AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
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A Residencial Ap¢stolo das Öndias n„o se situava no Largo de<br />
Santa B rbara consoante o escriv„o da puridade Lhes afian‡ara,<br />
mas no declive de um terreno perdido nas traseiras dos pr‚dios<br />
entre a embaixada da It lia e a Academia Militar. Era uma casa<br />
arruinada no meio de casas arruinadas diante das quais um<br />
grupo de vagabundos, instalado em lonas num baldio, conversava<br />
aos gritos … roda de um chibo enfermo. Perguntou o endere‡o a<br />
um mesti‡o de olhos sigilosos, a garotos que remexiam<br />
desperd¡cios com uma vara e a um sobrevivente alco¢lico de<br />
mares remotos abra‡ado a uma ƒncora oxidada, e contornaram, a<br />
trope‡ar, t buas de andaime, paredes calcinadas, bet”es<br />
torcidos, restos de muro e escadas de apartamentos sem<br />
ningu‚m, por onde … noite deslizavam luzes de navega‡„o nos<br />
intervalos das janelas. Um<br />
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bando de rolas espantou-se num coto de telhado, ergueu-se em<br />
leque e afundou-se num c‚u de chamin‚s. Abaixo, na Rua de<br />
Arroios com obras nos esgotos e um caterpillar a entupir o<br />
trƒnsito, ficavam capelistas decr‚pitas, bares de prostitutas<br />
e merceariazinhas manhosas enxameadas de oper rios de pavio de<br />
baga‡o aceso no casti‡al da m„o. Um rato h£mido de brilhantina<br />
escapou-se de um caneiro, correu ao longo de degraus<br />
assoreados e esgueirou-se num monte de cascalho. Os mendigos<br />
observavam-no de longe, em silˆncio, debaixo de um peda‡o de<br />
tenda, e nesse instante viu as letras<br />
RESIDENCIAL APàSTOLO D<strong>AS</strong> ÖNDI<strong>AS</strong><br />
pintadas a amarelo ao lado de uma porta aberta ou do que havia<br />
sido uma porta e n„o era mais do que uma esp‚cie de cancela<br />
esburacada. Uma rapariga de sapatos de homem despejava um<br />
caixote numa cova repleta de cascas, de embalagens de<br />
insecticida, de bisnagas, de mostradores de b£ssola e de<br />
frascos de xarope vazios. O senhor Francisco Xavier, indiano<br />
gordo de sand lias, recebeu-o no camarote do vest¡bulo cercado<br />
de uma d£zia de indianozinhos todos parecidos com ele,<br />
igualmente gordos e de sand lias, de tamanhos diversos como a<br />
escala de teclas de um xilofone. Cheirava a ins¢nia e a p‚s,<br />
cheirava ao estrume de curral da mis‚ria, e percebia-se o<br />
andamento de migra‡„o das nuvens pelos orif¡cios do reboco.<br />
Como se houvesse tamb‚m guerra aqui, pensou Pedro µlvares<br />
Cabral, como se um morteiro destru¡sse os pr‚dios.<br />
- Eu sou de Mo‡ambique, elucidou o senhor Francisco Xavier num<br />
sotaque macerado de gentio a<br />
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recolher-lhes as senhas de desembarque carimbadas pelas armas<br />
do escriv„o. E ele imaginou o goˆs, de charuto apagado na<br />
saliva das mand¡bulas, a adorar na floresta criaturas de oito<br />
pernas ou a impingir tafet s de pra‡a em pra‡a antecedido pelo<br />
volume persuasivo da barriga. L fora escutavam-se os<br />
vagabundos que discutiam aos guinchos e as rolas de papo que<br />
tornavam aos paus-de fileira, e debru‡ando-me lobriguei o<br />
chibo a tiritar entre os calhaus e os edif¡cios desertos que<br />
anoiteciam devagarinho … minha volta.<br />
- N„o os preveniram, espantou-se o senhor Francisco Xavier,<br />
que tˆm de entregar cinco contos de sinal?<br />
A rapariga do caixote regressou a falar sozinha e sumiu-se na