AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
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alta que o olhar dos coveiros. Um dos guardas, que conversava<br />
com ele ao fim da tarde a assistir …s manobras das gal‚s e ao<br />
aportar das caravelas esquartejadas por ventos estranhos,<br />
comandadas por espectros de tric¢rnio que os coitos das<br />
sereias alucinavam, oferecia-lhe os restos da marmita do<br />
jantar, ou seja batatas empasteladas de gordura,<br />
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ped£nculos de banana e cartilagens de frango pegadas ao<br />
alum¡nio do fundo, comida de marinheiro de terra cozinhada<br />
pela mulher numa marquise do Beato, envidra‡ada pelo ranho dos<br />
filhos. Os gale”es, depenados de velas, trepavam a pulso, na<br />
manh„, o ¢leo de traineiras do Tejo a fim de levarem ao pa‡o a<br />
sua pr¢pria desgra‡a, um pinguim rec‚m-nascido do estreito de<br />
Magalh„es num boi„o de compota e caixotes de cinzeiros made in<br />
Hong Kong de Sacav‚m. Queimavam-se hereges por aqui e por ali,<br />
em estradozinhos de palco de robertos, para ado‡ar o povo.<br />
Matava-se um ou outro espanhol por desfastio. E o mais era a<br />
pleurisia das locomotivas, as gaivotas de sempre e os peda‡os<br />
de antracite dos ratos dos arbustos, escapados aos barcos,<br />
alimentados de bolachas de araruta e de m£mias de cors rios.<br />
O cabo, que nos intervalos das rondas de servi‡o se instalava<br />
… secret ria a decifrar, num grande dispˆndio de cigarros,<br />
ordens de servi‡o de gram tica terr¡vel, emprestou ao homem de<br />
nome Lu¡s a embalagem de cart„o onde guardava a um canto o<br />
lixo das reparti‡”es mar¡timas, jornais da Monarchia, al¡sios,<br />
cartas in£teis, os girass¢is das b£ssolas … procura de nortes<br />
desencontrados, para que n„o sa¡sse da rea do seu posto um<br />
sujeito de urna …s costas a vaguear pela cidade na mira de um<br />
cemit‚rio onde ancorar os £meros espalhados do morto.<br />
Despejaram-na num talude junto … via-f‚rrea, no qual um<br />
carrinho de inv lido se afundava de esguelha na erva com a<br />
roda no ar, e puxaram o cad ver para a aur‚ola de um candeeiro<br />
cercado pelo voo de trapos de carnaval dos morcegos,<br />
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de boquinhas certeiras nos insectos tresmalhados. Ergueram o<br />
crucifixo da tampa enquanto uma barca‡a de for‡ados escorria,<br />
Tejo adiante, no sentido de Bel‚m, a caminho de uma epopeia<br />
inveros¡mil por um mar de neptunos furiosos, atapetaram o<br />
fundo a serradura para que o pai, j l¡quido, se n„o escapasse<br />
a gotejar das frestas da cartolina, pegaram cada qual na sua<br />
ponta de len‡ol e acomodaram o mau cheiro no caixote, abafado<br />
por mais serradura, trapos, e os fios de nylon de uma<br />
encomenda postal, … medida que os murganhos desembarcados dos<br />
paquetes e os rafeiros que n„o embarcaram nunca se<br />
aproximavam, a estender os pˆlos do focinho, dos cetins do<br />
caix„o que exalava um odor de medusa de placenta antiga, at‚ o<br />
guarda, farto de c„es, amandar um pontap‚ no esquife que<br />
baldeou da doca para a gua do rio, e ficaram a vˆ-lo<br />
desfazer-se em pranchas, rendas, enchuma‡os de algod„o e<br />
placas de estearina, tudo deglutido, na foz, por uma chicotada<br />
de naufr gio. Uma carro‡a de comediantes marchava a duzentos<br />
metros, num pandem¢nio de gaitas, para um baptizado no pa‡o, e<br />
l ia o ourives Gil Vicente a gesticular no meio de diabos e<br />
pastores.<br />
De maneira que o homem chamado Lu¡s meteu o pai debaixo do<br />
bra‡o e partiu, enfarinhado de serradura, seguido por um<br />
desiludido cortejo de cachorros, direito ao primeiro cemit‚rio<br />
dispon¡vel de Lixboa e …s moradias barrocas dos jazigos, que