strong>de</strong> da maternida<strong>de</strong>.<br />
Observamos que os discursos publicitários e as imagens versam sobre os mo<strong>de</strong>los<br />
organizacionais tradicionais da vida simbólica dos indivíduos e, <strong>de</strong>sta forma, não fazem<br />
alusão às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> novos arranjos sociais viabilizados pela intervenção<br />
científica/tecnológica sobre o processo reprodutivo, que em contexto <strong>de</strong> laboratório po<strong>de</strong>m ser<br />
manipulados e po<strong>de</strong>m expandir os limites do que nos era socialmente inteligível. As<br />
publicida<strong>de</strong>s parecem negar a existência <strong>de</strong>stes possíveis rearranjos, domesticando a<br />
confecção da natureza às concepções e valores sociais freqüentemente associados à<br />
reprodução enquanto responsabilida<strong>de</strong> do sujeito feminino, inserido no seio <strong>de</strong> uma relação<br />
conjugal heterossexual. Coloca-se que olhar para estas publicida<strong>de</strong>s e imagens resulta em<br />
frutíferos <strong>de</strong>bates que preten<strong>de</strong>m visibilizar as bases on<strong>de</strong> as diferenças continuam a ser<br />
estabelecidas hierarquicamente em termos <strong>de</strong> certo e errado e on<strong>de</strong> a complexida<strong>de</strong> das<br />
experiências sociais ainda não são abarcadas.<br />
Ao longo do caminho da pesquisa nos servimos <strong>de</strong> uma metodologia<br />
quantitativa/qualitativa que nos permitiu construir mapeamentos e análises para compor um<br />
corpus explicativo e analítico do conteúdo do material reunido. Embora não tenhamos<br />
contemplado toda a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falas e informações disponíveis nos sites das clínicas,<br />
acreditamos que boa parte dos principais elementos que perfazem os discursos “autorizados”<br />
sobre as tecnologias reprodutivas e que constroem os significados simbólicos envoltos nestas<br />
relações foram explorados e analisados.<br />
Palavras-chave: Reprodução humana assistida. Gênero. Ciência. Publicida<strong>de</strong>.<br />
5
Sumário<br />
INTRODUÇÃO............................................................................................................................07<br />
1. ESTABELECENDO CONEXÕES..........................................................................................11<br />
1.1 Maternida<strong>de</strong> e NTRc: um diálogo imprescindível ............................................................... 11<br />
2. CIÊNCIA, TECNOLOGIA E GÊNERO: IMPLICAÇÕES DO FAZER A VIDA...............19<br />
3. DEFINIÇÕES METODOLÓGICAS.......................................................................................30<br />
3.1 Os caminhos da pesquisa........................................................................................................30<br />
4. OS WEBSITES COMO CAMPO DE PESQUISA...................................................................38<br />
4.1 Os discursos científicos......................................................................................................... 38<br />
4.1.1 Mapeando inserções profissionais e meios <strong>de</strong> publicações dos artigos acadêmicos...........38<br />
4.1.2 Em busca dos conteúdos dos artigos publicados.................................................................49<br />
4.2 Acabando com o silêncio .......................................................................................................55<br />
4.2.1 As imagens falam............................................................................................................... 55<br />
4.2.2 As publicida<strong>de</strong>s reificam................................................................................................... 66<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................70<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS....................................................................................... 75<br />
ANEXOS.. .................................................................................................................................. 78<br />
6
INTRODUÇÃO<br />
Sob os holofotes da mídia nasce, em julho <strong>de</strong> 1978 na Inglaterra, Louise Brown, o<br />
primeiro bebê <strong>de</strong> proveta, marcando uma nova fase nos <strong>estudos</strong> científicos referidos a<br />
reprodução humana. Des<strong>de</strong> este fato e com os vertiginosos avanços da ciência vê-se emergir<br />
centenas <strong>de</strong> clínicas envolvidas com reprodução assistida (RA) ao redor do mundo. Tal<br />
fenômeno também ocorreu no Brasil, que viu seu primeiro bebê <strong>de</strong> proveta nascer em 1983.<br />
O acelerado <strong>de</strong>senvolvimento das técnicas associadas à reprodução humana se<br />
intensificou a partir dos anos 1990, quando também a crítica, em particular das teóricas<br />
feministas, produz vários <strong>estudos</strong> sobre o campo das Novas Tecnologias Reprodutivas<br />
conceptivas (NTRc). Esclarecemos que toda nova tecnologia invoca mudanças na vida<br />
material dos indivíduos e, assim, promove uma <strong>de</strong>sorganização <strong>de</strong> antigas representações<br />
sociais e simbólicas, suscitando <strong>de</strong>bates que possibilitem a compreensão das novas práticas<br />
<strong>de</strong>correntes das novas possibilida<strong>de</strong>s tecnocientíficas.<br />
A reprodução humana, quando levada ao laboratório e colocada nas “mãos” <strong>de</strong><br />
diferentes especialistas, acarreta uma série <strong>de</strong> mudanças das representações sociais ligadas à<br />
reprodução, à família e ao parentesco e aos modos <strong>de</strong> se <strong>fazer</strong> filhos. Deste modo, notamos,<br />
em especial a partir dos anos 2000, o surgimento <strong>de</strong> inúmeros <strong>de</strong>bates que visam compreen<strong>de</strong>r<br />
as implicações dos avanços tecnológicos e científicos no campo da reprodução humana. Tais<br />
reflexões abordam questões relacionadas à atribuição <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> e paternida<strong>de</strong>, as<br />
relações <strong>de</strong> filiação e parentesco, aos processos <strong>de</strong> medicalização e <strong>de</strong> intervenção da técnica<br />
sobre os corpos das mulheres, bem como as discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos e<br />
a problematização das dicotomias sexo/<strong>gênero</strong>, natureza/cultura, natural/artificial.<br />
Compreen<strong>de</strong>mos, portanto, que o campo médico, ao se associar à reprodução humana<br />
assistida, abre um leque <strong>de</strong> novos modos <strong>de</strong> organização da vida social, po<strong>de</strong>ndo reestruturar<br />
os mo<strong>de</strong>los hegemônicos <strong>de</strong> família heterossexual e <strong>de</strong> filiação consanguínea que, por sua<br />
vez, encobrem hierarquias, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e sérios processos <strong>de</strong> estigmatização. No entanto,<br />
uma análise mais apurada das tecnologias reprodutivas <strong>de</strong>monstra que este campo do saber<br />
médico/técnico não se encontra isento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias e <strong>de</strong> estereótipos <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> que inci<strong>de</strong>m<br />
sobre as bases do proce<strong>de</strong>r científico.<br />
Desta maneira, o campo da reprodução humana em laboratório, sob o olhar<br />
sociológico, no que tange aos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> filiação, <strong>de</strong> família e <strong>de</strong> busca por filhos, apresenta-<br />
se como normativo e valorativo por basear-se em <strong>de</strong>mandas sociais que visam aten<strong>de</strong>r aos<br />
mo<strong>de</strong>los estabelecidos <strong>de</strong> casamentos, famílias, parentesco e filiação. Outrossim, tem se<br />
7
evelado um espaço importante para pesquisas na área das Ciências Humanas, principalmente<br />
sob a perspectiva da sociologia da ciência e dos <strong>estudos</strong> <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />
É neste campo que esta monografia se insere, como resultado <strong>de</strong> um importante<br />
caminho que se iniciou em 2007 com o projeto <strong>de</strong> Iniciação Científica (PIBIC/CNPq)<br />
proposto pela professora Marlene Tamanini e intitulado, “Tecnologias conceptivas: a natureza<br />
e os corpos para <strong>gênero</strong> e ciência”, registrado no BANPESQ/UFPR, com o número<br />
200702134. Este projeto contou, ainda em 2007, com o trabalho do bolsista e aluno da<br />
graduação <strong>de</strong> Ciências Sociais, Diógenes Parzianello, e teve continuida<strong>de</strong> em 2008 e 2009<br />
com a minha participação enquanto bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica. Neste período iniciei<br />
minhas pesquisas no campo das tecnologias reprodutivas e comecei a <strong>de</strong>linear os contornos<br />
<strong>de</strong>ste trabalho, que apresenta uma reflexão preocupada com as relações entre <strong>gênero</strong> e ciência<br />
no que se refere à tecnologia <strong>de</strong>stinada à fabricação da vida em laboratório e, em particular,<br />
no que se refere aos modos como a ciência acirra, sobretudo por meio <strong>de</strong> suas publicida<strong>de</strong>s, os<br />
estereótipos <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />
Por acreditar que as tecnologias conceptivas são <strong>de</strong>sempenhadas como um caminho da<br />
produção científica, que muitas vezes não é reconhecido como um campo carregado <strong>de</strong><br />
normatizações sobre os corpos, quando consi<strong>de</strong>rados inférteis, sobre a sexualida<strong>de</strong>, em geral<br />
entendida como heteronormativa, e sobre os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> famílias férteis, bem como sobre a<br />
idéia <strong>de</strong> filho do próprio sangue, buscamos analisar como se constroem, no cenário das<br />
próprias clínicas <strong>de</strong> reprodução assistida, os discursos que legitimam tais práticas. Esperamos<br />
encontrar nestes discursos as bases sociais sobre as quais tais ações <strong>de</strong>itam raízes. Para tal,<br />
a<strong>de</strong>ntramos, através do mundo online, o universo das diversas clínicas especializadas em<br />
reprodução assistida filiadas à Re<strong>de</strong> Latino Americana <strong>de</strong> Reprodução Assistida<br />
(REDLARA).<br />
Partindo da análise sociológica das concepções sobre natureza, tecnologia, reprodução<br />
humana e corpos presentes nas informações, nos discursos e nas imagens dos sites das<br />
clínicas filiadas a REDLARA e na produção cientifica dos especialistas, explicitamos as bases<br />
valorativas do proce<strong>de</strong>r científico e das epistemologias subjacentes a <strong>gênero</strong>, tecnologia e<br />
ciência quando referidas a reprodução humana em laboratório.<br />
Deste modo tecemos para esta monografia os seguintes objetivos: dar continuida<strong>de</strong> às<br />
análises já realizadas no processo <strong>de</strong> Iniciação Científica, sobre os artigos <strong>de</strong> especialistas dos<br />
centros e clínicas latino-americanas pertencentes à REDLARA, que estão publicados online,<br />
em seus sites, entre os anos <strong>de</strong> 2000 até 2007, conforme método estipulado na pesquisa <strong>de</strong><br />
iniciação científica, sob orientação da professora Drª Marlene Tamanini. Explicitamos como<br />
8
se apresenta a configuração da equipe profissional das clínicas e o que ela indica em relação<br />
às práticas em reprodução humana laboratorial, em termos <strong>de</strong> concepções no campo.<br />
Des<strong>de</strong> esse ponto, consi<strong>de</strong>rado ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong>ste trabalho, nossa atenção nesta<br />
monografia retoma tais aspectos e os insere na dinâmica da construção análitica que se<br />
articula com os conteúdos publicitários presentes nos sites das clínicas <strong>de</strong> reprodução<br />
assistida, tendo como a tarefa organizar, interpretar e dar sentido as informações publicitárias<br />
e aos coteúdos valorativos, presentes nas imagens que se encontram nesses sites, cujos<br />
valores, discursos, informações e esclarecimentos são dirigidos aos casais que a<strong>de</strong>ntram o<br />
universo das tecnologias reprodutivas através do mundo virtual. Analisamos como se<br />
estruturam os sites das clínicas <strong>de</strong> reprodução assistida e quais são as informações para casais<br />
que nela se encontram, investigamos como se constroem os principais conceitos relativos à<br />
tecnologia e aos corpos e qual o rol <strong>de</strong> imagens utilizadas para estabelecer esta interface nos<br />
sites. Mostramos como as metáforas sobre reprodução, <strong>gênero</strong> e ciência são ali engendradas e<br />
como estas metáforas se conectam a processos sociotécnicos, afetivos e sociais e qual o lugar<br />
da ciência e da tecnologia na or<strong>de</strong>m reprodutiva. Por fim, pon<strong>de</strong>ramos como a cultura da<br />
maternida<strong>de</strong> obrigatória permeia o campo publicitário e científico e ressaltamos, ainda, quais<br />
as possíveis conseqüências <strong>de</strong>ssa estreita ligação para o âmbito social, cultural, ético e<br />
político.<br />
Assim, organizamos este trabalho em quatro capítulos. O primeiro capítulo versa sobre<br />
a estreita relação entre as novas tecnologias reprodutivas conceptivas e a i<strong>de</strong>ologia da<br />
maternida<strong>de</strong>. Enten<strong>de</strong>mos que a reprodução ao longo da história tem sido associada à mulher,<br />
<strong>de</strong>finida, muitas vezes, exclusivamente por sua capacida<strong>de</strong> biológica <strong>de</strong> reprodução. Logo, a<br />
discussão a respeito da maternida<strong>de</strong>, elaborada no seio dos <strong>de</strong>bates feministas, se torna<br />
indissociável das questões e <strong>de</strong>safios teóricos apresentados pelas NTRc, necessitando ser<br />
explicitada e <strong>de</strong>batida. Neste capítulo, buscaremos enten<strong>de</strong>r como se consolida esta acentuada<br />
interface. O segundo capítulo trará à luz uma discussão dirigida à prática científica. Com<br />
intuito <strong>de</strong> ressaltar o caráter social da ciência, apresentamos autores que questionam os<br />
pressupostos <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, racionalida<strong>de</strong> e universalida<strong>de</strong> da ciência. Para tal, nos<br />
apropriamos das idéias <strong>de</strong> Bruno Latour, influente sociólogo da atualida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>senvolve<br />
<strong>estudos</strong> sobre o papel da ciência nas socieda<strong>de</strong>s. Com a historiadora Ana Paula Vosne Martins<br />
esmiuçamos o campo científico da ginecologia, referenciado como a ciência da mulher.<br />
Enriquecemos o <strong>de</strong>bate com algumas teóricas feministas que colocam em cheque o mo<strong>de</strong>lo<br />
binário <strong>de</strong> separação entre os sexos e acrescentamos, ainda, os <strong>de</strong>bates que abordam as<br />
técnicas e práticas científicas voltadas à reprodução humana. No terceiro capítulo, focamo-<br />
9
nos nas questões metodológicas que nos orientaram durante a coleta dos materiais, tanto<br />
publicitários quanto <strong>de</strong> cunho acadêmico, presentes nos sites analisados e que compõe o<br />
campo empírico <strong>de</strong>sta pesquisa. Destacamos os objetivos e as principais questões que nos<br />
nortearam e auxiliaram na compreensão <strong>de</strong>ste campo complexo por apresentar-se ao mesmo<br />
tempo como técnico e simbólico. O quarto capítulo introduzirá as questões referentes ao<br />
nosso trabalho <strong>de</strong> campo. Nele, Apresentamos e analisamos o material coletado durante a<br />
pesquisa nos sites das clínicas <strong>de</strong> reprodução humana, atentando para nossos objetivos iniciais<br />
e estabelecendo as conexões e reflexões que o campo nos suscita. Finalmente, Nas<br />
consi<strong>de</strong>rações finais oferecemos algumas conclusões sobre o trabalho realizado com intuito <strong>de</strong><br />
elucidar algumas dinâmicas imbricadas na área da reprodução humana em laboratório e que<br />
muitas vezes carecem <strong>de</strong> discussões e <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong>.<br />
10
1 ESTABELECENDO CONEXÕES<br />
1.1 Maternida<strong>de</strong> e NTRc: um diálogo imprescindível.<br />
Se a mulher tem sido tomada ao longo dos últimos três séculos como sujeito da<br />
reprodução, o surgimento das novas tecnologias reprodutivas conceptivas (NTRc) parece<br />
estar, nos últimos 30 anos, causando reviravoltas nas concepções e valores sobre maternida<strong>de</strong>,<br />
paternida<strong>de</strong> e parentesco, que integram o universo simbólico no qual nos encontramos<br />
inseridos. Com efeito, parece-nos essencial explicitar boa parte do <strong>de</strong>bate que se formou,<br />
principalmente após os anos 1960, em torno das questões relativas ao corpo feminino e a<br />
reprodução.<br />
O campo reprodutivo articula-se como o local <strong>de</strong> inserção privilegiado do feminino,<br />
visto que ser mãe parece justificar a existência <strong>de</strong> toda mulher (MUNIZ, 2007) sendo sua<br />
capacida<strong>de</strong> reprodutiva tomada como <strong>de</strong>finidora <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, significando o sujeito<br />
feminino. Tal quadro simbólico apresenta-se como um dos <strong>de</strong>safios do feminismo<br />
contemporâneo que elabora uma crítica à insistência em tomar a função biológica da mulher<br />
enquanto <strong>de</strong>finidora <strong>de</strong> seu ser. Desnaturalizar tais <strong>de</strong>finições é tarefa complexa já que se faz<br />
necessária uma revisão do conceito <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> que gira ao redor do sexo biológico e<br />
nutre a conexão mulher/mãe.<br />
A filósofa Simone <strong>de</strong> Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, publicado em 1949, é a<br />
primeira teórica a questionar as noções <strong>de</strong> feminilida<strong>de</strong> e a naturalização <strong>de</strong> comportamentos<br />
ancorados no corpo, apimentando o <strong>de</strong>bate com sua célebre frase “não se nasce mulher, mas<br />
torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1949, p195; apud SAVONE, 2001, p.138). Seu trabalho<br />
muito contribuiu para elucidar e politizar questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m privada como a maternida<strong>de</strong> que<br />
passa a ser problematizada e, por conseguinte, passa a ser percebida como construção social e<br />
causa principal da dominação masculina.<br />
A partir dos anos 1960 e 1970 a questão da subordinação das mulheres ganha terreno.<br />
Inúmeros <strong>de</strong>bates emergiram sobre a posição da mulher nas socieda<strong>de</strong>s patriarcais. Por<br />
patriarcado não enten<strong>de</strong>mos apenas uma forma <strong>de</strong> família embasada no parentesco masculino<br />
e no po<strong>de</strong>r paterno, mas toda a estrutura social edificada no po<strong>de</strong>r do pai. Este sistema se<br />
<strong>de</strong>fine pelo intercâmbio <strong>de</strong> mulheres no qual pais trocam filhas por noras, ou os irmãos<br />
trocam suas irmãs por esposas, com ou sem o consentimento <strong>de</strong>las, como nos mostra Lévi-<br />
Strauss (apud TUBERT, 1996). A essência <strong>de</strong>ste sistema está no controle estrito da<br />
sexualida<strong>de</strong> feminina, vale dizer, dos seus corpos.<br />
11
As teóricas feministas alertam para a centralida<strong>de</strong> do corpo e <strong>de</strong> suas diferenças biológicas<br />
nos discursos dominantes, que pensam tais diferenças como irredutíveis. A diferença sexual<br />
pensada como imutável engendra <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e hierarquias <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, colocando a mulher<br />
em uma posição subordinada, pois presa à sua capacida<strong>de</strong> corporal e à idéia <strong>de</strong> que é natural<br />
gestar. Nesta lógica, a paternida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>finida como aspecto simbólico e a maternida<strong>de</strong>,<br />
esvaziada do seu caráter cultural é construída como matéria, como natureza e como terra que<br />
se há <strong>de</strong> fertilizar (TUBERT, 1996).<br />
Forte movimento, no sentido <strong>de</strong> promover a <strong>de</strong>snaturalização <strong>de</strong>ssa biologização é<br />
realizado ainda nos anos 70 quando as feministas reivindicam o controle sobre seus corpos e<br />
sobre a reprodução, criticando o i<strong>de</strong>al da maternida<strong>de</strong> obrigatória e compulsória, promovendo<br />
um florescimento <strong>de</strong> <strong>estudos</strong> <strong>de</strong>dicados a historicização da problemática imbricada na<br />
biologização da mulher. Em consonância às lutas e <strong>estudos</strong> dos anos prece<strong>de</strong>ntes, os anos 80<br />
aparecem como locus dos questionamentos <strong>de</strong> pressupostos dicotômicos enraizados, como os<br />
duos natureza/cultura e sexo/<strong>gênero</strong>. Questionam-se as visões universalizantes e<br />
essencializadas das diferenças sexuais. Os corpos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser compreendidos como<br />
superfícies pré discursivas e naturais sobre as quais a cultura se inscreve. Desta maneira, a<br />
categoria sexo se <strong>de</strong>snaturaliza a<strong>de</strong>ntrando igualmente o campo das construções culturais e<br />
simbólicas <strong>de</strong>sfazendo-se, assim, a i<strong>de</strong>ia naturalizada do corpo feminino maternal.<br />
Neste sentido, Elisabeth Badinter (1985) problematiza o mito do amor materno ao<br />
questionar as bases on<strong>de</strong> <strong>de</strong>itam-se os discursos que impõem a tría<strong>de</strong> mulher-mãe-natureza.<br />
Assim, a autora historicamente <strong>de</strong>sconstrói a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que existe uma natureza feminina pré-<br />
estabelecida.<br />
Levantando a hipótese <strong>de</strong> que o amor materno não é inato, Badinter estabelece uma<br />
busca histórica que nos remete a socieda<strong>de</strong> francesa dos séculos passados, em especial dos<br />
séculos XVII e XVIII, on<strong>de</strong> a autora encontra os pilares que fundamentam a sua proposição<br />
<strong>de</strong> que o amor materno não é instintivo do ser feminino. Vale ressaltar que não é pretensão da<br />
autora negar a existência do amor materno, mas atentar para o fato <strong>de</strong> que ele não existe em<br />
todas as mulheres, assim como não é um componente indispensável à sobrevivência da<br />
espécie.<br />
A França urbana do século XVII vê surgir um discurso pedagógico e filosófico que<br />
situa a criança em um lugar significativamente diferente do que ela ocupa em nossa socieda<strong>de</strong><br />
atual. Segundo os preceitos <strong>de</strong>ssa época, a criança era tomada como débil <strong>de</strong> espírito e privada<br />
<strong>de</strong> razão, ou em casos menos acentuados, percebida como um estorvo do qual era necessário<br />
livrar-se. Existia uma gama <strong>de</strong> soluções possíveis para este aparente problema, e a rejeição e o<br />
12
abandono das crianças, principalmente ainda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da amamentação, não era incomum.<br />
A rejeição ao filho culminava na recusa do aleitamento materno, sendo forçoso recorrer aos<br />
serviços <strong>de</strong> uma ama <strong>de</strong> leite. As crianças eram então levadas, algumas vezes poucas horas<br />
após o nascimento, para a casa das amas mercenárias, on<strong>de</strong> se ajuntavam bebês mal nutridos e<br />
<strong>de</strong>scuidados que dificilmente chegavam a completar um ano <strong>de</strong> vida. Se pensadas as más<br />
condições da casa das amas e a sua pouca atenção à higiene e bem estar dos bebês, a prática<br />
<strong>de</strong> enviar um filho para os cuidados <strong>de</strong> outras consistia, na realida<strong>de</strong>, em um infanticídio<br />
disfarçado. Todavia, a criança neste período tinha pouca significância e sua morte era pouco<br />
sentida. Mesmo conscientes da alta taxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>, as mães francesas continuaram a<br />
mandar seus filhos recém nascidos para os cuidados das amas mercenárias, hábito que se<br />
generaliza no século XVIII.<br />
Explicações para tal costume não encontram ecos apenas na condição econômica das<br />
mulheres que não possuíam meios para cuidar <strong>de</strong> seus filhos. Visível era o elevado número <strong>de</strong><br />
mulheres das classes médias e altas que, por não estarem dispostas a sacrificar sua vida social<br />
e mundana para criar os filhos, recorriam aos serviços das amas e ao abandono físico e moral<br />
<strong>de</strong> seus filhos. Esclarece-se que esta era uma prática fundada em uma or<strong>de</strong>m social que<br />
incentivava tal comportamento nas mulheres.<br />
Porém, no último terço do Século XVIII se opera uma verda<strong>de</strong>ira transformação das<br />
mentalida<strong>de</strong>s e a imagem da mãe começa a ganhar novos contornos ainda perceptíveis<br />
atualmente. Instauram-se discursos que visam aproximar as mães <strong>de</strong> seus filhos incentivando<br />
o aleitamento materno e unindo, inovadoramente, duas palavras: amor e maternida<strong>de</strong>.<br />
Verifica-se uma promoção da mulher, que passa a encontrar na maternida<strong>de</strong> um valor social<br />
que jamais lhe havia sido disposto. Neste novo contexto, há um consi<strong>de</strong>rável aumento do<br />
interesse estatal para a redução das taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil, já que da criança ganha<br />
importância econômica enquanto força <strong>de</strong> trabalho potencial.<br />
A filosofia também possui acentuado seu papel nesta transformação, em especial com<br />
a obra Emilio <strong>de</strong> Jean-Jaques Rousseau, ao incentivar as “<strong>de</strong>lícias” da maternida<strong>de</strong> e ao<br />
disseminar a i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> uma nova família, baseada no amor e felicida<strong>de</strong>. A mulher adquire<br />
responsabilida<strong>de</strong> sobre os cuidados e bem estar da família, o que po<strong>de</strong> lhe propiciar uma<br />
felicida<strong>de</strong> máxima no seio da microssocieda<strong>de</strong> familiar, ao mesmo tempo, a mulher ganha o<br />
status <strong>de</strong> responsável pelo futuro da nação, pois se torna <strong>de</strong> sua alçada o cuidado dos futuros<br />
cidadãos.<br />
Neste contexto percebe-se um apelo aos atrativos e belezas da maternida<strong>de</strong>.<br />
Igualmente, há um direcionamento do olhar para a natureza e se institui que, assim como os<br />
13
animais, a mulher <strong>de</strong>ve seguir seus instintos maternos que lhe <strong>de</strong>terminam cuidar e amar os<br />
seus filhos. A família mo<strong>de</strong>rna se recentra em torno da figura da mãe e a maternida<strong>de</strong> torna-se<br />
um papel gratificante, já repleto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al. Presa em seu novo papel, a mulher não mais po<strong>de</strong>rá<br />
evitá-lo, sob pena <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação moral. Defini-se, <strong>de</strong>ste modo, a natureza feminina.<br />
Observa-se o aparecimento <strong>de</strong> um novo ser: a mãe, santificada e valorizada. A mulher<br />
encontra seu lugar num universo simbólico que significa e condiciona sua existência. A<br />
diferença sexual é ontologizada e ganha contornos <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição a-histórica e imutável. Tal<br />
sistema simbólico que associa a maternida<strong>de</strong> social com a reprodução biológica torna<br />
mulheres sem filhos seres sem inteligibilida<strong>de</strong> social, seus corpos são <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong> e<br />
sentido. A mulher estéril torna-se a própria negação da natureza, torna-se vazia, ou nas<br />
palavras <strong>de</strong> Silvia Tubert (2006), representa a ausência <strong>de</strong> sombra.<br />
Como aponta a antropóloga Rita Laura Segato (2006), há mais <strong>de</strong> três séculos a<br />
mulher tem sido alvo das tentativas <strong>de</strong> centrar em seu corpo o seu <strong>de</strong>stino e sua função<br />
orgânica, o que confere a atribuição <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> à mulher.<br />
Os corpos disciplinados (FOUCAULT, 1986) aos “encantos” da maternida<strong>de</strong> ecoam<br />
valores relativos a premissas <strong>de</strong> heterossexualida<strong>de</strong>, fundamento do casamento e da<br />
constituição da família nuclear restrita - pilares da dominação patriarcal. Nesta or<strong>de</strong>m<br />
simbólica a mulher tem seu corpo moldado e sua sexualida<strong>de</strong> domesticada. (TUBERT, 1996).<br />
O feminino passa a ser significado socialmente pela maternida<strong>de</strong>, que se constitui enquanto<br />
especificida<strong>de</strong> da mulher, mas que, contudo, como salienta Segato (2006), não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>finir a<br />
totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu ser.<br />
As crescentes <strong>de</strong>mandas pelas NTRc revelam que este sistema representativo é ainda a<br />
imagem e o cotidiano da maioria das mulheres. O apelo às técnicas po<strong>de</strong> ser expressivo <strong>de</strong><br />
suas buscas por significar seu ser. Vemos <strong>de</strong>limitar-se a pergunta sobre o que é uma mulher.<br />
Como sugere Silvia Tubert, ainda carecemos <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>finição, já que só nos é inteligível<br />
socialmente as categorias homem e mãe e, portanto, ou se é mãe ou se é homem. Coloca-se<br />
então que a mulher infértil questiona o binarismo baseado na diferença sexual relativa à<br />
reprodução que só significa o homem e a mãe. Assim, a mulher sem filhos paira na fronteira<br />
dos significados (TUBERT, 1996).<br />
Neste sentido, encontramos mulheres <strong>de</strong>sesperadas se dirigindo a clínicas <strong>de</strong> RA à<br />
procura da realização da sua função suprema e, mais do que isso, à procura <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição<br />
inteligível para si no jogo social. Neste universo, as mulheres que se recusam à maternida<strong>de</strong><br />
ou que se encontram impossibilitadas <strong>de</strong> realizá-la são relegadas ao campo da anormalida<strong>de</strong> e<br />
da estigmatização.<br />
14
Ressaltamos ainda que a crescente procura pelo mercado <strong>de</strong> bebês, assim <strong>de</strong>nominado por<br />
Spar (2007), pauta-se sobremaneira na inexistência <strong>de</strong> filhos em <strong>de</strong>terminadas situações,<br />
como a das mulheres que lutam contra o relógio biológico. Para as mulheres que são inférteis<br />
em <strong>de</strong>corrência da ida<strong>de</strong>, os danos emocionais parecem ser particularmente elevados. São<br />
mulheres que po<strong>de</strong>riam ter tido filhos se tivessem optado pelo não adiamento da maternida<strong>de</strong><br />
em <strong>de</strong>trimento da carreira profissional, e mesmo por outras razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pessoal.<br />
Em tal lógica, a infecundida<strong>de</strong> involuntária (DINIZ; GOMES, 2006) - enten<strong>de</strong>ndo que<br />
infecundo é o casal que não possui filhos e que, no entanto, não apresenta diagnóstico <strong>de</strong><br />
infertilida<strong>de</strong> - e a própria infertilida<strong>de</strong> apresentam-se como categorias, que expressam<br />
problemas ou patologias, <strong>de</strong> cunho clínico, referido ao casal heterossexual, alvo prioritário <strong>de</strong><br />
intervenção médica e tratamento. As clínicas <strong>de</strong> RA proliferam e o engajamento médico se<br />
legitima por sua pretensão <strong>de</strong> ajudar a natureza “<strong>de</strong>volvendo à mulher o direito reprodutivo<br />
que o tempo roubou.” (RAMÍREZ, 2006, p. 31).<br />
As práticas das clínicas <strong>de</strong> RA se <strong>de</strong>senvolvem e se inserem na vida cotidiana dos<br />
indivíduos através <strong>de</strong> muitos recursos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as clínicas e consultórios, até a internet e a<br />
mídia, sem que com isso, se inicie uma discussão pública sobre o tema, sobre suas<br />
implicações e riscos. Principalmente no tocante as altas taxas <strong>de</strong> medicalização, em especial,<br />
das mulheres que são pouco ou nada advertidas sobre possíveis conseqüências futuras para<br />
sua saú<strong>de</strong>, sobre a transferência <strong>de</strong> número enorme <strong>de</strong> embriões, sobre os nascimentos<br />
prematuros, <strong>de</strong>ntre outros.<br />
Sobremaneira, o campo da reprodução humana em laboratório encontra-se carregado<br />
<strong>de</strong> marcadas relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, pois a ciência aparece dando suporte e reforçando<br />
valores biológicos, fundando um retorno ao que Tamanini (2007, 2008) chama <strong>de</strong> “ficção<br />
biológica”, em que a maternida<strong>de</strong> novamente ganha <strong>de</strong>staque ao colocar-se como a função<br />
soberana da biologia feminina, essencializada em sua condição <strong>de</strong> ser mulher e travestida <strong>de</strong><br />
valores do sagrado e do divino. O discurso médico assume o controle dos corpos inférteis,<br />
com a pretensão <strong>de</strong> estabelecer seu bem estar, o seu progresso e a sua normalida<strong>de</strong>.<br />
No entanto, as teóricas feministas não se furtam a pensar e a problematizar as práticas,<br />
ainda que estas estejam envoltas em discursos sobre suas benesses, como é o caso das NTRc.<br />
Mesmo após a reivindicação política do domínio <strong>de</strong> seus corpos pelas mulheres nos anos<br />
1970, acompanhamos nos anos 2000 uma retomada dos pressupostos que acirram as<br />
diferenças e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sexuais e as hierarquias <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>. Assim como percebemos<br />
proliferar os discursos que reafirmam, agora com legitimida<strong>de</strong> científica, o duo mulher/mãe.<br />
A contracepção, que permitiu o controle dos nascimentos por parte das mulheres, po<strong>de</strong><br />
15
suscitar os fantasmas da confusão dos sexos, já as NTRc parecem restaurar a distinção, pois<br />
evitam, i<strong>de</strong>almente ao menos, que uma mulher não se encaixe na categoria mãe. (TUBERT,<br />
1996).<br />
Lucila Scavone (2006) nos informa que as novas tecnologias reprodutivas, mesmo que<br />
legitimadas pelo viés científico trazem à tona uma série <strong>de</strong> problemas éticos, políticos e<br />
sociais. Exemplares são os casos em que médicos são confrontados com <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong><br />
maternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulheres solteiras ou <strong>de</strong> casais homossexuais e os <strong>de</strong>finem como <strong>de</strong>sejos<br />
<strong>de</strong>sviantes, por colocarem-se fora do padrão culturalmente estabelecido <strong>de</strong> parentesco e<br />
filiação, ou que se aproveitam <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> fragilida<strong>de</strong> emocional para acordos<br />
econômicos e morais ilícitos. No aspecto da possibilida<strong>de</strong> gerada pela tecnologia para a<br />
gestação em mulheres solteiras, po<strong>de</strong>mos lembrar o interessante trabalho <strong>de</strong> Marilyn Strathern<br />
(1995) que analisa a polêmica que se instaurou na mídia da Grã Bretanha no ano <strong>de</strong> 1991,<br />
quando algumas mulheres solteiras e virgens procuraram clínicas <strong>de</strong> RA com intuito <strong>de</strong><br />
tornarem-se mães. A situação causou alar<strong>de</strong> entre os especialistas e culminou em um <strong>de</strong>bate<br />
aberto na mídia, on<strong>de</strong> todos questionavam a valida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>stas mulheres. Para<br />
Strathern o que ocasionou toda essa atenção da socieda<strong>de</strong> ao caso da “síndrome do<br />
nascimento virgem” foi a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se embaralharem as noções <strong>de</strong> parentalida<strong>de</strong>, que<br />
no mo<strong>de</strong>lo tradicional euroamericano não encontra cisão entre sexo e procriação. Mas não é<br />
preceito que as NTRc <strong>de</strong>svinculam sexo e reprodução? Sim, no entanto, esta separação ocorre<br />
apenas momentaneamente, visto que a prática se insere prioritariamente sobre um casal<br />
envolto em uma aura sexual característica da conjugalida<strong>de</strong>.<br />
Torna-se claro que a separação ou não entre sexo e reprodução não é o cerne do<br />
problema, já que o que é consi<strong>de</strong>rado natural po<strong>de</strong> ser e é manipulado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong> acordo<br />
com os princípios sociais. O que se instaura é o não encaixe <strong>de</strong>stas mulheres-solteiras e<br />
virgens - no mo<strong>de</strong>lo corrente <strong>de</strong> exercício da sexualida<strong>de</strong>. Assim, suas vonta<strong>de</strong>s opõem-se ao<br />
que é simbolicamente compreensível no que se refere a parentesco e reprodução, causando<br />
espanto geral. Percebemos que relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> e reprodução não se separam nas NTRc,<br />
nem mesmo momentaneamente.<br />
Se as NTRc abrem uma gama <strong>de</strong> novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> arranjos sociais, parece que<br />
os discursos que as envolvem tratam rapidamente <strong>de</strong> negá-las. A maternida<strong>de</strong> continua sendo<br />
abençoada e sacralizada no interior do casamento heterossexual e a insistência sobre o<br />
biológico como forma <strong>de</strong> legitimação das relações com a tecnologia não permite a ampliação<br />
das concepções sobre família, parentesco e filiação (TAMANINI, 2006). Este aspecto fica<br />
bastante evi<strong>de</strong>nte nas imagens coletadas dos sites e analisadas no capítulo quatro <strong>de</strong>sta<br />
16
monografia, nas quais po<strong>de</strong>mos perceber que a maternida<strong>de</strong> e a heterossexualida<strong>de</strong> persistem<br />
como valores culturais intransponíveis.<br />
Ainda assim, muitas autoras, como Alejandra Sardá (2006), reafirmam o potencial <strong>de</strong><br />
transformação das NTRc que surgem como ajuda à natureza reprodutiva <strong>de</strong> casais<br />
heterossexuais, mas que abrem brechas à outras práticas, que implo<strong>de</strong>m o mo<strong>de</strong>lo dominante<br />
e reconfiguram os tradicionais mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> família e parentesco, como no caso da utilização<br />
das tecnologias reprodutivas por casais <strong>de</strong> lésbicas. Abre-se um prece<strong>de</strong>nte para se pensar a<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas leis e regulamentações que possam abarcar toda a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
situações. A <strong>de</strong>manda da concepção representa, mais do que um impulso, por vezes,<br />
consi<strong>de</strong>rado biológico, remete a uma indústria global que cresce vertiginosamente sem, no<br />
entanto, reconhecer explicitamente suas raízes comerciais. Essa indústria sustenta-se à custa<br />
<strong>de</strong> um latente <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> comprar, ou seja, do <strong>de</strong>sejo que as pessoas têm <strong>de</strong> encontrar ajuda<br />
para obter um filho <strong>de</strong> sangue (SPAR, 2007).<br />
Estas novas práticas também po<strong>de</strong>m visibilizar novas ações e costumes que<br />
<strong>de</strong>svinculem a mulher do mundo biológico marcado pela i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> fixada em seu corpo<br />
essencializado. Algumas teóricas feministas já apresentam reflexões preocupadas em elucidar<br />
estas dinâmicas fluidas on<strong>de</strong> as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s se constroem em cada movimento e etapa. Se já<br />
nos <strong>de</strong>mos conta da flui<strong>de</strong>z da genética, do sanguíneo e do biológico é possível romper com a<br />
imutabilida<strong>de</strong> das antigas concepções (TAMANINI, 2003). Em outras palavras:<br />
Somente a partir <strong>de</strong> uma posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>snaturalização consciente po<strong>de</strong>mos ver como<br />
a aparência da naturalida<strong>de</strong> é ela própria constituída. [...] O estranho, o incoerente,<br />
aquilo que está fora, nos permite compreen<strong>de</strong>r como se constroem certas certezas<br />
sobre a categorização sexual, na verda<strong>de</strong>, como aquilo que bem po<strong>de</strong>ria ser<br />
construído diferentemente. (BUTLER, 1990, p.110; apud RAMÍREZ, 2002, p. 137)<br />
Ainda com estes esforços, percebemos, através da expansão das clínicas <strong>de</strong> RA que o<br />
campo das NTRc legitima-se ao manter uma forte relação com a i<strong>de</strong>ologia da maternida<strong>de</strong>,<br />
apresentando-se como o único caminho para a realização plena da felicida<strong>de</strong> da mulher, que<br />
apenas cumpre seu papel ao tornar-se mãe.<br />
Assim, as NTRc constituem-se como um campo médico científico com autorida<strong>de</strong><br />
para ditar verda<strong>de</strong>s e assegurar a manutenção do mo<strong>de</strong>lo vigente que i<strong>de</strong>aliza a mulher<br />
enquanto mãe. Neste sentido se faz importante analisar sociologicamente como o discurso<br />
científico se constrói e como garante e exerce seu domínio sobre a vida social dos indivíduos.<br />
Desta forma, o capítulo seguinte apresentará uma reflexão preocupada em aclarar os<br />
17
contornos i<strong>de</strong>ológicos presentes no discurso científico, revelando que a ciência é fruto <strong>de</strong><br />
construções sociais que não se inscrevem em uma realida<strong>de</strong> natural, ou neutra.<br />
18
2 Ciência, tecnologia e <strong>gênero</strong>: implicações do <strong>fazer</strong> a vida.<br />
“O único mito puro é a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma ciência purificada <strong>de</strong> qualquer<br />
mito.”<br />
Michel Serres<br />
Nos últimos três séculos a reprodução tem sido proposta como o lugar privilegiado <strong>de</strong><br />
inserção da mulher, alimentando a relação entre o feminino e a maternida<strong>de</strong>, ainda que ela<br />
tenha realizado inúmeras outras conquistas. Observa-se também que a transferência da<br />
reprodução do domínio feminino para as mãos dos médicos, pouco muda essa relação<br />
tradicional entre a mulher e a maternida<strong>de</strong>. Ao contrário, tecnologias complexas e avançadas<br />
estão se pautando em discursos bastante essencializadores sobre as necessida<strong>de</strong>s do emocional<br />
e do corpo feminino, bem como, a respeito do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> família e da complementação da<br />
idéia do que é um casal.<br />
Com a entrada <strong>de</strong> diferentes especialida<strong>de</strong>s médicas/científicas no campo da<br />
reprodução, que antes apenas dizia respeito ao casal, ocorre forte separação entre sexo e<br />
reprodução. Possibilita-se a confecção <strong>de</strong> um sem número <strong>de</strong> arranjos familiares e <strong>de</strong><br />
parentesco, já que através das investidas científicas se po<strong>de</strong>m articular <strong>de</strong> novas maneiras as<br />
células, os gametas, o DNA, transformando a fixi<strong>de</strong>z da biologia. Tais inovações po<strong>de</strong>riam,<br />
então, contribuir para as discussões, referenciadas no capítulo anterior, que preten<strong>de</strong>m<br />
<strong>de</strong>sconstruir algumas premissas sociais que se enraízam em postulados consi<strong>de</strong>rados<br />
indiscutíveis por basearem-se na natureza imóvel dos seres. Entretanto, o que habitualmente<br />
verificamos é que estes questionamentos <strong>de</strong> pressupostos culturais, bem como a abertura para<br />
diferentes organizações familiares, são muitas vezes, negadas ou camufladas pelos discursos<br />
que envolvem as NTRc. A RA aparece <strong>de</strong>ste modo, ro<strong>de</strong>ada por ares <strong>de</strong> cientificida<strong>de</strong> que<br />
afirmam a relação apertada entre a mulher e seu corpo naturalmente reprodutivo, que é outra<br />
vez sacralizado através da maternida<strong>de</strong> localizada como base da família heterossexual<br />
entendida como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> normalida<strong>de</strong>.<br />
Neste contexto, se faz necessária uma revisão sobre o modo como o campo científico<br />
se estabelece e firma suas ações, tantas vezes, marcadas por valores e concepções sociais<br />
referidas ao lugar da família e da mulher na socieda<strong>de</strong> contemporânea. Tais apontamentos<br />
apresentam relevância, visto a autorida<strong>de</strong> que a ciência ocupa em nossa socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> se<br />
encontra legitimada e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o verda<strong>de</strong>iro e o falso, assim como o certo e o errado,<br />
19
em particular no que se refere aos mo<strong>de</strong>los dominantes <strong>de</strong> interpretação da reprodução<br />
humana.<br />
A reprodução humana passa a ser um objeto <strong>de</strong> intervenção tecnológica, quando se<br />
trata do seu uso e produção em laboratório. As novas tecnologias reprodutivas ganham força e<br />
a<strong>de</strong>ptos em nosso país, em especial, a partir dos anos 1990, quando muitos médicos e<br />
cientistas trazem <strong>de</strong> suas viagens ao exterior uma gama variada <strong>de</strong> novos métodos e<br />
informações. O uso <strong>de</strong> tais técnicas reprodutivas experimenta no Brasil <strong>de</strong>sta época um<br />
florescimento fixado em seu caráter positivo sem, no entanto, propiciar uma maior reflexão<br />
sobre seus efeitos políticos, sociais e econômicos.<br />
As primeiras técnicas <strong>de</strong> RA consistiam em procedimentos simples como o sexo<br />
cronometrado (TAMANINI, 2003) realizado, ainda, em um espaço <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> do casal.<br />
Entretanto, com o <strong>de</strong>senvolvimento das novas tecnologias reprodutivas conceptivas a<br />
intimida<strong>de</strong> do casal é levada para <strong>de</strong>ntro do laboratório, on<strong>de</strong> a técnica e a intervenção<br />
médico/científica especializada e capacitada é dirigida à manipulação <strong>de</strong> gametas, <strong>de</strong> órgãos e<br />
<strong>de</strong> embriões confeccionados <strong>de</strong> forma exterior ao corpo, <strong>de</strong>marcando <strong>de</strong> maneira sensível a<br />
separação entre sexo e reprodução e embrião. Neste cenário, a reprodução passa a configurar-<br />
se como um palco <strong>de</strong> transferência e aplicação dos conhecimentos biotecnológicos, genéticos<br />
laboratoriais e mercadológicos, apresentando-se assim, como um campo marcado por<br />
interesses políticos e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que visam transformar conhecimentos em técnicas úteis aos<br />
interesses <strong>de</strong> mercado e da indústria (ROTANIA, 2003). Inserindo-se em um gran<strong>de</strong> mercado<br />
<strong>de</strong> <strong>fazer</strong> bebês (SPAR, 2007), os laboratórios utilizam-se <strong>de</strong> narrativas publicitárias e imagens<br />
que promulgam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização do sonho da reprodução biológica, atraindo para<br />
as clínicas - em sua gran<strong>de</strong> maioria privadas – pessoas que <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser simples pacientes<br />
para tornarem-se verda<strong>de</strong>iros clientes. Desta maneira, diferentes autoras propõem que se<br />
pense sobre as implicações e dinâmicas sociais, econômicas e simbólicas envoltas nas práticas<br />
<strong>de</strong> RA cujo fim parece ser a objetivação máxima da vida humana pelo discurso<br />
médico/científico.<br />
Estas tecnologias parecem reforçar a obrigação <strong>de</strong> ter filhos, sem os quais a mulher, no<br />
contexto <strong>de</strong> família heterossexual, é percebida como vazia (TAMANINI, 2006). A questão da<br />
infertilida<strong>de</strong> possui remotas referências. Uma das mais antigas refere-se às famílias<br />
fundadoras da teologia cristã, <strong>de</strong>scritas no capítulo bíblico <strong>de</strong> Gênesis. Durante muito tempo,<br />
a infertilida<strong>de</strong> manteve-se como uma maldição silenciosa e irrevogável. Essa condição<br />
alinhou-se à responsabilida<strong>de</strong> da mulher que, sem filhos era relegada ao âmbito do maligno<br />
(SPAR, 2007). Dessa forma, a infertilida<strong>de</strong> se impõe como um mal, uma patologia que <strong>de</strong>ve<br />
20
ser tratada e medicada. Neste contexto, as relações envoltas nas NTRc são marcadas pela<br />
centralida<strong>de</strong> imputada ao corpo e às suas diferenças sexuais que por vezes reafirmam os<br />
papeis tradicionais <strong>de</strong> parentesco ao pautarem-se em uma valorização do biológico, na qual a<br />
mulher aparece enraizada no duo mãe/natureza (LUNA, 2002).<br />
Destacamos, <strong>de</strong>sta forma, que as teorias <strong>de</strong>sconstrutoras das diferenças sexuais e do<br />
duo natureza/cultura, apresentadas brevemente no capítulo anterior, são <strong>de</strong> indispensável<br />
importância na análise da técnica e da ciência voltadas à reprodução humana, pois quando<br />
<strong>de</strong>bruçamo-nos sobre as NTRc, referenciamos um campo da biomedicina que enten<strong>de</strong>, por<br />
exemplo, o corpo feminino essencializado em seu papel <strong>de</strong> reprodução biológica<br />
(TAMANINI, 2003). De tal modo, atentar para o caráter socialmente construído das<br />
premissas que estabelecem o sexo enquanto natural e o <strong>gênero</strong> como categoria cultural nos<br />
permite compreen<strong>de</strong>r e questionar o discurso científico e as bases <strong>de</strong> sua legitimação, a saber,<br />
a <strong>de</strong>manda, socialmente aprovada, por filhos, e a exaltação do corpo biológico.<br />
Destarte, consi<strong>de</strong>ra-se inviável o <strong>de</strong>bate ao redor do discurso científico sem a luz <strong>de</strong><br />
uma reflexão preocupada em <strong>de</strong>suniversalizar e <strong>de</strong>sobjetivar este campo do saber, que na<br />
socieda<strong>de</strong> contemporânea ganha contornos <strong>de</strong> imposição <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s.<br />
Evi<strong>de</strong>ncia-se que a ciência, enquanto fruto <strong>de</strong> construções sociais, permite o diálogo<br />
entre categorias fundamentais do sistema simbólico/cultural, no qual, nos encontramos<br />
inseridos e on<strong>de</strong> assentamos nossas práticas, ações e valores, em especial, os referidos às<br />
noções <strong>de</strong> técnica, cultura, natureza, sexo e corpo.<br />
Em meio a esta problemática, o antropólogo francês Bruno Latour nos fornece<br />
proveitosas reflexões que põem a prova nossa habitual visão do conhecimento científico.<br />
Partindo da constatação <strong>de</strong> que muito pouco havia sido produzido no campo da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong><br />
práticas científicas, Latour e Woolgar (1997) iniciam uma pesquisa empírica em um<br />
renomado laboratório da Califórnia, o Instituo Salk. Neste trabalho, intitulado Vida <strong>de</strong><br />
Laboratório, os autores começam a esboçar sua principal proposição: a <strong>de</strong> que a ciência é<br />
resultado <strong>de</strong> construções sociais. Desta maneira, confere-se impossível, mesmo a este campo<br />
do saber, construir verda<strong>de</strong>s que não tenham a socieda<strong>de</strong> como ponto <strong>de</strong> origem.<br />
Neste sentido, é impossível opor radicalmente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma natureza real a <strong>de</strong> uma<br />
socieda<strong>de</strong> falsa/artificial. Faz-se imprescindível pensar a relação natureza/cultura<br />
simetricamente, tratando ambas nos mesmos termos, opondo-se a crença <strong>de</strong> que a última é<br />
constituída para explicar a primeira.<br />
Tentando respon<strong>de</strong>r a central questão <strong>de</strong> como a objetivida<strong>de</strong> é produzida, tais autores<br />
investigam o caminho percorrido por um fato até ele alcançar o status <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> científica,<br />
21
sobre a qual os atores (cientistas) elucubram como se constituísse uma entida<strong>de</strong> objetiva.<br />
Efetua-se que, ao reencontrar o caminho perdido que transforma fatos em verda<strong>de</strong>s dadas, a<br />
noção <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, tão cara ao pensamento científico, é interrogada. Verifica-se que a<br />
verda<strong>de</strong> não se encontra pronta no mundo, apenas a espera <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scoberta, mas ao<br />
contrário, é forjada no seio da própria socieda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ndo-se concluir que o saber não é,<br />
portanto, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do seu modo <strong>de</strong> construção.<br />
Resta, por conseguinte, saber como um fato científico se constitui como verda<strong>de</strong><br />
objetiva, ganhando o emblema <strong>de</strong> a-histórico e a-temporal. Segundo os autores, objetos e<br />
fatos são edificados através do talento criativo dos homens da ciência. Todavia, singular<br />
processo <strong>de</strong> construção é esquecido, resultando que um fato científico torna-se tal, quando<br />
per<strong>de</strong> seus atributos temporais e sociais. Dessa forma, o fato pronto integra-se a um vasto<br />
conjunto <strong>de</strong> conhecimentos erigidos por outros fatos, negando o longo caminho percorrido<br />
pelos pesquisadores. Na tentativa <strong>de</strong> resgatar o caráter social da ciência, é indispensável<br />
retomar este caminho, o processo <strong>de</strong> construção que se apaga quando se transforma o fato em<br />
realida<strong>de</strong>.<br />
Destacamos aqui o valor <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o lugar, a motivação e o procedimento que<br />
contribui para um fato ser estabelecido. É igualmente importante ressaltar a gama <strong>de</strong><br />
interesses e preocupações que movem os membros <strong>de</strong> um laboratório, que em conversas<br />
po<strong>de</strong>m criar, <strong>de</strong>scriar, reforçar e modificar as suas convicções, revelando a existência <strong>de</strong> uma<br />
re<strong>de</strong> complexa <strong>de</strong> avaliações, presente em qualquer <strong>de</strong>dução ou <strong>de</strong>cisão. Torna-se claro que<br />
diversos interesses po<strong>de</strong>m estar simultaneamente presentes em uma única afirmação. Essas<br />
conversas e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>svendam os conteúdos e interesses dos pesquisadores, nos mostrando sua<br />
maneira <strong>de</strong> pensar e seus valores. Logo, se todo discurso resulta da integração <strong>de</strong> inúmeras<br />
avaliações, é socialmente construído. Portanto, conclui-se que o estabelecimento <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia<br />
ou <strong>de</strong> um fato é resultante da simplificação <strong>de</strong> toda uma série <strong>de</strong> condições materiais e<br />
coletivas e, <strong>de</strong>sta forma, a ciência mostra-se <strong>de</strong>finitivamente articulada com a socieda<strong>de</strong>.<br />
Em outro texto, Políticas da Natureza, Bruno Latour (2004) apresenta os problemas e<br />
embaraços <strong>de</strong> pensarmos um mundo dominado pela concepção da natureza enquanto imutável<br />
e indiscutível. A <strong>de</strong>finição que polariza natureza e cultura é representada por Latour, neste<br />
livro, através da alegoria da caverna, <strong>de</strong> Platão, a qual <strong>de</strong>screve a existência <strong>de</strong> um mundo<br />
<strong>de</strong>smembrado em duas câmaras. A primeira, escura e recanto da ignorância, representa o<br />
mundo social. A segunda, concebida como objetiva e posto do conhecimento, caracteriza o<br />
mundo não humano, a natureza. Estes dois mundos se encontram unidos por uma acanhada<br />
passagem por meio da qual apenas sábios e homens da ciência po<strong>de</strong>m passar. Acessando o<br />
22
mundo não humano, do qual retornam mais tar<strong>de</strong> para o mundo social, munidos <strong>de</strong><br />
conhecimentos e do po<strong>de</strong>r que ele reflete, organizam e iluminam, assim, a escuridão da<br />
ignorância, tomando para si o po<strong>de</strong>r político e a autorida<strong>de</strong> da fala, já que conhecem e<br />
dominam a verda<strong>de</strong>, a natureza. É neste cenário que intervêm os sociólogos da ciência ao<br />
preten<strong>de</strong>rem <strong>de</strong>sconstruir a divisão binária que a muito pren<strong>de</strong> o pensamento oci<strong>de</strong>ntal em<br />
uma concepção da natureza regida por leis não humanas e, portanto, indiscutíveis. Segundo<br />
Latour, somente quando superada essa amarra será possível progredir rumo a um mundo on<strong>de</strong><br />
natureza e cultura se articulam, on<strong>de</strong> humanos e não humanos se misturam e os aclamados<br />
cientistas, porta vozes oficiais dos não humanos, têm suas práticas profundamente<br />
questionadas.<br />
Este novo mundo, on<strong>de</strong> as fronteiras per<strong>de</strong>m sua niti<strong>de</strong>z, é chamado por Latour <strong>de</strong><br />
república das coisas. A Ciência com letra maiúscula é substituída pelas ciências com letra<br />
minúscula, caracterizando o fim das disciplinas puras, que separam as diferentes áreas do<br />
conhecimento e que mantêm a cisão entre ciência, política, religião e economia.<br />
Vale lembrar que este não é um discurso que se preten<strong>de</strong> anti-científico ou<br />
obscurantista, mas apenas atenta para as implicações e dificulda<strong>de</strong>s que se instalam quando se<br />
enten<strong>de</strong> elementos relacionais como radicalmente distintos.<br />
Visivelmente o que o Latour sugere é a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pensar novos meios <strong>de</strong> se<br />
<strong>fazer</strong> política e ciência em um mundo novo on<strong>de</strong> os não humanos e os híbridos encontram<br />
lugar e on<strong>de</strong> a autorida<strong>de</strong> não se exerce e justifica-se por basear-se em leis inumanas e por<br />
isso objetivamente inquestionáveis.<br />
Observa-se, atualmente, uma crescente crítica aos discursos científicos, e em especial<br />
àqueles ligados a reprodução e ao corpo da mulher. Neste sentido, o trabalho da historiadora<br />
Ana Paula Vosne Martins (2004) po<strong>de</strong> se somar às críticas propostas por Latour e, assim,<br />
enriquecer nossa discussão com exemplos históricos dos caminhos percorridos pela ciência na<br />
tentativa <strong>de</strong> controlar e estabelecer-se enquanto disseminadora <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s e fatos sobre a<br />
mulher.<br />
Martins realiza uma pesquisa histórica a respeito do discurso médico e científico, que<br />
se enraíza nos séculos XVIII e XIX, e que versa sobre a mulher e seu corpo. A autora dirige<br />
sua atenção ao viés social presente na elaboração <strong>de</strong>stes discursos que aprisionam as mulheres<br />
em suas funções biológicas/naturais, em particular em sua capacida<strong>de</strong> singular e <strong>de</strong>finidora: a<br />
reprodução. A autora nos reporta novamente à problemática da essencialização da mulher e<br />
das concepções valorativas que tangem a reprodução humana revelando, contudo, suas<br />
origens e motivações.<br />
23
Ao salientar a estreita relação entre a moldagem, a<strong>de</strong>quação e controle do corpo<br />
feminino com o estabelecimento da maternida<strong>de</strong> enquanto função social <strong>de</strong>finidora da mulher,<br />
a autora traça uma linha histórica na qual salienta os caminhos da legitimação <strong>de</strong>sta relação<br />
mulher/mãe pelo discurso médico.<br />
Assim, apresenta a proposição da historiadora Knibiehler (1976, apud MARTINS,<br />
2004) que se indaga sobre os motivos da regressão na condição feminina após a Revolução<br />
Francesa, já que as mulheres do pós revolução começaram a ocupar cada vez mais o espaço<br />
doméstico, retirando-se da vida pública. Para Knibiehler, uma possível explicação para a<br />
migração das mulheres <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s políticas para o seio do lar está, é certo, na<br />
influência dos discursos médico científicos dos séculos XVIII e em especial do século XIX.<br />
Voltada para as diferenças sexuais, a medicina do século XIX fez mais que embasar o <strong>de</strong>stino<br />
natural das mulheres na reprodução, prometeu felicida<strong>de</strong> a quem seguisse o seu <strong>de</strong>stino<br />
natural, assumindo, portanto, o gerenciamento do corpo feminino e a imposição do regresso<br />
ao lar.<br />
Como nos mostra Laqueur (1994), até o século XVII vivia-se sobre o predomínio do<br />
mo<strong>de</strong>lo do sexo único, <strong>de</strong>fendido por Aristóteles e Galeno que pon<strong>de</strong>ravam a diferença sexual<br />
em termos hierárquicos e não binários. O calor vital era a noção central para a <strong>de</strong>finição da<br />
perfeição. O homem por sua natureza quente e seca figurava no topo da ca<strong>de</strong>ia dos seres<br />
vivos, seguido da mulher, inferiorizada por sua condição fria e úmida. Logo, o corpo feminino<br />
caracterizava a versão imperfeita do corpo masculino, seus órgãos sexuais eram consi<strong>de</strong>rados<br />
invertidos <strong>de</strong>vido a sua falta <strong>de</strong> calor, necessário para a externalização dos órgãos, função<br />
perfeitamente realizada pelo corpo masculino. Neste mo<strong>de</strong>lo o corpo é único e as diferenças<br />
que se observam são <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />
Contudo, <strong>de</strong> acordo com as reflexões <strong>de</strong> Martins, no início do século XVIII o mo<strong>de</strong>lo<br />
científico se reconfigura. Começa a ser esboçado um novo sistema, agora baseado nas<br />
diferenças sexuais. O corpo é tomado por olhares e se torna central nas re<strong>de</strong>finições das<br />
relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />
A empreitada científica volta-se para a natureza <strong>de</strong> cada corpo, na tentativa <strong>de</strong><br />
encontrar o verda<strong>de</strong>iro sexo <strong>de</strong> cada pessoa. Não valendo mais o mo<strong>de</strong>lo do sexo único, o<br />
interesse se foca nas diferenças. Desta maneira, as investigações científicas sobre o sexo<br />
passam a ser realizadas com maior constância e adquirem um perfil profundamente<br />
i<strong>de</strong>ológico. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sexual torna-se <strong>de</strong>terminante na vida <strong>de</strong> cada indivíduo e o sexo<br />
torna-se uma categoria ontológica.<br />
24
As atenções se dirigem aos mistérios da mulher, que passa a ser objeto <strong>de</strong> uma vasta<br />
investigação, o que revela as preocupações <strong>de</strong> médicos e cientistas com a especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
seu corpo biologicamente <strong>de</strong>finido como inferior. Essas investigações influenciaram discursos<br />
que <strong>de</strong>limitaram os papeis e lugares sociais inferiores ocupados pelas mulheres.<br />
Já no século XIX a socieda<strong>de</strong> burguesa em constante ascensão buscou nestas falas<br />
científicas a chave da sua organização. Deste modo, a ciência torna-se um pilar da<br />
inferiorização da mulher não somente nos domínios biológicos, mas políticos e morais.<br />
A curiosida<strong>de</strong> com relação ao corpo feminino não cessa. A ânsia por enten<strong>de</strong>r e<br />
explicar a mulher acentua-se ainda mais com a perceptível transformação do parto em assunto<br />
médico. O parto, habitualmente percebido como relativo às ações corriqueiras das mulheres,<br />
envolvia somente a ajuda das parteiras. No entanto, a figura do médico começa a ganhar<br />
relevância e se percebe uma intensificação dos processos <strong>de</strong> profissionalização e legitimação<br />
dos seus saberes, que se voltam também ao corpo feminino. Surgem os primeiros obstetras,<br />
<strong>de</strong>finidos por possuírem um conjunto <strong>de</strong> conhecimentos referidos a reprodução humana. O<br />
saber científico finalmente ganha espaço neste terreno cercado <strong>de</strong> mistérios e místicas que é o<br />
corpo feminino, como nos indica Marins.<br />
Ainda no século XIX, através da aproximação médica não somente dos partos, mas<br />
igualmente <strong>de</strong> outros assuntos relativos à mulher, surge a ginecologia, <strong>de</strong>finida como a ciência<br />
da mulher. Esta nova área médica constitui-se como autorida<strong>de</strong> para enunciar a verda<strong>de</strong> sobre<br />
seu objeto: a mulher.<br />
A nova ciência reabilita um órgão exclusivamente feminino, o útero, ressaltando<br />
categoricamente a singularida<strong>de</strong> corpórea dos indivíduos femininos. Constatará, com<br />
autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um saber científico, que a natureza da mulher <strong>de</strong>fine-se por seu corpo e sua<br />
condição apresenta-se submissa ao império <strong>de</strong> seus órgãos sexuais. Não isenta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, a<br />
ginecologia reforçará imperativos sobre o papel social da mulher. Unirá corpo e moral,<br />
organizados com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>fazer</strong> os indivíduos femininos cumprirem com o <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong><br />
sua natureza, a saber, a maternida<strong>de</strong> e os cuidados relativos ao âmbito doméstico.<br />
De acordo com Martins, o saber médico confere às mulheres uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> comum e<br />
faz do seu corpo um lugar privilegiado <strong>de</strong> on<strong>de</strong> emana a mais profunda essência feminina.<br />
Esse saber toma formas <strong>de</strong> controle e molda estes corpos às normas. Interessante ressaltar<br />
como esses discursos reorganizam as relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> ao negarem a sexualida<strong>de</strong> feminina,<br />
voltando a mulher exclusivamente à reprodução.<br />
As representações sobre os corpos femininos revelam um elemento essencial neste<br />
<strong>de</strong>bate, o caráter <strong>de</strong> construção cultural e histórica dos próprios corpos. Parece-nos nítido que<br />
25
as construções acerca do corpo feminino, das diferenças sexuais e a própria constituição do<br />
novo campo, conhecido como a ciência da mulher, emergem marcadas por um prévio i<strong>de</strong>al<br />
social referido ao papel da mulher na socieda<strong>de</strong>. Parafraseando Gombrich (1986 apud<br />
MARTINS, 2004, p.29), não há olhar puro sobre a realida<strong>de</strong>, ela é observada através <strong>de</strong> lentes<br />
ou esquemas conceituais. Portanto, as representações <strong>de</strong> formas <strong>de</strong>sconhecidas obe<strong>de</strong>cem<br />
sempre a um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conformar as formas novas aos quadros conceituais <strong>de</strong> quem vai<br />
<strong>de</strong>screvê-las.<br />
Permanece evi<strong>de</strong>nte, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atentarmos para o fato da naturalização das<br />
representações instituídas, que em gran<strong>de</strong> parte vêm carregadas <strong>de</strong> conteúdos i<strong>de</strong>ológicos, que<br />
neste caso, insistem em associar a mulher ao domínio da natureza/biologia. Tais<br />
naturalizações acabam por encobertar hierarquias, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e um longo processo on<strong>de</strong> os<br />
homens tomaram para si o domínio da construção científica, legitimando sua visão e<br />
imaginário sobre a natureza, a mulher e sua submissão.<br />
Entrecortando esta discussão, Ilana Lowy (2003) propõe uma interessante abordagem<br />
das questões relativas à naturalização e universalização da ciência, ao levantar o <strong>de</strong>bate sobre<br />
as categorias sexo e <strong>gênero</strong>. A autora trabalha com as categorias binárias socialmente<br />
construídas sobre o sexo e nos oferece uma série <strong>de</strong> casos em que este mo<strong>de</strong>lo binário é posto<br />
em xeque. Os corpos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> constituírem-se como realida<strong>de</strong>s pré discursivas, isentos <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ologia.<br />
Na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstruir o ciclo vicioso que cientificamente aprisiona as mulheres<br />
em seus corpos reprodutivos, Ilana Lowy, assim como a supracitada Ana Paula Vosne<br />
Martins, recorre à história para <strong>de</strong>svendar as origens <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ciência. Enfoca o século<br />
XIX, auge da medicina biológica que i<strong>de</strong>ntifica no corpo o reduto das diferenças sexuais. Em<br />
meio a um contexto em que o corpo torna-se fundamental para a <strong>de</strong>finição da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, os<br />
casos <strong>de</strong> crianças que nascem sem sexo <strong>de</strong>terminado ocasionam problemas, já que<br />
permanecem sem lugar no mo<strong>de</strong>lo do corpo natural on<strong>de</strong> cada ser <strong>de</strong>ve carregar apenas um<br />
sexo bem <strong>de</strong>finido. A autora revela, então, a existência <strong>de</strong> uma enorme varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> técnicas<br />
<strong>de</strong> intervenção médica que visam corrigir os “<strong>de</strong>feitos” biológicos <strong>de</strong> crianças intersex.<br />
O fato da existência <strong>de</strong>ssas crianças sem sexo <strong>de</strong>finido e do interesse no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> técnicas corretivas parecem colocar a prova o mo<strong>de</strong>lo do sexo dual. A<br />
presença <strong>de</strong> nuances entre os dois pólos, mulher e homem, aponta claramente para o fato <strong>de</strong> a<br />
categoria sexo ser uma categoria classificatória socialmente construída. Não se constitui,<br />
portanto, como universal ou fixa, <strong>de</strong>ixando escapar um sem número <strong>de</strong> casos que fogem ao<br />
padrão da diferença radical entre os dois sexos. Por meio <strong>de</strong>stes exemplos, brilhantemente<br />
26
esmiuçados pela autora, assegura-se que não há mais caminhos para a afirmação <strong>de</strong> que o<br />
sexo é um dado objetivo fornecido pela natureza.<br />
A <strong>de</strong>snaturalização <strong>de</strong> categorias que se preten<strong>de</strong>m universais, racionais e objetivas,<br />
como a categoria sexo, abre caminho para reflexões que abarquem as diferentes possibilida<strong>de</strong>s<br />
da realida<strong>de</strong>, revelando que a ciência não é neutra, ao contrário, está carregada <strong>de</strong> valores<br />
relativos àqueles que a produzem.<br />
Já nos aproximando das discussões sobre as tecnologias reprodutivas, nosso foco neste<br />
trabalho, apresentamos as contribuições do médico e biólogo Henri Atlan (2005), que inserido<br />
no complexo universo da análise crítica das técnicas, nos mostra em seu exemplar livro O<br />
útero artificial as possibilida<strong>de</strong>s surgidas através da evolução <strong>de</strong> técnicas relacionadas à<br />
reprodução humana.<br />
O autor revela suas preocupações a respeito das técnicas <strong>de</strong> procriação <strong>de</strong>senvolvidas<br />
em um primeiro momento com finalida<strong>de</strong>s médicas <strong>de</strong> tratamento da esterilida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong><br />
abortos sucessivos, mas que, acabam inevitavelmente ultrapassando as indicações puramente<br />
terapêuticas, sendo utilizadas em resposta a <strong>de</strong>mandas sociais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos por filhos.<br />
Uma seqüência <strong>de</strong> novas <strong>de</strong>scobertas e invenções tecnológicas transforma as<br />
condições materiais da vida e trazem repercussões teóricas que <strong>de</strong>sorganizam as antigas<br />
representações da natureza das coisas. Por exemplo, o surgimento <strong>de</strong> um útero artificial capaz<br />
<strong>de</strong> substituir totalmente o útero humano ocasionaria novas práticas e, <strong>de</strong>sse modo, suscitaria<br />
sérias discussões referidas aos procedimentos éticos e aos valores concernentes aos direitos<br />
das famílias, aos padrões culturais e aos aspectos simbólicos e afetivos.<br />
Mais uma vez o avanço tecnológico e suas conseqüências apontam para a<br />
indissociabilida<strong>de</strong> das técnicas e práticas científicas do seu meio <strong>de</strong> inserção, a socieda<strong>de</strong>.<br />
Enquanto continuarmos a presenciar o progresso tecnológico, é seguro que <strong>de</strong>bates e reflexões<br />
serão produzidas no intuito <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o alcance das transformações ou reificações dos<br />
mo<strong>de</strong>los culturais <strong>de</strong> vida.<br />
Neste sentido, as questões impostas pelo avanço vertiginoso das clínicas <strong>de</strong> RA são<br />
<strong>de</strong>talhadas pelas autoras feministas, que evi<strong>de</strong>nciam a peculiarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste campo ao agregar<br />
em um mesmo processo relações entre técnica, ciência e <strong>gênero</strong>.<br />
Como já afirmou Atlan, inovações tecnológicas implicam consequências antes não<br />
pensadas. É o caso polêmico do congelamento <strong>de</strong> embriões, que provoca <strong>de</strong>bates políticos,<br />
éticos e econômicos novos que precisam mesclar referências naturais e culturais ao lidar com<br />
estes híbridos que não encontram lugar no mundo polarizado entre natural e artificial<br />
(LATOUR, 2004).<br />
27
Outro ponto relevante sobre as possíveis implicações das NTRc é o <strong>de</strong>saparecimento<br />
da dimensão subjetiva do sofrimento, do <strong>de</strong>sejo e do prazer que dão lugar a dimensão objetiva<br />
do saber, do controle do corpo e da natureza. O médico é transformado em um fazedor <strong>de</strong><br />
milagres, capaz <strong>de</strong> normalizar o casal estéril que medicaliza-se sem, contudo, receber <strong>de</strong><br />
maneira própria informações sobre os riscos que tais intervenções imputam a seus corpos.<br />
A profunda especialização e profissionalização das áreas, que outorgam aos<br />
especialistas a autorida<strong>de</strong> neutra sobre seus objetos parece legitimar e dar credibilida<strong>de</strong> ao<br />
saber médico-científico. Torna-se compreensível a entrada <strong>de</strong> diferentes especialida<strong>de</strong>s no<br />
campo da reprodução humana, como é o caso da veterinária, da biologia molecular, entre<br />
tantas outras. O discurso sobre as práticas torna-se profundamente técnico e especializado, e a<br />
ciência da reprodução adquire o comando das células, dos gametas, dos embriões, <strong>de</strong>talhados<br />
e pesquisados por verda<strong>de</strong>iros peritos que dominam a natureza, entendida como estanque e<br />
imóvel frente aos avanços mo<strong>de</strong>rnos. Alias, é este apelo a natureza que corrobora a<br />
legitimida<strong>de</strong> da técnica e da intervenção severa sobre os corpos. A natureza torna-se metáfora<br />
da técnica e a técnica é transformada em natureza. Essa é a gran<strong>de</strong> chave da mudança do<br />
significado cultural acerca da reprodução (RAMIREZ, 2006).<br />
Com relação aos corpos, nos processos <strong>de</strong> RA eles sofrem uma profunda<br />
fragmentação, <strong>de</strong>scolam-se células, gametas e embriões que, <strong>de</strong>sumanizados, tornam-se<br />
passíveis <strong>de</strong> comercialização e doação. Evi<strong>de</strong>ncia-se uma crescente mercantilização da<br />
reprodução e do parentesco, que sai da alcova e dirige-se para o consultório do médico, para o<br />
laboratório e, nos dias atuais, para o os sites das clínicas <strong>de</strong> RA (TAMANINI, 2007). O<br />
comércio da fertilida<strong>de</strong> funciona <strong>de</strong> maneira parecida com o comércio da medicina: os<br />
indivíduos que compram os serviços <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong> das clínicas, não se consi<strong>de</strong>ram como<br />
agentes <strong>de</strong> uma relação comercial (SPAR, 2007).<br />
Sem tecer críticas <strong>de</strong> cunho moral, Spar aponta para a realida<strong>de</strong> atual que perpassa os<br />
tratamentos propiciados pelo mercado da fertilida<strong>de</strong>: fabricam-se bebês <strong>de</strong> uma forma<br />
altamente tecnologizada, há um crescente na manipulação <strong>de</strong> cada vez mais componentes da<br />
sua existência. É necessário, <strong>de</strong>ssa forma, atentar para as implicações sociais <strong>de</strong>sse advento.<br />
No cerne da questão, o discurso médico ainda localiza o <strong>de</strong>sejo por filhos que, como<br />
lembra Tubert (1996), antes <strong>de</strong> expressar um <strong>de</strong>sejo do sujeito, expressa o chamado do outro,<br />
da família, das pessoas e por vezes, do próprio corpo médico, visto que, estando casada, o<br />
normal para uma mulher é que tenha filhos. A lei moral se transforma em lei científica e, as<br />
NTRc adquirem uma função política na criação e transformação <strong>de</strong> normas acerca do corpo,<br />
da saú<strong>de</strong> e do comportamento, sendo assim, a medicina domestica ou tradicionaliza os novos<br />
28
arranjos sociais. Os termos do <strong>de</strong>bate sobre natureza e cultura se re<strong>de</strong>finem não apenas nos<br />
humanos, mas na fabricação da vida, através <strong>de</strong> técnicas avançadas (RAMIREZ, 2006).<br />
A ciência ao apropriar-se do conhecimento sobre a natureza <strong>de</strong>signa para si a<br />
autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enunciar as verda<strong>de</strong>s sobre a vida dos seres humanos. Nesta perspectiva a<br />
ciência coloca a natureza como imóvel e estável, reduto do qual se po<strong>de</strong> emergir as bases<br />
reguladoras das ações humanas, a vida social é dominada por leis inumanas e por isso<br />
objetivas. Entretanto, os <strong>estudos</strong> apresentados neste capítulo <strong>de</strong>sconstroem a percepção da<br />
natureza enquanto elemento imutável no qual é presumível que se encontre as explicações e<br />
embasamentos para os mo<strong>de</strong>los simbólicos da vida social. Averiguamos que a ciência opera<br />
como construtora <strong>de</strong> concepções que não tem a natureza objetiva como fonte, mas que<br />
arquitetam as próprias <strong>de</strong>finições do que seja natural, nesta lógica, inferimos que as premissas<br />
científicas estão <strong>de</strong>cisivamente associadas às compreensões daqueles que se colocam a<br />
produzi-la. Alegamos que no caso das NTRc as premissas que regem as atuações científicas<br />
são as relacionadas aos entendimentos habituais da reprodução enquanto tarefa feminina, fato<br />
estabelecido socialmente e não dado pela natureza imutável do corpo feminino. O discurso<br />
médico/científico configura a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um circuito <strong>de</strong> práticas sociais que são por ele<br />
naturalizadas.<br />
Neste sentido, <strong>de</strong>sejamos traçar uma análise do campo das NTRc procurando instituir<br />
uma conexão entre a i<strong>de</strong>ologia da maternida<strong>de</strong> obrigatória, que se encontra repleta <strong>de</strong><br />
estereótipos <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> e as práticas e discursos científicos que se preten<strong>de</strong>m neutros, mas que<br />
acirram os estereótipos ao <strong>de</strong>finirem sua intervenção como certa, benéfica e indispensável<br />
para a constituição <strong>de</strong> um casal, em especial <strong>de</strong> uma mulher normal.<br />
29
3 DEFINIÇÕES METODOLÓGICAS<br />
3.1 Os caminhos da pesquisa<br />
Se as NTRc apresentam-se como um campo da biomedicina recheado <strong>de</strong> premissas,<br />
valores e normatizações sociais, como nos mostram as discussões dos capítulos anteriores,<br />
nos parece profícuo a<strong>de</strong>ntrar ao mundo daqueles que colocam estas tecnologias em ação.<br />
Olhar o proce<strong>de</strong>r científico através <strong>de</strong> suas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>s e dos seus anúncios<br />
publicitários nos permitirá enten<strong>de</strong>r in loco as concepções presentes quando se mobilizam<br />
técnicas e saberes na confecção da vida.<br />
Assim, esta monografia se insere no campo dos <strong>estudos</strong> sobre a reprodução humana<br />
que se engendra a partir do laboratório, e que i<strong>de</strong>ntifica no corpo da mulher seu lugar<br />
privilegiado <strong>de</strong> inserção. Adotando a perspectiva analítica <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, voltamos nosso foco<br />
para as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> especialistas vinculados às clínicas latino americanas <strong>de</strong> reprodução assistida<br />
que possuem sites filiados a Re<strong>de</strong> Latino Americana <strong>de</strong> Reprodução Assistida ( REDLARA),<br />
também nos voltamos para os artigos publicados por estes especialistas e disponíveis online<br />
também nos sites das clínicas.<br />
O processo <strong>de</strong> coleta do material relacionado acima se <strong>de</strong>u nos anos <strong>de</strong> 2007 e 2008,<br />
como parte <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> pesquisa maior, <strong>de</strong>senvolvido pela orientadora <strong>de</strong>sta monografia,<br />
professora Drª Marlene Tamanini. As informações referentes às clínicas brasileiras foram<br />
coletadas por Diogenes Parzianello, pesquisador <strong>de</strong> Iniciação Científica PIBIC/CNPq edital<br />
2007-2008 e compõem o relatório final das ativida<strong>de</strong>s realizadas pelo bolsista 1 . O material<br />
referente aos <strong>de</strong>mais países latino americanos foi coletado por mim em 2008, quando me<br />
inseri no programa <strong>de</strong> Iniciação Científica e são resultados do relatório final <strong>de</strong> Iniciação<br />
científica (IC) edital 2008-2009 2 e do texto apresentado pela orientadora <strong>de</strong>sta monografia na<br />
VIII Reunión <strong>de</strong> Antropología <strong>de</strong>l Mercosur no ano <strong>de</strong> 2009 em Buenos Aires, Argentina em<br />
co-autoria.<br />
Em um segundo momento foi preciso reavaliar o material coletado em 2008 que<br />
compõe o quadro do proce<strong>de</strong>r científico das clínicas da América latina. Recoletamos boa<br />
parte do material e refizemos os quadros referentes as especialida<strong>de</strong>s localizadas nos sites das<br />
1<br />
Relatório intitulado: Novas Tecnologias Reprodutivas: uma análise sociológica para compreen<strong>de</strong>r o proce<strong>de</strong>r<br />
científico no campo das NTRc.<br />
2<br />
Relatório intitulado: As novas tecnologias reprodutivas conceptivas, o proce<strong>de</strong>r científico e as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
especialida<strong>de</strong>s na América Latina.<br />
30
clínicas, na tentativa <strong>de</strong> encontrarmos a especialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns profissionais que ainda não<br />
tinham tido sua área <strong>de</strong> atuação <strong>de</strong>finida. Após o termino <strong>de</strong>sta re-análise, nos <strong>de</strong>bruçamos<br />
sobre as imagens e os discursos publicitários disponíveis nos sites das clínicas <strong>de</strong> reprodução<br />
assistida. Esta etapa é a parte que se soma, e que embora, constante na proposta das dinâmicas<br />
do mesmo processo <strong>de</strong> pesquisa já engendrado, e que compõe sentidos e amadurecimentos<br />
teóricos aqui apresentados torna-se parte exclusiva para esta monografia. Sua continuida<strong>de</strong><br />
comporá também o relatório final das minhas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Iniciação Científica edital 2009-<br />
2010 a ser apresentado no 18º EVINCI, em outubro <strong>de</strong>ste ano. Vale lembrar que ambos os<br />
processos <strong>de</strong> Iniciação Científica encontram-se inseridos no projeto da professora Drª Marlene<br />
Tamanini do Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais, nomeado Tecnologias Conceptivas: a<br />
natureza e os corpos para <strong>gênero</strong> e ciência, que se encontra registrado no BANPESQ com o<br />
número, 2007021341.<br />
Em conformida<strong>de</strong> com nosso foco nesta monografia, traçamos os seguintes objetivos:<br />
dar continuida<strong>de</strong> a análise <strong>de</strong> base comparativa, realizada durante o processo <strong>de</strong> Iniciação<br />
científica, sobre as artigos ou resumos científicos produzidos por profissionais que integram a<br />
equipe <strong>de</strong> especialistas dos centros e clínicas latino-americanas pertencentes a Re<strong>de</strong> Latino<br />
Americana <strong>de</strong> Reprodução Assistida (REDLARA), que estão publicados online, em seus sites,<br />
entre os anos <strong>de</strong> 2000 até 2007, conforme estipulado no processo <strong>de</strong> iniciação científica.<br />
Explicitamos como se apresenta a configuração da equipe profissional das clínicas e o que ela<br />
indica em relação às práticas em reprodução humana laboratorial, em termos <strong>de</strong> concepções<br />
no campo. Analisar os conteúdos publicitários presentes nos sites das clínicas <strong>de</strong> RA, assim,<br />
nosso olhar se volta para a tarefa <strong>de</strong> organizar, interpretar e dar sentido as essas informações<br />
publicitárias e aos conteúdos valorativos presentes nas imagens que se encontram nos sites<br />
das clínicas. Cujos valores, discursos, informações e esclarecimentos são dirigidos aos casais<br />
que a<strong>de</strong>ntram o universo da NTRc através do mundo virtual. Desta maneira nosso objetivos<br />
específicos foram: Compreen<strong>de</strong>r pela perspectiva <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, sob qual epistemologia<br />
subjacente se faz a tecnologia em reprodução assistida e a que ela aparece referida nos sites,<br />
consi<strong>de</strong>rando-se a relação entre natureza e cultura e os temas que se transversalizam na<br />
construção <strong>de</strong>sse campo; analisar como se estruturam os sites das clínicas <strong>de</strong> RA e quais são<br />
as informações para casais que nela a<strong>de</strong>ntram, quais tem sido seus fins em relação a<br />
publicida<strong>de</strong> e ao meio científico tecnológico. Mostramos como as metáforas sobre<br />
reprodução, <strong>gênero</strong> e ciência são ali engendradas e como estas metáforas se conectam a<br />
processos sociotécnicos, afetivos e sociais, qual o lugar da ciência e da tecnologia na or<strong>de</strong>m<br />
reprodutiva. Por fim, pon<strong>de</strong>ramos como a cultura da maternida<strong>de</strong> obrigatória permeia o<br />
31
campo publicitário e científico e ressaltamos quais as possíveis conseqüências <strong>de</strong>ssa estreita<br />
ligação no âmbito social, cultural, ético e político. A análise das imagens e publicida<strong>de</strong>s nos<br />
permitiu estabelecer proveitosas relações entre o campo científico e os valores sociais<br />
associados a reprodução humana, em especial aqueles que visam a sacralização da mulher<br />
enquanto mãe. Observamos que tais relações encontram-se bordadas pelo contexto e pelo<br />
interesse que as produzem e que não se apresentam isentos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia e estereótipos <strong>de</strong><br />
<strong>gênero</strong>.<br />
Nossa tarefa, que no projeto geral, acima indicado, pretendia perceber como o tema da<br />
reprodução assistida revela bases valorativas do proce<strong>de</strong>r científico e das epistemologias<br />
subjacentes as relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> e ciência quando se toma o processo <strong>de</strong> <strong>fazer</strong> filhos em<br />
laboratório. Neste trabalho o faz, sobretudo, por meio dos escritos e das imagens presente nos<br />
sites das clínicas, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> complementar por outro olhar, os aspectos referidos as<br />
bases valorativas do proce<strong>de</strong>r científico e das epistemologias subjacentes a <strong>gênero</strong>, família,<br />
maternida<strong>de</strong>, paternida<strong>de</strong>, filiação, parentesco, direitos sexuais e reprodutivos, políticas<br />
reprodutivas, <strong>de</strong>ntre outras articulações possíveis.<br />
Conforme já apontado este trabalho é um contínuo em relação a pesquisa que iniciou-<br />
se em 2008 quando <strong>de</strong>i meus primeiros passos na Iniciação Científica e realizei parte da<br />
coleta do material que compõe parte do campo em análise nesta monografia. Neste momento<br />
inicial procuramos os sites das clínicas <strong>de</strong> RA através do site da Re<strong>de</strong> Latino Americana <strong>de</strong><br />
Reprodução Assistida (www.redlara.com) na busca por artigos acadêmicos publicados pelos<br />
especialistas ligados ao quadro <strong>de</strong> profissionais das clínicas. I<strong>de</strong>ntificamos 138 clínicas<br />
pertencentes à re<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntre as quais 57 são brasileiras e 81 pertencem à Argentina, Bolívia,<br />
Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, México, Peru, República Dominicana, Uruguai e<br />
Venezuela.<br />
A pesquisa referente aos artigos e especialistas das clínicas brasileiras, como já dito<br />
antes, foi realizada pelo bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica anterior a mim, Diógenes<br />
Parzianello 3 . No entanto, tal pesquisa, por sua relevância na dinâmica do campo, será<br />
consi<strong>de</strong>rada por nós nesta monografia.<br />
3 A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong> pesquisa se encontra no relatório <strong>de</strong> Iniciação Científica do aluno<br />
Diógenes Parzianello, título: Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas: uma análise sociológica para<br />
compreen<strong>de</strong>r o proce<strong>de</strong>r científico no campo das NTRc. Iniciação Científica (PIBIQ/CNPq) / 2007-2008.<br />
32
Lembramos que nem todos os sites das clínicas estavam disponíveis ou continham<br />
publicações acadêmicas. Assim, o campo se <strong>de</strong>limitou da seguinte maneira: foram<br />
encontradas para a Argentina 23 clínicas, <strong>de</strong>ntre as quais 12 não apresentavam publicações<br />
em seus sites, 4 continham publicações em seus sites, 4 clínicas não possuíam sites, 2 clínicas<br />
estavam com o site fora do ar no momento da pesquisa e 1 clínica apresentava em seu site<br />
artigos com data <strong>de</strong> publicação não correspon<strong>de</strong>nte à <strong>de</strong>finida por nós nesta pesquisa. Para a<br />
Bolívia foi encontrada apenas 1 clínica afiliada e esta não possuía site. Já no Chile foram<br />
i<strong>de</strong>ntificadas 8 clínicas, entre elas 4 não possuíam site, 3 estavam com seus sites indisponíveis<br />
e 1 clínica não apresentava publicações em seu site. A Colômbia conta com 9 clínicas<br />
associadas, entre elas não foi possível localizar o site <strong>de</strong> 2 clínicas, em 3 clínicas foi possível<br />
encontrar publicações e 3 clínicas não possuíam publicações online. Foi encontrado pouco<br />
material nas 4 clínicas equatorianas pertencentes a REDLARA, <strong>de</strong>ntre elas, apenas 2<br />
continham publicações em seus sites, 1 não continha publicações e 1 clínica não possuía site.<br />
Encontramos para a Guatemala apenas 1 clínica, da qual foi possível coletar, através <strong>de</strong> seu<br />
site, material publicado por especialistas ligados à clínica. Observamos a presença <strong>de</strong> 23<br />
clínicas mexicanas associadas à Re<strong>de</strong>, <strong>de</strong>stas clínicas, 10 não apresentavam publicações<br />
online, 2 forneciam publicações, 2 estavam com seus sites foram do ar no momento da<br />
pesquisa e 9 clínicas não possuíam site. No Peru foram i<strong>de</strong>ntificadas 2 clínicas, ambas sem<br />
site. Para a República Dominicana foi encontrada apenas 1 clínica, cujo site não apresentava<br />
publicações. Foram acessados os sites das 2 clínicas uruguaias afiliadas a Re<strong>de</strong> Latino<br />
Americana <strong>de</strong> Reprodução Assistida e em apenas 1 site foram encontradas publicações e, por<br />
fim, para o caso da Venezuela foram <strong>de</strong>tectadas 6 clínicas, 2 com publicações acessíveis em<br />
seus sites e 4 sem publicações. Para o Brasil as dificulda<strong>de</strong>s foram as mesmas, das 57 clínicas<br />
apenas 11 possibilitaram a coleta <strong>de</strong> material compatível com os interesses <strong>de</strong>sta pesquisa.<br />
Findo este processo, reunimos 392 resumos <strong>de</strong> artigos para o conjunto dos países<br />
latino americano, excetuando o Brasil. Destes artigos, 88 foram publicados em congressos e<br />
atas <strong>de</strong> congressos, 201 foram publicados em jornais, 50 em revistas especializadas e 53<br />
foram publicados em outros meios (livros, site da REDLARA). No caso brasileiro foram<br />
i<strong>de</strong>ntificados 193 resumos <strong>de</strong> artigos e <strong>de</strong>stes, 64 foram publicados em congressos, 83 foram<br />
publicados em jornais, 37 em revistas e 9 em outros meios.<br />
Após a coleta do material publicado nos sites, partimos para a busca das<br />
especialida<strong>de</strong>s dos profissionais ligados às clínicas. Este trabalho foi realizado através <strong>de</strong><br />
investigação nos sites dos centros, on<strong>de</strong> foi possível encontrar o quadro profissional e as<br />
especialida<strong>de</strong>s lá dispostas, e também através do site da REDLARA, para o caso das clínicas<br />
33
que não possuíam site próprio, on<strong>de</strong> foi possível i<strong>de</strong>ntificar o nome dos membros da equipe<br />
que compõe o quadro dos especialistas da clínica. Somamos ao final um total <strong>de</strong> 1059<br />
profissionais, permanecendo 93 profissionais com a especialida<strong>de</strong> não encontrada. O que não<br />
significa que quando não foi possível i<strong>de</strong>ntificar as especialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses 93 profissionais os<br />
mesmos não se encontrem <strong>de</strong>ntre as <strong>de</strong>mais especialida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ntificadas. Para o Brasil foram<br />
encontrados 161 profissionais separados em 25 especialida<strong>de</strong>s.<br />
Após este trabalho <strong>de</strong> coleta e organização da informação produzimos uma primeira<br />
sistematização sobre as especialida<strong>de</strong>s encontradas nos sites das clínicas e <strong>de</strong>tectamos para a<br />
América Latina um total <strong>de</strong> 48 especialida<strong>de</strong>s, sendo que para o Brasil eram 25 o que<br />
<strong>de</strong>monstra claramente como o grau <strong>de</strong> interesse e <strong>de</strong> aberturas para a inserção profissional<br />
migrou para diferentes campos, quando se trata da reprodução humana e, sobretudo, mesclou<br />
a área tradicional referida à ginecologia e obstetrícia, embora ela ainda reine no campo<br />
hegemônica.<br />
Em um segundo momento, os artigos foram organizados pela orientadora em três<br />
eixos centrais <strong>de</strong> acordo com o conteúdo <strong>de</strong> suas análises. A primeira chave abarcou os<br />
artigos que diziam respeito ao corpo, gametas, hormônios ou órgãos pertencentes aos homens<br />
e as mulheres. Incluíram-se também os artigos que tratam da ingestão <strong>de</strong> hormônios, ou outro<br />
tipo <strong>de</strong> medicamento bem como as discussões sobre infertilida<strong>de</strong>. No segundo eixo foram<br />
agrupados os artigos referentes às tecnologias, aos protocolos, aos testes e às experiências que<br />
envolviam <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> procedimentos técnicos. A terceira chave uniu os artigos que tratam<br />
das questões ambientais, comportamentais, éticas, morais, culturais e/ou sociais e, que<br />
apresentam impacto sobre os processos <strong>de</strong> reprodução, <strong>de</strong> fabricação dos embriões e da<br />
fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira geral. O conteúdo dos artigos foi separado <strong>de</strong> acordo com seus<br />
objetivos, palavras-chave, títulos e <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> procedimentos presentes no corpo do texto.<br />
Após este processo e como parte do trabalho coletivo, separamos os artigos <strong>de</strong> acordo<br />
com o lugar <strong>de</strong> publicação, se em jornal, revista, congresso e/ou outros meios. Essa<br />
sistematização nos permitiu encontrar algumas dinâmicas <strong>de</strong> como se compõe essas re<strong>de</strong>s e<br />
sobre o conteúdo da produção do conhecimento produzido pelas especialida<strong>de</strong>s localizadas<br />
para a América Latina e Brasil. Assim como nos permitiu observar como vem se constituindo<br />
o quadro geral das especialida<strong>de</strong>s quando referidas à reprodução em contexto <strong>de</strong> laboratório 4 .<br />
4 A primeira versão, em seguida revisada, <strong>de</strong>ste trabalho foi apresentada como: TAMANINI, Marlene; AMORIM<br />
Anna Carolina Horstmann. Como se ven<strong>de</strong>m as novas tecnologias reprodutivas conceptivas: uma análise da<br />
tecnologia do proce<strong>de</strong>r científico na América Latina. In: VIII Reunión <strong>de</strong> Antropología <strong>de</strong>l Mercosur, 2009,<br />
Buenos Aires, Argentina. Gt 53 cuerpo e biociências: ROCA, alejandra R.; ROHDEN, Fabíola; SANDRINE,<br />
Paula Machado; KNAUTH, Daniela Riva. Anais... Buenos Aires: Argentina, RAM, 2009. 1CD ROM.<br />
34
Além <strong>de</strong> nos fixarmos nos discursos científicos voltados ao setor acadêmico, como são<br />
os artigos produzidos pelos especialistas, buscamos igualmente enten<strong>de</strong>r como o discurso da<br />
ciência visibiliza-se para os leigos, casais e pessoas interessadas que acessam os sites das<br />
clínicas buscando informações ou ajuda. Destarte, voltamos nossa atenção para o âmbito<br />
publicitário dos sites por enten<strong>de</strong>r que eles são fontes cristalizadas <strong>de</strong> valores e normas sociais<br />
imbricadas na reprodução. Escolhemos como material publicitário a ser analisado as<br />
informações sobre a missão e os valores das clínicas e as imagens presentes nos sites.<br />
A pesquisa que tange as imagens dos sites foi realizada no final do ano <strong>de</strong> 2008 e<br />
início <strong>de</strong> 2009. Em conseqüência da viagem da professora orientadora <strong>de</strong>ste trabalho, Marlene<br />
Tamanini, que irá realizar seu pós-doutoramento na Espanha, neste ano <strong>de</strong> 2010, acabamos<br />
tendo que adiantar a conclusão <strong>de</strong>sta monografia e, em <strong>de</strong>corrência disso, escolhemos para a<br />
coleta do material, as clínicas brasileiras com intenção <strong>de</strong> seguir a mesma lógica anterior do<br />
processo <strong>de</strong> Iniciação Científica, on<strong>de</strong> o exame do proce<strong>de</strong>r científico ocorreu primeiro nos<br />
sites das clínicas brasileiras, assim, optamos por iniciar também com as imagens <strong>de</strong>stas<br />
clínicas. Deste modo, pesquisa sobre as imagens ainda não foi completada no que se refere ao<br />
total das clínicas filiadas à REDLARA. O trabalho referente a análise das imagens das <strong>de</strong>mais<br />
clínicas latino americanas irá compor o relatório final <strong>de</strong> Iniciação Científica a ser<br />
apresentado por mim em outubro <strong>de</strong>ste ano no 18º EVINCI.<br />
Para a coleta das imagens analisadas neste trabalho, foram acessados 57 sites<br />
brasileiros <strong>de</strong> clínicas especializadas em Reprodução Assistida, dos quais compilamos 402<br />
imagens. Em um primeiro momento, agrupamos estas imagens em nove eixos centrais. A<br />
primeira chave contou com 38 imagens referidas a mulher. A segunda chave abarcou as<br />
imagens referentes às células, em especial as figuras <strong>de</strong> gametas, óvulos e sêmen<br />
representados, na maioria das vezes, sozinhos, sem nenhum tipo <strong>de</strong> interação, tais imagens<br />
somaram um total <strong>de</strong> 80, as imagens referentes aos gametas em interação somaram 28 figuras.<br />
A mais expressiva chave conta com 195 imagens <strong>de</strong> técnicas envolvidas em RA. Deparamo-<br />
nos com 40 imagens relativas às equipes e às acomodações das clínicas. Com 34 imagens <strong>de</strong><br />
bebês aparece a quinta chave. Com 14 imagens constitui-se a sexta chave referente as<br />
representações <strong>de</strong> órgãos, mantidos separados dos corpos. Menos expressivas são a sétima,<br />
oitava e nona chaves que contam com 3 imagens <strong>de</strong> homens, 4 imagens do que chamamos<br />
infertilida<strong>de</strong> e 4 imagens gráficas relativas às taxas <strong>de</strong> sucesso alcançado pelas clínicas.<br />
35
Dentre todas estas imagens nos fixamos naquelas que nos ofereciam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
estabelecer generalizações <strong>de</strong> alguns elementos comuns a todas as clínicas e, que assim se<br />
tornaram representativas do discurso presente na maioria das clínicas. Frente a esta <strong>de</strong>cisão<br />
metodológica, estamos conscientes que por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada eixo, se focadas as imagens em<br />
suas especificida<strong>de</strong>s, encontraríamos um elencado <strong>de</strong> conteúdos capazes <strong>de</strong> gerar significados<br />
e especificida<strong>de</strong>s que não temos condição <strong>de</strong> explicitar aqui e que se tornará parte do próximo<br />
relatório <strong>de</strong> Iniciação Científica.<br />
Para melhor compor o mapa das investidas publicitárias das clínicas que estão<br />
fabricando a vida, procuramos as informações sobre a missão e valores <strong>de</strong> cada centro<br />
médico. Por meio <strong>de</strong>stas informações, as clínicas indicam aos pacientes/clientes que a<strong>de</strong>ntram<br />
o mundo online quais os motivos que sustentam e engendram suas ações.<br />
Em 27 clínicas encontramos informações sobre os valores e missões que norteiam a<br />
ação dos profissionais das clínicas. Por motivos <strong>de</strong> organização do material, estes discursos<br />
foram <strong>de</strong>stacados em três temas centrais.<br />
O primeiro diz respeito ao cuidado dos problemas masculinos ligados a infertilida<strong>de</strong>.<br />
Apenas uma clínica revela que sua missão é olhar para os problemas da infertilida<strong>de</strong> do<br />
homem. É nítido que o homem encontra-se praticamente invisibilizado nestes espaços,<br />
quando o assunto é a reprodução, fato perceptível no quase nulo número <strong>de</strong> imagens suas, nos<br />
sites da clínica, assim como na pouca referência a sua existência nas publicida<strong>de</strong>s. Parece-nos<br />
que o homem, mesmo que recentemente também tenha se tornado alvo <strong>de</strong> intervenção e<br />
medicalização no período do tratamento clínico visando a reprodução assistida, ainda<br />
permanece sem muito <strong>de</strong>staque, e os assuntos masculinos acabam se diluindo na categoria<br />
casal infértil (TAMANINI, 2003).<br />
Em consequência <strong>de</strong>sta dissolução do homem no conjunto casal, observamos que a<br />
gran<strong>de</strong> maioria das clínicas, 24, enfatiza o significado <strong>de</strong> sua existência no auxilio ao casal<br />
infértil que sonha e tem o direito <strong>de</strong> constituir uma família.<br />
Por fim, apenas duas clínicas afirmam que sua missão é promover a saú<strong>de</strong> e o bem<br />
estar da mulher. A mulher reina enquanto principal referência das clínicas, lembrada enquanto<br />
futura mãe, o que se justifica da parte dos especialistas, por sua rápida associação à<br />
maternida<strong>de</strong> e ao <strong>de</strong>sejo, que é percebido como essencializador <strong>de</strong> seu ser, por filhos.<br />
Parece-nos que estas constantes referências à missão e ao objetivo <strong>de</strong> cada clínica<br />
resultam <strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> explicação dos porquês <strong>de</strong> sua existência. No entanto, tal<br />
explicação para além <strong>de</strong> uma simples resposta, suscita novas perguntas. Por que é necessário<br />
reforçar e justificar com tanta veemência o que se está fazendo? Se a técnica apenas faz o que<br />
36
a natureza po<strong>de</strong>ria ter feito, por que tanto se diz sobre sua intenção? A resposta a estas<br />
questões nos parece clara, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong>riva, justamente, do fato <strong>de</strong> estas<br />
tecnologias não estarem apenas ajudando a natureza, mas a recriando em laboratório. O po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> <strong>fazer</strong> a vida não é algo <strong>de</strong>simportante e <strong>de</strong>manda sérias reflexões éticas e políticas. A<br />
simples manipulação <strong>de</strong> células, gametas e embriões no laboratório po<strong>de</strong> acarretar práticas<br />
como a eugenia, a clonagem e até mesmo a reconfiguração genética do ser humano. Por isso,<br />
as clínicas correm na tentativa <strong>de</strong> autenticar suas práticas enquanto benéficas e inteligíveis<br />
socialmente e assim enraízam as bases da valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas operações.<br />
As organizações do material compilado serão especificadas no capítulo seguinte, para<br />
melhor compreen<strong>de</strong>rmos o que este quebra cabeça <strong>de</strong> representações po<strong>de</strong> significar no<br />
conjunto da prática médica que visa “promover a felicida<strong>de</strong>”, conforme propagada pelas<br />
publicida<strong>de</strong>s das clínicas 5 .<br />
Ao longo <strong>de</strong>ste caminho <strong>de</strong> coleta e organização do material nos servimos <strong>de</strong> uma<br />
metodologia quantitativa/qualitativa que nos permitiu construir mapeamentos e análises para<br />
compor um corpus explicativo e analítico do conteúdo do material reunido.<br />
Embora não tenhamos abarcado toda a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falas e informações<br />
disponíveis nos sites das clínicas, acreditamos que boa parte dos principais elementos que<br />
perfazem os discursos “autorizados” sobre as tecnologias reprodutivas e, que constroem os<br />
significados simbólicos envoltos nestas relações foram explorados e analisados.<br />
5 Por felicida<strong>de</strong> entenda-se a constituição <strong>de</strong> uma família nuclear, heterossexual e com filhos.<br />
37
4 OS WEBSITES COMO CAMPO DE PESQUISA<br />
4.1 Os discursos científicos<br />
4.1.1 Mapeando inserções profissionais e meios <strong>de</strong> publicações dos artigos<br />
acadêmicos<br />
Através do material coletado obtivemos informações valiosas a respeito das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
especialida<strong>de</strong>s e dos temas mais explorados pela produção científica, o que nos permite<br />
perceber as lógicas referentes ao <strong>de</strong>senvolvimento das clínicas e das tecnologias, no que diz<br />
respeito à “feitura” <strong>de</strong> um filho. Bem como, levantar questões, sobre as razões pelas quais<br />
esse processo que é <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m - afetiva, social, econômica e política - passa a servir a<br />
compulsão da maternida<strong>de</strong>, a cultura da família e as <strong>de</strong>mandas sobre casamentos férteis e seus<br />
afetos.<br />
Assim, traçamos uma linha analítica que se inicia com o <strong>de</strong>linear das especialida<strong>de</strong>s<br />
envoltas no processo <strong>de</strong> reprodução humana em contexto <strong>de</strong> laboratório. A diversificação das<br />
áreas que compõe o quadro profissional das clínicas elucida a ten<strong>de</strong>nte complexificação e<br />
compartimentação da reprodução, que se torna um processo <strong>de</strong>smontado em etapas e que<br />
exigem diferentes intervenções e cuidados. Além <strong>de</strong> nos voltarmos para as diversas<br />
especialida<strong>de</strong>s, traçamos um panorama do sexo dos profissionais ligados as clínicas. Já que o<br />
campo da medicina esteve historicamente submetido aos homens capazes <strong>de</strong> regular e<br />
interferir no funcionamento do corpo feminino, procuramos perceber se também na área<br />
especializada em reprodução humana este mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> inserção majoritariamente<br />
masculina se sustenta.<br />
Sendo assim, a seguinte tabela nos mostra o total dos profissionais ligados às clínicas<br />
<strong>de</strong> RA divididos por sua área <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong> e sexo.<br />
Tabela 1: referente às especialida<strong>de</strong>s encontradas nas clínicas latino americanas, excetuando o Brasil. 6<br />
Especialida<strong>de</strong><br />
Ginecologia/obstetrícia<br />
Masculino Feminino Total<br />
390 108 498<br />
Biologia 22 37 64<br />
6 A tabela construída por Diógenes Parzianello, referente as especializadas localizadas para o conjunto das<br />
clínicas brasileiras, encontra-se em anexo.<br />
38
Bioquímica/química<br />
Psicologia<br />
Urologia<br />
Endocrinologia<br />
Anestesiologia<br />
Genética<br />
Enfermagem<br />
Diagnostico por imagem/<br />
ecografia<br />
10 39 49<br />
04 25 29<br />
29 - 29<br />
20 07 27<br />
22 03 25<br />
9 12 21<br />
- 18 18<br />
13 05 18<br />
Andrologia 14 02 16<br />
Técnico em laboratório e<br />
em reprodução humana.<br />
Bacteriologia<br />
Embriologia<br />
Administração<br />
Tocoginecologia<br />
Cardiologia<br />
Instrumentação<br />
Cirurgia<br />
Pediatria<br />
Oncologia/ mastologia<br />
Veterinária<br />
Clínico geral<br />
Nutrição<br />
Kinesiologia<br />
06 9 15<br />
- 13 13<br />
04 08 12<br />
- 11 11<br />
04 07 11<br />
09 01 10<br />
- 08 08<br />
05 02 07<br />
05 02 07<br />
06 - 06<br />
05 01 06<br />
04 02 06<br />
- 05 05<br />
- 05 05<br />
39
Biologia molecular<br />
Psiquiatria<br />
Cirurgia plástica<br />
Análises clínicas<br />
Ralações<br />
institucionais/públicas<br />
Anatomia patológica<br />
Imunologia<br />
Citologia<br />
Sociologia<br />
Sexologia<br />
Filologia<br />
Bioanalista<br />
Fisiologia<br />
Informática<br />
Direito<br />
Pastor<br />
Comunicação social<br />
Cirurgia ortopédica<br />
Reumatologia<br />
Dermatologia<br />
Gastroentereologia<br />
Epi<strong>de</strong>miologia<br />
Nefrologista<br />
01 04 05<br />
03 01 04<br />
03 01 04<br />
02 02 04<br />
- 03 03<br />
02 01 03<br />
2 01 03<br />
- 02 02<br />
- 02 02<br />
- 02 02<br />
- 02 02<br />
01 01 02<br />
01 - 01<br />
01 - 01<br />
01 - 01<br />
01 - 01<br />
- 01 01<br />
01 01<br />
- 1 01<br />
1 - 01<br />
1 - 01<br />
- 01 01<br />
01 - 01<br />
Farmacologia 01 - 01<br />
40
Sem especialida<strong>de</strong><br />
Sem especialida<strong>de</strong> e sem<br />
sexo <strong>de</strong>finido<br />
11 62 73<br />
- - 22<br />
Total 590 410 1059<br />
Pensando como se configuram as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>s, com base na tabela acima<br />
que se reporta ao panorama geral das clínicas <strong>de</strong> reprodução assistida na América Latina<br />
excetuando o Brasil - lembrando que manteremos esta divisão entre América Latina e Brasil<br />
no intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcar e resguardar o trabalho produzido pelo pesquisador responsável pela<br />
primeira parte da pesquisa <strong>de</strong> Iniciação Científica. – observamos que o maior número <strong>de</strong><br />
profissionais ligados às clínicas <strong>de</strong> RA se concentra na área <strong>de</strong> ginecologia e obstetrícia. Fato<br />
já esperado visto que o campo da reprodução é correntemente associado à mulher e seu corpo.<br />
Logo, a autorida<strong>de</strong> sobre este terreno é outorgada à ginecologia que se constitui, conforme<br />
Martins (2004), como “a ciência da mulher”, acentuando a i<strong>de</strong>ia da diferença radical entre<br />
homens e mulheres no que tange seus lugares <strong>de</strong> inserção na reprodução e consequentemente<br />
no jogo social. (ROHDEN, 2001).<br />
Contando com 498 profissionais, a ginecologia e a obstetrícia seguem sendo o reduto<br />
majoritário <strong>de</strong> inserção profissional no rol das 49 especialida<strong>de</strong>s encontradas para América<br />
Latina, assim como se encontra em primeiro lugar no que se refere a inserção profissional no<br />
Brasil, on<strong>de</strong> conta com 77 especialistas. A maioria dos profissionais <strong>de</strong>sta especialida<strong>de</strong> é do<br />
sexo masculino, com 390 representantes com apenas 108 mulheres ginecologistas e obstetras<br />
na América Latina, fato que também se observa no Brasil, on<strong>de</strong> se encontrou 55 homens e 22<br />
mulheres especialistas em ginecologia e obstetrícia. Este quadro apresenta-se enquanto<br />
<strong>de</strong>safio, no que se refere ao porque <strong>de</strong>sta visível concentração na área <strong>de</strong> especialistas do sexo<br />
masculino, que parecem estar preocupados em dominar e ditar as verda<strong>de</strong>s sobre o complexo<br />
e singular corpo feminino.<br />
Este cenário aponta claramente um recorte <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> no qual os homens constituem a<br />
maioria <strong>de</strong> profissionais na área, como igualmente, ocorre em outras especialida<strong>de</strong>s. No caso<br />
da urologia, da andrologia, da endocrinologia, da anestesiologia, dos técnicos em diagnóstico<br />
<strong>de</strong> imagem, ultrasonografia e ecografia, da oncologia e mastologia e da cirurgia, profissões<br />
que se constituíram historicamente como locais <strong>de</strong> inserção do masculino.<br />
41
Na sequência encontramos a biologia com 64 profissionais <strong>de</strong> um total <strong>de</strong> 1059,<br />
diferente do que se encontra no Brasil, on<strong>de</strong> a embriologia ocupa o segundo lugar como palco<br />
<strong>de</strong> inserção dos especialistas. Na área da biologia, os profissionais encontram-se divididos em<br />
37 mulheres e 22 homens. Observa-se um maior número <strong>de</strong> mulheres nesta área do<br />
conhecimento, o que se <strong>de</strong>ve aos processos <strong>de</strong> feminilização que vem ocorrendo em<br />
<strong>de</strong>terminadas profissões que exigem o fino trato e o olhar repetitivo sobre os materiais e o<br />
campo da biologia, quando em balcões <strong>de</strong> laboratório, parece se aproximar sempre mais <strong>de</strong>ssa<br />
característica. Atentamos para o processo <strong>de</strong> essencialização da compreensão sobre quem<br />
po<strong>de</strong> executar <strong>de</strong>terminadas tarefas que no mundo do trabalho e da ciência tem sido<br />
compreendidas a partir da essencialização do feminino como mais competente na habilida<strong>de</strong><br />
do olhar, do controle, da repetição, das tarefas monótonas, da <strong>de</strong>streza e da habilida<strong>de</strong> manual,<br />
apresentando claramente uma organização do trabalho generificada. O mesmo ocorre para a<br />
área da genética, bioquímica, bacteriologia, embriologia e técnica <strong>de</strong> laboratório especializada<br />
em reprodução assistida, on<strong>de</strong> a <strong>de</strong>streza, a habilida<strong>de</strong> manual e o <strong>de</strong>talhamento dos<br />
procedimentos <strong>de</strong>finem microconfigurações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, estereotipadas a partir do que<br />
distingue a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens e mulheres neste espaço. A presença majoritariamente<br />
feminina nos laboratórios <strong>de</strong> biologia, em ativida<strong>de</strong>s realizadas na bancada do laboratório,<br />
consi<strong>de</strong>radas cansativas e exigentes em termos <strong>de</strong> concentração e organização, já foram<br />
apontadas por Osada e Costa (2008).<br />
Tradicionalmente, também nas áreas <strong>de</strong> enfermagem e da psicologia encontramos<br />
maior número <strong>de</strong> inserção <strong>de</strong> mulheres do que <strong>de</strong> homens. Neste caso, a lógica <strong>de</strong> construção<br />
dos processos <strong>de</strong> generificação perpassa a essencialização do feminino associado ao cuidado e<br />
à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> envolvimento emocional da profissional mulher. Mapeiam-se <strong>de</strong>mandas<br />
sobre a sua sensibilida<strong>de</strong>, sua compaixão e sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar suporte ao sofrimento<br />
psicológico, emocional ou físico. Danielle Eleutério aprofunda esta discussão em seu trabalho<br />
monográfico 7 , on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolve uma reflexão a respeito das relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> imbricadas na<br />
prática <strong>de</strong> cuidados aos portadores <strong>de</strong> Mal <strong>de</strong> Alzheimer, cenário que constitui uma verda<strong>de</strong>ira<br />
divisão sexual do trabalho, marcada pela vinculação da mulher ao ato <strong>de</strong> cuidar.<br />
Seguindo o quadro <strong>de</strong> inserções profissionais, encontramos a bioquímica em terceiro<br />
lugar <strong>de</strong> inserção no rol das 49 especialida<strong>de</strong>s localizadas, somando um total <strong>de</strong> 49<br />
profissionais, dos quais 10 são homens e 39 mulheres. Psicologia e urologia contam<br />
igualmente com 29 profissionais. Sendo que a primeira conta com 25 mulheres e apenas 04<br />
7 As “cuidadoras” <strong>de</strong> pessoas portadoras do Mal <strong>de</strong> Alzheimer e sua relação com o cuidado. Monografia<br />
orientada pela professora Dra Marlene Tamanini em 2006.<br />
42
homens e a segunda apresenta todos os 29 profissionais do sexo masculino. A entrada dos<br />
urologistas no campo da reprodução é relativamente recente, mas apresenta em visível<br />
crescimento. Parece-nos que a crescente participação dos urologistas neste campo se <strong>de</strong>ve ao<br />
fato <strong>de</strong> que a partir dos anos 70 o homem também passa a ser objeto <strong>de</strong> “medicalização”<br />
reprodutiva, mesmo que ele ainda apareça diluído na categoria casal infértil, como nos mostra<br />
Tamanini (2003).<br />
Para o quinto lugar encontramos a endocrinologia, profissão tradicionalmente<br />
masculina, com 27 profissionais, <strong>de</strong>ntre os quais 20 são homens e 7 são mulheres. A<br />
anestesiologia apresenta-se com 25 profissionais <strong>de</strong> um total <strong>de</strong> 1059 profissionais, agrupados<br />
em 22 homens e 3 mulheres. Na sequência temos a genética, com 9 homens e 12 mulheres,<br />
totalizando 21 profissionais. Empatados em oitavo lugar observamos a enfermagem e os<br />
especialistas em diagnóstico por imagem e ecografia, ambos com 18 profissionais. Para a<br />
enfermagem verifica-se que todas as 18 especialistas são mulheres e para os especialistas em<br />
imagem 13 são homens e 5 são mulheres. Seguindo, a andrologia visibiliza-se com 16<br />
profissionais, revelando a predominância masculina neste campo <strong>de</strong> atuação médica, contando<br />
com 14 homens e apenas 02 especialistas mulheres. Continuando, os técnicos em reprodução<br />
assistida vêm na sequência com 15 profissionais, sendo 6 homens e 9 mulheres,<br />
caracterizando-se como a décima área com mais profissionais em clínicas <strong>de</strong> Reprodução<br />
Assistida. A bacteriologia configura-se ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> representações generificadas sobre o<br />
trabalho médico e apresenta-se com 13 profissionais, todas mulheres. O mesmo ocorre com a<br />
área da embriologia, igualmente marcada por uma divisão sexual do trabalho edificada na<br />
essencialização <strong>de</strong> algumas características ditas femininas, somando 12 profissionais, 4<br />
homens e 8 mulheres. Já a tocoginecologia e a área administrativa computam 11 profissionais<br />
cada, divididas em 4 homens e 7 mulheres e 11 mulheres respectivamente. Por fim, a<br />
cardiologia, em contraposição, <strong>de</strong>fine-se como lugar privilegiado <strong>de</strong> inserção do masculino ao<br />
apresentar 10 profissionais, <strong>de</strong>ntre os quais 9 são homens e 1 única mulher.<br />
No computo das 81 clínicas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> coletamos as informações sobre as<br />
especialida<strong>de</strong>s, estas citadas acima foram as que apresentaram maiores números <strong>de</strong><br />
concentração <strong>de</strong> profissionais. As áreas <strong>de</strong> instrumentação, cirurgia, pediatria, oncologia e<br />
mastologia, veterinária, clinico geral, nutrição, kinesiologia, biologia molecular, psiquiatria,<br />
cirurgia plástica, análises clínicas, relações institucionais ou públicas, anatomia patológica,<br />
imunologia, citologia, sociologia, sexologia, filologia, bioanálise, fisiologia, informática,<br />
direito, pastor, comunicação social, cirurgia ortopédica, reumatologia, <strong>de</strong>rmatologia,<br />
gastroentereologia, epi<strong>de</strong>miologia, nefrologia e farmacologia apresentam menos <strong>de</strong> 10<br />
43
profissionais, proporcionando menores diferenças entre o percentual <strong>de</strong> mulheres e homens<br />
envolvidos em sua prática. Desta forma nos <strong>de</strong>bruçaremos apenas sobre aquelas com 10 ou<br />
mais profissionais.<br />
A visualização <strong>de</strong>stas 49 diferentes especialida<strong>de</strong>s nos permite concluir que a<br />
reprodução humana tem ganhado a atenção <strong>de</strong> muitas áreas, e sem dúvida o processo <strong>de</strong><br />
controle técnico se complexifica e se especializa. O campo da RA se recorta em diferentes<br />
campos do saber, o que parece garantir o controle objetivo <strong>de</strong> cada pequena etapa envolta na<br />
manipulação e intervenção sobre os corpos, gametas e embriões. Os processos são<br />
<strong>de</strong>strinchados e <strong>de</strong>talhados, sendo que cada especialista se volta para uma parcela do todo.<br />
Diferentes profissionais tornam-se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes uns dos outros por causa das<br />
complexida<strong>de</strong>s que ganharam os procedimentos em laboratório, criam-se re<strong>de</strong>s<br />
interdisciplinares que conectam diferentes visões e que contemplam diferentes aspectos <strong>de</strong> um<br />
mesmo acontecimento: a reprodução. O conhecimento produzido através <strong>de</strong>ssas múltiplas<br />
re<strong>de</strong>s, que estão longe <strong>de</strong> garantir a neutralida<strong>de</strong> que propõem, torna-se <strong>de</strong>vedor <strong>de</strong> um tecido<br />
extenso <strong>de</strong> saberes que se conectam para garantir o estabelecimento <strong>de</strong> um fato científico.<br />
Para o caso das clínicas latino americanas, vemos chegar a 49 o número <strong>de</strong> posições, campos<br />
disciplinares que envolvem, fortalecem, ou invalidam as verda<strong>de</strong>s produzidas no laboratório.<br />
Estamos, <strong>de</strong>ssa forma, diante <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s coletivas que se estabelecem <strong>de</strong> acordo com o i<strong>de</strong>al<br />
partilhado por cada uma das especialida<strong>de</strong>s, a saber, o <strong>de</strong> sanar ou curar os sofrimentos e<br />
dores que po<strong>de</strong>m afetar os indivíduos. Para o contexto estudado por nós, unem-se quase 50<br />
diferentes especialida<strong>de</strong>s no intuito <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a expectativa social que se forma sobre os<br />
casais inférteis que, patologizados e estigmatizados, carecem <strong>de</strong> ajuda médica. A onda <strong>de</strong><br />
interesse pelos tratamentos <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong>, verificada atualmente, nasce <strong>de</strong> uma mudança <strong>de</strong><br />
oferta e não <strong>de</strong> procura, já que houve uma crescente especialização da área. De modo discreto,<br />
os médicos passaram a consi<strong>de</strong>rar os domínios da reprodução assistida não apenas uma das<br />
áreas <strong>de</strong> ponta da medicina, mas um empreendimento altamente lucrativo. No entanto, esse<br />
mercado encontra limitações oriundas tanto dos limites impostos pela própria ciência quanto<br />
pelo sistema político, que, segundo a autora, <strong>de</strong>ixou o mercado <strong>de</strong> bebês à <strong>de</strong>riva no tocante às<br />
esferas comerciais e jurídicas (SPAR, 2007).<br />
A ciência se mune <strong>de</strong> profissionais cujas ações fragmentam corpos e células, <strong>de</strong>talham<br />
os procedimentos, ressaltam as novas técnicas e <strong>de</strong>screvem a reprodução em termos nunca<br />
vistos antes. A entrada <strong>de</strong>stas novas especialida<strong>de</strong>s revela, igualmente, que a reprodução<br />
humana ganha um espaço que antes não possuía, chamando a atenção <strong>de</strong> profissões que antes<br />
44
não pertenciam ao universo da reprodução sexuada e que agora, no âmbito da técnica, se<br />
fazem indispensáveis para assegurar o sucesso do percurso e a eficácia da ajuda à natureza.<br />
Mantendo o foco nas áreas <strong>de</strong> inserção e atuação dos profissionais ligados às clínicas,<br />
perguntamo-nos sobre o meio on<strong>de</strong> essas especialida<strong>de</strong>s se visibilizam e trocam informações<br />
e conhecimentos. Para respon<strong>de</strong>r a essa pergunta produzimos uma organização a respeito dos<br />
meios on<strong>de</strong> os especialistas das clínicas publicam seus artigos, para verificar <strong>de</strong> que maneira<br />
se constrói a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber que converge para a reprodução. Atentamos também para o<br />
alcance dos reflexos <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia que <strong>de</strong>fine a maternida<strong>de</strong> como natural e que nos leva a<br />
aceitar uma tecnologização cada vez maior sobre os corpos, cujas conseqüências não po<strong>de</strong>mos<br />
sequer imaginar.<br />
Tabela 2: Meios em que os especialistas das distintas áreas envolvidas às RA publicam suas produções<br />
Especialida<strong>de</strong> Congressos/atas Jornais Revistas Outros<br />
Ginecologia/obstetrícia 40 478 58 43<br />
Biologia 1 23 1 7<br />
Urologia 2 1 - 1<br />
Endocrinologia 4 15 1 3<br />
Genética 65 1 7 3<br />
Diagnostico<br />
imagem/<br />
por 10 - 2 2<br />
ultrasonografia<br />
ecografia<br />
e<br />
Embriologia 1 56 2 7<br />
Técnico <strong>de</strong> laboratório<br />
especializado em<br />
reprodução assistida<br />
Andrologia 2<br />
8 16 2 3<br />
45 1 6<br />
Bioquímica 5 3 1 2<br />
Anestesiologia - - - 1<br />
Tocoginecologia 6 1<br />
Direito 6 - - -<br />
Veterinária - 6 - -<br />
Biologia molecular 1 8 1 1<br />
45
Sociologia 4 - - --<br />
Psicologia 4 - - -<br />
Comunicação social 3 - - -<br />
Bacteriologia 2 - - -<br />
Fisiologia - 1 - 1<br />
Pastor 3 - -<br />
Esboçar o quadro das autorias por áreas <strong>de</strong> conhecimento nos permite i<strong>de</strong>ntificar a<br />
visibilida<strong>de</strong> da área em relação às <strong>de</strong>mais. Po<strong>de</strong>mos, ao mesmo tempo, perceber na dinâmica<br />
das publicações e, consequentemente, na visibilida<strong>de</strong> das pesquisas, processos <strong>de</strong> trocas e <strong>de</strong><br />
interdisciplinarida<strong>de</strong> entre uma área <strong>de</strong> saber e outros campos do conhecimento. Tecem-se<br />
assim, novas re<strong>de</strong>s e novas visibilida<strong>de</strong>s entre as diferentes disciplinas envolvidas no processo<br />
<strong>de</strong> gerar vida artificialmente. Fato facilmente constatável quando voltamo-nos para os artigos<br />
e encontramos quatro ou cinco profissionais da mesma área ou <strong>de</strong> campos diferentes<br />
publicando em parceria um mesmo trabalho.<br />
É válido relatar que nos 392 artigos publicados a área da ginecologia e obstetrícia<br />
assinou-se a autoria 619 vezes. Esse número é possível já que se po<strong>de</strong>m encontrar quatro ou<br />
cinco ginecologistas dividindo a autoria <strong>de</strong> um mesmo artigo. Esta área representa 63% <strong>de</strong> um<br />
total <strong>de</strong> 980 autorias <strong>de</strong> artigos nas diferentes áreas. Destas 619 vezes que a ginecologia e<br />
obstetrícia aparece como autoria <strong>de</strong> artigos, 40 <strong>de</strong>ssas contam-se em artigos publicados em<br />
congressos ou atas <strong>de</strong> congressos, 478 autorias encontram-se em artigos publicados em<br />
jornais especializados, 58 autorias foram localizadas publicando artigos em revistas e 43<br />
autorias constam em artigos publicados em outros meios (livros ou no site da REDLARA).<br />
Po<strong>de</strong>mos constatar uma dinâmica intensa <strong>de</strong> autorias também para a área da genética<br />
que soma 76 autorias. Contabilizamos geneticistas 65 vezes em textos apresentados em<br />
congressos, 1 vez em texto apresentado em jornal, 7 vezes em texto apresentado em revistas<br />
especializadas e 3 vezes em outros meios. A genética ocupa 7,7% do espaço <strong>de</strong> inserção das<br />
autorias <strong>de</strong> cada área do saber médico.<br />
Seguindo, po<strong>de</strong>mos observar a embriologia que concentra 66 autorias. Em congressos,<br />
i<strong>de</strong>ntifica-se apenas 1 autoria, em jornais especializados somam-se 56 autorias, 2 autorias se<br />
encontram em revistas e 7 em outros meios. A embriologia <strong>de</strong>tém 6,7% do espaço <strong>de</strong> inserção<br />
da área <strong>de</strong>ntre os <strong>de</strong>mais campos do conhecimento no que tange a categoria publicações.<br />
46
Com relação as autorias, a andrologia representa 54 do total <strong>de</strong> 980. Para congressos,<br />
i<strong>de</strong>ntificamos 2 da área, em jornais totalizam 45, em revistas apenas encontramos 1 e para<br />
outros meios apresenta 6, representando 5,5% no conjunto <strong>de</strong> autorias <strong>de</strong> todas as disciplinas.<br />
Em quinta posição no rol <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> das autorias, a biologia apresenta 32 representando<br />
3,2% no rol das autorias, com apenas 1 publicação em congresso, 23 em jornais, 1 em revista<br />
e 7 em outros meios. Os técnicos em laboratório especializados em reprodução assistida<br />
seguem em sexto lugar com 29 autorias, contabilizando 2,9% do total, com 8 autorias em<br />
congressos, 16 em jornais, 2 em revistas e 3 em outros meios. Com 23 autorias nos <strong>de</strong>paramos<br />
com a endocrinologia que conta com 4 autorias em congressos, 15 em jornais especializados,<br />
1 em revistas e 3 em outros meios. Em oitavo lugar <strong>de</strong>stacamos a área <strong>de</strong> diagnostico por<br />
imagem, ultrasonografia e ecografia com 14 autorias, das quais 10 estão em congressos, 2 em<br />
revistas e 2 em outros meios representando 1,4% do total das 980 autorias. As áreas <strong>de</strong><br />
bioquímica e biologia molecular encontram-se ambas com 11 autorias representando 1,1%. A<br />
bioquímica apresenta 5 autorias em congressos, 3 em jornais, 1 em revista e 2 em outros<br />
meios, já a biologia molecular está presente em 1 autoria em congresso, 8 em jornal, 1 em<br />
revista e 1 em outros meios. O campo do saber médico referido a tocoginecologia figura em<br />
décimo lugar, representando 0,7% do total <strong>de</strong> autorias, concentrando suas publicações em<br />
congressos, contabilizando 6 autorias, e 1 em jornal. Direito e veterinária ocupam o décimo<br />
primeiro lugar, apresentando 6 autorias em congressos para o direito e 6 autorias em jornais<br />
para a veterinária.<br />
Sociologia e psicologia vêm na sequência representando 0,4% para ambas no computo<br />
geral das autorias, sendo que ambas publicam somente em congressos. Há ainda o campo da<br />
comunicação social e um único pastor envolvido com RA publicando. Ambos representam<br />
0,3% do total estabelecido <strong>de</strong> autorias com 3 publicações em congresso para cada área.<br />
Bacteriologia e fisiologia ocupam a fração <strong>de</strong> 0,2% do total <strong>de</strong> 980 autorias sendo que<br />
bacteriologia publicou seus trabalhos em congressos e fisiologia em jornais e outros meios.<br />
Por último, a anestesiologia aparece com uma fração <strong>de</strong> 0,1%, tendo um único trabalho<br />
publicado em outros meios.<br />
Observa-se claramente que <strong>de</strong>ntre as autorias <strong>de</strong> trabalhos científicos predominam as<br />
publicações <strong>de</strong> trabalhos na área <strong>de</strong> ginecologia e obstetrícia. Tais autorias estão concentradas<br />
em jornais especializados, seguido <strong>de</strong> revistas e por último <strong>de</strong> congressos e <strong>de</strong> outros meios.<br />
Esse núcleo <strong>de</strong> conhecimento médico/científico é também o local <strong>de</strong> maior inserção <strong>de</strong><br />
profissionais, conforme dados apresentados na tabela número 1. A ginecologia e a obstetrícia<br />
seguem sendo a especialida<strong>de</strong> com maior visibilida<strong>de</strong> tanto em publicações quanto em ações<br />
47
efetivas sobre os corpos das mulheres e sobre os embriões e justifica-se por sua longa<br />
hegemonia no campo da reprodução humana, que até os anos 90 não conhecia outros<br />
especialistas.<br />
Em função das pesquisas com embrião e por conta do homem ter tornado-se sujeito da<br />
intervenção laboratorial e clínica exige-se a entrada <strong>de</strong> outras áreas no cenário reprodutivo.<br />
São exemplos, a genética e a embriologia que se juntam à reprodução através dos <strong>de</strong>safios das<br />
pesquisas sobre o DNA.<br />
No caso do Brasil, ginecologia e obstetrícia ocupam, igualmente, o primeiro lugar, a<br />
embriologia o segundo e a urologia o terceiro lugar no quadro das autorias <strong>de</strong> trabalhos<br />
científicos referidos a reprodução humana, que somam um total <strong>de</strong> 418 artigos publicados. No<br />
entanto, os meios em que os especialistas brasileiros publicam revela outra dinâmica, na qual<br />
as i<strong>de</strong>ias circulam com mais freqüência nos congressos e são mais publicadas em revistas<br />
especializadas do que em jornais da área <strong>de</strong> reprodução humana.<br />
A urologia nas clínicas da América Latina ocupa o quinto lugar no rol das<br />
especialida<strong>de</strong>s quanto ao número <strong>de</strong> profissionais por nós i<strong>de</strong>ntificados. Contudo, a área<br />
praticamente <strong>de</strong>saparece quando se trata da autoria <strong>de</strong> trabalhos acadêmicos, representando,<br />
como po<strong>de</strong>mos ver na tabela, 0,4% do conjunto <strong>de</strong> 980 autorias das diversificadas áreas. Tal<br />
informação nos permite perceber <strong>de</strong> que maneira e em que contextos a área se visibiliza ou<br />
não. Neste sentido, nos <strong>de</strong>paramos com os limites da pesquisa, pois o material por nós<br />
coletados apresenta <strong>de</strong>limitações, porque para perceber como se constrói o campo científico<br />
para a urologia <strong>de</strong>mandaria uma pesquisa aprofundada, já que apenas através do material<br />
online não é possível compreen<strong>de</strong>r a totalida<strong>de</strong> das dinâmicas envoltas na área, tal pesquisa<br />
seria <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia, já que a urologia tem relevante importância hoje no cenário das<br />
investigações relacionadas aos problemas concernentes a reprodução humana, principalmente<br />
no aspecto que toca os corpos masculinos. Ainda assim, po<strong>de</strong>mos tecer algumas suposições<br />
para o pouco <strong>de</strong>staque da área. É possível que a urologia venha se apresentando somada ao<br />
campo médico/científico da andrologia, que se mantém para a América Latina na quarta<br />
posição no rol das autorias, embora quase não apareça nos quadros dos trabalhos brasileiros,<br />
on<strong>de</strong> a urologia tem <strong>de</strong>staque no computo geral do material coletado das 11 clínicas que<br />
permitiram acesso <strong>de</strong>ntre as 57 clínicas brasileiras filiadas a REDLARA. No mais, é preciso<br />
consi<strong>de</strong>rar que por vezes, a relação entre as áreas <strong>de</strong> urologia e andrologia parece se confundir<br />
no campo da reprodução humana assistida em laboratório, assim como parece se confundir<br />
biologia, endocrinologia e genética. O esclarecimento das fronteiras entre as áreas só seria<br />
48
possível se fosse agregado a este material, pesquisas empíricas com profissionais das próprias<br />
disciplinas e que se encontram em ativida<strong>de</strong> no seio dos laboratórios.<br />
É plausível, contudo, afirmar que as áreas que mais se <strong>de</strong>stacam na autoria dos<br />
trabalhos consi<strong>de</strong>rados científicos, já que os meios que consi<strong>de</strong>ramos para selecioná-los são<br />
produções acadêmicas científicas, são as áreas acima referidas: ginecologia e obstetrícia,<br />
genética, embriologia, andrologia, biologia e endocrinologia. As <strong>de</strong>mais áreas consolidam-se<br />
no campo da reprodução assistida, mas ainda possuem uma visibilida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ravelmente<br />
menor no mosaico das autorias.<br />
Po<strong>de</strong>mos observar uma marca da divisão entre o sexo dos autores das publicações, fato<br />
que se relaciona com a constituição das profissões, sobre as quais já elaboramos comentários<br />
quando da análise da primeira tabela. Ressaltamos que algumas disciplinas, como a urologia,<br />
tradicionalmente se firmam como espaço <strong>de</strong> inclusão majoritariamente masculina. Assim<br />
como a biologia, embriologia e a genética que <strong>de</strong>mandam um trabalho característico exigente<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s ditas femininas, daí a presença predominantemente <strong>de</strong> mulheres neste campo,<br />
embora a ciência e a medicina ainda configurem áreas dominadas pelo masculino, como nos<br />
mostra o alto número <strong>de</strong> especialistas <strong>de</strong>ste sexo.<br />
Algumas outras conclusões seriam possíveis e interessantes <strong>de</strong> se estabelecer e os<br />
dados acima por si só já mostram uma hierarquia importante e generificada entre as áreas<br />
quando se trata <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar os processos <strong>de</strong> inserção na história disciplinar do campo, no<br />
modo como se inserem, e as razões <strong>de</strong> sua atuação nas tecnologias da reprodução humana.<br />
Porém, um maior aprofundamento sobre o assunto necessitaria <strong>de</strong> uma pesquisa intensificada,<br />
que contemplaria <strong>de</strong> maneira satisfatória o histórico <strong>de</strong>ssas profissões e como se constituem<br />
em seus seios a divisão sexual do trabalho.<br />
4.1.2 Em busca do conteúdo dos artigos publicados.<br />
Os conteúdos dos artigos nos revelam os focos <strong>de</strong> atenção dos profissionais que se<br />
colocam a produzir conhecimentos sobre a infertilida<strong>de</strong>, suas causas, seus tratamentos e suas<br />
conseqüências. Parece-nos inevitável observar que o conteúdo dos artigos são indicativos dos<br />
interesses que permeiam o campo da reprodução assistida, e nos permitem estabelecer<br />
possibilida<strong>de</strong>s interpretativas para as dinâmicas imbricadas neste campo. O discurso dos<br />
autores nos informa sobre o papel <strong>de</strong>sempenhado pelas suas concepções <strong>de</strong> ciência e também<br />
<strong>de</strong> <strong>gênero</strong> quando estes estão produzindo ciência ou fatos.<br />
49
A melhor maneira <strong>de</strong> acessar estes discursos, através dos sites, é voltando-se para o<br />
que os médicos escrevem a respeito do que pesquisam e do que fazem em laboratório.<br />
Segundo Latour e Woolgar (1997) toda prática gera algum tipo <strong>de</strong> inscrição, algum tipo <strong>de</strong><br />
registro simbólico que diz sobre as ações. Neste sentido, enten<strong>de</strong>mos os artigos produzidos<br />
por estes especialistas como inscrições, fontes valiosas que nos dizem sobre suas práticas e<br />
sobre os valores e concepções alocadas nelas.<br />
Nos resumos dos artigos localizamos algumas dinâmicas sobre o conteúdo da<br />
produção do conhecimento na América Latina, aspecto que foi apurado pela orientadora e que<br />
sofrerá melhores observações em pesquisa futura. Efetuam-se mudanças nos temas e nas<br />
preocupações que se direcionam, cada vez mais, aos produtos do corpo e ao embrião fora<br />
<strong>de</strong>le. Neste contexto o corpo aparece fragmentado, <strong>de</strong>spersonificado e esmiuçado.<br />
O saber científico intervém sobre as partes dos corpos, através dos seus recursos<br />
técnicos, como uma fonte <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, e as representações das nossas funções vitais, da nossa<br />
sexualida<strong>de</strong> e do sentido das nossas vidas encontram-se permeadas pelas relações <strong>de</strong>sse saber-<br />
po<strong>de</strong>r (TUBERT, 1996). O campo se vincula diretamente às relações valorativas imbricadas<br />
no <strong>fazer</strong> sobre os corpos, gameta e embriões, com a finalida<strong>de</strong> exclusiva <strong>de</strong> produzir bebês.<br />
Através <strong>de</strong> pesquisas cada vez mais complexas, se penetra, se examina e se manipula<br />
um corpo, no qual se procura uma resposta para um <strong>de</strong>sconhecimento que se apresenta como<br />
impossível <strong>de</strong> ser suportado. Com efeito, estamos frente a um sintoma silencioso que não se<br />
expressa em nenhuma área dolorosa do organismo, sendo o sofrimento psíquico o único<br />
aparente (TUBERT, 1996).<br />
Deste modo <strong>de</strong>bruçamo-nos sobre os resultados das práticas científicas, codificadas<br />
em artigos técnicos. Para melhor organizar o raciocínio, dividimos os artigos por local <strong>de</strong><br />
publicação. Assim, <strong>de</strong>limitamos primeiro o conteúdo dos artigos publicados em jornais<br />
especializados em RA, <strong>de</strong>pois os publicados em congresso, em seguida os publicados em<br />
revistas e, por fim, os publicados em outros meios.<br />
Olhando os artigos publicados em jornais, que representam um percentual <strong>de</strong> 51,2%<br />
do total <strong>de</strong> artigos encontrados, que é <strong>de</strong> 392, percebemos que as pesquisas sobre embriões<br />
ocupam 14,2% e concentram-se nos anos <strong>de</strong> 2005, 2006 e 2007. Quando se trata dos <strong>estudos</strong><br />
mais recentes, 2006 e 2007, os trabalhos fazem alusão a embriões produzidos com ausência<br />
<strong>de</strong> esperma e gerados por ativação química. Fala-se, ainda, <strong>de</strong> má formação congênita e<br />
enfermida<strong>de</strong>s genéticas, alu<strong>de</strong>-se a infecções por HIV e ao impacto na qualida<strong>de</strong> do embrião<br />
ou versam sobre as anormalida<strong>de</strong>s cromossômicas, além <strong>de</strong> <strong>fazer</strong>em referência a blastócitos<br />
triplo nucleados corrigidos através <strong>de</strong> cirurgia e <strong>de</strong> diagnóstico pré-implantacional e genético.<br />
50
Discutem ainda casos <strong>de</strong> multinucleação do embrião, produção <strong>de</strong> embrião em um chip que<br />
funcione como um mini útero e a produção <strong>de</strong> embriões híbridos a partir da integração <strong>de</strong><br />
DNA humano em óvulos <strong>de</strong> animais com intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar a cura para algumas doenças.<br />
Já os <strong>estudos</strong> mais antigos voltam-se para questões como as <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são embrionária e uso <strong>de</strong><br />
hormônios, interação entre endométrio e implante <strong>de</strong> embriões, doação <strong>de</strong> embriões,<br />
criopreservação, correlação entre qualida<strong>de</strong> do esperma e morfologia do embrião e doação <strong>de</strong><br />
óvulos 8 .<br />
Em torno do controle da infertilida<strong>de</strong>, concentram-se 11,3% dos <strong>estudos</strong>, cujos<br />
conteúdos se configuram da seguinte maneira: regulação endométrica, correlação entre<br />
obesida<strong>de</strong> e fertilida<strong>de</strong>, taxas <strong>de</strong> fertilização e sucesso, qualida<strong>de</strong> do endométrio, infertilida<strong>de</strong><br />
e impactos da reprodução assistida, fertilida<strong>de</strong> e câncer, experiências com baixo custo nos<br />
protocolos <strong>de</strong> estimulação ovariana, reprodução assistida com mulheres em ida<strong>de</strong> superior a<br />
40 anos. Em apenas um estudo encontramos referências a infertilida<strong>de</strong> masculina. Todos os<br />
<strong>de</strong>mais estão sempre se dirigindo a partes do corpo feminino, o que evi<strong>de</strong>ncia, mais uma vez,<br />
a responsabilida<strong>de</strong> que recai sobre o corpo da mulher quando se trata da reprodução da<br />
espécie.<br />
Ainda nas publicações em jornais, localizamos as preocupações com o sêmen que<br />
representam 10,2%. Os <strong>estudos</strong> apontam em sentidos variados, fazem menção a técnicas<br />
simples e já com longa história, como é o caso da criopreservação e dos bancos <strong>de</strong> sêmen, ao<br />
mesmo tempo em que apresentam novas técnicas e <strong>estudos</strong> inovadores como os<br />
<strong>de</strong>senvolvimentos da ICSI 9 .<br />
Os hormônios, com presença aproximada <strong>de</strong> 5,8% no total dos artigos para esse meio<br />
<strong>de</strong> publicação, aparecem relacionados a <strong>estudos</strong> sobre perda precoce da gravi<strong>de</strong>z, à relação<br />
com a qualida<strong>de</strong> do embrião, à taxas <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, às doses indicadas <strong>de</strong> administração, ao<br />
endométrio, à queda abrupta no soro estradiol antes da administração do HCG durante a<br />
estimulação ovariana em doadores e regulação hormonal do homem.<br />
Os trabalhos preocupados com os óvulos representam cerca <strong>de</strong> 4,3% e discutem o<br />
incremento dos índices <strong>de</strong> implantação e gravi<strong>de</strong>z múltipla. Analisam, ainda, o transplante <strong>de</strong><br />
8 Estes aspectos forma sistematizados pela orientadora e apresentados em uma versão preliminar na VIII<br />
Reunión <strong>de</strong> Antropología <strong>de</strong>l Mercosur, 2009, Buenos Aires, Argentina. Gt 53 cuerpo e biociências: ROCA,<br />
lejandra R.; ROHDEN, Fabíola; SANDRINE, Paula Machado; KNAUTH, Daniela Riva. Anais... Buenos Aires:<br />
Argentina, RAM, 2009. 1CD ROM.<br />
9 Injeção intracitoplasmática <strong>de</strong> espermatozói<strong>de</strong> é, também, uma técnica associada à fertilização in vitro<br />
convencional (FIV), que tem por objetivo promover a fertilização. Um único espermatozói<strong>de</strong> é injetado <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> cada óvulo com auxílio <strong>de</strong> uma micro pipeta e <strong>de</strong> um microscópio. O método é nos casos <strong>de</strong> infertilida<strong>de</strong><br />
masculina.<br />
51
tecido ovariano fresco visando prolongar o processo <strong>de</strong> isquemia e falência ovariana, aspectos<br />
que aparecem bem <strong>de</strong>marcados nas produções recentes. Também se fala da doação <strong>de</strong> óvulos,<br />
da relação com aborto, <strong>de</strong> óvulos <strong>de</strong>scongelados, <strong>de</strong> partenogêneses embrionárias e<br />
patogêneses <strong>de</strong> blastócitos. Os <strong>estudos</strong> relativos à síndrome da hiperestimulação ovariana<br />
representam, também, aproximadamente 4,3% e se reportam à estratégia <strong>de</strong> risco, ao grau <strong>de</strong><br />
severida<strong>de</strong>, à relação com a síndrome do ovário policístico, a aci<strong>de</strong>ntes cérebro vasculares e à<br />
secreção <strong>de</strong> diferentes proteínas.<br />
Artigos sobre endometriose representam 3,06% dos trabalhos publicados em jornais e<br />
esclarecem a relação entre a endometriose e a qualida<strong>de</strong> do embrião, a endometriose e a<br />
a<strong>de</strong>são embrionária. Seguindo, i<strong>de</strong>ntificamos dois <strong>estudos</strong> referentes ao útero, representando<br />
0,5% dos artigos publicados em jornais. A ultrasonografia representa, ao mesmo tempo, 0,5%<br />
dos artigos, contando com 2 <strong>estudos</strong> que se referem às variações e ao amadurecimento <strong>de</strong><br />
óvulos e da estrutura fetal.<br />
Os artigos publicados em congressos somam 22,4% do total dos 392 E se <strong>de</strong>limitam<br />
nos seguintes temas: na categoria embrião encontramos 5,8% dos artigos <strong>de</strong>ste meio. Este,<br />
como acontece para as publicações em jornal, aparece em primeiro lugar nas preocupações<br />
dos especialistas, revelando que no contexto laboratorial a reprodução se foca em elementos<br />
soltos do corpo. Sobre este tema encontramos <strong>estudos</strong> que comentam o diagnóstico pré<br />
implantacional, o assessoramento genético, as múltiplas gravi<strong>de</strong>zes que se relacionam com o<br />
dia da transferência embrionária.<br />
O sêmen ocupa 5,1% das publicações e os <strong>estudos</strong> <strong>de</strong>sta área, focam-se na avaliação<br />
da morfologia do esperma, na influência da qualida<strong>de</strong> espermática na gravi<strong>de</strong>z, nos aspectos<br />
genéticos da infertilida<strong>de</strong> masculina e nos aspectos legais e jurídicos da pré seleção <strong>de</strong><br />
esperma para fins <strong>de</strong> seleção do sexo do futuro bebê. No Brasil, o sêmen ocupava a maior<br />
parte dos <strong>estudos</strong> e o embrião estava em terceiro lugar, seguido dos hormônios, que na<br />
América Latina não encontram muita atenção.<br />
A categoria óvulo ocupa 4,5% do conteúdo dos artigos publicados em congressos,<br />
cujos conteúdos vêm referidos ao cultivo <strong>de</strong> células do ovário humano, a criopreservação <strong>de</strong><br />
óvulos e aos efeitos do tempo na estocagem dos óvulos.<br />
Os hormônios, nos trabalhos apresentados em congressos, ocupam 3,8%, seguidos das<br />
questões que dizem respeito à infertilida<strong>de</strong>, com aproximadamente 2% dos artigos, das<br />
questões relativas à endometriose, que ocupam cerca <strong>de</strong> 0,7% do total dos artigos, e por fim<br />
seguidos das preocupações referentes ao útero, que aparece em 0,2% dos artigos que compõe<br />
o total das publicações em congressos.<br />
52
As publicações em revistas especializadas concentram 12,2% dos artigos publicados<br />
por especialistas que compõem o quadro <strong>de</strong> profissionais ligados aos centros <strong>de</strong> RA. Neste<br />
meio o tema central é o sêmen que acumula 3,3% dos artigos cujos interesses se assemelham<br />
as discussões dos artigos publicados nos jornais e congressos. Em segundo lugar temos as<br />
referências ao óvulo com 3% das publicações que discorrem sobre seu congelamento e sobre<br />
alternativas para o tratamento do câncer.<br />
O embrião, tão <strong>de</strong>stacado nos meios anteriores, aparece com apenas 1,5% do total dos<br />
conteúdos que comentam o projeto genoma, o diagnóstico pré implantacional e a gravi<strong>de</strong>z<br />
com embrião criopreservado. Com a mesma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> artigos encontramos o tema da<br />
infertilida<strong>de</strong>, somando iguais 1,5% dos artigos que esclarecem questões ligadas as causas da<br />
infertilida<strong>de</strong>, a fisiologia da reprodução e a síndrome do ovário policístico. Por fim, aparecem<br />
os temas focados nos hormônios com 1,5%, seguido da endometriose com 0,7%, do útero<br />
com 0,5% e da ultrasonografia com 0,2%.<br />
Os temas publicados em outros meios representam 13.5% dos 392 artigos encontrados<br />
e constituem uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> assuntos em torno <strong>de</strong> questões ambientais, comportamentais,<br />
éticas, ou sociais, e a busca das tecnologias por mulheres muito jovens com influência sobre<br />
os processos <strong>de</strong> reprodução, sobre os embriões, sobre as células e sobre a infertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
maneira geral.<br />
Alguns conteúdos versam, ainda, sobre uma extensa gama <strong>de</strong> assuntos entre os quais, a<br />
prevenção do envelhecimento reprodutivo da população, as questões sócio culturais e <strong>de</strong><br />
justiça, o peso do fértil e do infértil, sobre ovodoação, o direito das pessoas nascidas por<br />
doação <strong>de</strong> gametas <strong>de</strong> conhecerem sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, os aspectos legais e psicológicos da RA, o<br />
consentimento e a autorização para a realização <strong>de</strong> praticas <strong>de</strong> FIV (fertilização in vitro ), a<br />
legitimida<strong>de</strong> e eticida<strong>de</strong> da fecundação pós mortem, sobre as implicações da doação <strong>de</strong><br />
gametas, sobre a anomalia estrutural do cromossomo X associado à fala ovariana prematura,<br />
sobre as provas genéticas e potenciais doadoras <strong>de</strong> ovócitos, os <strong>estudos</strong> genéticos pré<br />
implantacionais em gametas e embriões, a emoção e a memória em mulheres com abortos<br />
instantâneos, a valorização do casal infértil e a busca <strong>de</strong> certeza sobre sua infertilida<strong>de</strong>, o<br />
entendimento fisiológico e estratégias fisioterapeuticas para coleta <strong>de</strong> óvulos, estimulação<br />
ovariana controlada e discursos variados com a finalida<strong>de</strong> comum <strong>de</strong> explicar a existência <strong>de</strong><br />
um comitê <strong>de</strong> ética em um centro <strong>de</strong> reprodução assistida, <strong>de</strong> elucidar as implicações ético<br />
legais do diagnóstico pré-natal e das relações entre escolha <strong>de</strong> sexo e bioética.<br />
Ao olhar para a <strong>de</strong>scrição dos conteúdos dos artigos percebemos que o controle do<br />
corpo, em particular o da mulher, que as feministas dos anos 70 reivindicavam, passa para a<br />
53
mão dos especialistas. O médico assume o controle das células, dos gametas e das técnicas.<br />
Os tratamentos médicos, conforme afirma Tubert (1996), localizam nos órgãos reprodutores<br />
os mistérios e as possíveis soluções para o aterrador problema da infertilida<strong>de</strong>.<br />
O discurso sobre a dominação da natureza volta a ganhar espaço e o corpo, ou suas<br />
partes, aparecem em primeiro lugar ganhando contornos <strong>de</strong> objeto, tratado por uma linguagem<br />
própria. São gametas, blastócitos, folículos e diagnósticos que ganham contornos <strong>de</strong> certeza<br />
da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização dos sonhos. A maternida<strong>de</strong> parece se tornar mais obrigatória a<br />
cada vez que se faz menção a um avanço ou a uma nova técnica, porém, ela não é o foco das<br />
publicações, que pouco tratam das questões relativas à maternida<strong>de</strong>, paternida<strong>de</strong>, parentesco e<br />
filiação, dando maior ênfase no <strong>de</strong>talhamento dos procedimentos e nas técnicas.<br />
As NTRc passam a ser percebidas como um direito reprodutivo que, no entanto, não se<br />
encontra acessível a todos, visto que tais procedimentos são cada vez mais elitistas. Vale<br />
lembrar dos altos custos <strong>de</strong>stas técnicas que, mesmo quando ofertadas pelo sistema público <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong>, exigem dos pacientes o <strong>de</strong>sembolso <strong>de</strong> altas quantias direcionadas ao pagamento dos<br />
medicamentos a serem consumidos e que não são disponibilizados pelos centros públicos que<br />
oferecem a reprodução assistida.<br />
A ciência parece assumir a i<strong>de</strong>ologia da maternida<strong>de</strong>, nutrindo a conservação da<br />
crença na naturalida<strong>de</strong> da reprodução. Ainda que a reprodução humana não possa ser<br />
dissociada da sexualida<strong>de</strong> e do corpo, as técnicas pon<strong>de</strong>ram como se fosse somente, apenas<br />
uma questão <strong>de</strong> órgãos e gametas, como po<strong>de</strong>mos constatar nos temas dos artigos publicados<br />
pelos especialistas das clínicas. As ciências biológicas tratam o corpo humano como um<br />
conjunto <strong>de</strong> peças passíveis <strong>de</strong> serem separadas, o que permite recortar as funções orgânicas<br />
configurando órgãos sem corpos e gametas sem órgãos (TUBERT, 1996).<br />
Os discursos médicos, ao dividirem o corpo em tantas partes, e a reprodução em várias<br />
etapas, constituem a sexualida<strong>de</strong> como um saber e, simultaneamente, como um campo <strong>de</strong><br />
domínio, cujos protagonistas, são certamente, os especialistas na reprodução. O número <strong>de</strong><br />
clínicas, por sua vez, está condicionado pela oferta <strong>de</strong> especialistas na área e os contornos<br />
<strong>de</strong>sse mercado da reprodução nos apontam que sua configuração é vasta e heterogênea, uma<br />
vez que são <strong>de</strong>finidos por grupos especializados em diferentes serviços. Dessa forma, para<br />
melhor compreendê-lo, torna-se necessário o <strong>de</strong>smembramento dos serviços que compõe o<br />
mercado da fertilida<strong>de</strong>. É preciso atentar para o funcionamento das diferentes partes que<br />
existem no conjunto (SPAR, 2007).<br />
Nos artigos percebemos as técnicas e os procedimentos sendo <strong>de</strong>strinchados,<br />
<strong>de</strong>talhados ao extremo. Perguntamo-nos, se estes profissionais apresentam alguma<br />
54
preocupação legal no que tange a conseqüência <strong>de</strong> suas pesquisas e experimentos, porque<br />
ainda que os pacientes acreditem que os interesses das pesquisas científicas concor<strong>de</strong>m com<br />
objetivos terapêuticos, notamos que esse campo esta prenhe <strong>de</strong> ânsias <strong>de</strong> notorieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />
lucro por parte dos profissionais engajados. Ressaltamos a mercantilização dos saberes e da<br />
vida. Parece-nos que as empreitadas médicas/científicas não encontram barreiras nem morais<br />
e nem legais. É interessante advertir que a pesquisa médica carece <strong>de</strong> limites.<br />
A <strong>de</strong>manda do filho não po<strong>de</strong> justificar o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma “medicina do<br />
<strong>de</strong>sejo” (TUBERT, 2006) e não se trata <strong>de</strong> avaliar a autenticida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>sejos, mas atentar<br />
para o fato <strong>de</strong> que se hoje parece válido recorrer a tudo para satis<strong>fazer</strong> o <strong>de</strong>sejo do filho,<br />
amanhã po<strong>de</strong>rá ser aceito escolher as características dos futuros bebês, ou a fabricação <strong>de</strong><br />
crianças sob medida, o que po<strong>de</strong>ria incorrer em medidas eugênicas<br />
Ficam claros os impactos sociais e simbólicos <strong>de</strong>ssa ênfase nas benesses da ciência,<br />
que acentua os estigmas relacionados à falta <strong>de</strong> filhos, uma vez que os bebês parecem estar ao<br />
alcance das mãos, ou pelo menos ao alcance da internet.<br />
Vemos a ciência servir-se <strong>de</strong> uma posição normativa sobre os elementos físicos e<br />
morais dos indivíduos, sem contudo, admitir que o faça ao jogar para os fatos as verda<strong>de</strong>s que<br />
na realida<strong>de</strong> pronunciam, já que, como nos alerta Latour (2008) os fatos são mudos, capazes<br />
<strong>de</strong> falar, escrever e <strong>de</strong> significar apenas <strong>de</strong>ntro do contexto artificial do laboratório, apenas<br />
através dos cientistas, que ainda assim, juram nada dizer.<br />
4.2 Acabando com o silêncio<br />
4.2.1 As imagens falam<br />
Se o campo científico se envolve <strong>de</strong> um discurso sobre a objetivida<strong>de</strong> e a neutralida<strong>de</strong><br />
do seu proce<strong>de</strong>r, os conteúdos dos artigos publicados são <strong>de</strong>monstrativos do contrário ao<br />
apontarem os interesses e motivações dos especialistas quando produzem alguma pesquisa ou<br />
intervenção médica. Todavia, as imagens que performatam o cenário online nas clínicas<br />
parecem nos dizer mais nitidamente sobre as concepções e valores que embasam as ações no<br />
campo da RA. São representações cristalizadas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais culturais relacionados à reprodução,<br />
às famílias e ao parentesco, além <strong>de</strong> aludirem ao caráter mercantil no qual se envolve a<br />
reprodução quando em laboratório e à soberania das técnicas empregadas na ajuda à natureza.<br />
Voltando nosso olhar para as 402 imagens compiladas por nós e agrupadas em torno<br />
<strong>de</strong> nove eixos centrais, relativos ao tema presente em cada imagem. A análise a seguir foca-se<br />
no aprofundamento das discussões em torno <strong>de</strong> cada eixo em separado.<br />
55
A mais expressiva chave conta com 195 imagens <strong>de</strong> técnicas envolvidas em RA.<br />
Dividimos estas imagens em duas categorias: as imagens <strong>de</strong> especialistas envolvidos em<br />
algum procedimento técnico (figura 1) e as imagens que somente contemplam os aparelhos e<br />
os procedimentos técnicos (figura 2). Dentre as 195 imagens, 105 dizem respeito aos<br />
especialistas dominando algum aparelho ou procedimento e 90 imagens são apenas <strong>de</strong><br />
aparelhos técnicos.<br />
Figura 1: Especialista durante procedimento <strong>de</strong> ICSI.<br />
Figura 2: Tambor <strong>de</strong> nitrogênio contendo as palhetas com os embriões congelados.<br />
Esta ênfase na tecnologia, que do mesmo modo se verifica nos conteúdos dos artigos,<br />
parece <strong>de</strong>monstrar a especialização e a capacitação das clínicas para aten<strong>de</strong>r com maior<br />
sucesso aos infortúnios da natureza, revelando que praticamente não há problemas que os<br />
mo<strong>de</strong>rnos equipamentos e técnicas não possam resolver. Os esforços das propagandas<br />
verificadas nos websites refletem os esforços pela captação <strong>de</strong> uma fatia do mercado.<br />
56
Apresentam, por exemplo, imagens <strong>de</strong> belos bebês e casais felizes ao invés <strong>de</strong> mostrar<br />
procedimentos médicos invasivos.<br />
Deparamo-nos com o discurso sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se assistir a natureza, <strong>de</strong> ajudar<br />
e <strong>de</strong> reparar as suas possíveis falhas. Este argumento legitima a naturalização da intervenção<br />
médica nos processos reprodutivos que antes diziam respeito ao foro privado do casal. As<br />
tecnologias expostas e valorizadas permitem superar e expandir os limites <strong>de</strong> uma natureza<br />
que teria ficado pequena para dar conta do mundo contemporâneo. A natureza não mais<br />
respon<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> tardia das mulheres mo<strong>de</strong>rnas. (RAMIREZ, 2006).<br />
Ainda po<strong>de</strong>mos argumentar que a transferência da reprodução da alcova para ao laboratório,<br />
nesse processo reprodutivo, acarreta a perda <strong>de</strong> centralida<strong>de</strong> da mulher que é apropriada pela<br />
tecnologia. Como afirma Martha Ramirez (2006), o aprimoramento <strong>de</strong> sofisticadas técnicas <strong>de</strong><br />
intervenção e diagnóstico afirmam e lembram as mulheres que estão à disposição para ajudá-<br />
las a cumprir seu <strong>de</strong>stino soberano.<br />
Aferimos ainda que o surgimento <strong>de</strong> novas técnicas supre necessida<strong>de</strong>s, mas impõem<br />
novas necessida<strong>de</strong>s, que acarretam novas técnicas instaurando um ciclo que po<strong>de</strong> se tornar<br />
vicioso fazendo com que po<strong>de</strong> nos levar a uma crescente objetivação da reprodução humana<br />
(ROTANIA, 2006).<br />
Com 108 imagens encontramos as referências às células. Representadas na gran<strong>de</strong><br />
maioria das vezes, em 80 figuras, soltas ou em interação, 28 imagens. O alto número <strong>de</strong><br />
imagens <strong>de</strong> células e gametas <strong>de</strong>stacados dos corpos parece se colar aos discursos<br />
médicos/científicos que fragmentam os corpos, que os tratam como um conjunto <strong>de</strong> peças<br />
fragmentadas, possíveis <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>smembradas.<br />
O campo reprodutivo é resignificado por meio das técnicas que <strong>de</strong>svinculam<br />
sexualida<strong>de</strong> e reprodução. O caráter afetivo, emocional, social, econômico e político<br />
<strong>de</strong>saparecem a reprodução torna-se apenas uma questão <strong>de</strong> gametas em interação. Assim, se<br />
per<strong>de</strong>m as discussões sobre as implicações simbólicas <strong>de</strong>ste ato, que é congelado e retirado do<br />
seu contexto social. As células reinam absolutas nos laboratórios on<strong>de</strong> são analisadas e on<strong>de</strong><br />
parecem não impor pergunta alguma sobre seu <strong>de</strong>stino, sua função ou sobre as implicações <strong>de</strong><br />
sua manipulação. Parecem somente representar os milagres da ciência, capaz <strong>de</strong> controlar e <strong>de</strong><br />
<strong>fazer</strong> a vida. Neste sentido, as imagens <strong>de</strong> células e gametas são sempre enfáticas quanto as<br />
suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gerar a vida.<br />
Vemos o resgate da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmar que o processo <strong>de</strong> intervenção técnica é<br />
natural. É o biológico associado ao natural que marca a legitimação da expansão das clínicas<br />
<strong>de</strong> RA. No entanto, essa ênfase dada ao biológico apresenta-se como uma falsa realida<strong>de</strong> já<br />
57
que a consangüinida<strong>de</strong> já foi superada pela intervenção tecnológica que mescla gametas <strong>de</strong><br />
diferentes pessoas, que possibilita embriões confeccionados com sêmen <strong>de</strong> doador e que<br />
presencia casos em que a mulher que gesta não é a mãe biológica 10 , embora, tenhamos<br />
encontrado número significativo <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> mães e <strong>de</strong> mulheres grávidas, configurando<br />
um discurso que acentua as premissas relativas a reprodução humana, na qual a mãe ocupa<br />
sempre o lugar central.<br />
Ressaltamos que mesmo em meio a todos estes <strong>de</strong>slocamentos do que é tido como<br />
natural, o projeto continua válido. Des<strong>de</strong> que se esteja o mais próximo possível do mo<strong>de</strong>lo<br />
natural, sendo necessário apenas que se mantenha algum elemento que transpareça a<br />
naturalida<strong>de</strong> do processo, permitindo a manipulação <strong>de</strong> um ou mais fatos que se tornam, em<br />
meio à pretensão <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong> da intervenção, apenas “empurrõezinhos”. (COSTA, 2006).<br />
Neste sentido, o biológico está sendo minado pela tecnologia, mas ainda se encontra<br />
aclamado nos discursos dos casais. Desta maneira, encontra espaço no rol das imagens<br />
<strong>de</strong>stinadas a publicida<strong>de</strong> e que visam colar-se aos i<strong>de</strong>ias correntes sobre a reprodução,<br />
ressaltando a objetivida<strong>de</strong> das células, a naturalida<strong>de</strong> do momento da fertilização. O sujeito se<br />
apaga, mas os seus materiais genéticos falam por eles em imagens que asseguram as<br />
continuida<strong>de</strong>s sociais e as tradicionais concepções <strong>de</strong> parentesco e filhos do próprio sangue<br />
(TAMANINI, 2006).<br />
Figura 4: representação da interação entre espermatozói<strong>de</strong>s e óvulo.<br />
A imagem acima faz referência ao momento da fecundação. Representada em cores<br />
vivas, preten<strong>de</strong> traduzir toda a emoção do milagre da vida. Bem como caracteriza um apelo ao<br />
filho biológico, her<strong>de</strong>iro genético <strong>de</strong> seus pais e representante da concepção euroamericana <strong>de</strong><br />
parentesco que une as famílias nucleares e monogâmicas por laços <strong>de</strong> sangue. É preciso<br />
10 Para este assunto ver o exemplar trabalho monográfico <strong>de</strong> Diógenes Parzianello, intitulado Mãe...só tem duas,<br />
orientado pela professora Dra Marlene Tamanini do Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
do Paraná no ano <strong>de</strong> 2009.<br />
58
lembrar que as práticas reprodutivas carecem <strong>de</strong> novos sentidos, que sejam capazes <strong>de</strong> inserir<br />
novos valores sobre família, maternida<strong>de</strong> e filiação, que não se apeguem mais ao mo<strong>de</strong>lo<br />
tradicional, que opõe e ressalta as diferenças sexuais e os papeis <strong>de</strong>stinados a cada sexo.<br />
Todavia, se torna difícil pensarmos novas configurações simbólicas e novos sentidos sociais<br />
sem a presença dos corpos, dos sujeitos e das subjetivida<strong>de</strong>s que estão envolvidos no processo<br />
reprodutivo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das tecnologias.<br />
A terceira chave <strong>de</strong> análise refere-se às imagens das acomodações e da equipe <strong>de</strong><br />
profissionais das clínicas, que somaram 40 figuras.<br />
Figura 6: consultório<br />
Figura 7: equipe médica do centro <strong>de</strong> reprodução humana Nilo Frantz.<br />
A ênfase nas instalações e na qualificação dos profissionais das clínicas nos remete à<br />
lógica <strong>de</strong> mercado presente neste campo. Pacientes passam a ser vistos como clientes que<br />
pagam altos preços por melhores acomodações na suíte <strong>de</strong> luxo, por um atendimento em um<br />
consultório em que se sintam à vonta<strong>de</strong>. A reprodução, neste sentido, se insere em uma lógica<br />
<strong>de</strong> mercado, passível <strong>de</strong> gerar lucros. A capacitação profissional parece dizer que nada<br />
escapará <strong>de</strong>sta equipe treinada e amistosa, estando cada etapa do processo em “boas” mãos e<br />
59
sendo analisadas com olhares cuidadosos que só visam a realização do sonho do filho<br />
biológico. Vale ressaltar que as clínicas <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong> competem ativamente no mercado pelos<br />
pacientes inférteis. Para tanto, utilizam-se <strong>de</strong> uma publicida<strong>de</strong> que visa exaltar<br />
cuidadosamente um círculo <strong>de</strong> médicos que possuem referências altamente qualificadas<br />
(SPAR, 2007).<br />
Somente em quarto lugar é que encontramos referências à mulher, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
sumir dos discursos acadêmicos volta a figurar nas publicida<strong>de</strong>s com 38 imagens, todas<br />
carregadas <strong>de</strong> estereótipos <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>. As figuras mais recorrentes foram as que conectam as<br />
mulheres ao mo<strong>de</strong>lo heterossexual e nuclear <strong>de</strong> família, on<strong>de</strong> a mãe, ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> filhos,<br />
cumpre sua função social ao cuidar e amar sua prole.<br />
Estas imagens evi<strong>de</strong>nciam que a proposta moral das RA não é produzir bebês para<br />
todos os inférteis e sim para um grupo específico, aos casais heterossexuais, já que as<br />
tecnologias são representadas como complementos da natureza que <strong>de</strong>fine as concepções <strong>de</strong><br />
parentesco euroamericanas como normais. (DINIZ; COSTA, 2006). Já observamos que o<br />
discurso médico <strong>de</strong>fine os <strong>de</strong>sejos que fogem ao mo<strong>de</strong>lo estabelecido <strong>de</strong> família, como<br />
<strong>de</strong>sviantes, patológicos e, porque não, anormais. Efetua-se que a RA reafirma os papeis<br />
tradicionais <strong>de</strong> pai e mãe e as relações <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> que trazem uma valorização do biológico<br />
que dá suporte a dominação masculina ao imutabilizar as diferenças e as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />
(SCAVONE, 2006). Parece irrevogável nestas imagens que a vida das mulheres, em relação a<br />
procriação, seja permeada <strong>de</strong> valores, normas e ações que dizem respeito ao contexto<br />
socioeconômico, político e cultural no qual se <strong>de</strong>senvolve e que parece apelos ao “instinto”<br />
materno e à naturalização do seu lugar social enquanto mãe <strong>de</strong> família.<br />
Figura 8: mãe e pai com filho<br />
As <strong>de</strong>mais imagens referidas à mulher focam-se na representação da gravi<strong>de</strong>z.<br />
Elucida-se a força ainda presente do discurso que associa a mulher à sua capacida<strong>de</strong><br />
60
eprodutiva, centrando a finalida<strong>de</strong> do seu ser na sua singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestar. As imagens <strong>de</strong><br />
barrigas grávidas parecem reforçar este i<strong>de</strong>al ao mostrar somente o que po<strong>de</strong> interessar neste<br />
ser hierarquicamente inferior: a capacida<strong>de</strong> corporal <strong>de</strong> reprodução. Vemos reificada a<br />
condição mulher/mãe enquanto condição sine qua non para a inteligibilida<strong>de</strong> da mulher no<br />
cenário social.<br />
Tal discurso inci<strong>de</strong> sobre as mulheres que a<strong>de</strong>ntram o mundo online <strong>de</strong>stas clínicas na<br />
busca <strong>de</strong> sentido para suas vidas, já que não po<strong>de</strong>m se realizar como seres plenos na ausência<br />
<strong>de</strong> filhos e necessitam, em um <strong>de</strong>sespero instintivo, recorrer às NTRc que, ao medicalizarem e<br />
tratarem a mulher, saciam a natureza. É plausível afirmar que a idéia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sujeito<br />
livre e subjetivo da mulher é construído sobre a <strong>de</strong>manda do “quero ser mãe” (TAMANINI,<br />
2010). Neste sentido, a mulher, para esses especialistas, necessita e tem direito <strong>de</strong> ter um filho<br />
para que seja possível se estabelecer publicamente enquanto ser compreensível no universo<br />
simbólico, sendo as experiências e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s entrecortadas pela tecnologia.<br />
É notório que no consenso geral a maternida<strong>de</strong> ainda <strong>de</strong>fine a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina que,<br />
longe <strong>de</strong> ser múltipla e fluída, é estanque e inflexível, visto que é dada pela natureza <strong>de</strong> seu<br />
sujeito. As imagens cristalizam esta concepção ao representarem a felicida<strong>de</strong> e a realização<br />
em imagens <strong>de</strong> filhos, famílias e gravi<strong>de</strong>zes.<br />
Figura 9: Barriga grávida.<br />
Nesta lógica <strong>de</strong> valorização da família encontramos as imagens referidas a bebês,<br />
sempre representados prontos e saudáveis, alertando para a certeza <strong>de</strong> sucesso dos<br />
procedimentos científicos e para a realida<strong>de</strong> do sonho. Encontramos expressivas 34 imagens<br />
<strong>de</strong> bebês que aparecem sozinhos ou nos braços <strong>de</strong> seus “pais” científicos.<br />
61
Figura 10: bebês segurados pelos médicos da clínica <strong>de</strong> RA. Figura 11: bebê.<br />
Vale notar que somente encontramos bebês brancos, o que reforça a i<strong>de</strong>ologia da<br />
família euroamericana monogâmica e nuclear.<br />
Com 14 imagens encontramos a chave referida aos órgãos, que aparecem nos sites,<br />
soltos, <strong>de</strong>svinculados dos corpos. Tais imagens evi<strong>de</strong>nciam um dos elementos que a teoria em<br />
torno das NTRc já havia apresentado, a crescente fragmentação do corpo humano nos<br />
processos <strong>de</strong> reprodução assistida. A reprodução que antes dizia respeito a intimida<strong>de</strong> do casal<br />
ao passar ao laboratório per<strong>de</strong> quase todo seu caráter subjetivo, neste cenário,os corpos são<br />
invadidos e tornam-se objetos <strong>de</strong>finidos por suas funções biológicas. Neste contexto as<br />
discussões sobre as implicações éticas, sociais e simbólicas referentes ao se <strong>fazer</strong> filhos em<br />
laboratório não encontram lugar para se inserir, já que o corpo fragmentado não revela os<br />
sujeitos, os <strong>de</strong>sejo, os sonhos e as concepções envolvidas neste proce<strong>de</strong>r técnico sobre os<br />
órgãos.<br />
Os órgãos representados são em sua maioria órgãos femininos, como na imagem<br />
abaixo, na qual observamos um útero. Fato que alu<strong>de</strong>, mais uma vez, a centralida<strong>de</strong> feminina<br />
nos processos reprodutivos, assim como ressalta a relação mulher/natureza/mãe, visto que a<br />
mulher é marcada pela singularida<strong>de</strong> biológica/natural da posse do útero, que lhe permite<br />
gestar, capacida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fine seu lugar no mundo.<br />
62
Figura 12: Órgão feminino.<br />
Menos expressivas, mas não menos importante, são a, sétima, oitava e nona chaves,<br />
que contam com 3 imagens <strong>de</strong> homens, que po<strong>de</strong>m estar ou não envolvidos com os bebês,<br />
representados sentados, já com uma ida<strong>de</strong> mais avançada e menos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> seus pais,<br />
mas que <strong>de</strong> qualquer maneira encontram pouca visibilida<strong>de</strong> nos sites <strong>de</strong> reprodução assistida,<br />
talvez porque estes estejam voltados às mulheres, teoricamente mais influenciadas por seus<br />
hormônios e instintos que as levam ao <strong>de</strong>sejo do filho a qualquer preço. Esclarecemos que a<br />
área da reprodução continua sendo hegemonicamente uma área <strong>de</strong> inserção dos sujeitos<br />
femininos e mesmo com a entrada <strong>de</strong> especialistas e técnicas que dirigem o olhar aos<br />
indivíduos masculinos, não obstante, seus problemas e relações com a paternida<strong>de</strong> continuam<br />
aparecendo <strong>de</strong> maneira tímida, muitas vezes diluídos nas consi<strong>de</strong>rações sobre o casal.<br />
Importante lembrar que, nesta lógica <strong>de</strong> valorização da relação mulher/natureza/maternida<strong>de</strong>,<br />
a paternida<strong>de</strong> aparece apenas como dado culturalmente constituído e, sendo ligada ao âmbito<br />
simbólico, menos relacionada a esfera biológica. Neste sentido a imagem abaixo é bastante<br />
representativa visto que apresenta o bebê face a face com o pai, diferentemente das outras<br />
imagens relacionadas às mães. Esta relação íntima entre o bebê e o pai ressalta o vínculo<br />
sentimental, simbólico entre pai e filho, distanciando a paternida<strong>de</strong> da esfera biológica.<br />
Figura 13: pai e filho.<br />
Com quatro figuras encontramos as imagens gráficas referidas aos quadros que<br />
contemplam taxas <strong>de</strong> sucesso alcançadas pelas clínicas. Tais gráficos visam incentivar o<br />
acesso as NTRc ressaltando seu potencial benéfico e sua capacida<strong>de</strong> singular <strong>de</strong> dominar o<br />
mundo não humano, o mundo objetivo e neutro, do qual é capaz <strong>de</strong> <strong>fazer</strong> emergir os mais<br />
fundamentais conhecimentos sobre a vida e o funcionamento orgânico dos seres humanos. É<br />
importante ressaltar que estes gráficos po<strong>de</strong>m ser fruto da manipulação <strong>de</strong> alguns dados, já<br />
63
que pouco se fala a respeito dos fatos que servem <strong>de</strong> base para suas elaborações. Neste<br />
sentido, verificamos as tentativas <strong>de</strong> incentivar o uso das NTRc ao revelar-se apenas seus<br />
sucessos, lembrando que para esta área as taxas <strong>de</strong> sucesso são na realida<strong>de</strong> bastante baixas e<br />
sem menção aos riscos (TAMANINI, 2006). A publicida<strong>de</strong> das clínicas <strong>de</strong> RA, embasam-se<br />
em argumentos que são fáceis <strong>de</strong> serem sustentados, pois existe uma forte <strong>de</strong>manda por parte<br />
das mulheres que não po<strong>de</strong>m gerar filhos mas que acreditam <strong>de</strong>sesperadamente que os<br />
tratamentos <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong> irão solucionar os seus problemas. Nesse ponto, as taxas <strong>de</strong> sucesso<br />
cujas clínicas <strong>de</strong> reprodução assistida não se furtam <strong>de</strong> disseminar, são complicadas uma vez<br />
que o “sucesso” é difícil <strong>de</strong> ser medido nesse tipo <strong>de</strong> comércio. Os números, as estatísticas<br />
que parecem muitas vezes animadores não necessariamente elevam as taxas <strong>de</strong> probabilida<strong>de</strong><br />
na geração <strong>de</strong> uma criança.<br />
Todas as clínicas <strong>de</strong> RA enfrentam, pois, dilemas comerciais que lhes imputam<br />
propagan<strong>de</strong>ar números que, por vezes, po<strong>de</strong>m direcionar a uma percepção alterada das taxas<br />
<strong>de</strong> sucesso. Ou seja, se os clientes buscam os serviços dos médicos ou das clínicas com as<br />
“melhores” estatísticas, logo, as clínicas orientam suas práticas para a obtenção <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminados resultados estatísticos. Tal manipulação, não exige esforço, por exemplo, se a<br />
clínica almejar aumentar suas taxas <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, po<strong>de</strong> recusar-se a tratar mulheres acima <strong>de</strong><br />
certa ida<strong>de</strong>, ou po<strong>de</strong>m também convencer pacientes a não tentarem repetidamente tratamentos<br />
visando a gravi<strong>de</strong>z. Percebe-se, <strong>de</strong>ssa forma, que essas táticas refletem razões comerciais.<br />
(SPAR, 2007).<br />
Deste modo, se <strong>de</strong>lineia um verda<strong>de</strong>iro universo mercantil, com estratégias próprias,<br />
que visam o lucro e a notorieda<strong>de</strong> visto que o “nome” da clínica se faz pelo número <strong>de</strong><br />
gravi<strong>de</strong>zes ou <strong>de</strong> bebês nascidos.<br />
Figura 14: gráfico <strong>de</strong> sucesso da clínica Pró nascer.<br />
64
Em último lugar na nossa análise perfigura a chave das imagens representativas da<br />
infertilida<strong>de</strong>, com 4 imagens, que são, quiçá as figuras mais interessantes e mais proveitosas<br />
no sentido <strong>de</strong> representações <strong>de</strong> valores e normas que se impoem sobre os corpos e<br />
comportamentos.<br />
É necessario alertar para o fato da esterilida<strong>de</strong> não ser uma doença, sendo, porém,<br />
entendida pelo discurso médico/cientifico como passivel <strong>de</strong> explicações e tratamentos médico.<br />
Este discurso une benção e fertilida<strong>de</strong> do mesmo modo em que atrela esterilida<strong>de</strong> e maldição.<br />
A infertilida<strong>de</strong> apresenta-se como uma tragédia para o sujeito feminino que não po<strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificar-se com o i<strong>de</strong>al cultural da maternida<strong>de</strong>, tornando-se vazia. A mulher infértil é<br />
excluída <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m cultural que i<strong>de</strong>ntifica feminilida<strong>de</strong> com maternida<strong>de</strong>. A mulher<br />
infértil parece constituir a própria negação da natureza, negação do funcionamento normal <strong>de</strong><br />
seu corpo. “A maldição recai sobre o corpo, como se este fosse responsável por um fracasso<br />
que, na realida<strong>de</strong>, é imputável a uma operação simbólica” (TUBERT, 1996, p.138).<br />
Figura 15: A infertilida<strong>de</strong>.<br />
Imagens como a acima são reveladoras do lugar do casal, ou da mulher infértil em<br />
nossa socieda<strong>de</strong>. Marcada pela ausência <strong>de</strong> filhos, a mulher infértil é equiparada<br />
a terra seca, incapaz <strong>de</strong> <strong>fazer</strong> germinar uma semente. As relações entre fertilida<strong>de</strong> feminina e<br />
fertilida<strong>de</strong> da terra possuem uma longa tradição que se <strong>de</strong>ve a uma antiga associação da<br />
mulher com a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar a vida. A terra fértil é sinônimo <strong>de</strong> fartura e nutrição, a<br />
mulher fértil é sinônimo <strong>de</strong> sucesso da espécie e, <strong>de</strong>sta forma, tanto a mulher como a terra,<br />
quando secas, são vinculadas a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> morte.<br />
As clínicas <strong>de</strong> reprodução em laboratório apresentam-se como a solução para os<br />
infortunios da infertilida<strong>de</strong>, capazes <strong>de</strong> <strong>fazer</strong> brotar uma muda no terreno mais seco e assim,<br />
<strong>de</strong> normalizar os corpos mais rebel<strong>de</strong>s. A lei científica torna-se lei moral e condiciona corpos<br />
rebel<strong>de</strong>s a norma. As tecnologias reprodutivas adquirem uma função política na transmissão<br />
65
<strong>de</strong> normas acerca do corpo da saú<strong>de</strong> e dos comportamentos. Desta forma, a medicina<br />
domestica os possíveis novos arranjos sociais que emergem <strong>de</strong> suas competentes práticas<br />
(RAMIREZ, 2006).<br />
4.2.2 As publicida<strong>de</strong>s reificam<br />
Na tentativa <strong>de</strong> melhor compreen<strong>de</strong>rmos as investidas publicitárias das clínicas <strong>de</strong><br />
reprodução assistida, vamos somar à discussão das imagens as informações sobre a missão e<br />
valores <strong>de</strong> cada centro médico. Por intermédio <strong>de</strong>stas informações, as clínicas indicam aos<br />
pacientes/clientes que a<strong>de</strong>ntram ao mundo online quais as motivações e i<strong>de</strong>ais que perfazem e<br />
sustentam suas ações.<br />
Encontramos publicida<strong>de</strong> referente às intenções das clínicas em 27 sites. Como<br />
estratégia <strong>de</strong> análise, organizamos estas publicida<strong>de</strong>s em torno <strong>de</strong> 3 temas centrais. Tais temas<br />
nos revelam que apesar das técnicas po<strong>de</strong>rem significar a libertação e quebra dos mo<strong>de</strong>los<br />
estabelecidos <strong>de</strong> família, filiação e parentesco, os discursos que a permeiam tratam <strong>de</strong> impor o<br />
projeto <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong>, que continua latente na vida <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte das mulheres.<br />
O primeiro tema, que escapa ao discurso da maternida<strong>de</strong> obrigatória, diz respeito ao<br />
cuidado dos problemas masculinos ligados a infertilida<strong>de</strong>. Dentre as 27 clínicas, apenas uma<br />
se infere a missão <strong>de</strong> olhar para os problemas do homem e, mais uma vez, torna-se nítido que<br />
o homem encontra-se invisibilizado quando se fala em reprodução. Fato que se conecta a<br />
pouca atenção que a paternida<strong>de</strong> encontra frente às múltiplas investidas do campo sobre a<br />
maternida<strong>de</strong>, a mulher e seu corpo.<br />
Em consequência <strong>de</strong>ssa dissolução do homem, que parece se integrar na categoria<br />
casal verificamos que quase a totalida<strong>de</strong> das clínicas, 24, enfatiza o significado <strong>de</strong> sua<br />
existência e a base do seu proce<strong>de</strong>r na tentativa <strong>de</strong> auxiliar o casal infértil que sonha não<br />
apenas, mas possui o direito <strong>de</strong> constituir família.<br />
Advertimos que a ajuda à natureza aparece novamente como base sobre a qual as<br />
práticas encontram sua legitimida<strong>de</strong>. Sendo a maternida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>stino natural <strong>de</strong> toda mulher, a<br />
intervenção médica que visa promovê-la torna-se <strong>de</strong>sejada e até incentivada. O discurso<br />
abaixo, retirado do site da clínica curitibana Feliccita, é exemplar na elucidação das bases<br />
sociais on<strong>de</strong> as NTRc <strong>de</strong>sejam fundar seus alicerces. Vemos o discurso publicitário recorrer<br />
ao i<strong>de</strong>al da realização familiar ao possibilitar a instituição <strong>de</strong>sta microssocieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> a<br />
mulher impera soberana usufruindo das vantagens que o mundo público não po<strong>de</strong> lhe<br />
oferecer. O principal objetivo da clínica é <strong>de</strong>volver à mulher sua função e o seu lugar no<br />
66
mundo, pois, com filhos ela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser vazia e passa a ter uma sombra, vale dizer, se torna<br />
completa e feliz.<br />
“Realizar o sonho <strong>de</strong> casais, <strong>de</strong>ixando as famílias mais completas e felizes.”<br />
Ainda assim, a maternida<strong>de</strong> não apenas se impõem nas propagandas das clínicas como<br />
o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> todo casal, em particular, <strong>de</strong> toda mulher, mas ganha contornos <strong>de</strong> direito, como<br />
po<strong>de</strong>mos perceber na propaganda abaixo, retirada do site da clínica Matrix <strong>de</strong> Ribeirão Preto.<br />
“Todo casal tem o direito <strong>de</strong> ter filhos, ou pelo menos <strong>de</strong> usar <strong>de</strong> todos os métodos<br />
disponíveis para obtê-los.”<br />
A maternida<strong>de</strong> entra para a lista dos direitos sexuais e reprodutivos, como se a<br />
ausência <strong>de</strong> filhos fosse capaz <strong>de</strong> imputar sérios riscos a constituição física da mulher, porém,<br />
um direito transvestido porque no contexto <strong>de</strong>ssas clínicas, não está auferido a uma escolha,<br />
“filhos quando eu quiser, se eu quiser, é uma imposição da natureza. No entanto, o único risco<br />
que a infecundida<strong>de</strong>, voluntária ou não, evi<strong>de</strong>nciou provocar é a dor psicológica da mulher<br />
que não consegue lugar na or<strong>de</strong>m simbólica e social estabelecida ao não <strong>de</strong>finir-se enquanto<br />
mãe. Tal discurso acentua os processos <strong>de</strong> estigmatização que recaem sobre a mulher que opta<br />
por não ter filhos, ou que não os po<strong>de</strong> ter, e, que se vê cercada <strong>de</strong> informações que enaltecem<br />
e sacralizam a mãe, reforçando a anormalida<strong>de</strong> da mulher infecunda.<br />
A terceira chave versa sobre as questões relativas à saú<strong>de</strong> da mulher. Este objetivo foi<br />
apontado em apenas 2 clínicas. A pouca menção à saú<strong>de</strong> da mulher esclarece-nos que este não<br />
é o foco central das NTRc que visam regulamentar e normalizar os corpos fora da norma<br />
porque inférteis e não a<strong>de</strong>ntrar o terreno da saú<strong>de</strong> feminina ou das implicações que a alta taxa<br />
<strong>de</strong> medicalização impõem sobre seus corpos. Portanto, objetivos como o abaixo se<br />
apresentam enquanto minorias e estão, muitas vezes, relacionados a clínicas <strong>de</strong>dicadas a<br />
saú<strong>de</strong> da mulher e não somente aos tratamentos <strong>de</strong> reprodução assistida, como é o caso da<br />
clinica Clinimater <strong>de</strong> Santos, que realiza tratamento diversos para a mulher, incluindo o<br />
acesso as tecnologias reprodutivas.<br />
“Proporcionar através <strong>de</strong> tecnologia e <strong>de</strong>senvolvimento científico um atendimento <strong>de</strong><br />
qualida<strong>de</strong>, humano e personalizado, visando a saú<strong>de</strong> da mulher em primeiro lugar.”<br />
67
É inevitável atentar para o fato que estas constantes referências à missão e aos<br />
objetivos <strong>de</strong> cada clínica é resultado <strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> explicação dos porquês <strong>de</strong> sua<br />
existência. No entanto, nos indagamos sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tantas justificativas.<br />
Acreditamos que tal necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justificação se dê pelo fato <strong>de</strong> que, ao contrário do que<br />
afirmam veementemente, as NTRc não são processos naturais, ou simples ajuda ao que<br />
po<strong>de</strong>ria ter acontecido antes, são técnicas <strong>de</strong> manipulação e confecção da natureza. A questão<br />
não é a <strong>de</strong> assessorar um processo, mas <strong>de</strong> recriá-lo totalmente. A autorida<strong>de</strong> que o domínio<br />
<strong>de</strong>stas técnicas aufere aos especialistas necessita ser questionada e suscitar <strong>de</strong>bates éticos e<br />
políticos. Se a própria configuração genética do ser humano torna-se passível <strong>de</strong><br />
transformação po<strong>de</strong>mos supor o tamanho das possíveis mudanças no âmbito social e<br />
simbólico. Deste modo, as clínicas correm na tentativa <strong>de</strong> legitimar suas práticas como<br />
benéficas, enraizando suas motivações em <strong>de</strong>mandas socialmente inteligíveis, arraigar os<br />
fundamentos <strong>de</strong> suas operações em concepções tradicionalmente <strong>de</strong>finidas, como é o caso da<br />
associação mulher/mãe.<br />
As imagens e publicida<strong>de</strong>s das clínicas se conectam as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>s e aos<br />
temas <strong>de</strong> pesquisas das diferentes áreas ligadas a reprodução em laboratório no que se refere<br />
ao enaltecimento das técnicas, ao <strong>de</strong>talhamento dos processos, na tentativa <strong>de</strong> estabelecer a<br />
objetivida<strong>de</strong> das pesquisas e o i<strong>de</strong>al do sucesso garantido.<br />
Todavia, parece que as inúmeras especialida<strong>de</strong>s e suas publicações dizem-nos muito<br />
mais da complexificação da área e do <strong>de</strong>staque que o campo ganha no universo das pesquisas<br />
científicas, apontando para a <strong>de</strong>spersonificação da reprodução e para a mecantilização da<br />
vida, processos que continuam sob a proteção do discurso das benesses da ciência e que<br />
sofrem poucas investidas da crítica, já que se encontram socialmente legitimados pelos<br />
valores comumente associados a reprodução e as noções <strong>de</strong> família e filiação. I<strong>de</strong>ais<br />
reverenciados nas imagens e publicida<strong>de</strong>s dos sites, que reificam os pressupostos <strong>de</strong><br />
naturalida<strong>de</strong> da prática reprodutiva e exaltam os mo<strong>de</strong>los dominantes <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong>,<br />
paternida<strong>de</strong> e família. Nestes discursos a reprodução aparece repersonificada e a ênfase se<br />
coloca nas concepções sociais e simbólicas que performatam o imaginado envolto na da<br />
reprodução humana. Destacam-se imagens <strong>de</strong> famílias e bebês já “prontos” na esperança <strong>de</strong><br />
estabelecer a ponte entre a veracida<strong>de</strong> e a objetivida<strong>de</strong> da técnica e do domínio científico da<br />
reprodução e a futura realização do sonho por filhos. Neste sentido vemos a relevância que a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> e completu<strong>de</strong> ganham ao serem relacionadas a maternida<strong>de</strong>, paternida<strong>de</strong> e<br />
ao filho do próprio sangue, ainda que o apelo a técnica esteja presente, ele apenas preten<strong>de</strong><br />
68
eafirmar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se atingir a normalida<strong>de</strong> e a felicida<strong>de</strong> da vida social no seio da<br />
família heterossexual com <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes.<br />
69
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A pesquisa que realizamos nesta monografia nos permite avançar um pouco na<br />
compreensão <strong>de</strong>ste campo complexo que é a reprodução humana em laboratório,<br />
principalmente por mesclar categorias que são habitualmente mantidas separadas.<br />
Pu<strong>de</strong>mos perceber por meio da pesquisa empírica nos sites das clínicas que o campo<br />
das NTRc, assim como havíamos presumido, encontra-se bordado pelas concepções e valores<br />
daqueles que as produzem e que, assim, não encontram-se isentos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias e <strong>de</strong><br />
estereótipos <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />
Ainda que as teóricas feministas venham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 60 reivindicando o controle<br />
sobre seus corpos, os discursos dominantes ainda encontram meios <strong>de</strong> reafirmar e dominar o<br />
corpo feminino ao engendrá-lo em concepções acerca <strong>de</strong> sua natureza instintiva que atrela a<br />
mulher a sua natureza reprodutiva. Os discursos que envolvem as NTRc alocam-se neste<br />
campo que reafirma os preceitos generificados que sacralizam a maternida<strong>de</strong> e enaltecem a<br />
família heterossexual - pilares da dominação masculina.<br />
Neste sentido traçamos no primeiro capítulo uma revisão bibliográfica que contempla<br />
o panorama do <strong>de</strong>bate que se inscreve no campo das críticas ao i<strong>de</strong>al da maternida<strong>de</strong><br />
obrigatória, que conecta a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina ao seu corpo e afere à sua especificida<strong>de</strong><br />
biológica a essência <strong>de</strong> seu ser. Como pu<strong>de</strong>mos perceber neste capítulo, a mulher tem sido<br />
tomada, ao longo dos últimos três séculos, como sujeito da reprodução, o que tem servido<br />
para legitimar uma posição hierárquica <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>, na qual a mulher é relegada ao campo da<br />
natureza instintiva e ao cuidado doméstico enquanto ao homem ficam reservadas as ações<br />
sociais da esfera pública. Desta forma, a maternida<strong>de</strong> torna-se <strong>de</strong>finidora do papel da mulher<br />
no universo simbólico e sua ausência é, para a gran<strong>de</strong> maioria das mulheres, sentida como<br />
“<strong>de</strong>sgraça”, doença ou simplesmente como fonte <strong>de</strong> infelicida<strong>de</strong> frente a um corpo que não se<br />
adéqua ao i<strong>de</strong>al cultural.<br />
Em meio a este cenário surgem timidamente no final dos anos 70 as técnicas<br />
reprodutivas, que ganham terreno e a<strong>de</strong>ptos especialmente após os anos 90, quando se<br />
evi<strong>de</strong>ncia um crescimento vertiginoso <strong>de</strong> clínicas <strong>de</strong>stinadas a reprodução humana em<br />
laboratório e das técnicas ligadas aos procedimentos envoltos na manipulação das etapas<br />
reprodutivas. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar sexo e reprodução, chave <strong>de</strong>ste método reprodutivo,<br />
parece acabar com os limites da natureza, estando o filho do próprio sangue ao alcance <strong>de</strong><br />
70
qualquer um. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> libertar-se, ao menos um pouco, dos encargos da reprodução<br />
apresenta-se como possibilida<strong>de</strong> para a mulher, bem como o exercício da parentalida<strong>de</strong> se<br />
torna uma realida<strong>de</strong> para as diferentes configurações familiares, que não necessariamente se<br />
pautam no mo<strong>de</strong>lo heterossexual. Observamos que as NTRc po<strong>de</strong>m transformar por meio das<br />
técnicas o que nos era inteligível culturalmente ao abrir um leque <strong>de</strong> novas possibilida<strong>de</strong>s e<br />
arranjos <strong>de</strong> famílias e parentesco, reconfigurando nossas premissas sobre elementos tidos<br />
como naturais e indiscutíveis.<br />
Porém, percebemos que a naturalização da maternida<strong>de</strong> e a fixação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
feminina no corpo constituem a base do discurso que preten<strong>de</strong> legitimar as novas tecnologias.<br />
A i<strong>de</strong>ia do <strong>fazer</strong> o que a natureza po<strong>de</strong>ria ter feito realoca a mulher no campo da biologia e<br />
afirma que sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é imutável, já que baseada em leis não humanas. As portas para a<br />
implosão do mo<strong>de</strong>lo biológico e heterossexual <strong>de</strong> família se fecham frente à imutabilida<strong>de</strong> do<br />
natural.<br />
No entanto, o mundo não humano é dominado pelos “homens” da ciência, que ao<br />
<strong>de</strong>svendarem seus mistérios ganham autorida<strong>de</strong> e legitimida<strong>de</strong> para enunciar as verda<strong>de</strong>s dos<br />
fatos tornando-se porta vozes oficiais do mundo natural. Portanto, a ciência, apesar <strong>de</strong> se<br />
preten<strong>de</strong>r objetiva, não o é, visto que estabelece verda<strong>de</strong>s sobre fatos que sozinhos nada<br />
dizem e que só po<strong>de</strong>m revelar alguma proposição no contexto do laboratório. Vemos, <strong>de</strong>sta<br />
forma, que o conhecimento não se aparta do meio social no qual se insere, visto que é,<br />
igualmente, uma construção social e, assim, está bordado <strong>de</strong> concepções e valores que dizem<br />
respeito ao universo simbólico daqueles que o produzem e que pouco viabiliza as<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mudanças sociais que as práticas produzem.<br />
O campo das NTRc se faz importante, justamente, por inserir-se neste universo on<strong>de</strong><br />
as configurações sociais e políticas po<strong>de</strong>m ser alteradas. No entanto o que encontramos<br />
através dos discursos envoltos nesta prática é um concentrado esforço por manter as<br />
categorias sociais <strong>de</strong>ntro dos limites já <strong>de</strong>finidos e que não estão livres <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias e<br />
estereótipos <strong>de</strong> <strong>gênero</strong>.<br />
No intuito <strong>de</strong> aclarar que a ciência é, ela também, uma construção social sujeita a<br />
valores culturais vigentes em um <strong>de</strong>terminado contexto histórico. Produzimos o capítulo dois<br />
focando-nos nos autores que estabelecem a <strong>de</strong>sconstrução dos pressupostos <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e<br />
universalida<strong>de</strong> presentes nos discursos que cercam toda ação científica. Desta forma,<br />
questionamos as bases sobre as quais as NTRc <strong>de</strong>sejam alocar suas bases, a saber, os alicerces<br />
sociais que instauram as diferenças sexuais no âmbito da biologia e que convertem os corpos<br />
em superfícies neutras ou pré discursivas e assim, passiveis <strong>de</strong> intervenções tecnológicas que<br />
71
procurem apenas “ajudar” o projeto natural <strong>de</strong> cada corpo. Acrescentamos que nesta dinâmica<br />
a subjetivida<strong>de</strong> per<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque e os sujeitos <strong>de</strong>saparecem das falas científicas, que se<br />
<strong>de</strong>bruçam sobre os corpos fragmentados e <strong>de</strong>strinchados pelo olhar especializado do<br />
profissional competente no domínio do natural.<br />
É valido ressaltar que todo esse percurso teórico traçado por nós visa reconhecer que<br />
os avanços tecnológicos e as constantes intervenções sobre o corpo têm conseqüências<br />
sociais, simbólicas, éticas, políticas e até mesmo econômicas. Ao não atentarmos para tal fato<br />
po<strong>de</strong>mos incorrer na aceitação da tecnologização progressiva da vida humana, cujas<br />
conseqüências ainda não po<strong>de</strong>mos pensar, ao mesmo tempo em que apenas observar as<br />
possíveis benesses dos avanços tecnológicos encobre seus riscos e implicações, que<br />
sobremaneira precisam ser explicitados já que se instalam em um cenário, como é o caso das<br />
NTRc, no qual os corpos são altamente medicados e invadidos.<br />
Neste sentido, a partir da análise do material que coletamos nos sites das clínicas <strong>de</strong><br />
reprodução assistida filiadas a REDLARA, esboçamos um quadro que evi<strong>de</strong>ncia, em<br />
conformida<strong>de</strong> com nossa hipótese inicial, que o campo da reprodução humana, quando em<br />
contexto <strong>de</strong> laboratório, é normativo e valorativo no que tange os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> filiação, <strong>de</strong><br />
família e <strong>de</strong> busca por filhos, pois se baseia em concepções correntes sobre a normalida<strong>de</strong> do<br />
<strong>de</strong>sejo da maternida<strong>de</strong> e a patologização dos casais inférteis ou dos <strong>de</strong>sejos “<strong>de</strong>sviantes”,<br />
como são <strong>de</strong>finidos pelos médicos as aspirações <strong>de</strong> casais homossexuais e <strong>de</strong> pessoas solteiras<br />
que anseiam por filhos.<br />
Em um sentido mais amplo, o quadro <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>s, que traçamos para as clínicas,<br />
no capítulo quatro. Mostra que a ciência e a medicina continuam a ser um reduto <strong>de</strong> inserção<br />
prioritariamente masculino, embora se observe a entrada <strong>de</strong> mulheres em alguns campos do<br />
saber, fato que se explica pela associação <strong>de</strong>stas profissões com características ditas<br />
femininas, marcando para o campo uma divisão generificada do trabalho. Ainda pu<strong>de</strong>mos<br />
verificar como o campo da RA se complexifica, ao abrir espaço à entrada <strong>de</strong> diferentes<br />
especialida<strong>de</strong>s, que se fazem necessárias nas <strong>de</strong>siguais etapas <strong>de</strong> confecção e transplante <strong>de</strong><br />
um embrião. Os conteúdos dos artigos publicados em diferentes meios pelos especialistas<br />
ligados às clínicas, assim como a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> especialida<strong>de</strong>s mapeadas, evi<strong>de</strong>nciam a<br />
crescente fragmentação da reprodução. E, por conseguinte, dos corpos, que são<br />
“<strong>de</strong>spedaçados” em pesquisas que preten<strong>de</strong>m <strong>de</strong>talhar exaustivamente apenas uma pequena<br />
parcela do processo total da reprodução assistida, no intuito <strong>de</strong> não “<strong>de</strong>ixar passar” nenhum<br />
<strong>de</strong>talhe, assegurando assim o total domínio das leis inumanas.<br />
72
O apelo ao domínio da natureza configura boa parte das imagens coletadas dos sites e<br />
por nós analisadas, que representam exaustivamente as técnicas e procedimentos realizados<br />
nos laboratórios com a intenção <strong>de</strong> assegurar aos paciente/clientes das clínicas que o<br />
procedimento é seguro, e exitoso.<br />
As imagens compiladas e analisadas ainda no capítulo quatro, juntamente com os<br />
discursos publicitários, marcam um retorno da mulher e da família ao processo reprodutivo,<br />
ambos ganham <strong>de</strong>staque quando o assunto é atrair pacientes/clientes para as clínicas. Desta<br />
forma, verificamos nas imagens um enfoque distinto daquele presente nos artigos <strong>de</strong> cunho<br />
acadêmico, que <strong>de</strong>talham e especificam as técnicas sem <strong>fazer</strong>em menção aos sujeitos<br />
<strong>de</strong>stinatários <strong>de</strong> tais investidas científicas. Em contrapartida, as imagens e publicida<strong>de</strong>s se<br />
apegam aos valores culturais referentes à reprodução. Desta forma, a família ganha <strong>de</strong>staque e<br />
a felicida<strong>de</strong> é associada ao nascimento do bebê. Diferentes imagens <strong>de</strong> células e gametas<br />
reforçam o caráter natural da reprodução e instauram as bases da legitimação da intervenção<br />
tecnológica em um processo que antes dizia respeito apenas a intimida<strong>de</strong> do casal.<br />
Ressaltamos que as publicida<strong>de</strong>s, ao ressaltarem os valores imbricados na reprodução<br />
e ao <strong>de</strong>finirem tais valores como bases nas quais assentam suas práticas, acarretam a<br />
imposição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los estabelecidos <strong>de</strong> família heterossexual e <strong>de</strong> mulheres que não po<strong>de</strong>m<br />
ser completas na ausência <strong>de</strong> filhos. Logo, percebemos que a estigmatização e a fixi<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina se reafirmam e os caminhos para a <strong>de</strong>sconstrução das concepções que<br />
acirram as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e as hierarquias <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> precisam ser restabelecidos para que seja<br />
possível abranger estas novas tecnologias que fragmentam os corpos e que pouco alar<strong>de</strong><br />
fazem a respeito dos riscos envoltos em suas ações.<br />
Neste sentido, a perspectiva analítica <strong>de</strong> <strong>gênero</strong> nos possibilita compreen<strong>de</strong>r as<br />
nuances <strong>de</strong>ste campo complexo que através da ciência recoloca os velhos <strong>de</strong>bates e<br />
hierarquias, envolvendo-os em uma aura <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s. De tal modo, se torna necessário<br />
a<strong>de</strong>ntrar a fundo o universo das técnicas e da ciência para estabelecer uma crítica às práticas<br />
que aparentemente apenas promovem o bem estar dos casais, mas que em seu seio guardam<br />
inúmeras questões que ainda necessitam ser esclarecidas, evi<strong>de</strong>nciadas e <strong>de</strong>batidas e que, ao<br />
escaparem à problematização, continuam a inferir e acentuar os processos <strong>de</strong> dominação<br />
masculina, a estigmatização das mulheres solteiras e/ou sem filhos e a objetivação da vida<br />
humana.<br />
Outras questões também se colocam ao observarmos o mundo online das clínicas <strong>de</strong><br />
RA, que não apenas impõem os mo<strong>de</strong>los dominantes <strong>de</strong> família, <strong>de</strong> maternida<strong>de</strong> e <strong>de</strong><br />
felicida<strong>de</strong>, mas parecem, igualmente, <strong>fazer</strong> uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>fesa dos mo<strong>de</strong>los estéticos <strong>de</strong><br />
73
eleza. Já que associam às suas clínicas <strong>de</strong> RA, acompanhamentos estéticos durante o<br />
tratamento e até mesmo centros <strong>de</strong> cirurgia plástica. Tais relações abrem caminhos para outras<br />
pesquisas na área da reprodução humana assistida, visto que este campo a cada vez que se<br />
complexifica impõem novas perguntas e novas relações diretas com a organização da vida<br />
social.<br />
A metodologia empregada nesta monografia nos pareceu bastante frutífera, por<br />
possibilitar-nos agrupar diferentes fontes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo contexto. Estes diferentes<br />
materiais coletados e utilizados na construção do corpo analítico <strong>de</strong>ste trabalho nos permitiu<br />
ter uma maior visibilida<strong>de</strong> do campo das NTRc e dos diferentes discursos que as envolvem.<br />
Deste modo, construímos relações que se mostraram conectadas e que revelaram diferentes<br />
implicações na estrutura da vida social, implicações que ganham complexida<strong>de</strong> ao se<br />
misturarem representações sociais e avanços tecnológicos. Para mim foi interessante trabalhar<br />
<strong>de</strong>sta maneira, pois notamos como um único evento po<strong>de</strong> associar elementos tão distintos<br />
como o são a publicida<strong>de</strong>, as pesquisas médicas e os <strong>de</strong>sejos sociais por filhos. Revelando que<br />
o olhar sociológico <strong>de</strong>ve, cada vez mais, abranger os distintos elementos que se cruzam em<br />
meio à problemática <strong>de</strong> pesquisa.<br />
74
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implicações éticas, culturais e sociais sobre o uso <strong>de</strong> novas tecnologias reprodutivas. Porto<br />
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77
ANEXOS<br />
Tabela 1, referente aos especialistas das clínicas brasileiras 11<br />
Especialida<strong>de</strong> Masculino Feminino Total<br />
Ginecologia e obstetrícia 55 22 77<br />
Embriologia 04 22 26<br />
Urologia 18 - 18<br />
Genética 07 04 11<br />
Psicologia - 03 03<br />
Biologia 01 02 03<br />
Endocrinologia 02 - 02<br />
Direito 01 01 02<br />
Fisiologia - 02 02<br />
Pediatria - 02 02<br />
Ciência da computação - 02 02<br />
Cirurgia 02 - 02<br />
Química 01 01 02<br />
Radiologia 01 - 01<br />
Física 01 - 01<br />
Cardiologia - 01 01<br />
Clínica médica 01 01 01<br />
Farmacologia 01 - 01<br />
Enfermagem - 01 01<br />
Andrologia 01 - 01<br />
Biomedicina - 01 01<br />
Total 96 65 161<br />
Tabela 2: Meios em que os especialistas das distintas áreas envolvidas às RA publicam suas<br />
produções<br />
11 Lembrando que estas tabelas são frutos da pesquisa realizada por Diógenes Parzianello durante o processo <strong>de</strong><br />
iniciação científica edital 2007-2008<br />
78
Especialida<strong>de</strong> Revistas Jornais Congressos Total<br />
Ginecologia e<br />
obstetrícia<br />
135 126 157 418<br />
Embriologia<br />
Urologia<br />
Biologia<br />
Endocrinologia<br />
Genética<br />
Imunologia<br />
Cardiologia<br />
Psicologia<br />
Direito<br />
Enfermagem<br />
Andrologia<br />
Fisiologia<br />
Pediatria<br />
Ciência da<br />
computação<br />
Clínica médica<br />
Análises<br />
clínicas<br />
Radiologia<br />
Física<br />
Química<br />
Cirurgia<br />
Farmacologia<br />
21 78 81 180<br />
14 63 48 173<br />
- 23 03 26<br />
- - 23 23<br />
09 06 04 19<br />
02 03 12 17<br />
02 01 10 13<br />
01 02 07 10<br />
- 02 04 06<br />
- 05 - 05<br />
02 01 - 03<br />
02 - - 02<br />
02 - - 02<br />
- 02 - 02<br />
01 01 - -<br />
01 - - -<br />
01 - - -<br />
01 - - -<br />
01 - - -<br />
- 01 - -<br />
- 01 - -<br />
Farmácia- - 01 - -<br />
79
ioquímica<br />
Biomedicina - 01 - -<br />
80