24.04.2013 Views

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

arrica, que conversava com o senhor Francisco Xavier na<br />

linguagem colorida dos ¡dolos de pau adormecidos sob rvores<br />

imensas nos seus pagodes de cobre, uma vetusta namorada de<br />

marujos que assistira imp vida a abordagens ferozes,<br />

ulcera‡”es de escorbuto, fumiga‡”es de b lsamos e melancolias<br />

de vice-reis, debru‡ados para as andorinhas nas varandas do<br />

poente. N„o se preocupou muito com o mi£do ou comigo, ocupados<br />

a medir a densidade da noite pela pressa das corujas, mas<br />

avan‡ou e recuou v rias vezes na direc‡„o da mulata<br />

observando-lhe a cara, o corpo, as pernas, e eu sentia-me na<br />

Ribeira ou no mercado de Cascais em manh„s de vozearia,<br />

papagaios, zangas, regateio, a assistir ao desembarque dos<br />

escravos, de penas de galo na nuca, por uma portinha das<br />

fragatas. O gordo accionou um interruptor de pˆra e uma<br />

claridade s£bita mostrou o<br />

35<br />

trio adornado em que nadavam percas, as pranchas soltas da<br />

ponte de comando do soalho, o reboco em peda‡os, as feridas,<br />

n¢doas e cicatrizes do estuque. Os vagabundos amornavam-se no<br />

baldio para dormir, arrebanhando jornais contra o orvalho do<br />

estio. C„es sem dono e arcebispos despadrados, de mitras de<br />

palhetas de vidro na cabe‡a, esvoa‡avam em cambaleios de anjo<br />

rente … porta. A rapariga do caixote saiu para a noite a<br />

fumar, mascarada de boneca de mercearia de bairro, de<br />

bochechas de palha‡o e de pesco‡o apertado numa estola<br />

leprosa. O senhor Francisco Xavier, derramado num ƒngulo de<br />

balc„o, copiava custosamente os nossos nomes num caderno<br />

pautado, na caligrafia g¢tica dos cabe‡alhos de jornal.<br />

Um rafeiro uivou a cinquenta metros de n¢s e logo um segundo,<br />

mais distante, retorquiu das bombas de gasolina num lamento<br />

dorido, de goela ampliada pela concha de cimento da garagem<br />

com outras vozes l dentro, de automobilistas, de carteiros de<br />

motorizada, de estofadores, do £ltimo mecƒnico a ensaboar-se a<br />

uma torneira cuja gua se espalhava a brilhar pelas gretas do<br />

ch„o: sei como ‚ por h anos ter trabalhado de aprendiz numa<br />

oficina em S da Bandeira entre os relentos do ¢leo, do<br />

cabedal e da estopa, a ver, sob o leite coalhado do fl£or,<br />

electricistas comporem baterias em mesas fuliginosas, repletas<br />

de desperd¡cios e amper¡metros. Desisti porque o encarregado<br />

me apanhou o dedinho no casaco do bate-chapas … cata de uns<br />

trocozitos inocentes para um ma‡o de cigarros, e me expulsou<br />

ao tabefe, rampa acima, at‚ … chuva da rua. O indiano,<br />

subtra¡do pela f‚ dos evan<br />

36<br />

gelhos aos seus ¡dolos risonhos e …s suas trovoadas<br />

monstruosas, veio vindo do balc„o com a papada da barriga a<br />

baloi‡ar sobre o cinto:<br />

- N„o tens as coroas, mocinho?<br />

Os ratos que conspiravam no forro do tecto desprenderam do<br />

alto uma placa de cali‡a, e nisto a velha, de boca aberta,<br />

pulou como um sapo aleijado, filou a mulata com as pin‡as das<br />

garras e arrastou-a para os t£neis do Ap¢stolo das Öndias,<br />

onde uma crian‡a se esgani‡ava no sal„o decorado de azulejos<br />

do s‚culo xvII do primeiro piso, representando cenas de ca‡a<br />

ou milagres de virgens. E dei comigo a pensar se o chibo dos<br />

mendigos dormiria de p‚, de joelhos a tremerem nos cardos do<br />

baldio.<br />

- Nem a mis‚ria de um tost„ozinho te sobrou, ora confessa ao

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!