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Fasquias da Madeira

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1<br />

Trabalhos publicados do Autor<br />

As Desertas.<br />

Monografia de um grupo de ilhota. As Selvagens.<br />

As Selvagens<br />

Monografia de um grupo de ilhotas.<br />

O Funchal — 2.ª Edição.<br />

Publicação comemorativa do quadro centenário <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Os alicerces para a história militar <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

Conferencias no quartel do R. I. 27.<br />

Ascendência, naturali<strong>da</strong>de & mu<strong>da</strong>nça de nome de João Fernandes Vieira.<br />

Bosquejo histórico.<br />

As Migalhas — 2.ª Edição.<br />

Contos e esbocetos.<br />

Um ponto de história pátria.<br />

Conferencia no quartel do R. 1. 27.<br />

Historia Militar <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

Ensaio documentado.<br />

Corografia elementar do arquipélago <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

Noções mínimas.<br />

Homenagem a João Fernandes Vieira.<br />

Discurso na inauguração do seu monumento na ci<strong>da</strong>dã do Funchal.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>


2<br />

<strong>Madeira</strong> — 1801-02; 1807-14.<br />

Notas e documentos sobre a ocupação lnglesa.<br />

Santo António de Lisboa bosquejado na <strong>Madeira</strong>.<br />

No VII centenário <strong>da</strong> sua gloria.<br />

A <strong>Madeira</strong> e as praças de África.<br />

O esforço antigo madeirense.<br />

Noticia histórico militar sobre a Ilha do Porto Santo.<br />

Estudo sobre a primeira descoberta dos portugueses.<br />

Moe<strong>da</strong>s, selos, papel selado e me<strong>da</strong>lhas na <strong>Madeira</strong>.<br />

Elementos para os coleclonadores.<br />

As Freguesias <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

Colecção de monografias.<br />

Os Peixes dos Mares <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

Em colaboração com Adolfo de Noronha.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

Reunião de artigos locais.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Nos velhos troncos há o costume, pouco louvável, de deixar letras grava<strong>da</strong>s como recor<strong>da</strong>ção,<br />

um tanto enigmática e que na<strong>da</strong> representa, servindo muitas vezes de censura a quem as<br />

observa, mas que, por passatempo ou desfastio, não obstante o contra censo, se entretém a<br />

tirar-lhes um pe<strong>da</strong>cinho de casca, partir um ram úsculo, migar uma folha. Caímos na mesma,<br />

cortando talvez mais pelo lenho histórico, arrancando-lhe fibras, de diferentes tamanhos, que<br />

amarra<strong>da</strong>s num molho frouxo constituem as — <strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>


3<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

<strong>Madeira</strong> & Canárias<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

As Ilhas Canárias, conheci<strong>da</strong>s desde o tempo de Ptolomeu pelo nome de Afortuna<strong>da</strong>s, são um grupo de ilhas a que<br />

passaram, em tempos remotos, povos <strong>da</strong> costa africana próxima, oriundos de diferentes ramos, como se conclui <strong>da</strong><br />

colecção de crânios <strong>da</strong>s raças aborígenes, patentes no «Museo Canário».<br />

Nos velhos troncos há o costume, pouco louvável, de deixar letras grava<strong>da</strong>s como recor<strong>da</strong>ção, um tanto enigmática<br />

e que na<strong>da</strong> representa, servindo muitas vezes de censura a quem as observa, mas que, por passatempo ou desfastio, não<br />

obstante o contra censo, se entretém a tirar-lhes um pe<strong>da</strong>cinho de casca, partir um ram úsculo, migar uma folha. Caímos<br />

na mesma, cortando talvez mais pelo lenho histórico, arrancando-lhe fibras, de diferentes tamanhos, que amarra<strong>da</strong>s num<br />

molho frouxo constituem as — <strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

As Ilhas Canárias, conheci<strong>da</strong>s desde o tempo de Ptolomeu pelo nome de Afortuna<strong>da</strong>s, são um grupo de ilhas a que<br />

passaram, em tempos remotos, povos <strong>da</strong> costa africana próxima, oriundos de diferentes ramos, como se conclui <strong>da</strong><br />

colecção de crânios <strong>da</strong>s raças aborígenes, patentes no «Museo Canário».<br />

Na antigui<strong>da</strong>de clássica demoravam as Ilhas <strong>da</strong> Fortuna nos confins do mundo, para alem dos Montes Atlas, na<br />

mbreira <strong>da</strong> África norte-ocidental, vindo ain<strong>da</strong> nos portulanos <strong>da</strong>s descobertas indecisamente marca<strong>da</strong>s em seu número e<br />

osição relativa.


4<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

No século XIV, Luís de Ia Cer<strong>da</strong>, almirante de França e infante de Espanha, no desejo dum empreendimento para<br />

a dilatação do cristianismo, solicitou do papa Clemente VI, como chefe espiritual, que lhe concedesse a posse <strong>da</strong>quelas<br />

ilhas que formariam, pela conquista, um reino feu<strong>da</strong>tário <strong>da</strong> Santa Sé, e assim de antemão coroado, em Dezembro de 1344,<br />

ficou com o titulo de Príncipe <strong>da</strong> Fortuna.<br />

Quis o papa notificar a empresa a alguns príncipes cristãos para exortá-los a um auxilio conveniente, porém, de D.<br />

Afonso IV de Portugal recebeu, em resposta, uma carta <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de Montemor-o-Novo, em 13 de Fevereiro do ano imediato,<br />

na qual declara que já a essas ilhas tinha enviado, em tempos, alguns navios, e era sua intenção man<strong>da</strong>r explorá-las.<br />

As lutas na Península e na Europa, nesse período, fizeram com que fosse desvia<strong>da</strong> a atenção <strong>da</strong>s Afortuna<strong>da</strong>s, e<br />

Luís de Ia Cer<strong>da</strong>, sem oportuni<strong>da</strong>de de organizar a expedição pretendi<strong>da</strong>, nem tendo pago o estipulado tributo, ficou<br />

apenas um príncipe decaído de um estado que nunca possuíra.<br />

Ao alvorecer do século XV, um fi<strong>da</strong>lgo normando, João de Bethencourt 1 , fatigado <strong>da</strong>s guerras que o<br />

empobreceram, concebe também a conquista <strong>da</strong>s Canárias. Embarca com alguns companheiros au<strong>da</strong>ciosos na Rochela, em<br />

Maio de 1402; passa a Cádis; recebe assistência de Henrique III que o habilita a prosseguir, e deste modo chega, em Julho,<br />

á Ilha de Lançarote, onde é recebido pelo rei indígena, como um protector contra a fúria dos piratas <strong>da</strong> Costa Africana.<br />

Numa <strong>da</strong>s suas viagens ás Canárias, trouxera João de Bethencourt, seu sobrinho Maciot, a quem muito estimava<br />

como a filho que não tinha, <strong>da</strong>ndo-lhe cargos de provento, e quando determinou regressar a França para acudir aos<br />

desastres <strong>da</strong> sua pátria, entregou-lhe a jurisdição <strong>da</strong>s Ilhas, recomen<strong>da</strong>ndo-lhe uma política conciliadora e prudente.<br />

Estabelecido desde logo um tratado de paz e amizade, mandou construir um forte para maior segurança e defesa.<br />

Neste primeiro reconhecimento ficou-lhe sujeita também a Ilha de Forte-ventura.<br />

Não tendo Bethencourt, porém, gente nem recursos suficientes para um dominio eficaz, procurou obtê-los na<br />

Normandia e outras províncias, e segui<strong>da</strong>mente presta homenagem ao rei de Castela que lhe concede todos os recursos<br />

necessários.<br />

Submeti<strong>da</strong>s as ilhas <strong>da</strong> Gomeira e Ferro, passa a distribuir to<strong>da</strong>s as terras por fi<strong>da</strong>lgos e colonos normandos,<br />

flamengos franceses e espanhóis, os quais ficam dispensados durante nove anos, de to<strong>da</strong> a espécie de tributos, devendo,<br />

depois, ser pago o quinto dos frutos, crias e produções. Pessoa alguma podia negociar com a urzela, ficando-lhe assim


5<br />

reservado o monopólio do comércio deste liquene tintório que abun<strong>da</strong>va nas ilhas.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

De passagem em Valadovid, foi recebido em audiência por Henrique III, pedindo-lhe se interessasse e junto do<br />

papa Inocêncio VII, para a formação dum bispado nas Canárias, o qual pouco tempo depois, teve sede na Ilha de Lançarote<br />

com o titulo de S. Marcai de Rubicão, sufragàneo <strong>da</strong> arquidiocese de Sevilha.<br />

Na Ilha de Forteventura ficava já um templo dedicado a St.ª Maria de Betancúria 2 .<br />

De volta à Normandia, aguar<strong>da</strong>vam a João de Bethencourt bem tristes sucessos. As tropas inglesas assolam os<br />

seus domínios e o seu castelo de S. Martinho de Guillard é reduzido a um montão de ruínas. Maior dôr porém, foi ter<br />

conhecimento que seu irmão havia aderido ao partido estrangeiro que retalhava a França.<br />

Doente e reduzido a uma fraca mediania, veio a falecer, quase abandonado em Grainville, em 1425, ignorando os<br />

acontecimentos que se haviam desenrolado nas Canárias.<br />

O governo de Maciót de Bethencourt, loco-tenente de seu tio, usufrutuário e administrador <strong>da</strong>s ilhas conquista<strong>da</strong>s,<br />

foi no começo, avisado e sensato, mas logo passados os nove anos <strong>da</strong> isenção inicial dos tributos, tornou-se um senhor<br />

despótico e intolerante, procedendo á cobrança com vexames, castigando barbaramente os insubmissos e man<strong>da</strong>ndo até<br />

vender alguns indígenas, como escravos, enviados aos portos de Espanha.<br />

baixas.<br />

A sua ambição porém, foi mal sucedi<strong>da</strong> nas correrias que organizou às ilhas maiores, onde as suas forças sofreram<br />

A prolonga<strong>da</strong> falta de noticias <strong>da</strong> Normandia, num período calamitoso de guerra e o silencio absoluto de João de<br />

Bethencourt que, de há muito não mais enviava os reforços prometidos, fizeram crer que era morto o soberano <strong>da</strong>s Ilhas<br />

Afortuna<strong>da</strong>s.<br />

Não toleravam os prelados rubiconenses os demandos e as atroci<strong>da</strong>des cometi<strong>da</strong>s, que redun<strong>da</strong>ram em descrédito<br />

<strong>da</strong> religião de paz que apregoavam. Maciote, exortado, acedeu a tomar por esposa a princesa Teguise, filha do antigo rei de<br />

Lançarote, com quem vivia, mas não punha freio a outros escân<strong>da</strong>los e injustiças de muito descontento, o que fez com que<br />

o terceiro bispo, mais austero, representasse à rainha D. Catarina, regente na menori<strong>da</strong>de de seu filho D. João II, a qual<br />

delegou o conhecimento de causa e aplicação <strong>da</strong> justiça, no conde de Niebla que, por sua vez, enviou D. Pedro de Barba<br />

numa inquirição aos capítulos apresentados contra o administrador geral do novo reino, feu<strong>da</strong>tário de Castela.


6<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Quando a arma<strong>da</strong> <strong>da</strong> correição aportou a Lançarote, suspeitando Maciot a intenção com que vinha, dissimulou<br />

tranquilamente o sobressaio, e recebendo a Pedro de Borba com magnificência, conseguiu agra<strong>da</strong>r, entabolar negociações<br />

com tanta habili<strong>da</strong>de, que foi aceite a proposta de um tratado de cedência e renúncia dos seus poderes sobre as ilhas, com<br />

a condição porém, de continuar no seu governo e administração, enquanto vivo fosse.<br />

Quebrou-se a alça<strong>da</strong> em seu propósito e o juiz presidente convidou a Maciot a acompanha-lo a Espanha, afim de<br />

ficar estabelecido um plano de conduta. O conde de Niebla aceitou a proposta <strong>da</strong> governação, contanto que se lavrasse uma<br />

escritura <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> territorial <strong>da</strong>s ilhas.<br />

O anterior direito de João de Bethencourt parece assim, ter já sido caducado pelo abandono, pois este acordo<br />

mereceu a confirmação régia.<br />

As liberali<strong>da</strong>des do soberano e pontífice nessa época, por vezes se entrechocavam. D. João II de Castela faz mercê<br />

em 1420, do domínio <strong>da</strong>s Ilhas Afortuna<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> por conquistar, a D. Afonso de Ias Casas, com assentimento do papa.<br />

Daqui nasceu uma longa disputa com o conde de Niebla que, senhor <strong>da</strong>s ilhas menores, se arrogava o direito imediato de<br />

intervir na submissão <strong>da</strong>s outras ilhas Canárias.<br />

Por esse tempo, encaminhados como fossem «em busca de terra de Guinee, chegaram á Ilha do Porto Santo, dois<br />

escudeiros nobres, portugueses, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, a quem o Infante D. Henrique, vendo suas boas<br />

vontades, mandou aparelhar uma barca para se irem, e em ano seguido se passaram à Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, de guisa que em<br />

muy breve tempo foe grande parte <strong>da</strong>quella terra aproveita<strong>da</strong>», como diz Azurara.<br />

Um temporal, os levou. João de Barros, na Déca<strong>da</strong> I, pretende explicar a razão, de não terem sido anteriormente<br />

descobertas, e diz assim: — «como os marinheiros naquelle tempo nam erã costumados a se engolfar tanto no peguo do<br />

mar & to<strong>da</strong> sua navegaçam era per singraduras sempre a vista de terra» — não admira portanto que, sendo as Ilhas<br />

Afortuna<strong>da</strong>s já, em séculos anteriores, conheci<strong>da</strong>s e povoa<strong>da</strong>s 3 , estivessem ain<strong>da</strong> desertam estas nossas ilhas,<br />

relativamente próximas.<br />

Era de mais afinco para o Infante D. Henrique, a expansão de conquista, liga<strong>da</strong> á dilatação <strong>da</strong> fé, que deveria ser<br />

leva<strong>da</strong> a gente barbara, ain<strong>da</strong> mesmo a terras remotas. As noticias confusas que deixaram escritores antigos, queria aclaralas<br />

também, para os seus estudos <strong>da</strong> comografia. Na ordem de Cristo, como grão-mestre, tinha ao seu dispor grossa ren<strong>da</strong><br />

para a execução dos seus planos, dirigindo a navegação para o sul, ao longo <strong>da</strong> costa ocidental de África, mas logo abaixo


7<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, demoravam as Ilhas Afortuna<strong>da</strong>s, que seu bisavô, o rei D. Afonso IV, man<strong>da</strong>ra reconhecer por expedições<br />

portuguesas, antes <strong>da</strong> concessão pontifícia a Luís de Ia Cer<strong>da</strong> para as trazer á fé, pela força de suas armas.<br />

Era a continuação duma iniciativa nacional. Assim, «determinou o Infante dom Henrique por louor de Deos as<br />

mã<strong>da</strong>r conquistar & trazer ao baptismo os seus moradores. Pêra a qual obra se fez húa arma<strong>da</strong> o anno de quatro centos &<br />

vinte quatro em que forão dous mil & quinhentos homês de pé & cento & vinte de cavallo: & por capitão mor dom<br />

Fernando de Castro, governador de sua casa, padre de dom Álvaro de Castro Conde de Monsanto & camareiro mor dei Rey<br />

dõ Affonso o quinto deste nome».<br />

Progredia a colonização na <strong>Madeira</strong>, tendo logo importância, os seus primeiros núcleos, no Funchal e em Machico,<br />

como portos de mantimento e de socorro necessário às nossas caravelas 4 .<br />

As relações mútuas entre Portugal e Castela an<strong>da</strong>vam mal defini<strong>da</strong>s. O acordo para uma paz segura seguia num<br />

rodeio de dificul<strong>da</strong>des, e a sua confirmação, longamente adia<strong>da</strong>, conduzia a um instável entendimento, em que as armas se<br />

não depunham serenamente.<br />

Desde 1411 se estatuirá na regência de D. Catarina, que seu filho D. João II de Castela confirmaria, em chegando á<br />

maiori<strong>da</strong>de, as clausulas do tratado, mas os embaixadores encontravam sempre dúvi<strong>da</strong>s e embaraços na sua missão.<br />

Só em 1431, a paz se firmou solenemente em 30 de Outubro, em Medina dei Campo, ratifica<strong>da</strong> em Portugal, em<br />

Almeirim, a 17 de Janeiro de 1432.<br />

As velas portuguesas mercadejavam na Ilha de Lançarote, abastecendo-se de gado, peles, cêbo, pescado, fruta, etc,<br />

nas melhores relações com Maciot de Bethéncourt que lhes estabaaficionado ai trato 5 não se lhe <strong>da</strong>ndo o intento a que<br />

vinham de submeter as outras ilhas infiéis, onde por experiência sabia as dificul<strong>da</strong>des de conquista.<br />

E assim foi. Ás repeti<strong>da</strong>s incursões portuguesas ali realiza<strong>da</strong>s e momentânea posse de alguns portos do litoral, não<br />

compensava o enorme dispêndio em serem mantidos, tanto mais que, depois, um novo horizonte se abria, dobrado além o<br />

Cabo Bojador.<br />

Por seu lado, D. Afonso de Ias Casas, concessionário <strong>da</strong>s restantes Ilhas Afortuna<strong>da</strong>s, não tivera ensejo de reunir<br />

as forças precisas para uma expedição ás ilhas de Palma, Grã-Canária e Tenerife que lhe haviam sido prometidos pelo rei<br />

de Castela se as conquistasse, e contemplava, de longe, o mal-contento do esforço português.


8<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Não pensou assim, mais tarde, o herdeiro dessa concessão, seu filho, Guillen de Ias Casas, casado com D. Inês de<br />

Bracamonte, sobrinha de Bethencourt, o Grande, que, comprando o domínio ao conde de Niebla, conjugou múltiplos<br />

direitos sobre as Ilhas Canárias, quer as conquista<strong>da</strong>s, quer por conquistar, en obséquio de Ia santa fé y de Ia Corona (de<br />

Castela).<br />

Guillen entendeu-se com seu primo Maciot, a quem conservou o governo e usufruto <strong>da</strong> Ilha de Lançarote, mas não<br />

via bem que as caravelas do Infante D. Henrique an<strong>da</strong>ssem naquelas águas com intentos de domínio.<br />

Opor-se abertamente seria temeri<strong>da</strong>de. Achou mais prudente delegar em seu soberano a disputa, para que fosse<br />

resolvi<strong>da</strong> com acerto conveniente.<br />

Ao concilio de Basileia enviou D. Duarte uma embaixa<strong>da</strong> que em 1436 discutiu a questão <strong>da</strong> posse <strong>da</strong>s Canárias.<br />

As alegações apresenta<strong>da</strong>s pelos portugueses, segundo o extracto do Quadro Elementar <strong>da</strong>s Relações Diplomáticas<br />

(Tomo X), limitam-se a três pontos capitais:<br />

1.°— que as ilhas ocupa<strong>da</strong>s pertencem aos primeiros ocupantes e que não o tendo sido as ilhas Canárias por<br />

nenhum príncipe católico, ocupando-as agora o rei de Portugal, a ninguém prejudicava.<br />

2.° — que para adquirir quaisquer ilhas não há senão dois modos,—ocupação e vizinhança. Estão as Canárias mais<br />

próximas do Cabo de S. Vicente, extremo terrestre de Portugal, do que qualquer possessão de Castela.<br />

3.°— que os habitantes <strong>da</strong>s ilhas ain<strong>da</strong> não receberam a fé católica, e por isso que os portugueses, desejando<br />

ensinar-lha, não devem ser embaraçados no intento.<br />

As alegações de Castela mostram que as Canárias lhe pertenciam pelo mesmo fun<strong>da</strong>mento, porque lhe pertence a<br />

Tingitànea, de que fazem parte, que é a terra mais próxima, antiga possessão dos reis godos, e que sendo os de Castela<br />

direitos descendentes deles, preferem ao reino de Portugal; que estava já ocupa<strong>da</strong> a Ilha de Lançarote com intenção de<br />

ocupar as mais, porque é certo que em coisas semelhantes, basta tomar a parte para se depreender a intenção de absorver<br />

o todo...<br />

O papa Eugénie IV dirigiu então a D. Duarte, uma extensa bula, em 31 de Julho de 1436, aconselhando que<br />

examinasse bem as antigas letras apostólicas, não intentando cousa alguma em prejuízo do rei de Castela ou de qualquer<br />

outro, que pudesse vir a prejudicar a paz.


9<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A decisão pontifícia foi mais um pedido, do que uma sentença desse tribunal supremo que se via assoberbado,<br />

nesse tempo, com as graves questões religiosas que dividiam a Igreja.<br />

Por morte de Guillen de Ias Casas, coube o domínio <strong>da</strong>s Ilhas Canárias e sua filha D. Inês, casa<strong>da</strong> com Fernão<br />

Peraça, nobre sevilhano que se apresentou com a ostentação de um rei, a tomar posse do património de sua mulher, e<br />

pouco depois, armando três fragatas com numerosa gente de desembarque, enviou seu filho á conquista <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> Palma,<br />

malogrado intento, em que este perdeu a vi<strong>da</strong> e as per<strong>da</strong>s castelhanas foram consideráveis.<br />

Fernão Peraça, ferido pela desdita, tornou-se despótico e rancoroso, oprimindo os naturais com pesados tributos e<br />

reduzindo-os até á condição de escravos.<br />

Maciot de Bethencourt, na sua Ilha de Lançarote, habilmente contrastava no procedimento, isentando do quinto<br />

to<strong>da</strong>s as mercadorias que fossem leva<strong>da</strong>s ás outras ilhas e mostrava-se indulgente e generoso.<br />

Assim, nasceram rivali<strong>da</strong>des e conten<strong>da</strong>s que se atearam a tal ponto, que Peraça levantou um pleito sobre a razão<br />

que lhe assistia em tomar a administração de to<strong>da</strong>s as ilhas conquista<strong>da</strong>s, querendo derrogar a concessão de seu sogro a<br />

Maciot, por este ultrapassar o direito de usufrutuário, contrapondo-se ao seu senhorio territorial.<br />

Por outro lado, Maciot, remontando á efectivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ocupação <strong>da</strong>s quatro ilhas menores, por seu tio João de<br />

Bethencourt, demonstrava ter sido o seu depositário, continuador e loco-tenente, e se ven<strong>da</strong> fizera ao conde de Niebla, era<br />

essa contrária ao direito, e fora um acto de coação duma alça<strong>da</strong> que não o inculpou, não tivera execução, nem proferira<br />

sentença.<br />

Desgostoso com o caminho de represálias que a questão tomava e receoso <strong>da</strong> influência dos Peraças na Corte de<br />

Castela, tomou uma resolução bem estranha, propondo a ven<strong>da</strong> de todos os seus direitos sobre as Ilhas Canárias, ao<br />

Infante D. Henrique de Portugal.<br />

De algum modo, parece que Zarco foi o intermediário dessa proposta. Para esto pasó un religioso de Lanzarote a la<br />

<strong>Madeira</strong>. (Clavijo—Tomo 2.°).<br />

Em 1446, pede o Infante ao Regente D. Pedro, seu irmão, que lhe desse carta, defendendo que ninguém tratasse de<br />

ir ás Canárias sem sua autorização e lhe fosse concedido o quinto de qualquer coisa que de lá viesse 6 .


10<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

É um sobrinho de Zarco, o plenipotenciário enviado à Ilha de Lançarote com duas caravelas, levando gente de<br />

armas, <strong>da</strong> justiça e administração para firmar o contrato <strong>da</strong> compra, tomar posse, distribuir os cargos e oferecer residência<br />

na Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> á família de Maciot de Bethencourt.<br />

Na Ilha Gomeira, descontentes os seus naturais com o governo de Fernão Peraça, pretenderam a independência,<br />

mas não tendo elementos para esta realização, o partido indígena buscou o apoio dos portugueses, y alzaran la tierra por el<br />

infante don Enrique de Portugal.<br />

Esta facção, sob protectorado, foi-nos proveitosa, pois sendo os gomeiros inimigos dos habitantes <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong><br />

Palma, tornaram-se auxiliares valiosos para as investi<strong>da</strong>s que sobre esta ilha, por vezes, se executaram na mira de<br />

escravos, empresa em que alguns sesmeiros madeirenses também se aventuravam para obter braços possantes trazidos ás<br />

suas terras de cultivo. As caravelas <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> se tornaram <strong>da</strong>li, porque parece serem somente i<strong>da</strong>s á cata de<br />

palmenses 7 .<br />

Em ver<strong>da</strong>de a ambição de alguns navegadores, quando a sorte lhes não corria em to<strong>da</strong> a mercê 8 excedeu o que era<br />

de esperar do seu cavalheirismo, tomando também na Ilha Gomeira cativos, — procedimento que tornou o «Iff.te muy<br />

iroso contra aquelles capitãaes» — e para <strong>da</strong>r um exemplo de magnanimi<strong>da</strong>de, os acolheu, em carinho, man<strong>da</strong>ndo-os<br />

vestir á maneira de Portugal, e muy contentes com as mercês e dádivas que lhes deu, se tornaram pela <strong>Madeira</strong>,<br />

aguar<strong>da</strong>ndo as caravelas de Tristão Vaz, capitão de Machico, e Garcia Homem, genro de Zarco, na arma<strong>da</strong> que se dirigia às<br />

Canárias.<br />

Queixaram-se Fernão Peraça e sua mulher, a D. João II de Castela, <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> que Maciot de Bethencourt havia<br />

feito ao Infante D. Henrique de Portugal, e <strong>da</strong> posse que este man<strong>da</strong>ra efectuar <strong>da</strong> Ilha de Lançarote, invadindo o seu<br />

território e protegendo a insurreição de alguns chefes indígenas na Ilha Gomeira.<br />

A questão era melindrosa, pois de novo se tratava de resolver a legitimi<strong>da</strong>de dos direitos. Tomou o rei de Castela o<br />

expediente singular de fazer uma consulta aos lançarotenses mais grados, para o informarem, desapaixona<strong>da</strong>mente, sobre<br />

o que lhes parecia de mais justo, e obteve a curiosa resposta de que não eram letrados, a quem pertencesse pesar as razões<br />

<strong>da</strong>s partes, para poder decidir.<br />

O Conselho <strong>da</strong> Coroa tomou então conta do caso, propondo a nomeação dum administrador-depositário <strong>da</strong>s<br />

ren<strong>da</strong>s, até que ficasse resolvido o conflito de jurisdição, sendo por este motivo entabola<strong>da</strong>s negociações de carácter


11<br />

reservado, com o rei de Portugal.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

D. Afonso V que então reinava, amolou a paciência dos diferentes embaixadores com intermináveis delongas,<br />

pedindo documentos e mais documentos justificativos de to<strong>da</strong>s as concessões acerca <strong>da</strong>s Canárias, e por ultimo queria que<br />

Fernão Peraça se embarcasse a Lisboa, a deduzir os seus direitos, convite a que este não acedeu.<br />

Neste estado de ânimos, deram-se actos de hostili<strong>da</strong>de, entre embarcações portuguesas e castelhanas, nos mares<br />

<strong>da</strong>s Canárias e <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, fomentando-se de parte a parte, revoltas ao domínio territorial. Os lançarotenses não tomaram<br />

a bem a ordem para não correr mais na ilha a moe<strong>da</strong> castelhana e, ain<strong>da</strong>, a mu<strong>da</strong>nça nos pesos e medi<strong>da</strong>s, para outros dos<br />

padrões portugueses.<br />

Castela enviara à Ilha de Lançarote um comissário régio com funções de secuestrario, e uma ultima embaixa<strong>da</strong>,<br />

em 1451, a Portugal, que desta vez parece ter sido atendi<strong>da</strong>, como afirma um historiador castelhano:<br />

«En resolucion de todo, el Soberano les prometió <strong>da</strong>ria sus ordenes para que el infante don Enrique su tio, no se<br />

entrometiese en lo sucesivo en la jurisdiccion de las islãs de Lançarote y Gomera» 9 .<br />

João de Barros, porém, quando fala no abandono <strong>da</strong>s Canárias pelo Infante, apenas diz:<br />

«mais era por salvar as almas dos seus moradores pagãos, que por algum proveito que delias tivesse & muitas<br />

despesas, não prosseguiu mais».<br />

Fernão Peraça não chegou a tomar posse <strong>da</strong> Ilha de Lançarote, porque a morte o veio surpreender em 1452,<br />

deixando uma filha, também Inês, nome materno, casa<strong>da</strong> com Diogo Herrera que se habilitou à ilha sequestra<strong>da</strong>, porém,<br />

os seus habitantes achavam-se bem sob o domínio directo de Castela e fizeram-lhe oposição, sustentando uma deman<strong>da</strong><br />

complexa, em que Maciot é embrulhado como vendedor <strong>da</strong> Ilha a um príncipe estrangeiro.<br />

A sentença do Tribunal em Valadolid, de 30 de Junho de 1454, condena-o ao pagamento de 3.351 maravedis e não<br />

o fazendo, fossem seus bens confiscados, ficando decidido o pleito a favor dos Herreras.<br />

Com isso, pouco se lhe deu Maciot de Bethencourt que, há anos já, se achava no Funchal, com sua filha segun<strong>da</strong> D.<br />

Maria, e dois sobrinhos, Henrique e Gaspar, gozando <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> de 20.000 reis anuais, estipula<strong>da</strong> na escritura além do lucro<br />

variável proveniente <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> do sabão preto na Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.


12<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O Infante D. Henrique tinha o privilégio de todo o sabão, que lhe fora confirmado em 17 de Setembro de 1455, por<br />

el-rei, seu sobrinho, ninguém o podendo fabricar nem introduzir de fora do reino, sem sua ordem 10 .<br />

A D. João II de Castela sucedeu seu filho Henrique IV, em 1454, príncipe precocemente gasto, que tomou por<br />

segun<strong>da</strong> esposa, a lin<strong>da</strong> infanta portuguesa D. Joana, irmã de D. Afonso V.<br />

Tão jubiloso se mostrou o novo rei de Castela com a embaixa<strong>da</strong> que conduziu a futura rainha, que fez mercê ao<br />

conde de Atouguia, chefe <strong>da</strong> missão, <strong>da</strong>s ilhas maiores <strong>da</strong>s Canárias que ain<strong>da</strong> estavam por conquistar, empresa em que<br />

este se não meteu por falta de recursos.<br />

Diogo de Herrera ressentiu-se desta munificiência, tanto mais que por sentença se julgava sem competidores e<br />

esforçou-se assim, de avanço, por intentar a ocupação ou pelos menos efectuar um tratado de amizade com os reis de Grã-<br />

Canária e Tenerife.<br />

Para esse fim, organizou uma expedição de aparato, fazendo assegurar, por meio de um intérprete, que não<br />

desejava cometer nenhum acto de hostili<strong>da</strong>de, antes realizar um convénio de permutas, e regalando os chefes indígenas<br />

com oferen<strong>da</strong>s, mostrou a melhor amizade. Assim foram lavrados os autos duma pretendi<strong>da</strong> submissão, para que a todo o<br />

tempo constasse.<br />

Não durou longo tempo, porém, esta farça, pois voltando mais tarde com intenções de domínio, foi o sucesso vário<br />

e renhidos os combates, com notáveis per<strong>da</strong>s de parte a parte.<br />

Depois <strong>da</strong> morte do Infante D. Henrique, em 1460, tomou conta do Mestrado, seu sobrinho D. Fernando, a quem<br />

havia por filho adoptivo e herdeiro de seus bens, o que fora confirmado por D. Duarte e D. Afonso V.<br />

O duque D. Fernando era dum caracter insubmisso, impaciente, empreendedor e ambicioso.<br />

Muito lhe agradou a ven<strong>da</strong> que lhe fez o conde de Atouguia, dos direitos ás ilhas infiéis <strong>da</strong>s Canárias, com que o<br />

liberal Henrique IV, num momento de boa disposição, o havia mimoseado.<br />

Foi como tivesse recebido esses direitos na herança do Infante D. Henrique, para continuar a empresa<br />

interrompi<strong>da</strong>.


13<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Em 1466, saíram as caravelas, na expedição ás Canárias, sob o comando de Diogo <strong>da</strong> Silva. Depois de aportarem a<br />

Lançarote e Forte Ventura, carregaram sobre a Gran Canária, onde Herrera tinha man<strong>da</strong>do construir um extenso reduto<br />

guarnecido por forças castelhanas, que foram toma<strong>da</strong>s pelos portugueses como usurpadoras, e a breve trecho se renderam.<br />

Com este ponto de apoio e novos reforços em gente e viveres <strong>da</strong> caravela de Pedro Feio, melhor se estabeleceu<br />

Diogo <strong>da</strong> Silva para impor-se aos naturais, mas estes recuavam para as montanhas escarpa<strong>da</strong>s, cobertas de arvoredo, onde<br />

temerário seria persegui-los.<br />

Os castelhanos entabularam negociações para o resgate do forte e a restituição se efectuou em bom acordo,<br />

ficando ajustado o casamento de Diogo <strong>da</strong> Silva com D. Maria Ayala, filha de Diogo Herrera que a dotou com um terço <strong>da</strong>s<br />

ren<strong>da</strong>s de Lançarote e Forte Ventura.<br />

Sogro e genro determinaram depois uma expedição conjunta à Grã-Canária, em que as forças portuguesas, cerca<br />

de 800 homens de armas, efectuaram um desembarque ao raiar <strong>da</strong> aurora. As atalaias deram o rebate, conservando-se os<br />

indígenas nas alturas em defensiva. Deixaram avançar a coluna em terreno escarpado e coberto, e pela retaguar<strong>da</strong><br />

pegaram fogo na mata, interceptando a retira<strong>da</strong> que a custo se efectuou entre escaramuças sangrentas.<br />

Não menos feliz foi a coluna castelhana que não conseguiu atingir o seu objectivo estratégico, fustiga<strong>da</strong> numa<br />

saraiva<strong>da</strong> de <strong>da</strong>rdos e calhaus rolados que se despenhavam na sua marcha, até que se recolheu aos bateis.<br />

«Asi se concluyó esta empresa ruidosa, com horror de los canários, desabrimiento de los espanoles, y disgusto de<br />

los portugueses».<br />

D. Fernando aquietou-se nas conquistas por conta própria, ante o insucesso <strong>da</strong> Grã-Canária, pelos dispêndios tão<br />

inferiores ao proveito e compromissos antigos que estava a satisfazer, como vêem apontados na «Historia Genealógica».<br />

Ain<strong>da</strong> seu filho D. Manuel, quando duque de Beja, incluía nas obrigações her<strong>da</strong><strong>da</strong>s, as dívi<strong>da</strong>s do Infante D. Henrique, cujo<br />

neto adoptivo era, menciona<strong>da</strong>s na crónica deste rei, por Damião de Góis.<br />

Os sacrifícios em gente e dinheiro que Diogo Herrera mantinha, alegados para trazer á fé os infiéis, levaram-no a<br />

representar amigablemente en la corte de Lisboa sus derechos, e D. Afonso V mandou suspender um nuevo armamento<br />

que el infante don fernando tenia pronto, era 1469.<br />

Igual demonstração de zelo maadára subir ao trono de Henrique IV, fazendo crer na submissão <strong>da</strong>s ilhas de Grã-


14<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Canária e Tenerife, com informe confirmado pelo arcebispado de Sevilha, a quem estavam, no espiritual, sujeitas as novas<br />

conquistas castelhanas e assim, no meio dos lamentáveis desatinos e intriga <strong>da</strong> Corte, o fraco rei versátil man<strong>da</strong>va anular<br />

as doações que havia feito <strong>da</strong>s Canárias, ao Conde de Atouguia.<br />

Esta inconstância doentia de opinião, negando até, e afirmando, por vezes, que a princesa D. Joana era sua filha,<br />

abreviaram-lhe a existência, talvez mina<strong>da</strong>, deixando o reino numa confusão de partidos.<br />

D. Afonso V foi pela sobrinha, conforme lhe pedia no testamento, o rei defunto, e envia a D. Fernando e D. Isabel,<br />

— seus antagonistas, — por embaixador, a Rui de Sousa, demonstrando que estava obrigado a sustentar os direitos de D.<br />

Joana á coroa de Castela e se os não reconhecessem, recorreria imediatamente á força <strong>da</strong>s armas.<br />

Assim foi. Deixando como Regente, seu filho D. João, o monarca português, á frente dum corpo de exército,<br />

passou a Placência, onde efectuou o casamento com a rainha D. Joana em Maio de 1475, intitulando-se reis de Castelã e<br />

Portugal.<br />

Em 1476 feriu-se á batalha de Toro, com desvantagem para os portugueses. Decaído o partido de D. Joana e<br />

sofrendo os exércitos, sucessivas per<strong>da</strong>s, deram azo a que se falasse na paz, sendo intermediária, a infanta D. Beatriz, viúva<br />

do Duque D. Fernando.<br />

Nesse acordo ficou estipulado:<br />

1.° Que el-rei D. Afonso e D. Joana desistiriam do titulo de reis de Castela e de Leão.<br />

6.° Que as conquistas, desde o Cabo de Não até as índias, com os mares e ilhas adjacentes, ficariam em poder dos<br />

portugueses e as Canárias e a conquista de Grana<strong>da</strong> aos castelhanos.<br />

Na Ilha de Lançarote, <strong>da</strong>va-se em 1476 uma revolta contra o governo de Diogo Herrera, pelas infrutíferas levas de<br />

combate contra os indígenas <strong>da</strong> Grã-Canaria e Tenerife, onde a carnificina era assustadora e ain<strong>da</strong> para a Costa de África<br />

próxima, ás posições de Mar Pequeno. A população estava exausta de tributos e de sacrifício de vi<strong>da</strong>s. Domina<strong>da</strong> a<br />

revolução, doce vecinos arrestados perdieron la vi<strong>da</strong> en la horca, muitos se escaparam para a Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> 11 , outros,<br />

tentando a viagem, caíram em poder de um navio português e, em dezembro desse ano, dá-se o reverso — outra caravela<br />

de la referi<strong>da</strong> nación, entonces enemiga de la corona, la apresaron los vecinos (Lançarote) por fuerza o por industria y se<br />

aseguraron de la tripulacion g y la carga.<br />

Na Grã-Canaria, neste período, os portugueses eram recebidos como amigos, pois aju<strong>da</strong>vam os naturais a


15<br />

defender-se dos castelhanos.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

As desordens <strong>da</strong>s Canárias ti verão eco na corte de Castela. D. Fernando e D. Isabel tomaram a resolução de unir á<br />

sua coroa as ilhas maiores, man<strong>da</strong>ndo empreender por conta do erário régio a definitiva conquista, e para indemnizarem<br />

Diogo Herrera e sua mulher dos seus direitos e dispêndios feitos, man<strong>da</strong>ram-lhes pagar uma soma estipula<strong>da</strong> pelo seu<br />

Real Conselho, agraciando-os, ao mesmo tempo, com o titulo de Condes de Gomeira.<br />

A conquista definitiva <strong>da</strong>s Canárias, a heróica resistência dos naturais, e a sede de extermínio dos infiéis,<br />

constituem uma página sangrenta de tragédia, dita<strong>da</strong> na época, pela torvação dos espíritos.<br />

Duas nações rivais ambicionavam o domínio do mundo, como únicas herdeiras dum pretenso direito, e ain<strong>da</strong><br />

assim, não se contentavam as partes, buscando ca<strong>da</strong> qual, um quinhão mais apetecido.<br />

Atento à rota dos navegadores portugueses, vivia no Funchal, por onde passavam as caravelas á conquista, um<br />

jovem estrangeiro, Cristovão Colombo, protegido dum nobre flamengo que o elevou no meio <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia insulana,<br />

podendo assim vir a casar com D. Felipa Moniz, que residia em Machico e era filha do falecido donatário do Porto Santo,<br />

Bartholomeu Perestrelo, e aparenta<strong>da</strong> com Tristão Vaz Teixeira. Há fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s suposições que Colombo, com as suas<br />

tendências náuticas se embarcasse nos navios <strong>da</strong>quela capitania que velejavam ás Canárias, e que também, na praia do<br />

Porto Santo, considerasse nos despojos que o mar trazia duma flora desconheci<strong>da</strong>.<br />

Este homem de engenho, entendido um tanto na cosmografia, como predestinado, pretende a descoberta duma<br />

nova terra aparta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s três partes já conheci<strong>da</strong>s. Em 1485, chega a Lisboa a oferecer os serviços a D. João II que<br />

empenhado como estava no caminho <strong>da</strong> índia, mandou estu<strong>da</strong>r o fun<strong>da</strong>mento dessa proposição, toma<strong>da</strong> por quimera no<br />

Conselho de Estado. Não desanimou Colombo. A Henrique VII de Inglaterra e a Fernando e Isabel de Castela faz ver o seu<br />

plano, que após anos de delongas é patrocinado por esta rainha.<br />

Em 1493, já de regresso <strong>da</strong>s Antilhas, entra trazi<strong>da</strong> do vento a frota de Colombo, no porto de Lisboa. Um<br />

sobressalto se apoderou do monarca arrependido <strong>da</strong> sua recusa e cioso <strong>da</strong> glória leva<strong>da</strong> a vizinhos. Esteve para o man<strong>da</strong>r<br />

prender e foi mesmo alvitra<strong>da</strong> a condenação á morte, «pela irrupção d'inimigos em terras patrimoniaes <strong>da</strong> nação». D. João<br />

II considerou, porém, ter sido o próprio responsável, há oito anos, <strong>da</strong> recusa, e por isso, o mandou em paz, enchendo-o de<br />

benefícios.<br />

Colombo era pelos laços de família, e pelas recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> juventude, um madeirense. Sofreu e calou, mas á terra


16<br />

onde primeiro sonhara uma aurora de oiro e de grandezas, não mais voltou.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

No entanto, achando-se próximo á costa de África e sabendo do aperto em que se achava a praça de Argila,<br />

defendi<strong>da</strong> especialmente pelos madeirenses, deu-lhe um toque na alma, e para ali velejou, sendo a presença <strong>da</strong> arma<strong>da</strong><br />

suficiente para que os mouros levantassem o cerco.<br />

Toma as Canárias por fulcro de to<strong>da</strong>s as suas viagens e numa, até se retar<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r caça a piratas, obrigando-os<br />

a abandonar uma presa de duas caravelas que tinham tomado na costa, protegendo-as na a portagem deseja<strong>da</strong>.<br />

Logo depois <strong>da</strong> primeira viagem de Colombo e <strong>da</strong> descoberta <strong>da</strong>s opulentas terras do Ocidente, D. João II de<br />

Portugal quis man<strong>da</strong>r verificar se estariam a dentro dos limites marcados de pertença á activi<strong>da</strong>de dos seus navegadores, o<br />

que sabendo os Reis Católicos, logo protestaram contra tal projecto, alegando a plena liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> navegação por esses<br />

mares.<br />

Questões desta natureza entre príncipes cristãos tiveram o papa por medianeiro que decidiu dividir o mundo em<br />

dois quinhões, bipartindo-o por uma linha corri<strong>da</strong> de pólo a pólo, a passar a 370 léguas a ocidente de Cabo Verde.<br />

Concor<strong>da</strong>ndo nesta convenção, foi assinado em 1494 o tratado de Tordesilhas, como se mais nenhuma nação<br />

tivesse direito a procurar as terras desconheci<strong>da</strong>s. A determinação, porém, <strong>da</strong>s longitudes tornava-se nesse tempo um<br />

difícil problema e mesmo depois, pela simples indicação <strong>da</strong> agulha magnética, era bem variável o estabelecimento do<br />

meridiano procurado.<br />

As Canárias ficavam definitivamente á Espanha, e bem quisera D. João que tivessem sido incluí<strong>da</strong>s no dote <strong>da</strong><br />

princesa D. Isabel, quando casou o seu malogrado filho, D. Afonso, que vinha a her<strong>da</strong>r ambos os reinos contíguos.<br />

A Ilha de Lançarote perdeu a sua hegemonia. A alta governação passou para a Gran-Canária, capital do<br />

arquipélago, para onde foi transferi<strong>da</strong> a sede episcopal. Amplos forais e regalias lhe são concedidos e por uma<br />

determinação de 20 de Janeiro de 1487, é feita realenga esta ilha, o que imita, dez anos depois, D. Manuel, elevando a Ilha<br />

<strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> a uma idêntica categoria.<br />

A real cédula de Salamanca, dos Reis Católicos, vem a dizer:<br />

... que en su nombre y el de sus sucessores prometian y aseguraban a los vecinos y poboadores de la Gran Canária;


17<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

que en ningun tiempo, ni con pretexto alguno, seria enagena<strong>da</strong> ni separa<strong>da</strong> de la corona to<strong>da</strong> la islã ni parte de ella, con<br />

término de senorio o de otro modo a favor de cualqueira persona que fuese...<br />

A Carta-Régia do monarca venturoso, de Évora, em 26 de Abril de 1497, engasta na coroa, a Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>,<br />

declarando:<br />

... Teemos por bem & per esta em nosso nome & de nossos herdeyros & sobçesores prometemos pêra sempre &<br />

<strong>da</strong>mos nossa fee Real que em algum tempo per alguna neçesy<strong>da</strong>de ou caussa cuy<strong>da</strong><strong>da</strong> & nam cuy<strong>da</strong><strong>da</strong> que a nos & a nossos<br />

sobçessores sobrebenham aym<strong>da</strong> que seja de gramde peso & ymportancia nuca a dita ylha nem parte delia com seu<br />

sennorio Ren<strong>da</strong>s & Judiçam seja <strong>da</strong><strong>da</strong> per nos nem per nossos sobrçessoes De graça nem de qualqueer estado comdição &<br />

primynemcia que seja ...<br />

Princesas formosas do Atlântico, olharam-se ás ilhas visinhas com simpatia, e se as Canárias deram braços á<br />

<strong>Madeira</strong> para a sua activi<strong>da</strong>de, esta cedeu-lhe os elementos que necessitava para o seu desenvolvimento agrícola. O<br />

governador-geral, Pedro de Vera, pede ao donatário do Funchal «árboles frutales y canas de azúcar, legumbres y todo o<br />

género de ganado y de casa; y se plantaron por to<strong>da</strong> la islã (Grã-Canaria) muchisimos caíiaverales que enego comenzaron a<br />

<strong>da</strong>r infinito azúcar muy bueno».<br />

Modificado o sistema politico e militar <strong>da</strong>s Ilhas Canárias pela sua encorpo ração no reino de Castela, continuou<br />

no entanto Diogo de Herrera, com regalias de donatário referente á justiça e administração <strong>da</strong>s ilhas her<strong>da</strong><strong>da</strong>s por sua<br />

mulher, competindo-lhe á nomeação de governadores, escrivães, quintadores, etc, na área do seu domínio.<br />

Esta jurisdição seguiu em descendência, na parte territorial em que alguns dos seus filhos se inteiraram, ficando o<br />

mais novo, Sancho de Herrera, com o senhorio <strong>da</strong> Ilha de Lançarote e dos Ilhéus próximos.<br />

Um neto de Sancho de Herrera, pelas suas façanhas na costa fronteiriça de África, contra os mouros, teve o titulo<br />

de conde de Lançarote, atendendo aos méritos, serviços e quali<strong>da</strong>des que concorriam na pessoa de D. Agostinho de<br />

Herrera, casado com D. Inês de Ias Cuevas y Ponte, fi<strong>da</strong>lga de antiga linhagem.<br />

Não tinha herdeiros o conde. Galanteador, soube captar a benevolência duma gentil <strong>da</strong>ma, D. Bernardina de<br />

Cabrera, esposa do genovês, Teodoro Espelta. Esse afecto transformou-se numa paixão desordena<strong>da</strong> e egoísta, e dentro em<br />

pouco tempo aparecia morto o genovês, declarando os médicos ter baqueado a um mal súbito do coração.<br />

No entanto, era voz do povo que o conde estava culpado peia sua conduta, e se não ele próprio, por outrem se


18<br />

desfizera dum tal tropeço.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Com três meses de viuvez, D. Bernardina <strong>da</strong>va á luz uma criança a quem foi posto o nome de Joana, trata<strong>da</strong> com<br />

todo o carinho é regalos, e vieram as duas habitar para uma sumptuosa residência na ci<strong>da</strong>de, onde o conde abertamente<br />

frequentava.<br />

Dois anos passados, nasceu outra menina, baptiza<strong>da</strong> com nome de Constança, e todos os que censuravam<br />

anteriormente o procedimento de D. Bernardina, vendo-a progredir, rogavam-lhe agora intercedesse em qualquer<br />

pretensão, a bom despacho, reconhecendo a sua influência junto do conde.<br />

A condessa de Lançarote não tendo descendência e conforma<strong>da</strong> com a situação, consentiu em receber no palácio<br />

as filhas de seu marido, e tanto se lhes afeiçoou, que passaram a receber uma educação condigna, tanto mais que por carta<br />

régia, autorização fora concedi<strong>da</strong> para os condes as poderem adoptar.<br />

Por circunstâncias várias, esta família aparece depois, na grande ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, quando a Península está sujeita<br />

ao mesmo ceptro unificado.<br />

Adiantando-se como pretendente ao trono vago em Portugal, pela morte do cardeal-rei, fazia-se aclamar em<br />

Setúbal, D. António, prior do Crato, que encarnava a alma popular reagindo contra o poder de Castela, não tendo porém, a<br />

fibra tempera<strong>da</strong> do Mestre de Avis. Reconhecido em Lisboa, faltou-lhe o apoio <strong>da</strong> nobreza que na maior parte opinava pelo<br />

rei Felipe. Este, impõe-se á força, e o duque de Alba derrota D. António no recontro de Alcântara. Príncipe proscrito e com<br />

a cabeça a preço, foi um joguete <strong>da</strong> França e <strong>da</strong> Inglaterra que o sacrificaram á sua política nas lutas contra a Espanha.<br />

O prior do Crato tinha na <strong>Madeira</strong> um partido considerável. O desembargador João Leitão, vindo como<br />

Governador dá Judicatura, <strong>da</strong> Real Fazen<strong>da</strong> e administração geral, pelo rei católico, não pude impor prontamente a nova<br />

soberania a ser recebi<strong>da</strong> com afecto.<br />

Havendo noticia que navios <strong>da</strong> esquadra francesa, com D. António, pairavam nos mares <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, conduziramse<br />

numa embarcação a se lhes juntar, o Corregedor Dr. Gaspar Gambôa, o Padre Dr. Bartolomeu Jerónimo, vigário de N.ª<br />

S.ª do Calhau, e muitos outros que foram recolhidos com satisfação.<br />

A esquadra velejou pelo Porto Santo, onde fez abastecimento, e por esse motivo enviou o desembargador João<br />

Leitão uma devassa àquela ilha, justificando-se, porém, o donatário, em não ter força para se haver oposto ás «dez velas de


19<br />

B. António».<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O conde de Lançarote, D. Agostinho Herrera, é convi<strong>da</strong>do pelo rei a acudir e sujeitar a <strong>Madeira</strong> a uma<br />

dependência castelhana mais garanti<strong>da</strong>, usando dos meios que julgar adequados á situação. Lisonjeado pela escolha, logo<br />

se preparou, com gente paga á sua custa, 300 vassalos bem armados, entre os quais alguns mouros possantes que<br />

constituíam a sua guar<strong>da</strong> pessoal.<br />

Creditado a que vinha, o governador Leitão fez-lhe entrega com to<strong>da</strong>s as honras, <strong>da</strong> superintendência <strong>da</strong>s coisas<br />

<strong>da</strong> guerra e domínio do arquipélago, ficando as fortalezas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de guarneci<strong>da</strong>s pela tropa ocupante.<br />

«No qual tempo, na era de 1582, foi <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> do Norte, António do Carvalhal aa Ci<strong>da</strong>de, do Funchal comi<br />

trezentos homens, que manteve aa sua custa cinco meses, do de Masyo até Setembro em serviço do Catholico Rey<br />

Phelippe, para aju<strong>da</strong>r a defender a desembarcação dos franceses <strong>da</strong> arma<strong>da</strong> de D. António, que em aquelle tempo na ilha<br />

se esperava».<br />

O conde de Lançarote, com poderes discricionários, querendo cortar fundo, organisou uma espécie de tribunal<br />

militar «man<strong>da</strong>ndo <strong>da</strong>r garrote a cierto fraile que atizaba el fuego de la rebelion y ahorcando a dos oficiales inquietos».<br />

Era a forma consagra<strong>da</strong> <strong>da</strong> pacificação pelo terror.<br />

«Como el señor don Felipe II debia hacer grande aprecio de este distinguido servicio, le escribio diferentes cartas<br />

honrosas, manifestândole todo su real agrado, y en su consequência le nombró capitán general de las islãs de la Madera y<br />

Puerto Santo, y le dió titulo de marqués, que fué como una extension del de conde que tenia antes».<br />

Pacifica<strong>da</strong> a <strong>Madeira</strong>, acudiram <strong>da</strong> Ilha de Lançarote, a recente marquesa, suas filhas adoptivas e muitas pessoas<br />

de proeminência, a felicitar o novo capitão-general pelas honrarias e acréscimo do título que lhe fora concedido.<br />

D. Agostinho, rodeado <strong>da</strong> sua corte, organizou varias recepções e festas muy clássicas, atraindo a socie<strong>da</strong>de<br />

madeirense, dispensando lhe a marquesa o seu melhor acolhimento, e jubilosas as donzelas se mostravam nos<br />

passatempos e serões que eram retribuídos pelas casas mais distintas.<br />

A sagração episcopal, em 1582, <strong>da</strong> capela de N.ª S.ª <strong>da</strong> Nativi<strong>da</strong>de, na Quinta do Faial, nos arredores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

revestiu um brilhantismo desusado, pela imponência dos festejos no solar florentino dos Aciolis 12 .


20<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Jovens fi<strong>da</strong>lgos cortejavam as filhas do marquês e entre eles, preferia a mais velha, o herdeiro desse opulento<br />

morgadio.<br />

O bispo era todo palaciano e tanto que, talvez constrangido, concedeu a necessária autorização para que D.<br />

Bernardina Cabreira viesse, do Lançarote, acolher se ao mosteiro de Santa Clara, <strong>da</strong>s franciscanas do Funchal,<br />

determina<strong>da</strong> a olvi<strong>da</strong>r o passado e as vai<strong>da</strong>des do mundo.<br />

A notícia <strong>da</strong> derrota <strong>da</strong> esquadra de D. António nas águas dos Açores, onde perdeu a vi<strong>da</strong> o conde de Vimioso,<br />

donatário de Machico, se a muitos contristou, foi motivo de alegria e desafogo para os que haviam abraçado a causa<br />

castelhana. No entanto, ordens de Madrid man<strong>da</strong>vam estar de sobreaviso, especialmente as Canárias, porque a arma<strong>da</strong><br />

francesa tinha intentos de vingança.<br />

O marquês desejoso de voltar aos seus domínios, onde alterações se haviam <strong>da</strong>do na administração, fomentando<br />

descontentamento, assim solicitou mercê, e autorização lhe foi <strong>da</strong><strong>da</strong> pela Carta Régia de 5 de Agosto de 1583 13 , podendo<br />

regressar a Lançarote com a sua guar<strong>da</strong> pessoal, ficando a Companhia do Presídio a cargo do capitão castelhano Juan de<br />

Aran<strong>da</strong>, e a outra, sob as ordens do governador português ou de outro natural.<br />

O desembargador João Leitão tomou de novo posse do governo do arquipélago, até que, Tristão Vaz <strong>da</strong> Veiga que<br />

entregara a fortaleza de S. Julião <strong>da</strong> Barra de Lisboa ao duque de Alba, para não sacrificar a guarnição, premiado foi com a<br />

donatária vaga de Machico e enviado como superintendente <strong>da</strong>s coisas <strong>da</strong> guerra de ambas as capitanias <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, com<br />

400 mil rs. anuais do seu posto.<br />

A <strong>Madeira</strong> e as Canárias achavam-se sujeitas ao ataque dos comuns inimigos de Espanha, — franceses, ingleses,<br />

holandeses, turcos e argelinos.<br />

Em 1587, um atrevido, corsário aportou á vila de Santa Cruz, chegando a sua ousadia a ponto de enviar um<br />

emissário, pedindo vinte pipas de vinho e outras tantas de água. Como não obtivesse resposta, iniciou o bombardeamento<br />

que foi respondido com o fogo dos mosqueteiros <strong>da</strong>quela jurisdição, ocultos numa ponta de rocha, donde faziam grande<br />

<strong>da</strong>no com os pelouros, e a custo se viu obrigado a levantar a âncora. Três dias depois, entrou de noite no porto do Funchal,<br />

levando um navio carregado de vinhos e outro com trigo. Tristão Vaz <strong>da</strong> Veiga fez embarcar trinta sol<strong>da</strong>dos <strong>da</strong>s Fortalezas<br />

e mais duzentos <strong>da</strong>s ordenanças, em sua perseguição, obrigando-o a largar a presa.


21<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Nas Canárias, o marquês de Lançarote também se houve com acometi<strong>da</strong>s mais sérias, chegando a transaccionar<br />

nos resgates.<br />

D. Agostinho de Herrera pensou, em ser tempo de obter amparo para as filhas, casando-as condignamente.<br />

Entre as duas, preferia a mais nova, embora ambas legitima<strong>da</strong>s. De D. Joana e <strong>da</strong>s circunstâncias do seu<br />

nascimento, por vezes perguntava, no íntimo, se seria o ver<strong>da</strong>deiro pai.<br />

Na dúvi<strong>da</strong>, escoava benefícios em D. Constança e fez-lhe uma doação do território e ren<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Ilha de Lançarote,<br />

tomando este o título de condessa.<br />

Esta liberali<strong>da</strong>de foi eficaz para a obtenção dum genro de categoria, qual foi Gonçalo Argote de Molina, fi<strong>da</strong>lgo<br />

sevilhano e moço <strong>da</strong> Casa Real, que escreveu sobre a história e linhagens de Espanha.<br />

Sabi<strong>da</strong> a inclinação que na <strong>Madeira</strong> manifestara por D. Joana Herrera, o filho mais velho do morgado Acioli, o<br />

Marquez de Lançarote entabulou negociações para esse casamento e ficou assente que se realizaria no Funchal,<br />

acompanhando D. Agostinho sua filha, com um considerável séquito, para honrar as bo<strong>da</strong>s.<br />

A cerimónia religiosa, de grande aparato, efectuou-se na Sé Catedral, no dia 25 de Abril de 1588 14 , lançando as<br />

bênçãos, o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos, e sendo padrinhos, por parte do noivo, o capitão-geral <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, Tristão<br />

Vaz <strong>da</strong> Veiga; e por parte <strong>da</strong> noiva, D. Diogo de Cabrera Leme, governador de Lançarote e senhor <strong>da</strong> Alegrança.<br />

Quinze dias depois, estava viúvo o marquês. Os achaques de D. Inês de Ia Cueva tinham-na impedido de vir<br />

assistir ás bo<strong>da</strong>s, e o sobressalto em que ficara de ataques de corsários, pois já uma vez esteve em risco de ficar prisioneira,<br />

se não fosse prontamente resgata<strong>da</strong>, abreviaram-lhe os dias 15 .<br />

Os ingleses tomavam agora estes mares para teatro de suas façanhas. Sir Francis Drake continuava a ser o terror<br />

dos espanhóis, distribuindo parte <strong>da</strong>s suas velas para o pequeno corso, na pilhagem aos navios de comércio, especialmente<br />

os que vinham no regresso do Brasil e <strong>da</strong> índia.<br />

Em Junho de 1588, uma embarcação que trazia trigo <strong>da</strong>s Canárias foi toma<strong>da</strong>, ao entardecer, na linha do<br />

horizonte <strong>da</strong> (i<strong>da</strong>de do Funchal. Tristão Vaz <strong>da</strong> Veiga, mesmo de noute, aprontou cinccenta sol<strong>da</strong>dos numa nau que estava<br />

no porto, indo no dia seguinte á briga, e com as bombar<strong>da</strong>s meteram a embarcação inimiga ao fundo. Os que ficaram


22<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

prisioneiros disseram que morrera na refrega um embaixador que o Prior do Crato enviava a Marrocos, solicitando, do<br />

sultão, auxílio á sua causa.<br />

D. António escrevera a Isabel de Inglaterra, protestando contra a projecta<strong>da</strong> expedição de Drake à Ilha <strong>da</strong><br />

<strong>Madeira</strong> 16 , mas este operava a seu arbítrio, tendo abertamente a sanção <strong>da</strong> rainha.<br />

Eram incessantes os avisos e os rebates. <strong>Madeira</strong> e Canárias sujeitas ao mesmo perigo, comunicavam as suas<br />

aflições, num desabafo de irmãs que se sentem abandona<strong>da</strong>s. Madrid e Lisboa man<strong>da</strong>vam estar tudo preparado para a<br />

defesa, mas esqueciam-se de contribuir com elementos instante mente requisitados, para a tomar eficaz.<br />

«O capitão-general <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> para defença (<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do Funchal) mandou fazer <strong>da</strong> Fortaleza nova até<br />

Santhiago, huma trincheira de madeira de huma ban<strong>da</strong> e entulha<strong>da</strong> de calháo <strong>da</strong> outra: e elle mesmo an<strong>da</strong>va trabalhando<br />

nella, com o cesto ás costas, com que fazia trabalhar melhor to<strong>da</strong> a` gente». Ordenou também a construção duma galé e<br />

uma fragata para a defesa <strong>da</strong> costa, com o dinheiro <strong>da</strong> imposição <strong>da</strong> ilha.<br />

A ron<strong>da</strong> de Drake, nas Canárias, apossava-se de embarcações que <strong>da</strong>li seguiam para as colónias espanholas <strong>da</strong><br />

América.<br />

Não demorou muito que o marquês de Lançarote, apesar de septuagenário, pensasse em contrair segun<strong>da</strong>s<br />

núpcias, escolhendo uma jovem de costela madeirense, D. Mariana Henriques Brito Manrique de la Vega, que elevou a<br />

marquesa, <strong>da</strong>ndo-lhe em árras 10.000 ducados. Não lhe ficaram atraz seus sogros, pois de Espanha deram ordem para que<br />

fossem hipoteca<strong>da</strong>s as suas fazen<strong>da</strong>s na Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, afim de que, no dote de sua filha, figurasse também uma igual<br />

quantia.<br />

A jovem 2.ª marquesa, acostuma<strong>da</strong> á vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> corte, não podia conformar-te a residir na pequena ilha de<br />

Lançarote. Um tanto de caprichos, que refinaram ao ver-se de esperanças, quis transferir-se, para o sucesso, teimosamente<br />

a Madrid, mas ninguém pode prever o seu destino, e uma tempestade a trouxe ao Funchal, onde foi recebi<strong>da</strong> com to<strong>da</strong>s as<br />

atenções e precisos cui<strong>da</strong>dos, por D. Joana Herrera, sua entea<strong>da</strong>, casa<strong>da</strong> com Francisco Acioli.<br />

As arrelias e os sustos passados na tormentosa viagem, dispuseram mal a marquesa para a materni<strong>da</strong>de, no<br />

entanto, deu á luz um rapaz, baptizado em casa por necessi<strong>da</strong>de, aos 9 dias de Setembro de 1594, levado depois á Sé, onde<br />

foi lavrado o registo em 5 de Outubro, pelo meio cónego António Fernando, relativo a um filho do marquês de Lançarote,<br />

D. Agostinho Herrera e <strong>da</strong> marquesa D. Mariana Manrique, sendo padrinho e bispo D. Luís Figueiredo de Lemos 17 .


23<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Era natural que a marquesa quisesse ir apresentar o pimpolho a seu marido, mas o pavor destas aguas, tintas tão<br />

amiúde em sangue, causava-lhe calafrios. A divisão naval de Preston saqueia a Ilha do Porto Santo em 1595, incendiando a<br />

vila, não obstante os habitantes quererem tudo entregar para que fosse poupa<strong>da</strong>.<br />

Logo que D. Mariana teve ocasião asa<strong>da</strong> de, com relativa segurança, em transporte comboiado, se transferir a<br />

Espanha, não hesitou, e sob o pretexto <strong>da</strong> segurança do filho, por lá depois se demorava.<br />

Uma epidemia assolou a Ilha de Lançarote em 1598, e o velho marques, desta, se foi, com o peso de várias maleita.<br />

D. Mariana, asinha deixou a Corte para comparecer com o marquesito de quatro anos, a tomar por ele posse, como<br />

tutora, do domínio insular, prestando juramento de guar<strong>da</strong>r as leis, respeitar os direitos e regalias que haviam sido<br />

concedi<strong>da</strong>s aos lançarotenses.<br />

Quinta do Faial – antigo solar <strong>da</strong> família Acioli<br />

Da <strong>Madeira</strong>, logo foram também D. Joana Acioli e seu marido, para assistir ao inventário dos bens, sendo


24<br />

recebidos com afago, como retribuição que lhes devia D. Mariana, pelo bom acolhimento que tivera no Funchal.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A marquesa, caprichosa, dissimulava os sentimentos, porque nela predominava uma força de mando e ambição.<br />

Transaccionou com a entea<strong>da</strong> em <strong>da</strong>r-lhe uma parte <strong>da</strong>s ren<strong>da</strong>s, mas arranjou meio de aparentemente diminui-las,<br />

propondo que melhor seria deixa-las livres ao marquesado de Lançarote, e aquela se inteirar em terras distantes. Não<br />

chegaram, porém, a um acordo, por ser descoberto o ardil, rompendo-se as relações duma maneira desabri<strong>da</strong> e<br />

complicando-se o litígio com as pretensões de Argote de Molina defendendo a parte de sua mulher, D, Constança Herrera,<br />

a outra entea<strong>da</strong> <strong>da</strong> marquesa.<br />

A amizade, mais consistentemente radica<strong>da</strong> numa família, não raro é destruí<strong>da</strong> pela avidez dum bolo em que ca<strong>da</strong><br />

herdeiro pretende a melhor fatia. Na cegueira deslumbra<strong>da</strong> pelo ouro, erguem se as facas para o corte, entrechocam-se na<br />

cobiça, derivando o alvo, esfarrapam se os laços, na conten<strong>da</strong>, arde a afeição na labare<strong>da</strong> <strong>da</strong> conveniência, e as mazelas a<br />

descoberto purgam um humor de ódio que se alastra por gerações.<br />

Tal foi a escan<strong>da</strong>losa deman<strong>da</strong> que se desenrolou na casa de Lançarote, implicando depreca<strong>da</strong>s às Justiças do<br />

Funchal.<br />

Na sua fúria insensata, a marquesa pretendeu demonstrar que D. Joana Herrera Açioli era apenas filha legitima<br />

do genovês Espelta e de sua mulher D. Bernardina, muito embora ter esta sido amante do marquês. A parte contrária não<br />

lhe ficou atrás, na invectiva, pois alegou que o filho de D. Mariana não podia her<strong>da</strong>r dum pai que não era seu, <strong>da</strong><strong>da</strong> a i<strong>da</strong>de<br />

e achaques de do marquês ao tempo do seu segundo matrimónio.<br />

O primeiro rei hispano-luso faleceu a 13 de Setembro de 1598. Não obstante ter jurado conservar os privilégios dos<br />

portugueses nas Cortes de Tomar, onde a <strong>Madeira</strong> se representou, oprimia-os com vexames e impostos, arrastando a<br />

nação vassala na defesa duma causa que lhe não tocava e que devera pertencer a Castela.<br />

Intolerante, o Demonio-do-meio-dia, como era cognominado pelos protestantes, combatia a Reforma, e para<br />

vingar a execução <strong>da</strong> desditosa Mara Stuart, rainha <strong>da</strong> Escócia, armou uma formidável esquadra com os melhores vasos do<br />

guerra <strong>da</strong>s duas nações, que era ti<strong>da</strong> como Arma<strong>da</strong> Invencível, mas que uma tempestade destruiu no mar <strong>da</strong> Mancha.<br />

Iam portugueses forçados à luta contra os seus antigos aliados, por isso, estes também não poupavam as terras<br />

incorpora<strong>da</strong>s no domínio espanhol.


25<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Portugal enfraquecia sistemática — e traiçoeiramente, afim de perder os elementos de vitali<strong>da</strong>de própria. O<br />

comércio paralisava, a agricultura carecia do braços e os cargos públicos vinham sendo confiados a tiranos de confiança.<br />

Depois de Tristão Vaz <strong>da</strong> Veiga, veio como Governador <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, António de Barredo, que servira num galeão<br />

contra a Inglaterra, em companhia de D. Francisco Manuel de Melo, o autor <strong>da</strong>s «Epanáforas» uma <strong>da</strong>s quais trata <strong>da</strong><br />

len<strong>da</strong> de Machim.<br />

Seguiu-se Diogo de Azambuja de Melo que exercia este cargo quando faleceu Filipe II, o I de Portugal, assistindo<br />

às solenes exéquias que no Funchal se celebraram.<br />

Filipe III de Castela, após a sua aclamação mandou organizar festas pelo seu casamento com D. Margari<strong>da</strong> de<br />

Áustria e pelo <strong>da</strong> infanta D. Isabel Clara com o arquiduque Alberto, Governador de Portugal, e de segui<strong>da</strong> envia-o aos<br />

Países Baixos, a continuar a guerra para a uni<strong>da</strong>de de crença.<br />

As sete provin<strong>da</strong>s do norte haviam proclamado, desde a União de Utrecht, uma republica chefia<strong>da</strong> pelo stathuder<br />

Guílherme de Orange, protegido pela rainha Isabel de Inglaterra. As províncias católicas do sul continuavam debaixo do<br />

domínio <strong>da</strong> Espanha e formaram depois a Bélgica actual.<br />

Os holandeses, que se haviam feito poderosos no mar, vieram perturbar as festas públicas, em que se <strong>da</strong>va uma<br />

soberba corri<strong>da</strong> de touros no Funchal e tudo se mudou então, em preparativos bélicos.<br />

Uma frota de 73 embarcações sob o comando, do almirante Van Derdoes, derivou, porém, sobre a Ilha <strong>da</strong> Gomeira<br />

que foi saquea<strong>da</strong> e passou em segui<strong>da</strong> à Grã-Canária, batendo em Junho de 1599, o Castelo de La Luz que respondeu<br />

fazendo <strong>da</strong>nos na arma<strong>da</strong> inimiga.<br />

Conheci<strong>da</strong> a resistência, torneou para um porto próximo, a Calheta de Santa Catarina, desembarcando 4.000<br />

homens com artilharia que dominando a posição <strong>da</strong> fortaleza, a tomaram.<br />

Senhores, os holandeses, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e seu porto, propuseram o resgate, mas as condições eram tão onerosas que<br />

não puderam ser aceites. Uma coluna que marchou para o interior foi ressacha<strong>da</strong> com enormes per<strong>da</strong>s, e tendo ordem de<br />

retira<strong>da</strong>, por vingança, os holandeses incendiaram a ci<strong>da</strong>de.<br />

Parte <strong>da</strong> esquadra levou o rumo sul, apoderando-se <strong>da</strong> Ilha de S. Tomé, onde faleceu o almirante Van Derdoes.


26<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Exaltando os feitos desta empresa foi publicado, em Haia, um livro «Conquista de Ias Grandes Canárias &» por<br />

man<strong>da</strong>do dos Estados Gerais.<br />

Precisavam os holandeses apoderar-se nesta parte do Atlântico, dum porto de abastecimento que servisse de base<br />

estratégica para a sua arma<strong>da</strong>, mas não o conseguiram.<br />

O segundo rei <strong>da</strong> Península Hispânica unifica<strong>da</strong>, menos guerreiro que seu pai, fez a paz com a Inglaterra em Julho<br />

de 1604 e comprometeu-se a uma trégua com as Provin<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong> (1609) por doze anos, mas tão inabilmente que<br />

ficou limita<strong>da</strong> só a Europa, deixando as colónias, especialmente as portuguesas, á mercê dos hereges aventureiros.<br />

São agora os mouros, os ferozes inimigos destas ilhas, num concentrado ódio pelos cristãos, em sede de pilhagem<br />

e de vingança.<br />

A Ilha do Porto Santo, ain<strong>da</strong> não refeita do ataque <strong>da</strong>s forças inglesas de Preston, é surpreendi<strong>da</strong> pelos argelinos,<br />

em Agosto de 1617.<br />

Numa alvora<strong>da</strong> sinistra se apossam <strong>da</strong> vila, roubando, apresando, cometendo to<strong>da</strong> a casta de barbari<strong>da</strong>des e por<br />

fim pondo fogo á povoação.<br />

Homens, mulheres e crianças, num atónito desespero, foram arrancados dos seus lares, para ser levados ás terras<br />

<strong>da</strong> mourama, e os que resistiam, eram logo despe<strong>da</strong>çados.<br />

No ano seguinte, efectuaram os piratas a mais terrível invasão que contam os anais <strong>da</strong>s Ilhas Canárias.<br />

Berberes e turcos, em numero de 60 velas, coman<strong>da</strong>dos por Arraiz e Solimão, desembarcam na Ilha de Lançarote,<br />

após urna curta investi<strong>da</strong>, Não tendo os habitantes outra defesa mais que a fuga, se esconderam nas cavernas do interior,<br />

ficando muitos entaipados, por lhes obstruírem as saí<strong>da</strong>s.<br />

A marquesa D. Mariana e seu filho refugiaram-se em Inaguaden, para onde foi transportado o tesouro e arquivo<br />

<strong>da</strong> sua casa, tendo passado terríveis momentos de ansie<strong>da</strong>de.<br />

A vila de Teguise, depois de despi<strong>da</strong> de tudo quanto tinha de precioso, foi posta em chamas, acontecendo o mesmo


27<br />

ao convento dos religiosos de S. Francisco.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O número dos cativos de ambos os sexos, levados a Argel, orçou por um milhar, e os que escaparam em Lançarote,<br />

reduzidos, embora á miséria, trataram de vender o que lhes restava para acudir ao resgate de seus parentes.<br />

A vigilância <strong>da</strong> esquadra espanhola limitara-se à embocadura do Estreito, e só se apoderou de quatro embarcações<br />

dos mouros.<br />

A corte de Madrid assoberba<strong>da</strong> com mil complicações e governa<strong>da</strong> por validos ambiciosos, e inaptos, mal atendia<br />

o clamor <strong>da</strong>s Ilhas.<br />

Os instantes pedidos <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> te em como resposta uma ridícula provisão, dizendo que «sobre armas e<br />

munições parece por ora se escusar os mosquetes, mas as pessoas que os possam comprar, sejam obriga<strong>da</strong>s a se proverem<br />

deles. Quanto a pólvora, sendo bastante a que existe nas fortalezas, vai ser no entanto envia<strong>da</strong> mais».<br />

Avisos houve que chegaram quase um ano depois, como este, man<strong>da</strong>ndo notificar que «tinham saído ao mar e<br />

desembocado o estreito, quanti<strong>da</strong>de de navios de corsários turcos de Argel cujo numero e porte obriga a cui<strong>da</strong>do e posto<br />

que pelo que aserqa destes corsaryos vos tenho ultyraamente man<strong>da</strong>do escrever e para estarem prevenidos e fazer a estes<br />

pyratas to<strong>da</strong> a resistência ... e logo que receberdes este aviso enviareis no mesmo ponto a Canárias».<br />

Numa acta <strong>da</strong>s vereações <strong>da</strong> Câmara do Funchal é proposto o lançamento dum tributo «para se fazer o muro do<br />

Calhau já começado por q. an<strong>da</strong>m esquadras de mouros de Argel e ... uma parte tomou a ilha do Porto Santo, levarão dela<br />

todos os habitantes moradores; destruirão totalmente a mesma».<br />

Só depois dos grandes desastres que sacodem a letargia dos indolentes, senão em disfarça<strong>da</strong> má vontade, chegou o<br />

ponto de ressoaram os clamores que se traduziam bem nas enormes per<strong>da</strong>s sofri<strong>da</strong>s.<br />

O primeiro remédio, bem amargo, veio para ser ministrado num finto ou contribuição de guerra attè a quantia q.<br />

precisa fosse, porém, a sua estipulação e derramamento causaram as maiores discórdias, pelos previlégios alegados e<br />

imuni<strong>da</strong>des de classes que entraram em sério conflito, por não quererem quinhoar o pagamento, nem tão pouco<br />

apresentar gente sua para a serventia ou trabalho.<br />

O resultado foi baixarem sucessivas alça<strong>da</strong>s que não ouviram de rezões e sentenciaram a torto e direito.


28<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Vieram fortificadores para a <strong>Madeira</strong> e Canárias, afim de pôr em execução a traça ou plano misto terrestre e<br />

marítimo e a<strong>da</strong>ptação do baluarte aos pontos em que era necessário oferecer maior resistência.<br />

As antigas formas e regras de defesa te em de ser postas de parte. Os muros <strong>da</strong>s fortalezas se tornaram mais<br />

espessos e não tão elevados, abatem-se as torres para serem substituí<strong>da</strong>s pelo traçado poligonal, onde em largas<br />

plataformas são colocados os canhões que, com fogos cruzados, varrem o campo exterior 18 .<br />

Dos reis Filipes nossos, cumulativos com Espanha, o último refinou em querer diluir Portugal na massa de<br />

Aquem-Pirineus. Seu pai viera a Lisboa a juntar Cortes e fazer reconhecer a realeza do herdeiro, na disposição talvez de<br />

ouvir os ressentimentos e queixumes que, abafa<strong>da</strong>mente, ecoavam em Madrid.<br />

Na melhor <strong>da</strong>s esperanças foram expostas as necessi<strong>da</strong>des e justas pretensões, porém, o rei foi empalmado pela<br />

sua camarilha que o fez regressar inespera<strong>da</strong>mente a Castela, onde morreu em 1621.<br />

As maquinas mais engenhosamente monta<strong>da</strong>s não se lhes deve aumentar o rendimento sem prejuízo de um maior<br />

desgaste, e as de pressão acusam o limite que não pode ser excedido, sob pena de se desarranjarem.<br />

A política dos ministros de Felipe IV de Castela era desgastar Portugal, e a pressão foi gradualmente aumentando<br />

a ponto que fez rebentar dentro em breve, a engrenagem peninsular, na separação <strong>da</strong>s nacionali<strong>da</strong>des.<br />

Um egoísmo atroz era indiferente aos infortúnios, o carácter diluía-se pelos desregramentos e crepitava uma<br />

cúbica sem limites nem escrúpulos.<br />

O 2.° Marquês de Lançarote 19 esteve em risco de abraçar a vi<strong>da</strong> monástica, por conselho de sua mãe que via nisso<br />

um meio de continuar o seu governo, imperiosamente. Não sucedeu assim, porque o seu aio e capelão, João de<br />

Bethencourt, foi o primeiro a varrer isso, <strong>da</strong> cabeça do seu discípulo.<br />

tempo.<br />

Correram porém, as coisas de modo que, praticamente, veio a <strong>da</strong>r quase o mesmo resultado, durante algum<br />

Chegado à maiori<strong>da</strong>de D. Agostinho de Herrera e Rojas, ignorante ne to<strong>da</strong>s as noções de administração, achou<br />

mais cómodo confiá-la na tutela anterior, conquanto lhe fossem envia<strong>da</strong>s a Madrid, as suas ren<strong>da</strong>s, para onde se<br />

transferia.


29<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Os seus parentes na Corte arranjaram-lhe o casamento com uma viúva, D. Luísa Bravo de Gusmão, a nova<br />

marquesa de Lançarote, que não era na tenaci<strong>da</strong>de inferior á sogra.<br />

Assim que deste enlace sugeriu um herdeiro, D. Luísa convenceu o marido que devia tomar conta do que era seu, e<br />

empurrou-o para Lançarote, onde a marquesa velha, com admirável diplomacia, o pôs, ao facto dos complicados negócios,<br />

entregando-lhe a governação. Tais disparates cometeu, que adoecendo, veio a falecer nesse ano na Ilha de Tenerife, onde<br />

passara a medicar-se e convalescer.<br />

Seu filho morre segui<strong>da</strong>mente em Madrid, e as duas marquesas entram no campo <strong>da</strong>s disputas, sobre quem, de<br />

direito, devia pertencer o marquezado vacante.<br />

O esgalhar dos ramos duma arvore muitas vezes afecta o tronco, e assim foi, no esmiuçar genealogia profun<strong>da</strong>, até<br />

se desenterrarem as raízes em que se apoiava a casa de Lançarote.<br />

Foram tantos os pretendentes, deduzindo emaranha<strong>da</strong> ascendência, enxertias e ramificações, que a velha<br />

marquesa sempre esperta, fez segurar o seu dote e arras de 20.000 ducados, para que não pudessem ser comprometidos,<br />

e, com o auxilio do juiz Diogo de Brito, seu parente, documentou divi<strong>da</strong>s de seu filho e adiantamentos feitos, no<br />

tresloucado tempo que este governou a seu bel-prazer.<br />

Um dos pretendentes ao marquesado foi D. António Herrera Acioli Roches e Sandoval, neto do 1.° marques, por<br />

ser filho de D. Joana Herrera que casara com Francisco Acioli de Vasconcelos 20 .<br />

A influência e o dinheiro fizeram sempre peso num prato debalança e tanto mais, quando a Justiça, de olhos<br />

ven<strong>da</strong>dos, sentindo humi<strong>da</strong>de nos pés, mete a espa<strong>da</strong> na bainha para não a enferrujar.<br />

As cavilações do Direito, as astúcias forenses, os ardis dos constituintes defendidos com sagaci<strong>da</strong>de, na<strong>da</strong> valeram<br />

ante a aperta<strong>da</strong> trama demora<strong>da</strong>mente teci<strong>da</strong> pela 3.a marquesa de Lançarote.<br />

A marquesa D. Mariana, sua sogra, passou-se, já cansa<strong>da</strong>, desta vi<strong>da</strong> para melhor. As filhas perfilha<strong>da</strong>s do 1.°<br />

marquês tinham-se-lhe antecedido também 21 .<br />

Argote de Molina, viúvo de D. Constança Herrera, governou e esbanjou como grande senhor, deixando três filhos<br />

quase à miséria, de quem se apiedou uma tia velha, chamando-os a Sevilha. Passando no Funchal, tiveram ocasião de ir ao


30<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Convento de Santa Clara, onde teve D. Bernardina de Cabrera «la satisfaccion de estrechar entre sus brazos a unos nietos,<br />

que amaba como abuela y que detestaba como monja penitente».<br />

Todos três morreram numa epidemia de peste em Sevilha, e como única herdeira, embora no ramo ascendente, D.<br />

Bernardina enviou um franciscano letrado <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, á Ilha de Lançarote, com credenciais do convento, para defender os<br />

seus direitos e acções.<br />

A 3.ª marquesa, D. Luísa Bravo de Gusmão, á busca de um esteio poderoso, passou a terceiras núpcias com D,<br />

Juan de Castilia, dignitário <strong>da</strong> Ordem de Cala trava e cavaleiro-fi<strong>da</strong>lgo <strong>da</strong> Casa Real.<br />

Não chega a ser fenómeno, que, por circunstâncias de uma mu<strong>da</strong>nça, qu»m não tenha razão passe logo a ter.<br />

Novas ro<strong>da</strong>s numa engrenagem dão um movimento diferente e a vitoria é uma campanha concluí<strong>da</strong>, estrategicamente,<br />

com as melhores armas <strong>da</strong> ocasião.<br />

D. Juan de Castilla apresentou-se nas Canárias com a patente de mestre de campo que lhe fora concedi<strong>da</strong>,<br />

superior à do Governador e Capitão-General <strong>da</strong>s mesmas ilhas, e encarregado do levantamento <strong>da</strong>s milícias para os terços<br />

a acudir ás guerras de Espanha.<br />

Dispunha, portanto, <strong>da</strong> força que tantas vezes subjuga o direito, mas a sua missão que inspirava temor, modificoua<br />

em benevolência e favores, captando os naturais pela sua urbani<strong>da</strong>de, regalando os magistrados com festas, cumulandoos<br />

de obséquios e atenções, até que conseguiu o seu fira, ser reconhecido o direito de sua mulher ao marquesado de<br />

Lançarote.<br />

Depois, intitulou-se marquês, senhor confirmado, e com a autori<strong>da</strong>de máxima confluente, dispôs de tudo como<br />

muito bem quis, rasando as dificul<strong>da</strong>des pela violência, quando a manobra dissolvente retar<strong>da</strong>va o sucesso.<br />

ânsia.<br />

«Em tempo de guerra não se limpam armas* é um aforismo bem antigo.<br />

Os inimigos de Castela intensificaram de novo o ataque, e os vastos domínios do Ultramar foram mordidos com<br />

Os holandeses, não satisfeitos com os <strong>da</strong>nos que causavam nas possessões do Oriente, organizaram uma<br />

Companhia, denomina<strong>da</strong> <strong>da</strong>s índias Ocidentais, para se estabelecer no Brasil, conquistar os portos, fazer aliança com os<br />

indígenas, apoderar-se do comércio e expulsar os portugueses.


31<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Neste propósito, a arma<strong>da</strong> de Jacob Willekens apareceu em S. Salvador <strong>da</strong> Baía de Todos os Santos, em Maio de<br />

1624, e achando a ci<strong>da</strong>de despreveni<strong>da</strong>, fácil foi o desembarque, pelo terror, abandona<strong>da</strong>, tendo levado para o interior, o<br />

melhor que puderam os seus habitantes, cui<strong>da</strong>ndo que o inimigo tinha em mira apenas o saque, mas logo se convenceram<br />

que o seu plano era de assentamento.<br />

Só um ano depois, chegou a arma<strong>da</strong> luso-espanhola constituí<strong>da</strong> de forçados contingentes, obrigando os<br />

holandeses, apertados pelo cerco, a propor a capitulação que lhes foi concedi<strong>da</strong> com garantias de favor.<br />

O Brasil foi para a <strong>Madeira</strong>, o que a Nova Espanha foi para as Canárias.<br />

Colonos de umas e outras ilhas, levados pela aventura e fama de pronta riqueza, passaram-se á América do Sul, e à<br />

do Norte, e muitos foram nas tropas de conquista, distinguindo-se em diferentes operações com valor.<br />

Em 1626, prepararam os holandeses um encontro aos galeões do México, e com audácia apresaram enorme carga<br />

de prata e riquezas, com que reforçaram os fundos <strong>da</strong> Companhia.<br />

Uma nova expedição contra o Brasil é organiza<strong>da</strong> com tempo, e desta vez, uma arma<strong>da</strong> de 70 velas e 7.000<br />

homens de desembarque toma Olin<strong>da</strong> e o Recife, sendo digno de menção o primeiro feito do madeirense João Fernandes<br />

Vieira, na defesa do forte de S. Jorge, o penúltimo a cair em poder do inimigo, resistindo até o seu pequeno baluarte ficar<br />

reduzido a um montão de ruínas.<br />

«Então capitulou: obteve to<strong>da</strong>s as honras <strong>da</strong> guerra, sahindo com as peças e morrões acesos. Vieira, para não<br />

deixar aos inimigos a bandeira <strong>da</strong> sua nação, cingiu-se com ella ao retirar-se 22 ».<br />

Senhores de Pernambuco, os holandeses estendem sucessivamente o seu domínio pelas capitanias de Tamaracá,<br />

Paraíba e Rio Grande, ocupação que se prolongou por trinta anos, sacudi<strong>da</strong> pelo esforço de Fernandes Vieira e Vi<strong>da</strong>l de<br />

Negreiros, o primeiro dos quais ficou na historia com o nome de Libertador de Pernambuco.<br />

Nas suas expedições de reforço, a Companhia Ocidental perseguia a navegação hispano-lusa, cometendo<br />

barbari<strong>da</strong>des no alto mar e inquietava os portos de escala, em reconhecimento de ataque, obrigando os defensores a uma<br />

tensão persistente e extenuante.


32<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Quer nas Canárias e na <strong>Madeira</strong>, essa demonstração tornou-se frequente; no entanto, <strong>da</strong>qui conseguiram partir as<br />

velas de Francisco Bethencourt e Sá e de João de Freitas <strong>da</strong> Silva, apronta<strong>da</strong>s em socorro do Brasil.<br />

É de notar que os holandeses faziam causa comum com os mouros. Numa carta de Sua Majestade ao capitãogeneral<br />

D. Francisco Henriques e bispo D. Jerónimo Fernando, os avisa que uma «arma<strong>da</strong> que sai de Olan<strong>da</strong> com 16<br />

navios de guerra, se ia juntar no Estreito com mais treze de mouriscos» e o facto é que, em 1625, invadiram os mouros a<br />

Fajã dos Religiosos, no Campanário, devastaram o lugar, profanando a ermi<strong>da</strong> de N.ª S.ª <strong>da</strong> Conceição, que ali existia.<br />

Naus holandesas eram acusa<strong>da</strong>s pelos vigias, e as companhias de ordenanças acamparam nas imediações <strong>da</strong> Praia<br />

Formosa, temendo por ali se desse o ataque, como foi o dos franceses.<br />

Em 28 de Fevereiro de 1627, esteve a ci<strong>da</strong>de do Funchal em riscos de ser bombardea<strong>da</strong> por uma frota dos Países<br />

Baixos, que intimou a entrega de mantimentos para a gente duma caravela portuguesa que tinha aprisiona<strong>da</strong>.<br />

O coman<strong>da</strong>nte do presídio castelhano, D. António de Mira, condescendeu, para evitar o conflito, porém o bispogovernador,<br />

censurou-lhe o procedimento, sem sua consulta, e <strong>da</strong>í se originaram tumultos graves dos partidos internos,<br />

quase em presença do inimigo que na véspera molhava em aguas territoriais.<br />

No domínio filipino, varias vezes a mitra emparelhou com o bastão do mando.<br />

No ataque de S. Salvador <strong>da</strong> Baía, é o bispo D. Marcos Teixeira que sustêm os fugitivos, desperta-lhes o ânimo, e<br />

dá ordem de concentração de forças para o contra ataque.<br />

Nas Canárias, o bispo D. Francisco de Villanueva, arcebispo de Torranto, assume a governança em casos de<br />

conflitos de jurisdição.<br />

Na <strong>Madeira</strong>, neste período calamitoso, governaram por vezes, a tropa D. Fr. Lourenço de Távora e D. Jerónimo<br />

Fernando, este ultimo afoutando-se numa nau a ir em perseguição dos holandeses.<br />

Portugal tem por um dos seus vice-reis, o arcebispo de Lisboa, D. João Manuel, que censura o bispo do Funchal,<br />

D. Jerónimo Fernando, pela sua bravura, mal conti<strong>da</strong>.<br />

O bispado <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> perde o seu domínio longínquo <strong>da</strong> ouvidoria de Arguim, na costa de África, cujo castelo em


33<br />

ruínas é tomado pelos holandeses, à falta de melhor.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

As lutas de conquista acirravam-se, pela rivali<strong>da</strong>de opera<strong>da</strong> no campo espiritual, e a guerra alastrava-se, com o<br />

pretexto político, travado entre os estados, parecendo impresso no fundo <strong>da</strong> alma um ódio de religião.<br />

A Casa de Áustria acariciava a esperança de sufocar o protestantismo, porém, a união reformista, não se<br />

submetendo a imposições, coligara-se para causar aos católicos todo o prejuízo encoberto ou aclarado.<br />

Nisto, surgem outros interesses, e a França resolve entrar na luta ao lado <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong> e <strong>da</strong> Suécia, pelo parecer do<br />

célebre ministro, cardeal Richelieu!<br />

Os franceses embargam as mercadorias espanholas nos seus portos e rompem a guerra. Novos tributos são<br />

lançados para a sua sustentação, dobram as cizas, acrescem os direitos e nem respeita<strong>da</strong>s são as ren<strong>da</strong>s que se destinavam<br />

á remissão dos cativos portugueses, em poder dos mouros.<br />

Além <strong>da</strong> contribuição de 10.000 cruzados por ano, que a <strong>Madeira</strong> e Porto Santo pagavam para a restauração de<br />

Pernambuco, e reforços enviados, uma ordem <strong>da</strong> vice-rainha D. Margari<strong>da</strong> man<strong>da</strong> levantar aqui um terço de 1.000<br />

homens para ir a Corunha pelejar contra os franceses que auxiliavam a revolução catalã.<br />

Nas Canárias organiza-se una leva forza<strong>da</strong> para el ejercito de Flandes, oferecendo-se para a conduzir à Peninsula,<br />

D. Juan de Castella, o intruso marquês, persuadido que, com este serviço, muito adiantaria para a consoli<strong>da</strong>ção do famoso<br />

pleito que litigava ain<strong>da</strong> com o ramo pretendente <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

D. António Herrera Acioli, dispondo de fortuna <strong>da</strong>s suas grossas ren<strong>da</strong>s no Funchal, não se deixara levar de<br />

vencido pelo triunfo de D. Juan de Castilla, na posse do estado de Lançarote, outorgado à marquesa D. Luiza.<br />

A sapa e contra-sapa foram processos antigos no ataque e contra ataque duma fortaleza. Minou por intervalos,<br />

compreendendo a resistência <strong>da</strong> ocasião. Tinha o seu partido organizado nas Canárias, mormente entre os lançarotenses<br />

que lhe reconheciam os direitos, qual outro D. António na pretensão portuguesa, mas, como o prior do Crato, fracassaramlhe<br />

os apoios.<br />

D. Juan D. Castilla ia-se desfazendo dos seus antagonistas cala<strong>da</strong>mente, e por um processo bem simples, —<br />

recrutava-os para as levas e sob pretexto de desobediência, metendo-os antecipa<strong>da</strong>mente na prisão.


34<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Fr. Bernardino Acioli e o Padre Marcos de Bethencourt, irmão e próximo parente de D. António Acioli, sofreram a<br />

pressão do bispo <strong>da</strong>s Canárias, para que abandonassem os interesses <strong>da</strong> causa madeirense.<br />

A revolta <strong>da</strong> Catalunha lavrou o campo para a independência de Portugal que estava exausto com as exigências e<br />

sacrifícios acumulados. A Castela, eram chamados os nobres de maior influência e as digni<strong>da</strong>des eclesiásticas de mais<br />

relevo.<br />

O duque de Bragança recebe ordens precisas para acompanhar o rei com um grande exército, desviando-o assim<br />

também <strong>da</strong> pátria calca<strong>da</strong> pela escravidão.<br />

Vacilante, reconheceu o estratagema, e nesse aperto, desterra a irresolução, cedendo ás instancias e reflexões<br />

apresenta<strong>da</strong>s pela nobreza e povo que ansiavam a liber<strong>da</strong>de e solicitavam o consentimento para o aclamar, o que se deu,<br />

com feliz resultado, no memorável dia 1.° de Dezembro de 1640.<br />

Os acontecimentos passados na <strong>Madeira</strong> e Porto Santo, onde D. João IV foi aclamado, respectivamente em<br />

Janeiro e Fevereiro de 1641, já os deixamos exarados noutro estudo histórico 23<br />

Viera y Clavijo, simplesmente diz 24 :<br />

Trajeron las primeras noticias a las Canárias 60 sol<strong>da</strong>dos castellanos, que expulsados de la islã de la <strong>Madeira</strong><br />

violentamente, llegaron a Lançarote a princípios de 1641. Referian estes que alli habiam tomado las armas contra el Rey de<br />

Espana hasta los estudiantes, frailes y clérigos, proclamando a su D. Juan IV, y apoderandose de las fortalezas y cau<strong>da</strong>les<br />

públicos.<br />

Como a família Acioli tomasse parte importante na aclamação do duque de Bragança na ci<strong>da</strong>de do Funchal,em que<br />

era procurador do concelho D. António Rojes Acioli, e seu tio D. João Baptista Acioli levasse pelas ruas desfral<strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />

bandeira do Município, tudo constou no processo que D. Juan de Castilla fez organizar para se desfazer definitivamente<br />

dos seus competidores ao marquesado de Lançarote, banidos pelo crime de traição a el-rei de Castela.<br />

<strong>Madeira</strong> e Canárias, irmãs separa<strong>da</strong>s pelos acontecimentos políticos, e que sofreram juntas, por vezes, o abandono de<br />

Madrid, olham-se com amizade, envere<strong>da</strong>ndo por caminho diferente o seu itinerário histórico.


1 Nobiliário Castelo Branco. Ms.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Titt. de Bet.ur<br />

Este Apelido de B.ur he originário de França a honde he huma família <strong>da</strong> mais antiga nobreza na Provin<strong>da</strong> de Nornandia, he o seu sollar o lug.ar de B.ur<br />

Foi João B.ur S.r do Lugar de B.ur e Grão Ville na Província de Normandia, foi Camareiro Mór do Duque de Borgonha: C. C.<br />

Ma<strong>da</strong>ma M.ª de Braça monte... f.ª de Reinaldo de Braça monte.<br />

1 Mr. João B.ur<br />

2 Reinaldo B.ur<br />

Mr. João B.ur sucedeu na casa de Seu Pay, passou a Castella em comp.ª de seu Primo Irmão Mr. Roberto de Braça monte, Almeirante de França em tempo que governava o Reino, a Rainha D. Constança, na<br />

menori<strong>da</strong>de de El-Rey H.r 3.°. A instancia do d.° seu Primo se lhe fês mercê <strong>da</strong>s Ilhas <strong>da</strong>s Canárias com o tt.° de Rey, com obrigação de pagar feudo e reconhecer vaçalage a Castella, e <strong>da</strong>ndo-se-lhe omenage<br />

vendeu ao Almeirante seu Primo, terras de que era Snr. em França p.ª empregar o valor na conquista <strong>da</strong>quellas Ilhas, a honde passou com uma boa Arma<strong>da</strong>: Conquistou as Ilhas de Lançarote, Gomeira, Forte<br />

Ventura e Ferro e ententando conquistar Gram Canária, perdeu muita gente e vendo-se com poucos sold.os e sem dinheiro, tornou a França a buscar ambas as cousas, deichando o Governo e defeza <strong>da</strong><br />

Conquista a seu Sobr.º Meciote de B.ur que tinha levado concigo de França,.<br />

Reinaldo de B.ur cazou em França com Ma<strong>da</strong>ma M.ª de Breante s. g. Caz. 2.ª vez com Ma<strong>da</strong>ma Felipa de Troyes de que teve<br />

1 Mecióte B.ur<br />

2 H.e de B.ur<br />

3 João de B.ur<br />

4 Jorge de B.ur<br />

Mecióte de B.ur veio com seu Tio em comp.ª de seu Irmão H.e de B.r honde ficaram governando em sua auzencia e por morte delle ficarão S.MS dellas, e falecendo seu irmão, ele as vendeu ao Inf.e D. H.e<br />

pellas Saboarias <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, por não poder sustentar as contínuas guerras que os naturais lhe fazião e com effeito veiu p.ª a d.ª Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>.<br />

1 D. Ma<strong>da</strong>ma de B.ur<br />

2 D. M.a B.ur<br />

3 D. Rodrigo de B.ur s. g. 4. D. Leonor<br />

D. Ma<strong>da</strong>ma de B.ur c. c. seu tio H.« de B.ur c. g.<br />

D. Maria de B.ur c. c. Ruy Gliz <strong>da</strong> Camr.a f.° de João Gliz Zarco e de Constança Roiz d'Almei<strong>da</strong> s. g.<br />

D. Leonor B.ur c. c. Ariste Perpedom Francês q. foi para as conquistas <strong>da</strong>quellas Ilhas c. g.<br />

2 Na freguesia de S. Roque na liba <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> houve também uma capela sob a invocação de N.ª S.ª de Bitancor, e que serviu temporariamente de paroquial, em terra pertencente a um ramo desta família.<br />

3 Na 2.ª viagem de Zarco foram encontrados na Ilha do Porto Santo alguns franciscanos, escapados dum naufrágio, no sitio do Porto dos Frades, e que se dirigiam á Ilha de Lançarote, a pedido do bispo D. Fr.<br />

Mendo de Viedma que «fue el primero que trajo a islãs algunos religiosos de su orden».<br />

4 O documento mais antigo tombado no Arquivo <strong>da</strong> Câmara Municipal do Funchal, refere-se a uma carta de D. João I, em 1425, agradecendo os auxilios prestados.<br />

5 Historia de Canárias - J. Vieira y Clavijo —T. I.<br />

6 Azurara — Chr. do Desc. Capitello LXXXlY. Como o iffante dom Henrique requereo a el Reg os direitos de Canarea.<br />

L R V (R=40) Como Antam Qilz. foi receber a ilha de Lançarote em nome do Iffante.<br />

7 J. Barros. — Dec. I.<br />

8 Azurara. LXVIII. Como a caravela de Álvaro Gllz Dataide e a de Picanço e outra de Favilla fezeron conserva e dos Canareos que filharam.<br />

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LXXXV — Como tornou a caravella de Álvaro Dornelas e dos cacanareus que tomou.<br />

9 Viera y Clavijo — H.ª de Canárias Tona. 1.°<br />

10 Quadro Elementar, V. Iº.<br />

11 Clavijo. Tomo I.<br />

Entre los cuales son conocidos Pedro de A<strong>da</strong>y y Luís Casanas.<br />

Idem. Tomo II, noutra passagem: Eran estos fugitivos Pedro y Juan de A<strong>da</strong>y, Juan Ramos, Fancisco Garcia, Bartolomé Heneto y Juan Bernal.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

12 Nobiliário Castelo Branco. Titulo Auxioli.<br />

Simão Auxioli Florentino de Nação, o 1.° q. passou á ilba <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> pello 1515, fez acento na cid. do F.ª a honde edificou cazas cobres na rua q. antigam.te leve o seu nome, e hoje so diz dos Ferr.os Instituto hum<br />

Morgd.º com uma capella na sua Quinta, M. 15 de Fevr.º 1544. c. c. M.ª Pimentel, f.ª de Pedro Roiz Pimentel.<br />

Zanobio Auxioli f.° 2.° de Simão Auxioli sucedeo nos Morgd.0s de seu Pay e irmão fez Morgd.0 de seus bens q. unio aos de seu Pay e irmão. M. 20 de Mayo de 1598. C. em 19 de Mayo <strong>da</strong> 1562 c. M.ª de Vasa08 f.M<br />

de Dunrte Mendes de Vasc.os e de Joanoa Roiz Mondragão.<br />

A capela dedica<strong>da</strong> a Santa Ana, conheci<strong>da</strong> também pela de N.ª S.ª <strong>da</strong> Nativi<strong>da</strong>de ou do Faial, é talha<strong>da</strong> em forma de uma cruz, tendo exteriormente os ângulos encimados por uma cruz de Cristo que alterou com<br />

carocheus em pirâmide quadrangular. No interior ha várias cruzes indicativas <strong>da</strong> sagração, e no altar mór uma táboa seiscentista representando S. Joaquim, Santana e a aparição <strong>da</strong> Virgem prometi<strong>da</strong>.<br />

Sobre o pórtico lê-se o seguinte díslico:<br />

1 582<br />

DELUMBRUM MAGNUS POSUIT ZENOB1US ANAE<br />

ANGELICUM RECITES VIRGINIS OPTAT AVE<br />

que quere dizer:<br />

O grande Zenóbio mandou construir o templo a Santana. Pede reses uma Ave Maria á Virgem dos Anjos.<br />

Na colecção Picken de litografias <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> encontra-se 2 estampas referentes a esta capela, — uma do frontispício com a lápide, porém copia<strong>da</strong> erra<strong>da</strong>mente - e outra com a sineira isola<strong>da</strong> num largo adjacente.<br />

13 Tomo 3.° do Arq. Geral f.ª 163.<br />

14 Livro 7.º dos casados, <strong>da</strong> Sé, fs 48 v.<br />

15 A la marqueza de Lançarote faleceu «en el cortijo de Inagnadén a 8 de mayo de 1588 de e<strong>da</strong>de setenta años».<br />

16 Quadro Elementar <strong>da</strong>s. Relações Políticas & T.° XVI.<br />

17 Livro 12.º dos Baptizados <strong>da</strong> Sé, fls. 183.<br />

18 assim deixamos escrito no nosso trabalho «Os alicerces para a História Militar <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>»<br />

19 Clavijo na H.ª cit. T. II classifica-o de «imbecil devoto y pusilámine».<br />

36


<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

20 Ms. Nob. Castelo Branco<br />

Titulo de Auxloly, Acclaloies &<br />

Deste enlace houve:<br />

1—D. Gonçalo Aux.or C. em 1.° de 7.bro 1622 c. D. Luisa Spinola f.ª de Luiz Meyrelles de Gamboa e de D. M.ª Spinola Aderno s. g.<br />

2.—D. Zenobio Aux.or q. M. moço em Jan. 1623.<br />

3.—D. Ant.° q. militou na Itália e sucedeo na Caza. C. em 5 de 7.bro 1626 c. D. Filipa de Soto Mayor. s. g.<br />

Caz. 2.a vez em 24 de Junho de 1638 c. sua prima D. Ignez de Vas.los f.a de Simão Aux.or de Vas.los e de D. Isabel de Vasc.los.<br />

4.—D. Coeme de Medicis. M. debaixo de numa rocha q. sobre elle e outros Fi<strong>da</strong>lgos cahio, estando em numa função na Meia Legoa, cuja quebra<strong>da</strong> foi tão grande q. nunca se poderão tirar.<br />

5.—Fr. Bernardino, educado em casa de seu Avô, em Lançarote.<br />

6.—D. Pedro q. M. menino.<br />

7.—D. Maria Aux.or. M. s. g.<br />

8.—D. Constança q. M. solteira em 1663.<br />

21 D. Joana Herrera Acioli faleceu no Funchal, a 6 de Maio de 1623, deixando em testamento a terça, no melhor parado dos seus bens ás fluas duas filhas, e a N.ª S.ª <strong>da</strong> Luz, de Gaula, um vestido de gorgorão de<br />

se<strong>da</strong> ou tafetá.<br />

L.° 7.° dos Óbitos <strong>da</strong> Sé-fs. 18 v.<br />

22 Xavier Pinheiro — Epitome <strong>da</strong> H.ª do Brasil — Cap. III.<br />

23 «Historia Militar <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>». Funchal 1912.<br />

24 Historia de Canárias T. III.<br />

37


38<br />

D. Sebastião e a <strong>Madeira</strong><br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Estando na Corte, em 1538, o 5.º donatário do Funchal, Simão Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, não quis escolher noiva<br />

senão ao gosto dos monarcas, de quem era muito estimado, e assim veio a esposar D. Isabel de Mendonça, <strong>da</strong>ma <strong>da</strong><br />

rainha D. Catarina, e sua parenta, com quem esta viera de Castela.<br />

Celebraram-se as escrituras nupciais em dia de S. Jerónimo, a 30 de Setembro desse ano, e D. João III dotou o<br />

noivo com 80.000 cruzados, fazendo-lhe a especial mercê <strong>da</strong> capitania em duas vi<strong>da</strong>s, podendo ser her<strong>da</strong><strong>da</strong> fora <strong>da</strong> lei<br />

mental.<br />

Pomposas festas abrilhantaram este casamento, a que assistiram o infante D. Luís e altas personagens <strong>da</strong> Corte.<br />

Deste enlace nasceu João Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, herdeiro <strong>da</strong> Capitania, vindo a seu tempo casar com D. Maria<br />

de Alencastre, <strong>da</strong>ma também <strong>da</strong> rainha D. Catarina que sempre fez muitas honras aos Câmaras, como narrado vai:<br />

«e depois que aos 20 dias de Janeiro do ano de 1554, a Princeza, mulher que foi do Príncipe D. João, seu filho,<br />

que está em Gloria, pario num filho, a que poz nome D. Sebastião por nacer em dia deste glorioso mártir, entre as outo e<br />

as nove horas do dia e por razão de ser neto do magnânimo Imperador Carlos V, quando aos 27 dias do dito mez e anno,<br />

<strong>da</strong> tarde, foi baptisado na varan<strong>da</strong> debaixo <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> Ribeira e foram padrinhos El-Rey D. João III, do nome, seu avô, e<br />

o Infante D. Luiz, e madrinhas a dita Raynha, sua avoo, e a Caraareira-môr, que o levava a baptizar, dizem que o levou<br />

nos braços este illustre Capitam João Gonçalves <strong>da</strong> Camará, e o Cardeal D. Henrique o baptisou e D. João Portugal,<br />

Clérigo e Bispo, e o filho do Mestre de Santiago D. Gomes, e o filho do Conde Mordomo-Mór, também Clérigo, todos três


39<br />

levaram a offerta e prata para o baptisar».<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Desde a pia se acostumou, portanto, D. Sebastião com gente gra<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, nas cerimónias do Paço.<br />

A capitôa do Funchal, D. Isabel de Mendonça, vindo a falecer em Lisboa, deixou por testamenteira a rainha que<br />

«não tomou suas filhas por <strong>da</strong>mas, antes as tinha diante de si assenta<strong>da</strong>s em outro estrado, e as casou com os principais<br />

homens de Portugal; — D. Aldonça de Mendonça com D. João de Mascarenhas capitão de ginetes e por este casamento<br />

vieram os condes de St.ª Cruz, Óbidos e Sabugosa e marqueses de Gouveia; — D. Leonor de Mendonça, com D. João de<br />

Alma<strong>da</strong> senhor do Sardnal, alcaide-mor de Abrantes, donde provêem, os condes de Penaguião Ribeira Grande, Atalaia<br />

Atou guia, e marqueses de Fontes».<br />

São irmãos do 5.° donatário do Funchal: — o Padre Luís Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, preceptor del-rei D. Sebastião; —<br />

Fernam Gonçalves <strong>da</strong> Gamara que com grande valor serviu em Tanger; — Martim Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, Clérigo,<br />

presidente <strong>da</strong> Mesa <strong>da</strong> Consciência, Escrivão <strong>da</strong> Puri<strong>da</strong>de, Presidente do Despacho do Desembargo do Paço e Veador <strong>da</strong><br />

Fazen<strong>da</strong>.<br />

Modernamente, renovando-se ciência que estava posta de parte, admite-se a influencia dos astros sobre os seres<br />

viventes, metendo em equação—dia e mês, dum nascimento—o que já fora objecto de consulta dos oráculos, com<br />

interpretações sobre o futuro. De novo se procura perscrutar certas forças estranhas que devem vir de incomensuráveis<br />

distancias actuar sobre a matéria viva e ain<strong>da</strong> reflectir-se nas potências <strong>da</strong> alma; avivar predisposições, desenvolver<br />

quali<strong>da</strong>des, acor<strong>da</strong>ndo o que por enquanto vinha sendo atribuído apenas a taras, hereditarie<strong>da</strong>de, coeficiência <strong>da</strong> célula,<br />

a que o povo, na sua ignorância observadora, chamava já — an<strong>da</strong>i nas suas sinas; ter telha corri<strong>da</strong>; veia torta; areia,<br />

panca<strong>da</strong>, veneta; ou ain<strong>da</strong> aranha no miolo ou macaquinhos no sótão. Tudo isto representando graus de maluqueira<br />

bran<strong>da</strong>, porém com responsabili<strong>da</strong>de dos actos.<br />

Experiências de carácter científico assinalam a existência de certas on<strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s penetrantes que actuam<br />

sobre o físico desenvolvimento e até sobre o moral com suas tendências subconscientes. As influências do meio, é certo,<br />

constituem o habitat e de tal forma se evidenciam que vêem diferenciando géneros com marcados característicos que só<br />

agora parece melhor se fixaram e que no entanto de há muito preponderavam, sem perscrutar-se as suas causas.<br />

Componentes várias, predominando as <strong>da</strong> fibra nervosa, deram um D. Sebastião um tanto irremediável,<br />

irrequieto no ânimo, de quem se tem dito desconcertos e desencontros, no embate de opiniões, olha<strong>da</strong>s ca<strong>da</strong> uma através<br />

do seu prisma.<br />

Já o mestre Duarte Nunes, astrólogo e matemático do Paço, tinha as suas razões, basea<strong>da</strong>s nos estranhos<br />

cálculos <strong>da</strong> época, para estar triste, quando <strong>da</strong>s imponentes festas <strong>da</strong> maiori<strong>da</strong>de do seu discípulo, porque, em seu


40<br />

prognóstico, D. Sebastião devia ser, em tudo, na<strong>da</strong> menos que um desgraçado.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Interpretavam-se sinais, ligavam-se acasos, e o terreno era fecundo para creduli<strong>da</strong>des. E, segui<strong>da</strong>mente, depois<br />

de tantas alegranças havi<strong>da</strong>s, a amargura e o desassossego pairavam em todo o Reino, numa incerteza do futuro, vindo á<br />

baila, ressonâncias, profecias, e até interpretações bíblicas desconexas e as mais varia<strong>da</strong>s, numa <strong>da</strong>s quais, o rei seria<br />

arrebatado como Elias e Enoch, destruído o sonho <strong>da</strong> esperança nacional, por uma nuvem densa de tempestade do Sul,<br />

que mais tarde se renovaria luminosa, como um halos de redenção.<br />

Alem <strong>da</strong>s componentes iniciais, o jovem rei foi criado entre discórdias de parentes, subordinado a uma tutoria e<br />

regência desgostosas. Parecia tudo combinado para provocar a inquietação. Lamentações insidiam sobre a rainha avó<br />

por ser castelhana; não poupavam também o tio-avô cardeal D. Henrique, de desavisa<strong>da</strong> prudência e frouxa opinião.<br />

A afecta<strong>da</strong> amizade do rei de Espanha, imperador vizinho, disfarçando intenções, alegava o parentesco para se<br />

intrometer nos assuntos de família e mais complicava a situação angustiosa nas diligências em procura duma noiva para<br />

o jovem monarca.<br />

Já as Cortes de 1562, quando o cardeal assumira a regência, apresentaram a preposição «que se caze el-Rei,<br />

posto que não tinha i<strong>da</strong>de e que seja em França tendo em vista a princeza Margari<strong>da</strong> de Valois, então com 10 anos de<br />

i<strong>da</strong>de».<br />

Aos 14 anos (1568) D. Sebastião fortemente contrariado, sacode os conselhos, não quere pareceres sobro os seus<br />

intentos. Em sua mente, ser rei, era resolver o que muito bem entendesse.<br />

As suas tendências não podiam ser estorva<strong>da</strong>s. Orgulhoso <strong>da</strong> realeza, esquivava-se no entanto às contumélias <strong>da</strong><br />

Corte, 1'urtando-se aos carinhos e ás afeições.<br />

Endureceu-se em desatinados propósitos, num fervor de ousados planos, expondo-se a exercidos e fadigas de<br />

montarias e caça<strong>da</strong>s, não evitando os perigos, antes os provocando.<br />

Inflamava-se na leitura <strong>da</strong>s façanhas heróicas e queria ultrapassar em esplendor <strong>da</strong>s armas, os cometimentos de<br />

seus antepassados, ain<strong>da</strong> mesmo as campanhas de Carlos V.<br />

Comprazia-se em se julgar um predestinado para levar a fé ás mais remotas regiões e essa confiança era<br />

vigorosa, latente em si, numa levian<strong>da</strong>de de prestar tais serviços que forçariam o auxílio de Deus.<br />

Todos se assustavam — o cardeal, a rainha, os ministros tratando de arre<strong>da</strong>r imprudências e coibir os


41<br />

entusiasmos guerreiros.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A entrelaça<strong>da</strong> política, em que predominavam os interesses <strong>da</strong> casa de Áustria, apontava-lhe uma noiva, ora<br />

outra, e voltava de novo, a insistir na primeira.<br />

Martim Gonçalves <strong>da</strong> Câmara era pela irmã de Carlos IX.<br />

Em seu parecer convinha a Portugal esta aliança como um escudo proveitoso, e demais, donde nos poderiam vir<br />

mantimentos de que tanto o reino carecia.<br />

Luís Gonçalves <strong>da</strong> Câmara apoiava o irmão procurando com sábias reflexões acudir às impaciências do monarca<br />

quando ouvia conselhos, mostrando-lhe a sua obrigação de legar directos sucessores a dinastia.<br />

Retrato de D. Sebastião existente na sacristia <strong>da</strong> Igreja de S. João Evangelista (Colégio) do Funchal<br />

A projecta<strong>da</strong> escolha duma princesa na casa de França não tinha as simpatias do povo.<br />

Navios franceses entravam os nossos portos ve<strong>da</strong>dos no Brasil pactuando com os indignas, contra a soberania<br />

portuguesa.


42<br />

Protestos desatendidos em delonga<strong>da</strong>s reclamações diplomáticas deram azo a suspeições.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O gabinete de Carlos IX prometera providências, mas negligenciava ou não tinha força para fazer punir os<br />

culpados.<br />

Sucedera-se depois o ataque ao Porto Santo — <strong>Madeira</strong>. Em 1566, um filho do marechal Montluc, espírito<br />

aventureiro e au<strong>da</strong>z, desejoso de assinalar-se, também, num grande feito, delineou, por sua conta uma expedição à<br />

Guiné.<br />

Saindo de Bordéus com três galeões armados, havia ao serviço um português, de Tanger, despeitado, a quem<br />

tinham sido confiscados os bens. Velejaram ao Porto Santo, sendo esta ilha saquea<strong>da</strong> em 1 de Outubro, e dois dias<br />

depois, passando pacificamente ao largo <strong>da</strong> baía do Funchal, aportaram á Praia Formosa, donde, sem quase resistência,<br />

distribuiu Montluc duas colunas de assalto que marcharam sobre a ci<strong>da</strong>de despreveni<strong>da</strong>, reconhecendo tardiamente que<br />

os franceses eram corsários. Na passagem <strong>da</strong> Ribeira de S. João foi ajunta<strong>da</strong> gente á pressa para o encontro, sem governo<br />

de peleja, pois o governador Francisco Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, lóco-tenente de seu sobrinho, o donatário do Funchal que<br />

se achava na Corte, não concebera poder tratar-se de inimigos, e só quando soube que eram entrados, e que alguns<br />

capitães <strong>da</strong>s ordenanças por sua iniciativa se movimentavam, é que secundou a defensiva atabalhoa<strong>da</strong>mente, vindo a<br />

render-se na Fortaleza de S. Lourenço, onde ficou prisioneiro. Ain<strong>da</strong> <strong>da</strong>li, emanou ordens para que as forças dos outros<br />

distritos não viessem socorrer a ci<strong>da</strong>de, pois temia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> própria e <strong>da</strong>s nobres <strong>da</strong>mas que como ele estavam reti<strong>da</strong>s o de<br />

penhor no palácio.<br />

Desta sorte, foi tremendo o saque, e os franceses ébrios cometeram as mais estupen<strong>da</strong>s cruel<strong>da</strong>des durante 16<br />

dias que permaneceram na ci<strong>da</strong>de, transformando-a num campo imundo duma sangrenta refrega.<br />

Foram tantas as riquezas despoja<strong>da</strong>s que abarrotaram os navios tomados no porto para carga e com esta se<br />

fizeram á vela, tomando o rumo sueste.<br />

Chega<strong>da</strong> a triste nova ao reino, uma esquadra se preparou para vir castigar o inimigo e enquanto esta se<br />

compunha, afoitou-se de avanço o donatário com gente sua, mas ao aportar ao Funchal, seis dias eram decorridos após a<br />

saí<strong>da</strong> dos corsários,<br />

A arma<strong>da</strong> de socorro à <strong>Madeira</strong>, composta de «outo galiões grossos e algumas caravelas e zabras» de que era<br />

coman<strong>da</strong>nte Sebastião de Sá, chegou de atrazo e preparava-se para ir na perseguição dos franceses, mas consentindo o<br />

capitão-mór que viés, sem os sol<strong>da</strong>dos a terra, saciaram-se do bom vinho restante nas adegas e gulosos mantimentos


43<br />

encontrados.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Melhor fora, não terem vindo, para tal auxílio, pois só ao cabo de oito dias se embarcaram, mal dispostos para a<br />

sua missão, de combate.<br />

Chegando ás Ilhas Canárias, já <strong>da</strong>li os franceses tinham levantado, e enquanto estes regressavam á França, a<br />

arma<strong>da</strong> portuguesa ia procurá-los para a Guiné.<br />

A plena reparação <strong>da</strong> afronta e <strong>da</strong>nos causados pelos corsários franceses foi exigi<strong>da</strong> pelo embaixador português<br />

em Paris sendo-lhe manifestado o grande pesar pelo sucedido, a muita consideração por Portugal e a promessa de Carlos<br />

IX, de que se esforçaria por não deixar impunes os crimes de seus vassalos. Mas estes eram duma facção possante,<br />

dispondo de influência política e religiosa que abalava os alicerces do trono.<br />

D. Sebastião desgostou-se sobremaneira e os rodeios diplomáticos impacientavam-no.<br />

Na sua altivez astuciosa, põe de parte as negociações do consorcio, enquanto não lhe sejam <strong>da</strong><strong>da</strong>s as satisfações<br />

devi<strong>da</strong>s pelos roubos e insultos causados pelos franceses na <strong>Madeira</strong> e Porto Santo, e assim gorou a aliança na Casa dos<br />

Valois.<br />

Os factos precipitavam-se e mais a teimado ficava nas suas resoluções:<br />

Santo Inácio de Azevedo o seus 39 companheiros, depois de lerem estado algumas semanas no Funchal em<br />

repouso, seguiam para unia missão no Brasil tia nau «Santiago» quando a 15 de Julho de 1570, na altura <strong>da</strong>s Canárias<br />

foram assaltados por 4 naus do corsário francês Jacques Sória que fez a abor<strong>da</strong>gem, passando-os a fio de espa<strong>da</strong>.<br />

No ano imediato, em 13 de Outubro, a arma<strong>da</strong> de D. Luís Fernandes de Vasconcelos, nestes mares, trava<br />

renhido combate com a divisão de corso de Jean Capdeville e to<strong>da</strong> a tripulação portuguesa é truci<strong>da</strong><strong>da</strong>, incluindo 12<br />

missionários.<br />

A Rochela era o baluarte potente donde saiam ao mar os corsários calvinistas que apoquentavam as frotas e os<br />

domínios portugueses.<br />

D. Sebastião, indignado, propõe ao rei de França uma acção combina<strong>da</strong> para os bater e na delonga <strong>da</strong> decisão<br />

concebe o plano de organizar uma arma<strong>da</strong> para os ir castigar no seu refúgio. Era uma jactância em assinalar o seu valor e<br />

patentear, ao mesmo tempo, o zelo pela fé.


44<br />

An<strong>da</strong>va á procura duma ocasião propicia, para que desse largas á sua devoção exagera<strong>da</strong>.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Temeram-se um tanto os huguenotes <strong>da</strong> realização deste intento, parecendo coibir audácias e intentando<br />

negociações.<br />

No tempo do 5.° donatário do Funchal, Simão Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, «veyo surgir ao porto do Funchal, com sete<br />

galiões muito poderosos, hum cossario de França chamado Pee de Páo, depois de ter rouba<strong>da</strong> a Ilha <strong>da</strong> Palma, huma <strong>da</strong>s<br />

Canárias; visto o qual pelo dito Capitam Simão Gonçalves <strong>da</strong> Camará e reconheci<strong>da</strong> a arma<strong>da</strong> dos contrários, com muito<br />

esfoço mandou este logo despejar seis náos de franceses, que estavam tio porto ao assucar, e as encheo de gente<br />

portuguesa e com muitas munições de guerra, enviando bateis com recado ao dito cossario que não quizesse sahir em<br />

terra com sua gente, por quanto elle estava aparelhado para castigar a quem lhe quizesse fazer aggravo; ao que o Pee de<br />

páo respondeo que mais queria servi-lo, que aggravalo; e assi o cumprio, ain<strong>da</strong> que, de sua licença, sahiram em terra, a<br />

comprar mantimentos e vender muitas cousas que traziam duzentos franceses, trazendo a Jaeques Soria por seu capitam<br />

para os castigar, se se desman<strong>da</strong>ssem: e em outo dias que Pee de pio esteve surto no porto, o capitam Simão Gonçalves<br />

<strong>da</strong> Camará vigiava e man<strong>da</strong>va vigiar a ci<strong>da</strong>de de noute com suas estancias, sem embargo <strong>da</strong> amizade e paz que o cossario<br />

lhe prometera.»<br />

Esta transigência, to<strong>da</strong> revesti<strong>da</strong> de cautelas denota bem fraquesa, ou o terror ain<strong>da</strong> latente dos horrorosos dias<br />

de 1566.<br />

O jovem rei cavalheiresco inflamava-se na proeza dos seus vassalos no Oriente, e nasceu nele o pensamento de<br />

atravessar os mares, como o Gama, e ir receber o preito dos potentados <strong>da</strong>s mais remotas regiões. Cuidou logo nesta<br />

realização e bem custoso foi dissuadi-lo de tão leviana empresa e perigosa jorna<strong>da</strong>, sendo preciso demonstrar que<br />

dificilmente se aprontava uma arma<strong>da</strong> para render de 3 em 3 anos os governadores <strong>da</strong> índia, pois faltava o cabe<strong>da</strong>l<br />

mormente para a pompa requeri<strong>da</strong>, visto que D. Sebastião queria assombrar o Oriente com a majestade dum grande<br />

imperador.<br />

Voltou-se então na escolha de um teatro mais próximo e belicoso e de menos curta travessia, figurando-se-lhe<br />

um dever de resgate, chamar á Coroa as praças de África que seu avô havia abandonado, sem esforço.<br />

Tinha este segredo confiado apenas a poucos mancebos aduladores, mas adivinhou-o Luís Gonçalves <strong>da</strong> Câmara<br />

— «Um dia, nos Paços <strong>da</strong> Ribeira, segundo afirma o padre Amador Rebelo, o Mestre, não podendo conter-se, estranhou<br />

com severi<strong>da</strong>de a arrebata<strong>da</strong> jorna<strong>da</strong> de África; de na<strong>da</strong> serviu, porém, o conselho; o monarcha emprehendeu-a mezes


45<br />

depois, cerrando os ouvidos ás suas instancias».<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Fi<strong>da</strong>lgos moços aplaudiam o monarca. D. António, prior do Crato, e seu parente, segue para Tanger em 1574<br />

com 400 cavaleiros para os preparativos <strong>da</strong> recepção.<br />

As súplicas, as lágrimas até, dos dois madeirenses na<strong>da</strong> conseguiram de D. Sebastião. «Ouvio os silencioso; não<br />

se offendeu com as suas queixas». E partiu.<br />

Luís Gonçalves <strong>da</strong> Câmara deixou então Lisboa, para recolher-se ao Colégio de Coimbra, contristado e doente,<br />

pressentindo o perigo <strong>da</strong> aventura. Martim Gonçalves <strong>da</strong> Câmara retirou-se <strong>da</strong> Corte para o Convento de Bemfica. O<br />

cardeal D. Henrique, de novo tomara as rédeas do Governo.<br />

A ver<strong>da</strong>deira expressão de glória sintetizava-a na conquista. Sem nenhuma experiência, afigurava-se-lhe<br />

desagravar as injúriass do passado sacudindo os árabes de Marrocos.<br />

Mediu então os recursos e reconheceu que era exíguos, apesar de os chefes mouros cautelosos e advertidos se<br />

furtarem ao embate cubicado.<br />

A rainha-avó não cessava de pedir-lhe que voltasse ao reino, «se não queria que o fosse buscar em pessoa»<br />

porque era geral o receio e amarga a perturbação.<br />

Luís Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, agrava<strong>da</strong> a doença pelo desprezo de seu parecer contrário á jorna<strong>da</strong>, escreve ain<strong>da</strong><br />

invocando Deus por testemunha—«que a causa que o tinha prostrado no leito de morte, não fora outra senão o profundo<br />

pesar de o saber tão longe dos seus vassalos e exposto a tantos perigos, concluindo por lhe rogar encareci<strong>da</strong>mente, que<br />

voltasse para consolar o reino, com a sua vista. Sendo as últimas confidências do homem, que tanto venerava, D.<br />

Sebastião, com os olhos arrasados de lágrimas, pungido pelo remorso, ou pela sau<strong>da</strong>de, e meio resolvido já a ceder, não<br />

demorou mais a parti<strong>da</strong>».<br />

A arma<strong>da</strong> largou de Tanger. Um vento rijo de nordeste cavou as on<strong>da</strong>s que se encapelaram em furiosa<br />

tempestade, trazendo isolado o galeão real «S. Martinho» a deman<strong>da</strong>r a altura <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, a terra natal do<br />

perceptor, a que teria provavelmente aportado, se não pensasse que a demora punha cuidos de tragédia pela ausência de<br />

novas <strong>da</strong> sua rota.<br />

Em dia de finados, e mau agouro, chegou á barra, restituindo a tranquili<strong>da</strong>de ao sobressalto que se avolumava já<br />

com as preces públicas que o Cardeal man<strong>da</strong>va celebrar.


46<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Não se demorou el-rei em ir abraçar o seu antigo mestre ao Colégio de St.º Antão, e comoveu-se ante o seu<br />

aspecto de moribundo. Despediu-se talvez penitenciado, mas na sua fibra vibrátil não se demoravam as tristezas e<br />

depressa, sob o ascendente duma vontade mais forte, por ter sido sofrea<strong>da</strong>, dispõe as coisas, embora com certo disfarce,<br />

para voltar segun<strong>da</strong> vez a África.<br />

Luís Gonçalves <strong>da</strong> Câmara finou-se a 15 de Março de 1575. A nova do falecimento abalou sensivelmente D.<br />

Sebastião.<br />

«Depois de se encerrar por três horas na sua Câmara em sombrias reflexões, saiu do paço e buscou a solidão,<br />

para desafogar a magoa, recolhendo-se a Nossa Senhora do Espinheiro, mosteiro <strong>da</strong> ordem de S. Jeronymo, onde entrou<br />

coberto de luto e se conservou em vigília to<strong>da</strong> a noite».<br />

O ânimo do monarca reagia para se não suplantar em fraquezas. A morte do perceptor desligou-o de um<br />

embaraço e <strong>da</strong> tenaz oposição á sua Índole altiva, importuna<strong>da</strong> frequentemente com avisos. Assim, a ideia do domínio<br />

abafava as afeições, e tornou-se mais absoluto na vontade.<br />

A retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte de Martim Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, que por tanto tempo governara o reino, foi outro alivio,<br />

convertendo em propósito firme os seus incoerentes planos. O antigo escrivão <strong>da</strong> Puri<strong>da</strong>de, era agora acusado pelo<br />

partido dos jovens elevados á confiança régia, de ter sido um inexperiente em assuntos <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> e haver arruinado o<br />

reino com leis que deveriam ser prontamente revogados. Defendia-o apenas seu primo, o Padre Leão Henriques,<br />

madeirense também, confessor do Cardeal Infante, não deixando de «escapar nenhum ensejo accomo<strong>da</strong>do para<br />

inquietar os que o tinham supplantado». Por fim, retirou-se para a Universi<strong>da</strong>de de Évora, onde foi reitor.<br />

Ca<strong>da</strong> ano se agravavam as dificul<strong>da</strong>des financeiras. Uma falsa opulência mascarava os sacrifícios em que se<br />

esvaiam todos os cofres.<br />

D. Sebastião tinha impaciências e não sossegava, querendo vencer os contratempos. Pensou então que o<br />

casamento era uma negociação para um grande dote.<br />

É certo que o carácter se modifica na pressão de tempo e <strong>da</strong>s circunstâncias; as tendências, o gosto sofrem<br />

evoluções, porém, o peso <strong>da</strong> hereditarie<strong>da</strong>de marca uma directriz dominante, que para o rei mancebo era um sonho de<br />

ambição e de glória.<br />

Determinou-se então, a arriscar um passo, fiado no êxito <strong>da</strong>s negociações. Varrendo antigos ressentimentos,<br />

despacha ara embaixador á corte de Felipe II, encarregado de fazer sentir o interesse comum na defesa <strong>da</strong>s praças de


47<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Portugal e Castela, ameaça<strong>da</strong>s pelas vitórias do rei de Fez nas suas lutas contra os parentes. Para radicar melhor esta<br />

aliança, oferece a coroa de rainha á infanta D. Isabel Clara, entrelaçando de novo as duas monarquias.<br />

Tio e sobrinho encontraram-se em Gua<strong>da</strong>lupe para melhor se entenderem.<br />

Filipe II, reservado e prudente, não via razões para uma liga militar nem tão pouco eminência de perigo<br />

enquanto durassem as discórdias civis dos infiéis; á proposta dos esposórios, desculpou-se com a tenra i<strong>da</strong>de de sua filha<br />

que contava 9 anos apenas, e que o contrato se demorasse até decorrer o tempo necessário.<br />

Estas evasivas de constrangimento foram como que uma mola que apressou os sucessos. Não deu lazer aos<br />

ministros impondo-lhes que aumentassem por todos os meios os rendimentos do Erário, recorrendo a empréstimos,<br />

comprando armamento munições e provimentos militares, alistando tropas, contratando mercenários para uma legião<br />

estrangeira.<br />

Muitas vezes, o caminho que tomam as coisas parece conduzir para um bom fim, e logo vem uma derivação<br />

inflexível que leva a um remate oposto, só pondera<strong>da</strong>s depois as causas que o produziram, apontando-se<br />

responsabili<strong>da</strong>des a capricho.<br />

O rei, tão desejado é um produto complexo <strong>da</strong> época, planta de estufa que ambiciona o sol; riacho, às que<strong>da</strong>s,<br />

que se lança ao mar.<br />

A sua imaginação ardente, num patriótico impulso, apressava as resoluções, desafiando a Fortuna já cança<strong>da</strong> de<br />

tanto advertir prudência.<br />

Arzila volta de surpresa à posse de Portugal, pela oferta dum alcaide partidário do infeliz xerife Muley-Hamed.<br />

Este, derrotado, estende as mãos suplicantes a D. Sebastião pedindo-lhe o auxilio na luta para a reconquista dos<br />

seus estados, submetendo-se de condição à vassalagem de Portugal!


48<br />

Interior <strong>da</strong> Igreja de S. João Evangelista (Colégio)<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Arrebatado e jubiloso <strong>da</strong>s vantagens que vinham ao seu encontro, querer ir mesmo em pessoa, o jovem rei,<br />

socorrer o príncipe destronado, mas levando na intenção a posse dos reinos <strong>da</strong> Berbéria.<br />

Encareci<strong>da</strong> mente lhe pedia a rainha D. Catarina que cedesse o comando e se não expusesse. Feri<strong>da</strong> no seu<br />

coração de avó, expirou consterna<strong>da</strong> quando se preparava a expedição.<br />

Participou o rei o seu intento á nobreza, pedindo-lhe todo o esforço, e assim <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> acorreram à hoste<br />

vários senhores com suas bandeiras, ostentando um fausto que não condizia com a repressão promulga<strong>da</strong> do luxo,<br />

ornando-se para a guerra como num convite para um festim real.<br />

Relata um cronista <strong>da</strong> época que «todos os fi<strong>da</strong>lgos levaram em seus curseis cabeça<strong>da</strong>sa e esporas de prata,


49<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

esmalta<strong>da</strong>s de ouro e azul, estribeiras lavra<strong>da</strong>s de mil figuras, nominas, peitorais, cilhas e cordões com borlas de ouro e<br />

troçaes. As mochilas com jaezes e cobertas, pelo menos, eram de veludo... Os escudeiros e pagens, que acompanhavam os<br />

senhores, trajavam como lacaios, os escravos, a libré de suas cores, chegando os mais opulentos a apresenta-los com<br />

gibões e calças de se<strong>da</strong>».<br />

João Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, primogénito do donatário do Funchal, achando-se em Lisboa, logo se preparou<br />

como <strong>da</strong> primeira jorna<strong>da</strong> «com muitas ten<strong>da</strong>s, cavallos e criados e gastou nisso muito do seu». Desta vez, o monarca<br />

porém não consentiu que o acompanhasse, porque era o herdeiro <strong>da</strong> capitania. Temia o perigo para este, e afouta mente<br />

não receava de si próprio!<br />

«Em tanta conta El-Rey tinha a João Gonçalves <strong>da</strong> Camará e a seu irmão Ruy Dias <strong>da</strong> Camará, que, quando<br />

jogava as canas, ou fazia algum outro folgar a pee ou cavallo, sempre os trazia juncto de si, mui privados.»<br />

Rui Dias <strong>da</strong> Câmara e seu cunhado D. João, casado com D. Aldonça, em maior ânimo se uniram á gente <strong>da</strong><br />

<strong>Madeira</strong>, acolhi<strong>da</strong> com aprazimento, experimenta<strong>da</strong> muita já, em socorro <strong>da</strong>s praças de África.<br />

António Garcia de Gamboa, sargento-mor do terço do Funchal; Luís de Góis, de Machico; Fernão Teixeira de<br />

Freitas, de Ponta Delga<strong>da</strong>; Frei Donato, frade Agostinho, filho de João Rodrigues Mondragão, <strong>da</strong> Calheta; António de<br />

Abreu e muitos outros vieram depressa trazer o seu esforço, ao chamamento do soberano.<br />

O repelão duma calami<strong>da</strong>de transtornou todos os projectos, pois estava destina<strong>da</strong> primeiramente a empresa de<br />

Larache que fica cinco léguas afasta<strong>da</strong> de Argila e foram as tropas acampar em pavilhões soberbos nas proximi<strong>da</strong>des<br />

desta ci<strong>da</strong>de, mais tempo do que necessário era, seguindo depois por terra 5 dias na fadiga ardente dos areais de África, e<br />

escasseando os viveres, vieram a tomar disposições numa colina donde avistaram o exercito inimigo na disposição de<br />

espera.<br />

A desconsideravel proporção fez com que as nossas forças ficassem envolvi<strong>da</strong>s, presas nas cadeias <strong>da</strong><br />

obediência, na lamentável ordem de batalha, sem desafogo nem previdência <strong>da</strong> retira<strong>da</strong>.<br />

Perdeu-se a esperança em redobra<strong>da</strong> dor, de olhos atónitos na per<strong>da</strong> do rei arrojado, ao furor <strong>da</strong> barbaria que<br />

fez voar pelos ares, num fragor horrendo, o pesado comboio <strong>da</strong>s munições!<br />

A desordem e perturbação foram sempre a fonte <strong>da</strong> ruína.<br />

Atingira a ci<strong>da</strong>de do Funchal, passante a primeira metade do século XVI, um alto grau de prosperi<strong>da</strong>de, pela


50<br />

intensificação do comércio, sendo porto na passagem <strong>da</strong>s grandes viagens ao Brasil e ao Oriente.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Opulenta se mostrava então, e seus moradores abastados se recreavam num desusado conforto e luxo, «com<br />

muitas alfayas e ricos enxovaes». Amolecia-se, assim, a têmpera belicosa, descui<strong>da</strong><strong>da</strong> ao desan<strong>da</strong>r do descanço que virá<br />

breve em trabalhos a ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> ventura.<br />

O saque au<strong>da</strong>cioso dos corsários foi um aproveitamento de ocasião, sem plano de assento, motivado na<br />

descoberta do desamparo e no temor infundido pelo desembarque inopinado na costa escusa e pedregosa, sem encontro<br />

de resistência.<br />

Redundou o desastre na procura dos meios era melhorar a defesa, remodelando-se as ordenanças, agrupados os<br />

núcleos em conformi<strong>da</strong>de com a população <strong>da</strong>s vilas e lugares, e sujeitas a uma instrução cui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Para esse fim, como<br />

monitores, vieram de Portugal 3 capitães do número e um sargento-mór de ordenanças, e mais um flamengo, com<br />

oposto de armeiro-real para cui<strong>da</strong>r do armamento.<br />

A fortificação, que se resumia ao baluarte velho de S. Lourenço, mereceu especial cui<strong>da</strong>do, pelo projecto de<br />

circunvalação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, traçado duma fortaleza ampla e defesa apropria<strong>da</strong> do litoral.<br />

D. Sebastião man<strong>da</strong> emprestar aos moradores <strong>da</strong> Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, 9.000 cruzados, pelo tempo de 6 anos, para<br />

as despesas de fortificação, atendendo aos «<strong>da</strong>mnos que lhes causaram os flamengos».<br />

Para aumentar os rendimentos <strong>da</strong> Real Fazen<strong>da</strong> foram cria<strong>da</strong>s as alfândegas de Santa Cruz e <strong>da</strong> Ilha do Porto<br />

Santo e várias alcaia<strong>da</strong>rias do mar.<br />

Os serviços de Justiça sofreram modificação e atendendo ao auxilio que o donatário do Funchal prestara em<br />

África, D. Sebastião lhe fez varias mercês, pelo que se intitulava:<br />

O Conde Simão Gonçalves <strong>da</strong> Câmara, do Conselho d'El-Rey Nosso Senhor, Capitam e Governador <strong>da</strong> Justiça na<br />

Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> na Jurisdição do Funchal, Vedor de Sua Fazen<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a dita Ilha, e na do Porto Sancto, Senhor <strong>da</strong>s<br />

Ilhas Desertas &.ª<br />

No reinado de D. Sebastião veio pela primeira vez á <strong>Madeira</strong>, o bispo diocesano, pois anteriormente declinavam<br />

esta missão nos seus coadjutores, deixando-se ficar em Portugal.<br />

D. Fr. Jorge de Lemos, foi portanto recebido com geral simpatia e demonstrações de regozijo. Foram cria<strong>da</strong>s


51<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

novas digni<strong>da</strong>des na Catedral que era a sede <strong>da</strong> única freguesia no Funchal, restaura<strong>da</strong> a de N.ª S.ª do Calhau e<br />

organiza<strong>da</strong> a de S. Pedro.<br />

O aumento <strong>da</strong> população fez com que fossem eleva<strong>da</strong>s algumas capelanias a paróquias no tempo de D.<br />

Sebastião, como — St.° António, Canhas, Atabúa, Arco <strong>da</strong> Calheta, Porto do Moniz; Agua de Pena, Caniçal e Porto <strong>da</strong><br />

Cruz. Floresceram as colegia<strong>da</strong>s e foi criado o Seminário do Funchal, por carta régia de 20 de Setembro de 1566.<br />

Os primeiros jesuítas vieram para a <strong>Madeira</strong>, na arma<strong>da</strong> de socorro, trazidos pelo donatário. D Sebastião fez<br />

uma boa dotação á Companhia, e com o produto de esmolas e doações particulares, levantou esta, o Colégio e sumptuosa<br />

igreja de S. João Evangelista; a cargo dos jesuítas estava a instituição de latim, literatura, filosofia e retórica, na Aula do<br />

Páteo.<br />

A preponderância do clero foi no entanto atenua<strong>da</strong>. D. Sebastião tinha uma ideia fixa que a tudo sobrepunha, e<br />

como o nervo <strong>da</strong> guerra é dinheiro, o primeiro recurso foi pedir ao papa, a décima eclesiástica, e mais a bula <strong>da</strong> Cruza<strong>da</strong><br />

que devia produzir bastante. Exigiu-se donativos aos povos; empenharam-se as ren<strong>da</strong>s reais; foi-se buscar o fundo do<br />

cofre dos órfãos; transigiu-se com os cristãos novos, em bom provento; veio o finto e o tributo sobre as fazen<strong>da</strong>s<br />

particulares, abrangendo to<strong>da</strong>s as classes.<br />

O próprio rei, com espanto dos prudentes e a lisonja dos moços arrogantes, contrariava as ordenações.<br />

As leis <strong>da</strong> vestimenta modesta e <strong>da</strong> comi<strong>da</strong> sóbria, a ponto de estar determinado que não se servisse prato de<br />

cuscuz em jantar que houvesse arroz, levaram um ponta-pé.<br />

Deslumbrava o fausto e preparam-se iguarias que seriam servi<strong>da</strong>s nas ten<strong>da</strong>s de campanha. O orgulho<br />

desmedido fez com que D. Sebastião levasse no galeão real, uma coroa de ouro cerrado para ser coroado imperador de<br />

Marrocos!<br />

Por isso, no momento <strong>da</strong> fatal parti<strong>da</strong>, muitos «suspiravam já pelo tempo de Martim Gonçalves e seu irmão, que<br />

ousavam ao menos resistir aos caprichos do mancebo».<br />

Depois, a alma combati<strong>da</strong> num tropel de fatali<strong>da</strong>des, corrige as imagens, modifica os conceitos, na ancia do<br />

vácuo <strong>da</strong>s coisas humanas, á procura <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de conforme a inclinação dos espírito, desejando profun<strong>da</strong>r além <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>des.<br />

Muitos duvi<strong>da</strong>ram <strong>da</strong> morte de D. Sebastião. Fanáticos interessantes que amontoam argumentos e provas


52<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

impossíveis, para não se libertarei» duma fórmula de crenças, não desanimam, e sentem uma satisfação desconheci<strong>da</strong><br />

que definem de leal<strong>da</strong>de.<br />

O moço rei D. Sebastião ain<strong>da</strong> é esperado, como alguns vultos desditosos na historia de outros países.<br />

Em noite alta, do minguante baixo, uma figura por vezes se esfuma ain<strong>da</strong>, no areal <strong>da</strong> praia do Porto Santo...


53<br />

CAMÕES ROUBADO<br />

(A ILHA DA MADEIRA)<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Fomos roubar o grande épico, pedindo-lhe versos para á Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, num desejo de que ele tivesse dito mais sobre<br />

a jóia mais fulgente de Portuga1, e num receio de quem peca, esfolheando os Luzia<strong>da</strong>s, como que topamos com o seu<br />

assentimento, a dizer:<br />

0 que eu sei, que por mim, vos será leve.<br />

OS LUSÍADAS. IV — LXXIX<br />

Era <strong>da</strong> len<strong>da</strong> antiga, estarem os mares semeados de monstros que impediam a passagem aos mais ousados navegadores<br />

que intentassem violar os mistérios do Tenebroso.<br />

A <strong>Madeira</strong>, virgem engrinal<strong>da</strong><strong>da</strong> e dormente no Atlântico, também teve seu guardião que durante longos séculos a defendeu<br />

de ser acor<strong>da</strong><strong>da</strong> no sonho de encantamento e inocência em que jazia, beija<strong>da</strong> <strong>da</strong>s águas, orna<strong>da</strong> de flores.<br />

Não o soube Camões, pois teria cantado essa figura ver<strong>da</strong>deira de monstro, ferreiro velho de Vulcano, que na ponta ao<br />

sul do Ilhéu de Baixo, destacado do Porto Santo, e na rota para a <strong>Madeira</strong>, se esforça por libertar-se de Neptuno que o<br />

petrificou, e a desgastar-se, olha agora, o céu, em atitude resigna<strong>da</strong>, por haver terminado seus fadários entregues a


54<br />

gente mais ver<strong>da</strong>deira e mais humana,<br />

LUSÍADAS canto II — LXXIV<br />

a gente Lusitana, sem que a visse.<br />

II— CII<br />

Seria então, primeiramente narrado, esse ante-A<strong>da</strong>mastor, como sentinela do Jardim do Mundo, ali posta<strong>da</strong>.<br />

Oh caso nunca visto e milagroso,<br />

II — XLVII<br />

como quem tinha em Deus a segurança.<br />

VIII — XXXI<br />

de serem os navegadores do Infante, trazidos de Tormenta, á quem tivesse de se render.<br />

Cousas do mar, que os homens não entendem<br />

súbitas trovoa<strong>da</strong>s, tenebrosas.<br />

Negros chuveiros, noites tenebrosas<br />

bramidos de trovões que o mundo fendem,<br />

V— XVI<br />

tudo passaram, Zarco e Tristão, para chegarem a um porto<br />

seguro de salvamento—o Porto Santo, amainado já<br />

o vento duro, fervido e medonho<br />

como quem despertou o horrendo sonho<br />

VI — XCIV<br />

E, não se atreveram desde logo a avançar mais. Uma bruma<br />

negrejava para o poente; o mar para além parecia referver,<br />

vinham ecos de abismos escancarados. Assim,<br />

aqueles tão famosos navegantes<br />

VII — XV<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>


55<br />

que tinham vindo singrando a costa do Berberia, onde,<br />

se mostraram nas armas singulares,<br />

III — XXIV<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Penedo ao sul do Ilhéu de Baixo-Porto Santo- semelhando um monstro marinho a sair <strong>da</strong> agua, devendo ser considerado<br />

como o Ante-A<strong>da</strong>mastor.<br />

não ousaram, de tão breve,<br />

Dos mares experimentar a fúria insana.<br />

II- CIV


56<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A Pedra-que-bole, corno aviso, entala<strong>da</strong> no baixio do Ilhéu próximo, rugia ao embate <strong>da</strong>s vagas, estorcendo-se a moer<br />

espumas, espa<strong>da</strong>na<strong>da</strong>s pela cabeça do monstro que meditava, escoando as cãs:<br />

E navegar meus longos mares ousas<br />

que eu tanto tempj ha que guardo e tenho,<br />

V— XLI<br />

Desta cansa<strong>da</strong> já velhice minha.<br />

IV-XC<br />

Pois vens ver os segredos escondidos<br />

<strong>da</strong> natureza e do húmido elemento,<br />

V— XLII<br />

— Que nautas ousados!...<br />

Do mesmo mar que sempre tenebroso<br />

lhes foi, quero que sejam repousados,<br />

IX— XXXIX<br />

Dai velas, disse, <strong>da</strong>i ao largo vento<br />

II— LXV<br />

e outra terra acharás de mais ver<strong>da</strong>de.<br />

II- LXIII<br />

Voltaram ao Infante e, de novo, este os man<strong>da</strong> a caminho do segredo. O Ante A<strong>da</strong>mastor lá estava a repetir<br />

e outra terra acharás de mais ver<strong>da</strong>de.<br />

Os navegadores sentiam estremecer, o que quer que fosse... vindo do mar...<br />

Vibrações existem que chamam e conduzem,... e a nau «S. Lourenço», do santo que não temia o fogo,<br />

por diante passar determinava,<br />

I— XLIV<br />

como se próprio fosse lho pedisse,<br />

U— CII


57<br />

para acharem a terra que buscavam<br />

II— LXXXIX<br />

Como que escutavam ain<strong>da</strong>, em fio ténue, a voz distante:<br />

Eu vos tenho entre todos escolhido Para numa empresa, qual a vós se deve<br />

IV— LXXIX<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O Mar <strong>da</strong> Travessa, de buliçoso, ficara em tapete azul a<strong>da</strong>mascado; as cortinas <strong>da</strong> aurora docemente se rasgavam, consumi<strong>da</strong>s<br />

num incêndio brando que punha reflexos no céu: em penugens de oiro e pétalas de rosa, esvoaçantes.<br />

Era o dia <strong>da</strong> Visitação—2 de Julho de 1419.<br />

Acor<strong>da</strong>va a <strong>Madeira</strong> do seu letargo de princesa encanta<strong>da</strong>.<br />

Já a manhã clara <strong>da</strong>va nos outeiros<br />

VI— XCH<br />

Estava a terra em montes revesti<strong>da</strong><br />

de verdes hervas e arvores flori<strong>da</strong>s<br />

VI- XII<br />

Arvoredo gentil sobre ella pende<br />

Como que prompto está para affeitar-se<br />

vendo-se no crystal resplandecente<br />

que em si está pintando propriamente.<br />

IX— LV<br />

Na formosa Ilha alegre, e deleitosa<br />

Claras fontes e límpi<strong>da</strong>s manavam<br />

Do cume, que a verdura tem viçosa<br />

IX— LIV<br />

Os nossos navegadores deram graças ao Altíssimo,<br />

Co'bumas mostras de espanto e admiração,<br />

II- Cl


58<br />

tanto que á nova terra se chegaram,<br />

VII— XVI<br />

clamando de entusiasmo:<br />

— <strong>Madeira</strong>! gentil <strong>Madeira</strong>!.<br />

Que do muito arvoredo assim se chama.<br />

V-V<br />

Terra do Paraizo! Terra <strong>da</strong> Promissão!<br />

Parte nenhuma do Mundo,<br />

Este clima, e este mar nos apresenta<br />

V— XXXVIII<br />

Funchal, Dezembro-1933.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>


59<br />

LITANIA DE AMOR<br />

(NUMA “LAPINHA” NA MADEIRA)<br />

Dia de Festa,<br />

Dia de Festa,<br />

Dia de Natal...<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Dia de luz serena que irradia jorros de carinho, ofuscando to<strong>da</strong>s as sombras por mais esguias e distantes.<br />

Dia de graça, de alegria e bênçãos.<br />

Dia magnânimo, entre todos generoso.<br />

Dia de cânticos, de infinitas transparências e vibrações no Céu.<br />

Dia de cantares, de esperanças e amor na terra.<br />

Dia de afecto calmo, contemplativo no encanto <strong>da</strong> família.<br />

Dia junto e quente, de bem-querenças e afagos no lar.<br />

Dia o mais favorecido em conchego amoroso.<br />

Dia do nascimento de Jesus.<br />

Dia do único fruto do Lirio-Virgem.


60<br />

Dia do abismo incomensurável <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de.<br />

Dia do consolo e abundância de graça.<br />

Dia do benefício em ventura espalha<strong>da</strong>.<br />

Dia do Deus-Menino, <strong>da</strong> lin<strong>da</strong> criança que nos sorri e bem nos conhece.<br />

Dia, pelos séculos antes, prometido.<br />

Dia magnifico de omnipotência e maravilha.<br />

Dia <strong>da</strong> Terra suplantando os astros.<br />

Dia do maior relâmpago de beleza em que to<strong>da</strong> a imensi<strong>da</strong>de se concentra.<br />

Dia máximo <strong>da</strong> excelsa super-encarnação.<br />

Dia admirável na essência, escravo duma promessa.<br />

Dia de misteriosas clari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Fé.<br />

Dia do espanto vacilante dos Ímpios.<br />

Dia derramado de encantos, fortaleza e virtude.<br />

Dia do resgate do Paraíso.<br />

Dia de glória no mais alto dos Céus.<br />

Dia de paz aos homens de boa vontade. Seja sempre bemdito este dia:<br />

Dia do<br />

Menino Deus,<br />

Deus de Amor,<br />

Menino Jesus.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>


61<br />

São João <strong>da</strong> Ribeira<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

QUASI mortos por não terem que comer, foram encontrados no Porto Santo, no local que ficou com o nome<br />

de Porto dos Frades, uns castelhanos <strong>da</strong> ordem de S. Francisco, que escaparam dum naufrágio, e se dirigiam para as<br />

Canárias.<br />

Vinha Zarco na sua segun<strong>da</strong> viagem com os outros capitães, e convidou alguns para a sua caravela com que<br />

veio à <strong>Madeira</strong>, enquanto outros ficaram com Perestrelo, de pousa<strong>da</strong>.<br />

Os franciscanos albergaram-se a Santa Catarina do Funchal. Depois, subindo as margens <strong>da</strong> ribeira que então<br />

teve o nome desta santa, escolheram um sitio aprazível e alargado, ao afago <strong>da</strong>s rolhas, fresco de arvoredo, onde as<br />

aguas tranquilas retraiam, para correrem depois, em rebeldia, estreita<strong>da</strong>s no leito.<br />

Veio-lhes à mente a cena bíblica do Jordão, e ali iniciaram um cenóbio, sob os auspícios do Baptista, que teve a<br />

sua instalação canónica por bula de Nicolau V, em 28 de Abril de 1450. Os primeiros superiores foram os castelhanos:<br />

— Fr: Pedro de Covarrubia e Fr. Pedro Zarca, até que em 1459 passaram os franciscanos a Xabregas, chamados por D.<br />

Afonso V.<br />

Em 1474 tomaram conta do cenóbio de S. João, franciscanos portugueses, organizando um hospício, aprovado<br />

por breve de Sixto IV, em 24 de Abril de 1476, os quais fun<strong>da</strong>ram depois, o convento de S. Francisco na vila do Funchal.<br />

O hospício caído em ruínas foi destruído por uma aluvião. Ali se enforcara um frade, por traças do diabo, diz o<br />

cronista.<br />

A capela de S. João foi reconstruí<strong>da</strong> no século XVI, mais ao distante do Ímpeto <strong>da</strong> ribeira e vários terrenos


62<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

anexos adquiridos pela Mitra, constituíram uma quinta, onde foi o primeiro Seminário, em obediência ao concilio de<br />

Trento e com as regalias concedi<strong>da</strong>s per D. Sebastião, em carta régia de 20 de Setembro de 1566.<br />

Pastorinho de cabelos em espirais de ouro, rechonchudo e forte, aperta á cinta, gracioso, um farrapo de pele de<br />

camelo a encobrir-lhe a nudez; mostra, descalço, um pé sito de neve, e é tão atraente neste todo de inocência,<br />

difundindo amor no 3eu olhar de oceano calmo, que, achegado, parece balar-lhe num pasmo de afeição, o branco<br />

cordeiro enternecido.<br />

Vemo-lo assim, nessas estampas, marcando rezas nos livros de missa <strong>da</strong>s raparigas, o santinho querido, o S.<br />

João, primo de Jesus; e já homem feito, o Percursor, junto a uma margem do rio Jordão, erguendo uma concha rósea a<br />

transbor<strong>da</strong>r sobre a cabeça do Nazareno, um fio de agua tão cristalino que, respingando, esparge á volta um esplendor.<br />

Muita gente na nossa terra lhe é devota e tem amor; há mesmo crenças sarapinta<strong>da</strong>s de idolatria.<br />

Recomen<strong>da</strong>m-lhe isto, pedem aquilo, instam alguns a querer — assim, e logo aqueles desejando assado, — a<br />

ele se agarram com tal confiança, a pedinchar com tal afinco, que o filho de Santa Isabel e de Zacharias em sérios<br />

embaraços se deve ver, para resolver, sem desgostar a quem quer que seja.<br />

Isso, na véspera, é que era então. Mal tocava o sino ao cair <strong>da</strong> tarde, soando o bronze além, ia grande a faina<br />

no fazer <strong>da</strong>s sortes, tomavam-se bochechos por de traz <strong>da</strong>s portas, um quebrar de ovos em copos de agua, um pelar de<br />

favas para saber a fortuna; tremiam histéricas pelo seu porvir, mirando-se na agua a adivinhar a morte; lá vão sapatos<br />

pela esca<strong>da</strong> abaixo; rezas tempera<strong>da</strong>s com alecrim; e pelas encostas, no luso-fusco <strong>da</strong> hora angelical, tremeluziam<br />

pirilampos, pontos de fogo, a contornar a montanha pela negridão; ardiam ramagens, estalavam galhos; fumavam<br />

colunas encinzeira<strong>da</strong>s, rodopiando faúlhas a esvoçar, que iam bem alto, nessas fogueiras a S. João.


63<br />

Capela de S. João Batista<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Pelas novenas, acampavam barracas em esqueletos de pinho forra<strong>da</strong>s a louro, e divisórias, cubículos, com<br />

tábua para mesa, bancos corridos ou cestos voltados com o fundo para assento. Era grande a concorrência a estes<br />

esconderijos; mesmo, filé em provar a carne de vinho e alhos, a espeta<strong>da</strong> de louro, o prato de guisado; evolava-se um<br />

aroma coado <strong>da</strong>s ramagens, havia um tzx <strong>da</strong>s frigideiras, crispado de estalidos, onde se derretia a gordura para a<br />

petisco quente. Tinha certa atracção todo este conjunto, mas era preciso não olhar para a celha dos pratos onde num<br />

banho de instantes, algo gorduroso, apareciam de novo ao seguinte freguês esfomeado de esperar.<br />

Era aperitivo obrigatório a cebolinha de escabeche, picante a valer, para puxar o vinho, e acobertar-lhe as<br />

mazelas de mouro baptizado.<br />

Espaçavam-se os mastros forrados na base de esgalhos floridos, tremulando ao topo, bandeiras e sinais;<br />

seguiam-se os bazares de toldo de lona com sortes, todos os dias reforça<strong>da</strong>s de branco; lotarias de objectos em roletas<br />

de bichos ou outras figuras; comprava um, o galo; outro, o macaco; mas a tendência to<strong>da</strong> era para sair em burro...<br />

Tabuleiros com doces duvidosos, cavacas a palmilha<strong>da</strong>s, rebuçados húmidos, melando o papel; o jogo <strong>da</strong>


64<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

mosquinha e do <strong>da</strong>do para lhes <strong>da</strong>r extracção; celhas de tremoços cortidos a capricho de sal e alho; mesões de fruta<br />

apanha<strong>da</strong> verde, não faltando a perinha de S. João, e quartolas apostatando a uva, ocupavam todo o muro que ladeia o<br />

caminho.<br />

Do outro lado, a margem é alta e escarpa<strong>da</strong>. O rochedo par<strong>da</strong>cento anegrado ao alto, cospe pelas frinchas<br />

plantas raquíticas, tutela<strong>da</strong>s pelos áloes e tabaibeiras.<br />

Correm-lhe ao cimo os terrenos <strong>da</strong> Acha<strong>da</strong> que deitam fazen<strong>da</strong>s, quintais e mirantes, para este lado <strong>da</strong> ribeira,<br />

debruçando-se, acocorados, socavando a riba; ou alteando além, numa irregulari<strong>da</strong>de tal, que iluminados á noite com<br />

grinal<strong>da</strong>s de vidrinhos, traçavam, suspenso num fundo escuro, o dorso fosforescente de um dragão de fábula.<br />

No fundo <strong>da</strong> ribeira, entre pedras macias, passa vagarosa a agua do verão, cantando nas poças recor<strong>da</strong>ções;<br />

canaviais espigados, vimeiros sedentos, bananeiras altas, inhames aos bardos, acolhem-se nas escarpas que resvalam<br />

para o leito; e trazendo cestos com pestiqueira, desciam lá abaixo, grupos folgazões para comes e bebes e trovas ao<br />

santo.<br />

Coachavam as rãs e o seu cantochão de capuchas, salmejando roucas ao desafio...<br />

Ao cabeço do monte vinham tocar o hino, os filarmónicos pagos para assoprar o latão, e era praxe ascender até<br />

onde os miguelistas engendraram um forte dum disparate estratégico para bater a fortaleza do Pico, no tempo dos<br />

papoulas e mais flores partidárias. Salvavam pedreiros, estoiravam grana<strong>da</strong>s, ia rijo foguetório para anunciar o meio<br />

dia, e o rapazio, á busca <strong>da</strong>s canas que já cumpriram, precedia a musica numa algazarra de ensurdecer.<br />

Na noite <strong>da</strong> véspera, apinhavam-se grupos por to<strong>da</strong> a parte á espera de fogo, aninhados aos lados de todo o<br />

caminho, pouco se lhes <strong>da</strong>ndo a efervescência do filão do meio que, ao empurrão ia abrindo passagem, a se roçar,<br />

pedindo licença. Evolava-se um cheirinho heterogéneo de sovaco e pé suado. A igreja, ren<strong>da</strong><strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a facha<strong>da</strong>, com<br />

ornato de copos multicores, enroscava desenhos dentre palmas, franjas, botões, tendo um prurido de luz tão cintilante,<br />

que parecia mover-se, querer afastar-se do exterior, <strong>da</strong>quela festa pagã.<br />

Rompia uma árvore de inúmeros foguetes, estalando bombas ou pingando lágrimas variaga<strong>da</strong>s de fogo.<br />

Ia um borborinho pela multidão; aclarava-se o vale com o fulgor <strong>da</strong> primeira peça, surpreendendo alguns em<br />

seu flagrante, acor<strong>da</strong>ndo outros a bocejar e todos soltavam um coro unisono, num Há-á de admiração.<br />

Seguiam-se potes, babando pingos de enxofre, resfolgando a vomitar bolas de cores que se apagavam prestes,


65<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

chiavam as ro<strong>da</strong>s a redemoinhar nas hastes coloca<strong>da</strong>s para esse fim, zingravam mais peças, bonecos e velhas solvendose<br />

tudo na armação; guinchavam as linhas de resposta paga, an<strong>da</strong>ndo cá e lá pela ribeira alem, com delírio coruscante.<br />

Corria o ferrolho do arraial pela meia-noite, quando em ultima peça aparecia o retrato do santo, fosforescente,<br />

num retábulo de fundo escuro, carinhosamente tratado pelo pirotécnico.<br />

Tocava então a deban<strong>da</strong>r o ajuntamento, levando as bentas para os perfumes, ranchos alegres, aquecidos,<br />

cantarolando, seguiam para o mar a tomar banho, porque a agua é santa nesta manhã de S. João.


66<br />

A Festa do Espírito Santo na <strong>Madeira</strong><br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Estava arreiga<strong>da</strong> na crença popular a devoção especial á «Luz <strong>da</strong> Origem <strong>da</strong> Luz Incria<strong>da</strong>», insufladora <strong>da</strong><br />

Ver<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> Justiça e do Bem, concebi<strong>da</strong> no motivo supremo do Santo Espírito, que se festejava em sua desci<strong>da</strong> sobre<br />

os apóstolos.<br />

Ante a maravilha <strong>da</strong> nova terra, surpreendente de beleza e majestade, João Gonçalves Zarco, subindo «a hum<br />

alto sobre Camará de Lobos», quiz logo deixar marcado o local para erigir uma igreja ao Espírito Santo, — e assim se<br />

fez, — a qual foi o núcleo duma povoação que se escoou na encosta, vindo adensar-se ao abrigo <strong>da</strong>s rochas que outrora<br />

protegiam a moradia de inofensivas focas.<br />

João de Esmeraldo, também, na sua Lomba<strong>da</strong>, à Pt.ª do Sol mandou construir uma igreja ao Santo Espírito,<br />

que teve a honra de ser benzi<strong>da</strong> em 1508 pelo bispo D. João Lobo.<br />

Outras capelas ain<strong>da</strong> se a levantaram sob os mesmos auspícios, e confrarias se estatuíram para a celebração<br />

<strong>da</strong>s festivi<strong>da</strong>des ao Espírito Santo.<br />

Inicialmente de carácter religioso e de beneficência, foram degenerando as usanças dum antigo cerimonial de<br />

tradição, comprometendo o culto, achegado á folgança e diversões que divergiam do cunho de fé.<br />

Os «brincos e folias» que se organizavam na véspera do domingo do Espírito Santo tiveram a condenação<br />

eclesiástica que os proibiu nos adros <strong>da</strong>s igrejas e capelas, e <strong>da</strong>í afastados depois, foram por sua vez impedidos pelo<br />

capitão general Sá Pereira, por contribuírem para muitos desatinos.<br />

O mordomo <strong>da</strong> festivi<strong>da</strong>de religiosa era tirado á sorte dentre os irmãos <strong>da</strong> confraria do Espírito Santo ou então<br />

aceitado o compromisso estranho dum devoto que se propunha correr com as despesas <strong>da</strong> celebração, aos quais


67<br />

festeiros, era conferido o titulo efémero de imperador.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Governando a <strong>Madeira</strong> D. Diogo Coutinho que tinha um carácter folgazão, ao lhe serem requeri<strong>da</strong>s certas<br />

diligências pelo maioral <strong>da</strong> festivi<strong>da</strong>de que se rotulava, como tal imperador, despachou benignamente:<br />

— Vossa Majestade, na<strong>da</strong> tem que pedir, mas sim determinar o que por melhor houver por bem...<br />

Passa<strong>da</strong> a Páscoa, em muitas <strong>da</strong>s freguesias <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> se começa os peditórios aos domingos e dias santos,<br />

para a festa do Divino Espírito Santo.<br />

Compete este encargo a quatro mordomos que, sobre o seu fato «de ver a Deus», vestem uma opa de se<strong>da</strong><br />

vermelha, e, trazendo um, uma coroa de prata encima<strong>da</strong> por uma pombinha, outro, o ceptro com igual insígnia, o<br />

terceiro o pendão e o quarto a bandeira do Espírito Santo, seguem acompanhados de crianças de 10 a 12 anos, nos<br />

antigos trajes campónios, orna<strong>da</strong>s de pren<strong>da</strong>s; e dos tocadores de manchete, rebeca, viola e rajão, de porta em porta, a<br />

pedir esmolas para a grande festivi<strong>da</strong>de do Pentecostes.<br />

Repica o sino á saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> igreja, porque é ali que todos se reúnem, cantando pelos caminhos, as «saloias» — as<br />

pequenas de branco, colete e capa encarnados e sua carapucinha azul equilibra<strong>da</strong> a meio <strong>da</strong> cabeça, — uma cantilena,<br />

que a martelo tiveram de decorar:<br />

Lo Divino Espírito Santo<br />

Vem de ladeira em ladeira<br />

Anjos do céu, deita-lhe<br />

Rica flor de laranjeira<br />

Divino pombinho branco<br />

Na banheiratão bonito<br />

Tende-los olhos pregados<br />

Nas chagas de Jesus Cristo.<br />

Quadras colhi<strong>da</strong>s no «Romanceiro <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>»<br />

De antemão, na freguesia se sabe que o Espírito Santo visitará, em dia determinado, um outro sítio e ninguém<br />

falta para o receber, esmerando-se por ter a sua viven<strong>da</strong> o mais limpa e assea<strong>da</strong> possível, ornamenta<strong>da</strong> de flores e<br />

verdura.


68<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Tudo constitui oferen<strong>da</strong>: dinheiro, galinhas, ovos e trigo, havendo logo quem a arrecade. O dinheiro recebe-o o<br />

mordomo que traz a coroa; os géneros, alguns devotos que os levam ao vigário, para lhes <strong>da</strong>r o melhor destino.<br />

Ninguém se nega a contribuir com um pouco do que tem depois de ouyir esta cantiga, com música:<br />

A esta porta parou<br />

Quem nan devia parar<br />

Parou Io Esp'rito Santo<br />

Esmola cá vem buscar<br />

Acudi gente de casa<br />

Abri Ia vossa portinha<br />

Aqui tendes lo Divino<br />

Na figura <strong>da</strong> pombinha.


69<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Se o casal é abastado, além <strong>da</strong> esmola ver<strong>da</strong>deira, contribui também com um copo de vinho para os pedintes<br />

que agradecem reconhecidos, com esta quadra:<br />

Abençoa<strong>da</strong> esmola<br />

Se la <strong>da</strong>is com alegria.<br />

Espírito Santo Divino<br />

Seja em vossa companhia<br />

E depois de multiplica<strong>da</strong>s visitas desta espécie, an<strong>da</strong>ndo á frecha do sol, do fundo do vale à lomba do outeiro,<br />

não admira que ás vezes a «recuestra» desafine, e as saloias se enganicem em frequentes fifias.<br />

A maior parte <strong>da</strong>s esmolas, em género, são reduzi<strong>da</strong>s a dinheiro para o custeio do bodo aos pobres, sendo<br />

porém, algumas «novi<strong>da</strong>des» as mais bonitas, postas em exposição, em charola, no adro <strong>da</strong> igreja e arremata<strong>da</strong>s no dia<br />

dá festa.<br />

Nalgumas freguesias organiza-se um cortejo com todos os viveres que hão-de figurar no «império» ornados<br />

com flores e bandeirinhas: o pão, em cestos com brancas toalhas de linho, a carne, em gigas de madeira, os doces em<br />

tabuleiros com pétalas de rosa, —caminhando em passo de procissão, precedido duma filarmónica e do garotio a <strong>da</strong>r<br />

foguetes.<br />

No dia <strong>da</strong> festa do Espírito Santo, havia um costume pitoresco, caído já em desuso, que consistia na coroação<br />

do mordomo ou «imperador».<br />

Os «irmãos <strong>da</strong> meza» iam buscá-lo à sua residência, donde saía, luzidio e bem escovado com seu fato preto,<br />

gravata de laço branco ar remetente, luvas calça<strong>da</strong>s, arreliando os dedos e botando «sepiu» mal mal contente e<br />

derreado para traz, que ás vezes encaixava na cabeça até as orelhas.<br />

Formavam-se alas para o receber. Desfilava o cortejo com a gente do sitio, vinham as saloias, vinha a musica<br />

numa marcha triunfal.<br />

A porta <strong>da</strong> igreja, novo cerimonial de entra<strong>da</strong>, cantando o coro:<br />

Intrai homes, intrai homes<br />

Intrai vos, Imperador<br />

E' hoje Ia nossa festa<br />

Visitai Nosso Senhor


70<br />

Intrai vós, intrai mulheres<br />

Da igreja para dentro;<br />

La nossa festa é hoje<br />

Visitai lo Sacramento.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

No final <strong>da</strong> missa com sermão adequado, o padre, chegando junto ao festeiro, colocava lhe momentaneamente<br />

a coroa de prata na cabeça, ouvindo-se o coro:<br />

Foi c'roa<strong>da</strong> bem c'roado<br />

Lo nosso imperador<br />

Veiu-lhe a c'rôa e sceptro<br />

Das mãos de Nosso Senhor<br />

Depois <strong>da</strong> festivi<strong>da</strong>de na igreja, há a bênção <strong>da</strong> copa. Nesta, está posta uma mesa ricamente enfeita<strong>da</strong> com<br />

doze talheres para pobres, que arregalam os olhos ante tantas iguarias: frutas, doces e pudins, — mas a maior parte é<br />

para ver, e entrar depois em rifa, revertendo o produto dela para a indigência, que assim muito mais lucra do que se<br />

tivesse tomado uma indigestão de massa de ovos reais, a quem não tem o estômago habituado.<br />

Terminado o «império» é feita a eleição do festeiro ou «imperador» para o ano seguinte e distribuído o pão<br />

benzido pelos casais <strong>da</strong> freguesia que o guar<strong>da</strong>m em veneração:<br />

Aqui tendes pão benzido<br />

Deus é quem Io man<strong>da</strong> <strong>da</strong>r<br />

Aceitai esta relíquia<br />

Ide Ia já bem guar<strong>da</strong>r.<br />

As velhas usanças vão-se diluindo com o tempo, mas renitente ficou uma oitava de espairecimento, para ser<br />

gozado um dia risonho de Maio que é chamado — a 2.ª feira <strong>da</strong> Camacha.


71<br />

A Feitoria Britânica<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A colónia inglesa na <strong>Madeira</strong> foi sempre a mais preponderante. Razões de amizade e aliança entre as duas<br />

nações, levaram Portugal a conceder mesmo até algumas regalias que os naturais não usufruíam, chegando, em 1654, a<br />

serem dispensados os ingleses do imposto de guerra que recaía sobre a exportação do vinho na <strong>Madeira</strong>, o que era uma<br />

vantagem excepcional que prejudicava o comercio indígena.<br />

No meado do século XVII, tinha a colónia britânica no Funchal o predomínio na ven<strong>da</strong> dos artigos de conforto<br />

e inovação, importados <strong>da</strong>s suas fabricas, e possuía importantes armazéns de atacados, vinho e cereais.<br />

O 4.° cônsul, William Bolton, abarcava vários ramos de negocio, entre os quais, o de banqueiro e de armador<br />

de navios.<br />

Os ingleses na <strong>Madeira</strong> formavam uma feitoria para protecção dos seus interesses, reunindo fundos para<br />

auxílio mutuo e subvencionando os serviços médico e religioso de que careciam.<br />

Tiveram conservatória e juiz privativo, para o julgamento de desavenças, transgressão e infracção <strong>da</strong> lei.<br />

Inicialmente exercia o cargo de juiz dos ingleses, o Provedor <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong>, depois, essa atribuição passou ao Juiz de Fora<br />

e por ultimo era esse magistrado eleito pela feitoria, mas dependente de confirmação régia.<br />

Os privilégios de que gozavam os ingleses na feitoria <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> constam de um extenso e interessante<br />

documento. Entre outras regalias se encontra expresso:<br />

— o man<strong>da</strong>to de prisão de um inglês não pode ser legalmente efectuado, sem a autorização do juiz privativo;<br />

— quando a prisão tiver sido feita, não será cumpri<strong>da</strong> na cadeia, mas em fortificação ou casa apropria<strong>da</strong>;


72<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

— não poderão os súbditos britânicos ser desalojados de suas viven<strong>da</strong>s próprias, para efeito de aposentadoria<br />

aos funcionários <strong>da</strong> Justiça;<br />

— podem, livremente, cavalgar em bestas muares e de sela e freio;<br />

— usar armas ofensivas de lume ou sem ele, não fazendo porém uso delas naquilo em que o não devessem,<br />

privilégio este que se estendia aos seus feitores e criados, até o numero de seis;<br />

— não eram obrigados ao pagamento de fintas, peitas, imposição ou encargos de guerra.<br />

Muitos dos capitães generais que governavam a <strong>Madeira</strong> ficaram reconduzidos em novo triénio, pelas<br />

representações que subiram á Coroa, apresenta<strong>da</strong>s pelo cônsul inglês e assina<strong>da</strong>s pelos principais membros <strong>da</strong> colónia.<br />

Nos livros privativos desta feitoria figuravam como despesa, verbas representativas de várias ofertas aos<br />

governadores <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, sendo <strong>da</strong> praxe, o cônsul, em dia <strong>da</strong> Epifania, ser o portador de 600$000 rs, deixando um<br />

cartão de cumprimentos no palácio de S. Lourenço.<br />

Num relatório ao Marquês de Pombal, diz o governador Sá Pereira que isso era uma velha usança que não<br />

sabia se devesse aceitar, mas que o cargo de capitão-general obrigava nesta Ilha a muitas despesas de representação e<br />

fracos eram os rendimentos.<br />

Achava ao mesmo tempo como que um engodo na oferta, para haver a primeira autori<strong>da</strong>de sempre propícia e<br />

melhor se sentir a colónia inglesa a manejar os seus interesses.<br />

E estes eram de tal importância e peso, que por vezes esteve a <strong>Madeira</strong> ocupa<strong>da</strong> por tropas de sua majestade<br />

britânica.


73<br />

Espadim de honra oferecido pela feitoria britânica ao comodoro Bowen<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A 17 de Julho de 1801 proclamava-se na ci<strong>da</strong>de do Funchal o bando <strong>da</strong> guerra contra a França e logo uma<br />

semana depois, em 24, entrava de surpresa na baia, uma divisão naval inglesa de 8 vasos <strong>da</strong> chefia do comodoro<br />

Bowen, na nau de linha «argo» com forças de desembarque sob o comando do coronel Clinton.<br />

O capitão-general D. José Manuel <strong>da</strong> Câmara não via a necessi<strong>da</strong>de do desembarque de tropas inglesas, pois<br />

assegurava a defesa de todos os interesses.<br />

Reunindo um Conselho em que entraram as autori<strong>da</strong>des locais, foi este de parecer que fossem amigavelmente<br />

recebi<strong>da</strong>s as forças <strong>da</strong> nação alia<strong>da</strong>.<br />

A feitoria inglesa querendo render preito ao comodoro Bowen, cotisou-se para uma oferta de valor, a qual foi,


74<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

um espadim com punho de ouro, tendo numa face grava<strong>da</strong>s as armas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de do Funchal e na oposta, um<br />

monograma com as letras J.B. encima<strong>da</strong>s por um timbre de armígero.<br />

Da maçã á guar<strong>da</strong>, descem vários lavores ornando emblemas náuticos e troféus, lendo-se a dedicatória em<br />

inglês, que vem igualmente repeti<strong>da</strong> na chapa de ouro do bocal <strong>da</strong> bainha:<br />

O grato testemunho do Cônsul e Feitoria Inglesa ao comodoro Bowen, do navio de Sua Majestade — "Argo" —<br />

pelo inexcedivel zelo em guar<strong>da</strong>r a Ilha e seus interesses.<br />

Os preliminares do tratado <strong>da</strong> paz de Amiens, em 1802, fizeram afastar receios e o coronel Clinton com suas<br />

tropas abandonaram a <strong>Madeira</strong>.<br />

Brasil.<br />

Em 1807, quando as forças francesas entravam em Lisboa, já seguira barrafóra, a esquadra portuguesa para o<br />

Na <strong>Madeira</strong>, o capitão general Pedro Fagundes era avisado que a nau «Príncipe Real» conduzindo o príncipe<br />

regente passaria no Funchal, mas somente algumas do comboio inglês aqui tocaram a proverem-se de agua<strong>da</strong> e<br />

refrescos.<br />

Corriam rumores que a feitoria britânica solicitava de novo a ocupação <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, para salvaguardá-la de<br />

Napoleão. Havia uma certa inquietude nos ânimos. A Câmara do Funchal resolvia transferir os seus livros e<br />

documentos para uma quinta em Santa Luzia, no limite norte <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

O vigário de Santa Maria Maior propunha que a imagem de S. Tiago, o Padroeiro <strong>da</strong> Ilha, fos3e removi<strong>da</strong> para<br />

longe, acautela<strong>da</strong> de hereges, mas o senado respondeu que se não devia alarmar o povo sem motivo justificado.<br />

As prela<strong>da</strong>s dos conventos para aquietarem as freiras do temor dos franceses ... mana<strong>da</strong>vam-nas rezar, pela<br />

família real que se ausentava do reino, para o Brasil.


75<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Em vésperas do dia de natal desse ano, uma esquadra inglesa sob o comando de Sir Samuel Hood, trazia<br />

tropas de desembarque, às ordens do major-general Beresford que vinha tomar conta <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, em nome do seu<br />

soberano Jorge III, até que Portugal mostre estar livre do jugo e influencia <strong>da</strong> França.<br />

Os capítulos de concordância foram assinados em 26 de Dezembro e desde essa <strong>da</strong>ta até 24 de Abril de 1808, o<br />

arquipélago <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> esteve sujeito a Sua Majestade El-Rei <strong>da</strong> Gran-Bretanha e Irlan<strong>da</strong> em nome de quem eram<br />

expedi<strong>da</strong>s as ordens.<br />

O gabinete de St James após 4 meses de negociações diplomáticas, reconheceu nula e de nenhum valor a<br />

capitalução <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, continuando no entanto as tropas britânicas a cooperar na defesa, enquanto durasse a guerra.<br />

O general Beresford, com metade <strong>da</strong>s suas forças, embarcou para Lisboa em 17 de Agosto, a reunir-se ao<br />

exercito luso-britanico, levando o regimento de infantaria 3 uma companhia de artilharia.<br />

Sucederam-lhe no comando <strong>da</strong> tropa de ocupação na <strong>Madeira</strong>:


76<br />

— o major-general Robert Mead, desde 1 de Setembro de 1809 a 3 de Junho de 1812;<br />

— o major-general Hugo Gordon desde 3 de Junho de 1812 a 3 de Outubro de 1814.<br />

A <strong>Madeira</strong> só ficou desguarneci<strong>da</strong> de forças inglesas, quatro mezes depois <strong>da</strong> Paz Geral.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

A feitoria britânica, dentre estes três generais, apreciou sobremaneira a acção de Beresford, resolvendo em<br />

1808, ofertar-lhe uma artística taça de prata custosamente lavra<strong>da</strong> em estilo clássico, com figuras de cariátides, troféus,<br />

golfinhos, conchas e festões. E em 1812, pelas vitorias já alcança<strong>da</strong>s na Península, votou a soma de £ 315 para mimoser<br />

Beresford com uma espa<strong>da</strong> de honra.<br />

As prerrogativas especiais dos súbditos ingleses na <strong>Madeira</strong> foram cercea<strong>da</strong>s em 1812, sendo extinto o cargo<br />

do eu juiz privativo, e pelo tratado de Junho de 1842, ficou extinta a feitoria britânica.


77<br />

Toura<strong>da</strong>s antigas na <strong>Madeira</strong><br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Na próspera ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, ao século XV, quando reluziram privilégios e se agitavam abusos senhoriais,<br />

renasceram costumes de braveza medieval, arrotando opulência em público, — nas faustosas caça<strong>da</strong>s, nos despiques e<br />

escaramuças, nos jogos de aparato e valentia, com que se desenfa<strong>da</strong>vam os fi<strong>da</strong>lgos e divertiam a gentalha. O povo, por<br />

sua vez, entrava nas ferras, nos brincos rijos, para recreio dos senhores.<br />

As grandes festivi<strong>da</strong>des religiosas — Corpus Christi ressur' reyçom & anjo custodio, — tinham como remate<br />

uma corri<strong>da</strong> de touros e muitas vezes era esta também determina<strong>da</strong>, para solenizar o regresso do donatário, com sua<br />

gente de guerra, triunfante <strong>da</strong>s praças dê África; parte obriga<strong>da</strong>, — nas manifestações oficiais de regozijo pelo<br />

nascimento ou aniversário dum príncipe, etc.<br />

Perderam-se infelizmente os primeiros livros <strong>da</strong>s vereações camarárias <strong>da</strong> vila do Funchal, mas pelos que ora<br />

restam se vê, que às toura<strong>da</strong>s eram um divertimento dessa gente irrequieta.<br />

Os touros eram corridos a São Sebastião, nas imediações <strong>da</strong> capela do Senado, e depois de ergui<strong>da</strong> a Sé, no<br />

vasto campo fronteiriço.<br />

Agadir)<br />

O gado taurino procedia de Entre-Douro-e-Minho; <strong>da</strong>s ilhas Canárias; de Larache e Cabo de Guel (hoje<br />

Do gado <strong>da</strong> terra, em mana<strong>da</strong>, semi-bravio, refrescado com sangue de melhor casta, eram apartados os<br />

garraios para as festas menos solenes <strong>da</strong>s vilas e lugares.


78<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Esquecido embora, na toponímia do Porto Santo, ficou o nome de Vale do Touro a uma várzea marginal <strong>da</strong><br />

Ribeira <strong>da</strong> Vila.<br />

Em 1496, o Senado <strong>da</strong> vila do Funchal mandou os carpinteiros cerrar o corro para as toura<strong>da</strong>s, e os carniceiros<br />

se apresentarem com o seu «rei» para a festa de Corpus Christi, devendo contribuir com quarenta reais brancos.<br />

A exemplo de como se procedia na Corte, era permitido a alguns presos ou homisiados por delitos leves, virem<br />

tomar parte nas toura<strong>da</strong>s, e conforme a sua intrepidez e galhardia, lhes ficava perdoado o tempo restante para o<br />

completo <strong>da</strong> expiação.<br />

Vamos agora ouvir Frutuoso contar o que lhe informaram <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>, para compor o livro 2.° <strong>da</strong>s suas<br />

«Sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Terra»:<br />

«No ano de 1542 foi á Ilha <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong> o seu capitão, Simão Gonçalves, no recebimento do qual se fez muita<br />

festa e houve canas e touros, e se guardou aquele dia, por ser dia de semana».<br />

bródio.<br />

Festim rijo seria, para paralisarem os serviços reais, como em dia santo ou de gala, afim de acorrerem todos ao<br />

Mais adiante, o cronista relata as proezas do velho morgado <strong>da</strong>s Laranjeiras, homisiado na freguesia de Santo<br />

António, por ter desancado a parentela.<br />

«Sendo Marcos de Braga de i<strong>da</strong>de de setenta anos e mais, estando em sua quinta recolhido sem ir á ci<strong>da</strong>de, por<br />

causa de crimes que tinha, no ano em que nasceu o príncipe D. João, filho de el-rei D. João III, e pai de el-rei D.<br />

Sebastião, fazendo se festas do seu nascimento na ci<strong>da</strong>de do Funchal, entre as quais correndo-se muitos touros grandes<br />

e bravos, o dito Marcos de Braga mandou pedir licença ás justiças para ir ao corro, onde se corriam os touros, que era<br />

no terreiro defronte <strong>da</strong> Sé, dizendo que também queria aju<strong>da</strong>r a festejar as festas do nascimento do príncipe.<br />

E <strong>da</strong>ndo-lhe a Justiça licença e seguro que viesse, veio ele e recolheu-se em uma casa do mesmo terreiro, e<br />

pediu à Justiça que man<strong>da</strong>sse deixar para derradeiro, o mais bravo touro que entre os outros estivesse.<br />

«E assim foi que ficou um touro manchado pintado, que veio de Cabo Gué, para esse mesmo efeito <strong>da</strong>s festas<br />

do príncipe; o qual touro tanto que foi solto no campo, meteu tanto temor a todos, que pessoa nenhuma ousou esperálo<br />

no corro, nem chegar a ele para lhe tirar uma garrocha.


79<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

E ficando o corro pelo touro, saiu o dito Marcos de Braga <strong>da</strong> casa onde estava, em pelote preto, de petrina e<br />

abas muito compri<strong>da</strong>s, como então se costumava, trazendo na mão somente um pão grande e grosso como tranca, e<br />

assim se foi pelo corro passeando para onde o touro estava; e antes de chegar a ele arre<strong>da</strong>do bom espaço, o touro,<br />

virado para ele, lhe acenava com a cabeça, como que já o levava nos cornos; e Marcos de Braga esteve quedo,<br />

esperando a determinação do touro; e vendo que o não cometia, deu mais algumas passa<strong>da</strong>s adiante, chegando-se mais<br />

a ele; e pondo a ponta do pao no chão adiante de si, tendo-o com uma mão, com a outra acenou ao touro; e tanto que o<br />

touro viu o aceno, arremeteu a ele, e cui<strong>da</strong>ndo que o levava, deu com a testa no pão, como em uma torre imobil,<br />

ficando sempre tão firme o dito Marcos de Braga e com tanto acordo, que, tomando-o por diante pelos cornos e<br />

abaixando-lhe a cabeça para baixo, meteu o touro os cornos no chão, e, <strong>da</strong>ndo uma volta por cima <strong>da</strong> cabeça, ficou de<br />

costas com o pescoço quebrado.<br />

Então, se tornou Marcos de Braga, mui quieto, para a casa donde sairá, pondo nas gentes grande espanto de<br />

seu grande ânimo e forças, sendo de tanta i<strong>da</strong>de; e foi esta uma <strong>da</strong>s cousas mais louva<strong>da</strong>s e nomea<strong>da</strong>s que naquelas<br />

festas se fizeram».<br />

Este velho possante, atirava com uma pedra a um touro, com tal ímpeto, que lhe metia os testos dentro e logo<br />

o derribava; contam-se dele muitas proezas, e veio a morrer heroicamente ás mãos dos corsários franceses que<br />

tomaram a ci<strong>da</strong>de do Funchal em 1566, depois de ter <strong>da</strong>do cabo duma boa dúzia desses hereges.<br />

Dá-nos também conta <strong>da</strong>s toura<strong>da</strong>s na <strong>Madeira</strong>, no final do século XVI, o Dr. Manuel Constantino que<br />

publicou em Roma um livro em latim, que foi recentemente traduzido, (Funchal 1930) com o titulo «Historia <strong>da</strong> Ilha<br />

<strong>da</strong> <strong>Madeira</strong>».<br />

É escrito no domínio castelhano, <strong>da</strong>ndo-nos ideia dos ban<strong>da</strong>rilheiros que na ponta de varas levíssimas<br />

punham a flutuar «um retalhinho de linho ou se<strong>da</strong>, que, emquanto o touro a ele se atirava com as pontas, o caçador<br />

(assim é traduzido) voltando um dos pés á direita ou á esquer<strong>da</strong>, com admirável presteza fica-se atraz <strong>da</strong> cau<strong>da</strong> e assim<br />

se escapa aos olhos <strong>da</strong> valentíssima fera, que logo irrompe contra o primeiro que se lhe ofereça, que igualmente torna a<br />

enganar o touro com não menor audácia e agili<strong>da</strong>de, o que facilmente, pode fazer qualquer caçador uma vez que esteja<br />

bem trenado».<br />

Aos forcados, provavelmente, se refere, quando descreve:<br />

«A plebe com a multidão dos mais Ínfimos fazem as caça<strong>da</strong>s aos touros a pé e com suma agili<strong>da</strong>de e audácia,


80<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

pois que não atacam o feroz animal fiados nas armas, tendo sido ressalvado por édito público que ninguém fira o touro<br />

á espa<strong>da</strong>, com chuço ou qualquer espécie de <strong>da</strong>rdo, a não ser para salvar a vi<strong>da</strong> de algum homem ou então quando se<br />

dá sinal para finalizar o exercício.<br />

Dado este sinal ou mostrando o touro extrema fadiga, saem-lhe á frente os homens chamados toureiros, que,<br />

sem espa<strong>da</strong>s, lanço ou chuço, mas trazendo nas mãos varas de dois covados de comprimento, fustigam e atacam com<br />

elas o animal, que espicaçado e aguilhoado se agita e enfurece espumando e cavando a terra. São tão peritos neste<br />

exercício, que qualquer se atira do touro com ânimo, tanto mais o animal se lhe arremete com maior ímpeto de fúria».<br />

O final <strong>da</strong> toura<strong>da</strong> nesta época espanhola, era estupi<strong>da</strong>mente bárbaro;<br />

«...quando a fera está cansa<strong>da</strong> ou então já satisfeita a assistência, o som dos clarins indica os toureiros que<br />

devem matá-la.<br />

Então estes de espa<strong>da</strong>s desembainha<strong>da</strong>s, sem dificul<strong>da</strong>de lhes cortam as pernas.<br />

Deste modo, quer pela feroci<strong>da</strong>de dos touros quer pelo entusiasmo e sangue frio dos toureiros e quer ain<strong>da</strong><br />

pelo próprio exercício em si, tais combates se celebram com retumbancia na ilha».<br />

Nas «trancas», pegas e saltos <strong>da</strong>s corri<strong>da</strong>s de touros, muitos desastres se deram a que era preciso pôr termo.<br />

Ocorreram abusos, por outro lado, na celebração <strong>da</strong>s festas <strong>da</strong> Igreja com o remate de toura<strong>da</strong>s, de sorte que<br />

foram proibi<strong>da</strong>s as corri<strong>da</strong>s de touros em determina<strong>da</strong>s ocasiões, pela autori<strong>da</strong>de eclesiástica:<br />

Na visitação do bispo D. Luís de Figueiredo, ás paroquias <strong>da</strong> sua diocese em 1591, ficou exarado nos<br />

«Provimentos» que as festas religiosas não se fizessem com comezainas, nem com toura<strong>da</strong>s para a sua celebração, e<br />

mandou o escrivão <strong>da</strong> câmara eclesiástica, Manuel Velho, tombar para que se cumprisse esta determinação.<br />

«Porq. as festas dos sanctos se an de fazer com devoção, jejuns, oraçoens e obras de chari<strong>da</strong>de com os<br />

Próximos, com q. a alma se sustenta e o Reyno de Ds. se alcança e não com comer e beber corporal en jogos e exercícios<br />

prejudiciais como he correr touros de q. pella major parte se seguem peccados e offen-sas de Ds; Admoestamos e<br />

man<strong>da</strong>mos sob pena de excumonhão aos mordomos e officiais <strong>da</strong>s confrarias e a quaisquer outras pessoas q. tiverê a<br />

seu carrego a celebração <strong>da</strong>s dittas festas não facão nem dem conuite ou collação algua nas igrejas choros ou<br />

sanchristias delias, nem outro lugar fora <strong>da</strong>s ditas igrejas a custo <strong>da</strong>s confrarias mais do q. se lhes foi premittido pêra<br />

Refeição dos oficiais e pessoas q. administrarem nas dittas festas mas em nhum cazo dentro <strong>da</strong>s ditas igrejas e lugares


81<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

asima declarados, nem em qualquer outra parte <strong>da</strong>rão conuite ou colla-ção em dia de jejum nem se corrão touros sob<br />

as penas <strong>da</strong> constituição apostólica sobre os touros, do Papa Pio quinto de bea memória».<br />

Não queria o bispo Figueiredo toura<strong>da</strong>s em dias de jejum, por causa do régabófe que geralmente se lhe seguia,<br />

puxando a comezainas bem rega<strong>da</strong>s, e <strong>da</strong>í, infracções do direito canónico; atendeu o Senado do Funchal a que era<br />

necessário impedir ou minorar o perigo que oferecia a besta, e não mais permitiu correr touros, a não ser com as<br />

pontas corta<strong>da</strong>s dos chavelhos.<br />

A diselegancia manifesta do animal, e apoucado o risco, fez perder o interesse pela luta que, sem momentos de<br />

sobressalto, esmorecia no entusiasmo em morna sensaboria, ante a pernitaz marra<strong>da</strong> mocha.<br />

Ficaram assim esqueci<strong>da</strong>s durante longos anos as toura<strong>da</strong>s na <strong>Madeira</strong>, sendo substituí<strong>da</strong>s pelas lutas<br />

romanas, corpo a corpo, brincos de engano ou perícia, e outras sortes de folguedo.<br />

Noutro capítulo se lê ain<strong>da</strong> no Cronista <strong>da</strong>s Ilhas:<br />

«Era o capitam Simão Gonçalves (segundo de nome) afeiçoado a ver folgares, touros, luctas e jogar canas e<br />

to<strong>da</strong>s as mais festas e jogos para alegrar o povo; nos dias de lutas, principalmente nos de S. Sebastião e S. Braz,<br />

ajuntava no terreiro defronte de suas casas, muita gente de to<strong>da</strong> a ilha; e, se vinha algum grande luctador e havia outro<br />

que lhe <strong>da</strong>va duas que<strong>da</strong>s, lhe man<strong>da</strong>va <strong>da</strong>r a capa que o tinha coberto, além de grandes fogaças que de sua casa<br />

estavam prestes, como marrans mortas e também algum dinheiro para todos os luctadores.<br />

Em to<strong>da</strong>s as festas principais do ano, principalmente na do Natal, havia em sua casa custosas consoa<strong>da</strong>s, com<br />

ricas frutas e curiosos jogos e actos, de to<strong>da</strong> a sorte».<br />

Era este campo de jogos e corri<strong>da</strong>s onde hoje existem ain<strong>da</strong> as velhas muralhas <strong>da</strong> fortaleza de S. Lourenço.<br />

O conde vivia numa casa pega<strong>da</strong> ao baluarte atorreado. Palanques ao redor se construíam nessas ocasiões,<br />

para melhor admirar do alto a destreza dos lutadores que eram mimoseados com presentes, oferecendo ao fim, o<br />

donatário a sua capa para premiar o vencedor.


82<br />

Foto Jardim<br />

Toura<strong>da</strong> recente no campo Almirante Reis<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Em 1908 um estroina endinheirado deu-lhe para fazer ressurgir as toura<strong>da</strong>s na <strong>Madeira</strong>. Um grupo de peraltas<br />

se lhe associou ensaiando numa cerca particular, com gado <strong>da</strong> terra, umas hilariantes corri<strong>da</strong>s em que as chocas faziam<br />

recolher os bois para dentro dum armazém de vinhos que havia na proprie<strong>da</strong>de.<br />

Abancaram-se depois a armar uma praça de touros onde existira a Praça Académica. Foram contratados uns<br />

espanhóis vendedores ambulantes de ren<strong>da</strong>s na ci<strong>da</strong>de, que diziam haver já tomado parte em diferentes toura<strong>da</strong>s na<br />

sua terra, para a lide, a quem foram preparados vistosos fatos.<br />

O «Diário do Comercio» de 18 de Janeiro de 1908 traz o anúncio<br />

TOURADA<br />

«Realisa-se hoje 18, pelas 3 horas <strong>da</strong> tarde, um magnifico espectáculo na praça do «Campo de D. Carlos I»<br />

composta de duas partes:


83<br />

1.ª PARTE<br />

Jogo <strong>da</strong> rosa effectuado por um grupo de rapazes madeirenses.<br />

2.ªPARTE<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Serão li<strong>da</strong>dos dois magníficos touros vindos ha pouco do continente, por quatro toureiros hespanhois,<br />

havendo a simulação <strong>da</strong> sorte <strong>da</strong> espa<strong>da</strong>.<br />

Preços — Cadeira, 500; Sombra, 500; Sol, 400».<br />

Carruagens engalana<strong>da</strong>s conduzindo os afeiçoados; cavalos com fitas e guisos, montados pelos homens <strong>da</strong>s<br />

ren<strong>da</strong>s, percorreram a ci<strong>da</strong>de formando um luzido cortejo, no dia <strong>da</strong> corri<strong>da</strong> e abertura <strong>da</strong> Praça.<br />

O «Diário de Noticias» de 19 de Janeiro de 1908 resume o espectáculo:<br />

«Com um tempo de primavera e uma enchente real, realisou-se hontem, no circo, ao Campo de D. Carlos, uma<br />

corri<strong>da</strong> de touros; mas a dextreza, e perícia dos toureiros não corresponderam á bravura do touro que apareceu na<br />

arena, sereno e parecendo compadecido dos seus adversários.<br />

Dois dos capinhas ao saltarem a pista foram ain<strong>da</strong> apanhados pelas pontas do touro, não havendo porém,<br />

consequências desastrosas, porque o animal estava embolado.<br />

O publico do sol fez grande chia<strong>da</strong> crivando os toureiros de pezados epigramas e acabando por reclamar o<br />

dinheiro de entra<strong>da</strong>».<br />

E o «Diário Popular» de 20 de Janeiro de 1908 também relata:<br />

«Como os espa<strong>da</strong>s e capinhas não tivessem a coragem e desembaraço sufficientes para se apresentarem em<br />

scena, pois não se arre<strong>da</strong>ram <strong>da</strong> trincheira a toura<strong>da</strong> no Campo de D. Carlos I não passou de uma berrata que o publico<br />

fez pelo seu dinheiro, por se ver ludibriado» (pelos toureiros <strong>da</strong>s ren<strong>da</strong>s.)<br />

Consta-nos que as importâncias pagas foram man<strong>da</strong><strong>da</strong>s satisfazer».<br />

Perto <strong>da</strong>s Fontes de João Denis, a dentro dos muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de ficava um campo para o jogo <strong>da</strong> péla, man<strong>da</strong>do<br />

fazer pelo Capitão-Conde «em que gastou mais de quinhentos cruzados, onde iam folgar muitos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e de to<strong>da</strong> a


84<br />

ilha».<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Nos regabofes de mais retumbância nas vilas e lugares, ain<strong>da</strong> apareciam os garraios nos campos de corri<strong>da</strong>s,<br />

para o assalto de tranqueiras engalana<strong>da</strong>s, semelhando baluartes, porém inconsistentes, que ao desfazer-se a paliça<strong>da</strong><br />

pelo embate, libertando os sitiados moços, figurando defensores, redun<strong>da</strong>va numa garabulha diverti<strong>da</strong> e graciosa.<br />

Diz ain<strong>da</strong> um velho cronista:<br />

«Entre a plebe (na <strong>Madeira</strong>) nenhum desporto é mais querido que a «Ferra» para a qual se treinam com<br />

paixão e sacrifício os homens, principalmente os camponios, já em mira no louvor, já com a esperança dos prémios,<br />

pois que nos dias festivos são muitos os que vêm ao combate, sendo-lhes concedidos prémios.<br />

Despidos <strong>da</strong>s roupas exteriores, e até nus salvo as partes, preparam-se para a luta, não sendo mais de dois os<br />

que entram no campo <strong>da</strong> ferra.<br />

Deles o vencedor se lhe apraz, uma vez e outras, entra na liça; aliás outros dois vêm à baila e lutam, mas o que<br />

é vencido não pode lutar mais, sendo, porém, altamente pin<strong>da</strong>risado aquele que ferrou, singularmente com vários na<br />

arena e que os venceu, pois lhe é outorgado a palma e o prémio.<br />

Tais atletas, porém, observam duas cousas: a primeira é que agarrem o adversário a geito, e a segun<strong>da</strong> que o<br />

«trompiquem» com os pés, em cujo movimento e jogo dos ditos, ha um certo «truc» de enganar e são varias as que<strong>da</strong>s<br />

e deslises, assim também tem vários nomes o jogo dos pés.<br />

O termo ferra ficou entre nós para designar uma luta em que os adversários se agarram e se esforçam<br />

reciprocamente para não tombarem no chão, o que é um sinal manifesto <strong>da</strong> derrota.<br />

É muito frequente, os garotos, depois de se insultarem, despejado todo o vocabulário sujo, virem a ferrar-se<br />

agarrados corpo a corpo, espectáculo a que por vezes se forma uma ro<strong>da</strong> de curiosos, só os desapertando quando já<br />

excedem na briga a estilhaçar o fato. Deixá-los ferrar que faz crescer é a opinião do povo, e bem melhor que Jogar<br />

rocha (atirar pedra<strong>da</strong>) que não leva escrito em quem vai bater.<br />

Na cerca do Convento de S. Francisco, realizaram-se no passado século algumas toura<strong>da</strong>s, já depois <strong>da</strong><br />

expulsão dos frades, e pelos telhados <strong>da</strong>s casas próximas muitos espectadores se divertiam, sem pagar na<strong>da</strong> e não<br />

correndo o risco de se entalarem em banca<strong>da</strong>s desaba<strong>da</strong>s que cederam algumas ao peso do entusiasmo.


85<br />

O Poço do Calhau<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Na margem esquer<strong>da</strong> <strong>da</strong> Ribeira de João Gomes, perto <strong>da</strong> última ponte, a jusante, fica o Largo do Poço que<br />

primeiro se abriu na povoação do Funchal.<br />

Ali logo, era a igreja que Zargo mandou construir e que se chamou N.ª S.ª <strong>da</strong> Conceição, de Baixo, para a<br />

distinguir <strong>da</strong> capela que o primeiro donatário tinha na quinta <strong>da</strong> sua residência, ao Arrife <strong>da</strong>s Cruzes, onde<br />

alterna<strong>da</strong>mente, aos domingos, diziam missa os franciscanos, na — de Cima — e na — de Baixo, para contentarem os<br />

dois núcleos de casais, que se iam alargando. A de Baixo passou a sede <strong>da</strong> primeira freguesia do Funchal, chama<strong>da</strong> N.ª<br />

S.ª do Calhau, pela proximi<strong>da</strong>de a que ficava do mar, e a de Cima ficou para o mosteiro <strong>da</strong>s freiras de St.ª Clara.<br />

A vila do Funchal teve a sua maior expansão para a ban<strong>da</strong> oriental <strong>da</strong> Ribeira, onde existiu também a<br />

Misericórdia com a sua lin<strong>da</strong> janela gemina<strong>da</strong> e em lavores; onde se ergueram paços de fi<strong>da</strong>lguia; onde se acumulava o<br />

bairro dos pescadores e gente do «rol do mar» em casalejos de madeira com seus balcões estacados; onde ao Cabo do<br />

Calhau, a capelinha dos marítimos, sob o Patrocínio de S. Pedro Gonçalves Teimo, agregados em confraria de auxilio<br />

mutuo; onde iam ao mar as caravelas <strong>da</strong> Guiné que se juntavam ás que vinham de Lagos; onde era o maior bulício de<br />

comércio e <strong>da</strong> industria.<br />

To<strong>da</strong> aquela povoação activa se servia <strong>da</strong> agua <strong>da</strong> ribeira, «amena e fermosa» para o consumo caseiro, mas o<br />

cau<strong>da</strong>l, por vezes turbulento e turvo, fez procurar a agua no subsolo, a profundi<strong>da</strong>de de infiltração cristalina e de<br />

constante frescor, observação trazi<strong>da</strong> do Continente, muito embora em terra de constituição geológica bem diferente.<br />

Assim foi procura<strong>da</strong> a água numa abertura pela terra abaixo ao largo de N.ª S.ª do Calhau. Em 1499 encontrase<br />

tomba<strong>da</strong> a cedência dum chão de terreno que o senado <strong>da</strong> vila fez a Afonso Fernandes para que tenha sempre a seu<br />

cargo a limpeza deste poço e <strong>da</strong> fonte, em benefício público.


86<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Generalizou-se depois a abertura dos poços em to<strong>da</strong> a zona baixa, alguns artisticamente trabalhados, como o<br />

<strong>da</strong> Sé que já não existe ou está soterrado e para o qual ofereceu D. Manuel I a aduela <strong>da</strong> boca, em mármore brecha, <strong>da</strong><br />

Arrábi<strong>da</strong>. Tiveram poço que depois de estanque serviu para granel, — a residência de João Esmeraldo, onde viveu<br />

Colombo no Funchal; o paço do Bispo; o Colégio dos Jesuítas; uma rua no século XVI se chamou do Poça Novo; e ain<strong>da</strong><br />

hoje se encontra alguns, em residências no bairro de Santa Maria.<br />

O poço de N.ª S.ª do Calhau teve durante séculos, o balde, de cobre, e a rol<strong>da</strong>na onde corria uma fiscaliza<strong>da</strong><br />

cor<strong>da</strong> para que não chegasse a rebentar e era o ponto de reunião dos escravos que vinham buscar agua para os<br />

domicílios trazendo um sinal bem patente <strong>da</strong> sua condição servil.<br />

No Largo se construíram barracas para ven<strong>da</strong> de hortaliça e fruta «excepto uvas de que se faz vinho e que seus<br />

senhores dêem juramento de que elles (escravos) não vendão somente a fruta de seus senhores»— (1491).<br />

Gulosos produtos de ren el, rapaduras, torrões com gergelim, cavacas, rosquilhas e frituras, pevides torra<strong>da</strong>s,<br />

gofe e outros refrescos baratos espumavam de celhas onde fermentava a garapa, gengibre, hortelã e o açafrão prontos,<br />

a servir.<br />

Era ali a ven<strong>da</strong> dos púcaros e <strong>da</strong>s malgas, <strong>da</strong>s candeias de estopa, <strong>da</strong>s sertans, fogareiros, frigideiras e medi<strong>da</strong>s<br />

agomila<strong>da</strong>s, dos cozedores de cuscuz, dos assadores furados, vindos <strong>da</strong> olaria próxima que deu nome à antiga rua<br />

marginal, - ca<strong>da</strong> utensílio com a sua marca regista<strong>da</strong> na Câmara, pelos antigos fabricantes do barro vermelho.<br />

Vasilhas boju<strong>da</strong>s e estreitas destina<strong>da</strong>s a conter água, potes, canecas, infusas e bilhas se alinhavam à sua vez, e<br />

os portadores, <strong>da</strong>ndo à manivela, por vezes se esmurravam na priori<strong>da</strong>de.


87<br />

Foto Jardim<br />

O Poço de Nossa Senhora do Calhau<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Nos bebedouros, os animais pacientes esperavam as escorralhas na bacia de pedra – a vaca alvaçã, o boi<br />

vermelho do Porto Santo, o cavalinho de tiro, o burro <strong>da</strong> Pena, embora sedentos, nem resmungavam, relanceando um<br />

olhar compassivo para aquela gente rabuja, que um dia rebentou a bomba, escalavrando-lhe as válvulas.<br />

Em dia de festança, a aglomeração era compacta, apertando-se as ro<strong>da</strong>s onde <strong>da</strong>nçavam negros, mulatos e<br />

mouros, ao som do rabil, do pífaro, do bombo e ferrinhos, aos saltos e guinchos com desengonços e meneios e enganos<br />

galhofeiros que provocavam risa<strong>da</strong>s e era brinco ganhadeiro ao final <strong>da</strong> peça, corrido o carapuço a receber uma<br />

espórtula.<br />

Ar recua<strong>da</strong> do Largo, ficava a viven<strong>da</strong> do ourives do ouro, Diogo Barbosa, que na tormenta subitamte de<br />

Dezembro de 1601, quando a Ribeira escamalhou, engolfando <strong>da</strong>s margens contra a igreja, salvou e trouxe para sua


88<br />

casa, uma imagem de St.0 António, onde muita gente a viu chorar, apie<strong>da</strong>do o taumaturgo de tamanhas desgraças.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Depois <strong>da</strong> terrível aluvião de 1803 que destruiu a igreja de N.ª S.ª do Calhau e vi8inhanças, foi o largo<br />

desentulhado.<br />

ribeira.<br />

Nasceu então a ideia de elevar a garganta do poço, erigindo um monumento altivo a salvo dos insultos <strong>da</strong><br />

Um corpo cilíndrico central domina este marco, ao cimo orlado por uma galeria de colunatas simples. Uma<br />

bacia elíptica se estende longitudinalmente biparti<strong>da</strong>, fluindo biqueiras derrama<strong>da</strong>s dum reservatório onde a agua caía<br />

aspira<strong>da</strong> <strong>da</strong> fundura por uma bomba manual. Esta era oculta; apenas um braço <strong>da</strong> alavanca se mostrava ao cimo dum<br />

patamar esca<strong>da</strong>do.<br />

Chegaram os tempos <strong>da</strong> higiene, embora mais doenças havendo. A água fresca do subsolo foi condena<strong>da</strong> á<br />

escuridão perpétua, a permanecer na eterna fundura. Viu então para o Poço do Calhau, a água encana<strong>da</strong> <strong>da</strong> montanha;<br />

as bicas são torneiras azinhavra<strong>da</strong>s que não dão frescor. É terminado o ciclo poético duma academia extinta que se<br />

reunia no célebre botequim do Luís do Poço, onde os alexandrinos dominantes de sexta e duodécima eram adoçados<br />

com o escorregadiço composto de aguardente e mel, bebi<strong>da</strong> propensa <strong>da</strong>s sátiras do passado século.


89<br />

O Terreiro <strong>da</strong> Sé<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O Campo do Duque D. Fernando, na vila do Funchal, foi o local escolhido para o façimento <strong>da</strong> ygreja grande.<br />

Assim, o infante D. Manuel, logo no primeiro ano em que D. João II lhe concedeu as Ilhas e mais honrarias que tivera<br />

seu irmão assassinado, — fez a doação como administrador <strong>da</strong> Ordem de Cristo, intervindo nisso seu ouvidor na<br />

<strong>Madeira</strong>, Braz Afonso Correia, para que, do campo onde se ensaiou a plantação <strong>da</strong> cana de açúcar, fosse apartado o<br />

terreno necessário, não só para a edificação dum vasto templo, como também para adro e praça.<br />

Esta, ocupava uma grande extensão adjacente e logo que se a levantou a catedral, passou a chamar-se o<br />

Terreiro <strong>da</strong> Sé.<br />

Deslocou-se então a primeira freguesia <strong>da</strong> capitania, cuja sede era em N.ª S.ª do Calhau, para o novo templo<br />

de St.ª Maria de Assunção, transitando para ele o vigário Fr. Nuno, que foi depois o primeiro deão <strong>da</strong> Sé.<br />

Mu<strong>da</strong>va assim, o coração <strong>da</strong> vila, avançando para oeste, e em 1508, espontaneamente, o rei D. Manuel a<br />

engrandecia com os foros de ci<strong>da</strong>de, a primeira cria<strong>da</strong> nos domínios.<br />

Ao redor <strong>da</strong> Sé, os edifícios apareceram então com mais delineamento, quer para moradia de fi<strong>da</strong>lgos e<br />

eclesiásticos, quer destinados à causa municipal.<br />

No Terreiro fora construí<strong>da</strong> a primeira casa sobra <strong>da</strong><strong>da</strong>, em cedro com lavores «cousa nova e admirável sendo<br />

to<strong>da</strong>s as outras casas que havia, térreas e de taboado», o que motivou reparos e inveja tanta, que subiu uma queixa do<br />

povo acerca do fi<strong>da</strong>lgo João Manoel, por <strong>da</strong>quele modo se fazer forte contra a Coroa...<br />

Demoli<strong>da</strong> a Casa dos Regedores <strong>da</strong> Vila, levantou-se a do Senado <strong>da</strong> Gamara ao norte <strong>da</strong> catedral, onde<br />

assemblavam os homens-bons <strong>da</strong> governança; houve o Paço dos Tabeliães, ou de Justiça, no tempo de Estevam


90<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Azinhal, cavaleiro <strong>da</strong> casa d'el-rei; de Afonso Anes, do duque Don Diogo N. Senhor; e de João Tavira, tabelião que veiu<br />

<strong>da</strong>r o nome á rua ain<strong>da</strong> existente.<br />

O Terreiro <strong>da</strong> Sé vinha à marinha, até a orla pedregosa em rampa do mar, lava<strong>da</strong> no rolado miúdo, onde<br />

reinterancia larga abria vara douro para os batéis. Ali, o combro <strong>da</strong>s marés esguias acumulava parapeito, aproveitado<br />

em arrumações e revestimento de barcadijas em sobrepostos tabuleiros para altura dum rez-de-plano, abrigando a<br />

arcabuzaria de defensão contra investi<strong>da</strong>s de desembarque estranho.<br />

Correram depois na marinha, fraqueja<strong>da</strong> pelo <strong>da</strong>no bravio <strong>da</strong>s águas, as fortes muralhas filipinas com três<br />

portões neste lanço sul, entre ribeiras.<br />

O pequeno baluarte de S. Lourenço <strong>da</strong> traça ou forma do de Setúbal, que fez com que aportasse à <strong>Madeira</strong>,<br />

Vicente Sodré, para concertar a maneira de ser executado, só veio a erguer-se no reinado de D. Manuel e a altaneira<br />

fortaleza com 2 cubelos ficou completa<strong>da</strong> tarde, com o escudo de Castela no baluarte norte.<br />

O convento de S. Francisco fechava o Terreiro <strong>da</strong> Sé para o oponente e ali se chamava o Pé do Soco.<br />

Para nascente, a Rua <strong>da</strong> Ribeira <strong>da</strong>s Casas, bairro comercial, se dividiu nas ruas dos Tanoeiros, Esmeraldo e do<br />

Sabão, vindo <strong>da</strong>r á dos Mercadores que se alargava ao sul, adentro <strong>da</strong>s muralhas.<br />

De conquista, foi restringido o Terreiro <strong>da</strong> Sé. Os mercados com seus alpendres arrumavam-se nas imediações<br />

<strong>da</strong> capela de S. Sebastião, pertença do Senado, e perto <strong>da</strong> Sé, o Tribunal Eclesiástico e o Aljube.<br />

A Misericórdia Velha que pegava com a igreja de N.ª S.ª do Calhau carecia de expansão e num terreno para a<br />

nova Misericórdia, aforado no Terreiro <strong>da</strong> Sé, em 1685, levou até meado do século imediato a sua construção, sendolhe<br />

anexado o Recolhimento <strong>da</strong>s Órfãs, <strong>da</strong> iniciativa do capitão general Costa Freire, em 1725, conforme uma lápide<br />

ain<strong>da</strong> o testa.


91<br />

Foto Jardim<br />

O Poço do Terreiro <strong>da</strong> Sé<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

O Senado <strong>da</strong> Saúde permanecia às portas do mar, próximo <strong>da</strong> Fortaleza e o Município também lá esteve alguns<br />

anos no século XVIII, antes de se instalar na vizinhança <strong>da</strong> Sé, em 1803 uma casa toma<strong>da</strong> por dívi<strong>da</strong>s à Fazen<strong>da</strong>, onde<br />

foi depois demoli<strong>da</strong> cadeia pública.<br />

Uma parte do Terreiro esteve antigamente plantado a limoeiros, fruto de que tanto careciam os navegantes<br />

para contrariar o escorbuto, e demais, em verdes se colhiam também para a preparação de tintas na ilha.<br />

A Casa dos homens del-rei era perto <strong>da</strong> Catedral, no tempo do primeiro contador Luís de Atouguia, passando<br />

depois para a Alfândega Grande que teve reduto e capela de St.° António.<br />

A rua que servia os bombardeiros era a Rua do Quartel e quando o donatário passou a morar dentro <strong>da</strong><br />

Fortaleza, ficou chama<strong>da</strong> a Rua do Capitão.


92<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Cónegos e meios-cónegos recolhiam à Rua dos Murças, nome indicativo <strong>da</strong>s suas capinhas breves ou largo<br />

cabeção, por cima <strong>da</strong> sobrepeliz. A Travessa dos Capelães desembocava na <strong>da</strong> Amoreira e a Travessa do Cabido servia<br />

uma <strong>da</strong>s entra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Sé. A Rua de João Gago é ain<strong>da</strong> uma, em que ficou o nome dum membro <strong>da</strong> clerezia.<br />

Nos séculos XVI e XVII as multíplices digni<strong>da</strong>des tonsura<strong>da</strong>s achegavam-se mais pelos arredores <strong>da</strong> Sé.<br />

Primitivamente, antes do pagamento dos eclesiásticos pela Fazen<strong>da</strong> Real, competia ao deão saber o que «ca<strong>da</strong><br />

hum havia de haver e como servia a Igreja e ao que não servia, faz ir desconto no que nisso montasse para aplicação á<br />

Fabrica e notificar a todos sob o cargo de suas consciências».<br />

Os rendeiros traziam ao representante do Mestrado o quanto cabia fazer entrega para distribuição aos<br />

raçoeiros e isto era importante, especialmente em vinho e trigo, não contando com frangos, cabritos, etc, que vêem<br />

especificados em algumas côngruas.<br />

Nos grotescos dos cadeirais <strong>da</strong> capela-mor <strong>da</strong> Sé, algumas figuras restam ain<strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ndo o pagamento <strong>da</strong><br />

dízima em géneros com estiveis.<br />

Açougue privativo teve o cabido <strong>da</strong> Catedral; o Bispo possuía um barco para pesca, isento de tributo, e esses<br />

armazéns e lojas seriam provavelmente nas imediações <strong>da</strong> Sé.<br />

O tempo tudo gasta, derruba e transforma. Na recente demolição duns prédios vizinhos e escavações no<br />

subsolo, veio à flor, o local dum poço construído de aduela de cantaria indígena, era 8 faces convexas que completam<br />

um corpo cilíndrico, tendo em três delas volta<strong>da</strong>s ao sul, respectivamente um escudo com as letras J H S; uma cruz de<br />

Cristo; e uma flor de liz estiliza<strong>da</strong> sobre uma peanha.<br />

Era ali o poço do Terreiro <strong>da</strong> Sé, buscando água de passagem morosa a um fundo de 5 metros para servir a<br />

gente do bairro e os eclesiásticos.É agua que se oculta em lençóis estendidos sobre cama<strong>da</strong>s impermeáveis, até onde<br />

distribui<strong>da</strong>mente foi topar.<br />

A infiltração é calcula<strong>da</strong> na <strong>Madeira</strong> num volume superior a quantos multi-decalitros correm, nas ribeiras e<br />

leva<strong>da</strong>s e se aproveitam conti<strong>da</strong>s nas tubagens.<br />

Umas vezes, afloram aguas na escava <strong>da</strong> encosta, ou no sopé do monte distante; outras, por uma frincha <strong>da</strong><br />

rocha tombam na maré, ou lá vão sem ser vistas, misturar-se, desalinhando a babujem do mar, onde certas algas assim


93<br />

preferem viver.<br />

Todo o Funchal foi um vale de conquista <strong>da</strong>s ribeiras sobre um baixio mais ou menos recifoso.<br />

<strong>Fasquias</strong> <strong>da</strong> <strong>Madeira</strong><br />

Os grossos calhaus rolados que se encontram nas escavações vieram cabeceando num arrasto longo <strong>da</strong> aluvião<br />

que os abandonou, e sobre eles assentam a maior parte dos edifícios antigos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

O poço do Terreiro olhado pela natureza <strong>da</strong>s cantarias, é do final do século XVI, época em que começaram a<br />

ser explora<strong>da</strong>s as pedreiras de Câmara de Lobos e Cabo Girão, esta pertencente á Capela de S. José <strong>da</strong> Sé.<br />

Ca<strong>da</strong> barco carregado de pedra pagava 200 rs. à confraria que presenteou o santo com um frontal de prata,<br />

ricamente lavra<strong>da</strong>, para o seu altar.<br />

No começo do século XVII é especifica<strong>da</strong> esta cantaria para serem construídos os peitoris <strong>da</strong> ponte do Cidrão,<br />

no contracto com o arrematante Braz Fernandes, declarando este que se dilúvio as levasse «ficaria o encargo aos bens<br />

do Conselho».<br />

Um trabalho admirável nos resta, — por ser rijo, — qual é, o frontispício <strong>da</strong> arruina<strong>da</strong> Capela de S. Luís na<br />

antiga Rua do Bispo.<br />

No lavor do poço do Terreiro, as iniciais J. H. S. como primeira vez lavra<strong>da</strong>s na <strong>Madeira</strong>, na janela <strong>da</strong> casa do<br />

Esmeraldo, — representam o nome de Jesus, — Fonte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; a Cruz de Cristo recor<strong>da</strong> o Mestrado; a flor de liz,<br />

símbolo <strong>da</strong> pureza, parece indicar confiança a ter naquela água sadia e pura; tal seria assim, a intenção dessa gente<br />

seiscentista.<br />

O Terreiro <strong>da</strong> Sé passou a chamar-se Praça <strong>da</strong> Constituição em 1821, pelo reconhecimento do sistema<br />

representativo, sendo no ano imediato lança<strong>da</strong> a pedra fun<strong>da</strong>mental dum monumento que não chegou a concluir-se,<br />

pelo restabelecimento do governo absoluto, em 1823.<br />

Esta praça foi cerca<strong>da</strong> dum pequeno muro com banquetas de cantaria e ensombra<strong>da</strong> de arvoredo, onde<br />

predominava a figueira-<strong>da</strong>-índia.<br />

Era ponto de reunião <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de funchalense, nas tardes amenos de verão, e onde se festejava com<br />

iluminações e musica os dias de gala nacional.

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