24.04.2013 Views

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

71<br />

Apesar das saudades de Loanda e da vivenda no Bairro de<br />

Alvalade, de jardim a toda a cercadura e vizinhos engenheiros,<br />

sem contar o apartamento, quase nunca usado, para f‚rias<br />

europeias na Costa da Caparica, Manoel de Sousa de Sep£lveda<br />

morava em Malanje, numa casa geminada a cem metros do quartel,<br />

a fim de vigiar a chegada das colunas da fronteira: nessa<br />

mesma noite soldadinhos de olhos espantados ou tenentes<br />

cautelosos haviam de bater-lhe … porta das traseiras<br />

(instalado na sala, tenso, de r dio apagado, escutava-lhes as<br />

botas na tijoleira do p tio), de segui-lo atrav‚s da cozinha,<br />

do corredor, do arco para as trevas do quarto at‚ ao<br />

escrit¢rio iluminado de do‡uras de orat¢rio, com uma<br />

secret ria forrada de pano escuro no qual se instalavam por<br />

ordem os instrumentos do culto: duas balan‡as, ganchos, placas<br />

de vidro,<br />

73<br />

lupas, frasquinhos de reagente, um microsc¢pio, ferramentas<br />

ins¢litas, caixinhas numeradas. Os tropas retiravam pap‚is<br />

dobrados da carteira e espalhavam no feltro brilhos de pedras<br />

min£sculas, trocadas por bisnagas de repelente ou ampolas de<br />

quinino aos negros que mergulhavam no rio Cambo em busca dos<br />

cristais adormecidos nas areias do fundo. Manoel de Sousa de<br />

Sep£lveda, que era calvo e vi£vo (a mulher descansava o<br />

reumatismo no cemit‚rio do Lobito, com um anjo de m rmore<br />

funer rio, de asas desfraldadas, assente no peito para obviar<br />

ressuscita‡”es inoportunas), tombava num banco de laborat¢rio<br />

de an lises cl¡nicas, acendia um foco mais di fano do que o<br />

p¢-de-arroz das vi£vas, cegava o olho esquerdo com uma lupa de<br />

relojoeiro, e procedia ao exame lit£rgico dos diamantes, quase<br />

todos estilha‡os de galheteiro ou fragmentos de carv„o que<br />

afastava com a esp tula num adeus de desprezo, enquanto os<br />

soldaditos em pƒnico ou os oficiais de cigarro preocupado no<br />

queixo se suspendiam a flutuar dos seus ademanes sacerdotais,<br />

mirando aquela missa de reagentes e ganchos, e partindo<br />

felizes, se algum calhau desaparecia num estojo de damasco, a<br />

caminho da porta de armas do quartel. Manoel de Sousa de<br />

Sep£lveda arrumava ent„o a j¢ia num sacr rio escondido por uma<br />

cortina de folhos, e aguardava a sexta-feira em que o amigo<br />

inspector da Pide, mangan„o de bigode que carregava nos<br />

espirituosos, ia jantar l a casa o coelho habitual, para lhe<br />

passar a camanga que o pol¡cia, depois de sumir a sua comiss„o<br />

nas profundas das cal‡as, enviava … Zƒmbia por um portador de<br />

confian‡a, e o<br />

74<br />

ra- careca recebia o chequezinho da Holanda ou da B‚lþti-<br />

gica mal o cascalho tombava na unha de um primo<br />

no lapidador emigrado em Amesterd„o,com loja de ouriis-<br />

ves no bairro das mulheres de m fama,aboboradas<br />

os nas suas vitrinas como Budas de carne.Mas mais imtis<br />

portante que as pedras,e cada vez mais importante<br />

sa … medida que o p¢ da solid„o grelava a roupa da den-<br />

funta nos arm rios,era apanhar da gaveta o alicate<br />

; de podar,desprender o chap‚u de palha dos cornos<br />

s- de palanca do bengaleiro,esconder a cara,apesar da<br />

sombra da aba,nuns ¢culos de mica,e assistir … <strong>hora</strong>

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!