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AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

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plantas mergulhadas numa claridade de eclipse em que as folhas<br />

dos vasos pareciam posti‡as, ocres e largas como as que se<br />

compram nas lojas de comida para peixes, latinhas com<br />

barbatanas pintadas no papel dos r¢tulos. E havia as duas<br />

urnas verticais dos ascensores, subindo como almas pias,<br />

patamar a patamar, a caminho das chamin‚s do terra‡o, do qual<br />

se avistava a barra do Tejo e as barca‡as em que el-rei D.<br />

Fernando trazia a corte de Almada a Lixboa, o farol, dunas sem<br />

termo, lumes de pescadores ao candeio e o ventoso silˆncio do<br />

c‚u.<br />

·terrou no s‚timo andar, num t£nel que era uma planta‡„o de<br />

capachos acompanhados do respectivo caixote do lixo que a<br />

porteira n„o recolhera ainda, e trope‡ou com a mala ao longo<br />

de portas de casa forte com o buraquinho de espreitar … altura<br />

do meu olho para que os inquilinos me vissem pequeno, torcido,<br />

de gestos absurdos, deformado pela lente, largar a bagagem no<br />

ch„o, sacar da chave, penetrar no apartamento min£sculo, de<br />

varanda sobre as ondas e as ca<br />

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noas, comprado h doze anos a pensar na reforma, numa velhice<br />

de preguiceira capitonˆ diante dos poentes do ver„o, livre de<br />

paludismos africanos, trincando … <strong>hora</strong> do almo‡o mariscos<br />

solit rios na paz submersa dos gale”es espanh¢is.<br />

Empurrou a fechadura, agarrou de novo na mala, acendeu o<br />

interruptor, e deu com cinco ou seis colch”es desdobrados no<br />

soalho, vultos cobertos por len‡¢is de morgue, embalagens de<br />

conserva, garrafas de vinho e um homem em camisola interior,<br />

de farripas desordenadas, a erguer-se descal‡o do sof numa<br />

indigna‡„o propriet ria, Mas o que ‚ isto, o que ‚ isto?<br />

Uma crian‡a soltou-se em berros tremendos no compartimento<br />

cont¡guo e alguns dos vultos dos len‡¢is levantaram-se por seu<br />

turno a abrir a boca de sono: dois rapazes ru‡os de l bios<br />

sardentos de cordeiro, uma nonagen ria que apertava contra o<br />

peito um casaquito de malha, um garoto que me fitava com os<br />

pƒntanos das ¢rbitas. O das farripas, agora de p‚, de<br />

suspens¢rios ca¡dos ao comprido das cal‡as, apontava-me o dedo<br />

quadrado, acusador, imenso, a repetir Mas o que ‚ isto, o que<br />

‚ isto?, numa ofensa infinita. E Manoel de Sousa de Sep£lveda<br />

notou que at‚ na varanda ressonavam indiv¡duos de camisol„o de<br />

l„ prevenindo-se contra o orvalho da aurora, estendidos em<br />

almofadas, em cobertores, em enxergas, em esteiras, em cisnes<br />

pneum ticos, de narizes amolgados pegados aos vidros das<br />

janelas como chernes fantasmas. As minhas m scaras da Lunda<br />

tinham desaparecido das paredes, o meu guarda-fato de mogno<br />

levara sumi‡o, que ‚ do meu escudo de leopardo que o n„o<br />

82<br />

vejo, que ‚ dos meus elefantes de marfim que mos roubaram, que<br />

‚ das prateleiras dos meus f¢sseis, dos meus escaravelhos<br />

equatoriais, dos meus quadros de queimadas, se o que agora<br />

encontro s„o cordas de roupa com blusas de ciganos a secar,<br />

buracos na cali‡a, pratos de restos de almo‡o, um cheiro de<br />

leite azedo e de carruagem de terceira classe, a nonagen ria ;<br />

do casaco de malha a cuspir sangue num penico? ; Os rapazes<br />

ru‡os de l bios de cordeiro (que ‚ das<br />

minhas cadeiras austr¡acas, do bar¢metro aner¢ide que herdei<br />

do meu pai, das minhas borboletas de Mo‡ƒmedes fulminadas por<br />

uma gota de cido?) avan‡aram para ele a escorregar nos<br />

colch”es, cada qual com o seu gargalo na m„o, a‡ulados pelo

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