AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
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tina num quil¢metro em redor, ajudando-o com pachos frescos no<br />
peito e na testa, muito mais submissa e sol¡cita do que em<br />
qualquer ocasi„o o foi comigo, mesmo no inverno passado quando<br />
me torci seis dias no colch„o para espremer umas pedrinhas da<br />
bexiga, a limpar-lhe maternalmente, a ele que podia ser seu<br />
bisav“, as gotas da pˆra e do bigode, grande vaca. Entrega o<br />
bilhete ao homem, Lourdes, disse o meu compadre do seu fosso<br />
de agonias, e a branca enfiou o cotovelo num pote, remexeu<br />
sons de chaves, e avan‡ou para mim no andar de bicho sem ra‡a<br />
com que pela primeira vez a vi, caminhando dos coentros do<br />
quintal para o prefabricado do pai, alta, loira, forte, uma<br />
‚gua grande e d¢cil que trepou dois degraus furtados a uma<br />
escadaria de gal‚, uma cabrona de cesta na dobra do bra‡o a<br />
sumir-se em casa sem me olhar e que deixou uma esp‚cie de g s<br />
de aqu rio a ferver-me nos ossos, um aturdimento, m„ezinha,<br />
como o de agora, ao estender-me a passagem, embrulhada naquilo<br />
que de perto reparava ser uma toalha tal como reparava no<br />
corpo nu por baixo, no peito largo, na barriga lisa, na espuma<br />
arruivada dos pˆlos. Um pato invadiu o compartimento e tentou<br />
al‡ar-se sem ˆxito, tombando sempre, para uma cadeirita de<br />
lona esfarrapada, com tiras de r fia nos apoios dos bra‡os. Se<br />
j tens o papel para Lixboa vai-te embora, chiou o meu<br />
compadre dos cobertores onde se dissolvia em madeixas<br />
alagadas, ainda mais magro e mais escaveirado que o costume, e<br />
eu pensei, sem parar de admir -la, a avaliar-lhe a musculosa<br />
serenidade dos ombros e do p£bis, Quero voltar atr s com o<br />
neg¢cio, que coisa, quero<br />
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agarr -la pelas crinas e lev -la comigo. Magiquei melhor,<br />
disse ao doente, quem fica a perder com esta troca sou eu, e o<br />
meu compadre sentou-se nos len‡¢is, danado, com um pacho a<br />
escorregar-lhe da bochecha, espetando em mim os olhos<br />
irrevog veis, vermelhos e mi£dos, ba‡os da afli‡„o da mal ria<br />
e dos incont veis anos que tinha, esquel‚tico, fr gil e<br />
inesperadamente enorme na inconceb¡vel pequenez dos seus<br />
membros, Entrega ao teu marido o que se combinou e chega aqui,<br />
e a minha esposa poisou o bilhete numa ponta da mesa e<br />
aproximou-se fascinada por aquela voz sem quebras de pardal<br />
altivo at‚ quase encostar os quadris … orelha do homem. O pato<br />
grasnava em pƒnico, com uma das asas entalada na lona,<br />
saltitando de bico aberto sem lograr libertar-se. Havia<br />
sapatos, cafeteiras amolgadas e caro‡os de manga pelo ch„o,<br />
cuecas de renda, varetas de leque, caixas de bot”es. Tens que<br />
apresentar-te no aeroporto esta noite, avisou o meu compadre a<br />
abanar-se de tosse, j conferiste por acaso a <strong>hora</strong> do<br />
embarque? E ela, a parva, a compor-lhe as almofadas, a acender<br />
os bicos avariados do fog„o, a preparar-lhe um chazinho de<br />
ervan ria, a mover-se atrav‚s de dunas de detritos numa<br />
familiaridade conjugal que me expulsava. O pato conseguiu<br />
livrar-se das correias da cadeira e escapou-se para debaixo da<br />
cama num menear ofendido. A chuva pingava nos cobertores,<br />
pingava na minha cabe‡a, pingava na rapariga e no velho e no<br />
pato que me fixavam em un¡ssono com a mesma hostilidade ou<br />
indiferen‡a, e alcancei o avi„o (chovia sempre) no momento da<br />
£ltima chamada, Por esta porta aqui, fazem favor. Segui a