24.04.2013 Views

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

30<br />

A Residencial Ap¢stolo das Öndias n„o se situava no Largo de<br />

Santa B rbara consoante o escriv„o da puridade Lhes afian‡ara,<br />

mas no declive de um terreno perdido nas traseiras dos pr‚dios<br />

entre a embaixada da It lia e a Academia Militar. Era uma casa<br />

arruinada no meio de casas arruinadas diante das quais um<br />

grupo de vagabundos, instalado em lonas num baldio, conversava<br />

aos gritos … roda de um chibo enfermo. Perguntou o endere‡o a<br />

um mesti‡o de olhos sigilosos, a garotos que remexiam<br />

desperd¡cios com uma vara e a um sobrevivente alco¢lico de<br />

mares remotos abra‡ado a uma ƒncora oxidada, e contornaram, a<br />

trope‡ar, t buas de andaime, paredes calcinadas, bet”es<br />

torcidos, restos de muro e escadas de apartamentos sem<br />

ningu‚m, por onde … noite deslizavam luzes de navega‡„o nos<br />

intervalos das janelas. Um<br />

31<br />

bando de rolas espantou-se num coto de telhado, ergueu-se em<br />

leque e afundou-se num c‚u de chamin‚s. Abaixo, na Rua de<br />

Arroios com obras nos esgotos e um caterpillar a entupir o<br />

trƒnsito, ficavam capelistas decr‚pitas, bares de prostitutas<br />

e merceariazinhas manhosas enxameadas de oper rios de pavio de<br />

baga‡o aceso no casti‡al da m„o. Um rato h£mido de brilhantina<br />

escapou-se de um caneiro, correu ao longo de degraus<br />

assoreados e esgueirou-se num monte de cascalho. Os mendigos<br />

observavam-no de longe, em silˆncio, debaixo de um peda‡o de<br />

tenda, e nesse instante viu as letras<br />

RESIDENCIAL APàSTOLO D<strong>AS</strong> ÖNDI<strong>AS</strong><br />

pintadas a amarelo ao lado de uma porta aberta ou do que havia<br />

sido uma porta e n„o era mais do que uma esp‚cie de cancela<br />

esburacada. Uma rapariga de sapatos de homem despejava um<br />

caixote numa cova repleta de cascas, de embalagens de<br />

insecticida, de bisnagas, de mostradores de b£ssola e de<br />

frascos de xarope vazios. O senhor Francisco Xavier, indiano<br />

gordo de sand lias, recebeu-o no camarote do vest¡bulo cercado<br />

de uma d£zia de indianozinhos todos parecidos com ele,<br />

igualmente gordos e de sand lias, de tamanhos diversos como a<br />

escala de teclas de um xilofone. Cheirava a ins¢nia e a p‚s,<br />

cheirava ao estrume de curral da mis‚ria, e percebia-se o<br />

andamento de migra‡„o das nuvens pelos orif¡cios do reboco.<br />

Como se houvesse tamb‚m guerra aqui, pensou Pedro µlvares<br />

Cabral, como se um morteiro destru¡sse os pr‚dios.<br />

- Eu sou de Mo‡ambique, elucidou o senhor Francisco Xavier num<br />

sotaque macerado de gentio a<br />

32<br />

recolher-lhes as senhas de desembarque carimbadas pelas armas<br />

do escriv„o. E ele imaginou o goˆs, de charuto apagado na<br />

saliva das mand¡bulas, a adorar na floresta criaturas de oito<br />

pernas ou a impingir tafet s de pra‡a em pra‡a antecedido pelo<br />

volume persuasivo da barriga. L fora escutavam-se os<br />

vagabundos que discutiam aos guinchos e as rolas de papo que<br />

tornavam aos paus-de fileira, e debru‡ando-me lobriguei o<br />

chibo a tiritar entre os calhaus e os edif¡cios desertos que<br />

anoiteciam devagarinho … minha volta.<br />

- N„o os preveniram, espantou-se o senhor Francisco Xavier,<br />

que tˆm de entregar cinco contos de sinal?<br />

A rapariga do caixote regressou a falar sozinha e sumiu-se na

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!