24 Setembro/2009 Literatura Brasileira na Espanha Alberto Caeiro <strong>de</strong> Pessoa (o título barrosiano “O guardador <strong>de</strong> águas” alu<strong>de</strong> explicitamente a “O guardador <strong>de</strong> rebanhos”, <strong>de</strong> Caeiro) e na exploração obsessiva do intuitivo, do sensível e pré-consciente feita pela prosadora Clarice Lispector. Como Caeiro, Barros busca um ponto <strong>de</strong> vista que anule o sujeito, um mundo sem tempo, uma linguagem anterior à linguagem. Como Caeiro, Barros formula constantemente a poética que po<strong>de</strong>ria dar lugar a esse ponto <strong>de</strong> vista, a esse mundo e a essa língua. Porém Barros consegue realizar o programa que Caeiro só enuncia, afinando e <strong>de</strong>sviando a mirada, corrompendo o limite entre os seres, e violentando a língua, ainda que se trate, isso sim, <strong>de</strong> uma violência feita com enorme rigor e infinita <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za. Barros é da linhagem daqueles que percebem o estado <strong>de</strong> ruína do mundo, a inevitável fragmentação do sujeito, o <strong>de</strong>smoronamento <strong>de</strong> uma cultura e <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>; é dos que percebem também que a linguagem “normatizada” e “normatizadora” não faz outra coisa que encobrir retoricamente essas ruínas, fragmentos, escombros. O poeta é dos que sentem obscuramente que é por isso que é preciso inventar: não para dissimular o arruinado ou para reconstruílo, mas para habitá-lo com a maior dignida<strong>de</strong> possível e com toda atenção posta no que <strong>de</strong> iluminação, germinação ou alegria possa perceber-se em suas gretas. Se a retórica do realismo falsifica o mundo, Barros nos ensina que a poesia está do lado do conhecimento. Se é verda<strong>de</strong> que vivemos em estado terminal, Barros é dos que nos ensina a arte dos princípios. Outras ressonâncias presentes na obra <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros são os poetas da natureza, sobretudo Raul Bopp, em Cobra Norato. Mas se Bopp busca a magia numa espécie <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rência sensorial ao monumental da natureza, Barros a procura no ínfimo, no rés-do-chão, no <strong>de</strong>talhe, no fragmento minúsculo, insignificante à primeira vista, mas, ao mesmo tempo, prenhe <strong>de</strong> força significativa. Também Murilo Men<strong>de</strong>s ressoa no gosto barrosiano pelas imagens surpreen<strong>de</strong>ntes, em seu trabalho subversivo com a língua nessa mistura primorosa do lúdico e do onírico para fazer brotar o impossível. Para fechar o horizonte <strong>de</strong> influências, e tendo em vista que Barros é um poeta enormemente visual, uma referência a alguns pintores: ao olhar infantil e, ao mesmo tempo, irreverente <strong>de</strong> Miró, à <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za da linha sonhadora <strong>de</strong> Klee, à infinita ternura <strong>de</strong> Chagall, à precisão do insólito <strong>de</strong> Magritte. Todos esses ingredientes ressoam no poeta, porém dispersos e transformados em uma língua única e lentamente cultivada, nesse “dialeto manoelês archaico” que Barros constrói com os clássicos portugueses (Vieira, Camões), com os dialetos pantaneiros, com seu peculiaríssimo instinto linguístico, com operações verbais imensamente eficazes nas quais os verbos se tornam substantivos e vice-versa, os tempos se confun<strong>de</strong>m, a sintaxe se retorce, as palavras se chocam em contiguida<strong>de</strong>s que provocam fulgores inauditos… e isso com a ajuda das rãs, dos peixes, dos pássaros, dos rios, das árvores. Ainda que os primeiros livros tenham relação com a cida<strong>de</strong>, principalmente com o Rio <strong>de</strong> Janeiro, e aspirem a um lirismo genérico, relativamente in<strong>de</strong>finido, o universo genuíno <strong>de</strong> Barros é o Pantanal. Mas ele não é nem um paisagista nem um naturalista, sua poesia não tem nada <strong>de</strong> bucólico, e o Pantanal <strong>de</strong>le não constitui nem cenário folclórico nem material <strong>de</strong>scritivo, nem arsenal para uma retórica mais ou menos tingida <strong>de</strong> exotismo. A obra <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros é impossível sem o Pantanal, mas trata-se <strong>de</strong> um Pantanal que não é nada além do resultado <strong>de</strong> uma observação extremamente minuciosa e <strong>de</strong> uma elaboração poética e textual muito sofisticada. A natureza pantaneira está distanciada. Primeiro porque Barros volta a esse território <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma ausência prolongada durante a qual reúne o essencial <strong>de</strong> sua poética. Segundo, porque o Pantanal toma muitas vezes a forma nostálgica, da infância perdida, da ancestralida<strong>de</strong> irrecuperável. Terceiro, porque o universo pantaneiro aparece poeticamente filtrado por pontos <strong>de</strong> vista humanos, animais, vegetais e minerais altamente elaborados. O Pantanal <strong>de</strong> Barros é um mundo intocado e, ao mesmo tempo, profundamente humanizado; um mundo poético encantado feito <strong>de</strong> transformações permanentes, <strong>de</strong> hibridismos impossíveis, <strong>de</strong> inocências tão comovedoras quanto selvagens. Não se trata em absoluto <strong>de</strong> uma poesia “sobre” o Pantanal, senão <strong>de</strong> um trabalho com a língua, cheio <strong>de</strong> sutilezas, no qual se joga um “<strong>de</strong>vir Pantanal” do poeta e um “<strong>de</strong>vir poesia” do Pantanal que corrompe e amplia os limites do ser humano. Se a natureza do Pantanal é matériaprima, sua textura é poesia em estado puro. Sobre a tradução Este livro contém um punhado <strong>de</strong> versos, a dolorosa renúncia a muitos outros e o inevitável fracasso <strong>de</strong> sua tradução ao castelhano. Falarei dos versos e das renúncias. A maioria dos poemas selecionados pertencem aos cinco últimos livros <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros, aos publicados <strong>de</strong>pois da Gramática expositiva do solo. Poesia quase toda, que reunia sua obra até 1989. Trata-se, então, <strong>de</strong> uma antologia recente mais alguns versos anteriores aos quais não pu<strong>de</strong> resistir. Confesso que não incluí alguns poemas belíssimos porque não fui capaz <strong>de</strong> fazer legível em castelhano o caráter altamente idiomático <strong>de</strong> seu vocabulário. Há poemas em que as coisas e os animais têm uma importância primordial. E são precisamente coisas e animais que não existem aqui, que não têm nome entre nós, e me parecia feio encher o texto <strong>de</strong> notas <strong>de</strong> botânica e zoologia incapazes, além do mais, <strong>de</strong> dar a imagem ou as conotações tão bonitas e sonoras que evocam as palavras que os nomeiam no português. Na tradução há apenas uns urubus, sabiás, urucuns, gravanhas, pererecas e algumas espécies <strong>de</strong> garças. Outras renúncias,
inevitáveis em uma antologia breve, são as vozes poéticas que Barros constrói a partir <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> personagens que o acompanham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primeiros livros. Impossível dar uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sse poeta múltiplo que Barros compõe com as <strong>de</strong>scrições, os pedaços <strong>de</strong> fala ou os escritos <strong>de</strong> Bernardo, João, Aniceto, Água Boa, Felisdônio, Apuleio, Mario-Pega-Sapo, Ge<strong>de</strong>ón, Andaleço e tantos outros seres inocentes, poetas por natureza, tomados <strong>de</strong> infância e ternura. Impossível oferecer também os paratextos que acompanham o texto original, o modo como o poeta recorre a manuscritos, cartas, ca<strong>de</strong>rnos ou a <strong>de</strong>poimentos encontrados por acaso para emoldurar ou <strong>de</strong>scentrar suas iluminações verbais. Enfim, que este livro é algo assim como uma breve antologia recente <strong>de</strong> alguns dos poemas cuja tradução creio haver conseguido quase sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> notas, sem recorrer a paráfrases, tentando não <strong>de</strong>slocá-los sem muita perda <strong>de</strong> seu contexto, tratando <strong>de</strong> manter a extrema tensão linguística do poema e <strong>de</strong>ixando transparecer tanto a força do português como o extremo rigor das violências que o poeta faz com sua língua. JORGE LARROSA <strong>Secretaria</strong> <strong>de</strong> <strong>Estado</strong> <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> Suplemento Literário <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> Gerais 25 É leitor aficcionado e professor <strong>de</strong> Filosofia da Educação. Autor <strong>de</strong> La experiencia <strong>de</strong> la lectura, Pedagogia profana, Habitantes <strong>de</strong> Babel e Para una poética <strong>de</strong> la educación. Por todos os Cantos, Quarto 2008 collage 36m × 29,5m Por todos os Cantos, Cortina 2008 collage 36m × 29,5m