AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
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Apesar das saudades de Loanda e da vivenda no Bairro de<br />
Alvalade, de jardim a toda a cercadura e vizinhos engenheiros,<br />
sem contar o apartamento, quase nunca usado, para f‚rias<br />
europeias na Costa da Caparica, Manoel de Sousa de Sep£lveda<br />
morava em Malanje, numa casa geminada a cem metros do quartel,<br />
a fim de vigiar a chegada das colunas da fronteira: nessa<br />
mesma noite soldadinhos de olhos espantados ou tenentes<br />
cautelosos haviam de bater-lhe … porta das traseiras<br />
(instalado na sala, tenso, de r dio apagado, escutava-lhes as<br />
botas na tijoleira do p tio), de segui-lo atrav‚s da cozinha,<br />
do corredor, do arco para as trevas do quarto at‚ ao<br />
escrit¢rio iluminado de do‡uras de orat¢rio, com uma<br />
secret ria forrada de pano escuro no qual se instalavam por<br />
ordem os instrumentos do culto: duas balan‡as, ganchos, placas<br />
de vidro,<br />
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lupas, frasquinhos de reagente, um microsc¢pio, ferramentas<br />
ins¢litas, caixinhas numeradas. Os tropas retiravam pap‚is<br />
dobrados da carteira e espalhavam no feltro brilhos de pedras<br />
min£sculas, trocadas por bisnagas de repelente ou ampolas de<br />
quinino aos negros que mergulhavam no rio Cambo em busca dos<br />
cristais adormecidos nas areias do fundo. Manoel de Sousa de<br />
Sep£lveda, que era calvo e vi£vo (a mulher descansava o<br />
reumatismo no cemit‚rio do Lobito, com um anjo de m rmore<br />
funer rio, de asas desfraldadas, assente no peito para obviar<br />
ressuscita‡”es inoportunas), tombava num banco de laborat¢rio<br />
de an lises cl¡nicas, acendia um foco mais di fano do que o<br />
p¢-de-arroz das vi£vas, cegava o olho esquerdo com uma lupa de<br />
relojoeiro, e procedia ao exame lit£rgico dos diamantes, quase<br />
todos estilha‡os de galheteiro ou fragmentos de carv„o que<br />
afastava com a esp tula num adeus de desprezo, enquanto os<br />
soldaditos em pƒnico ou os oficiais de cigarro preocupado no<br />
queixo se suspendiam a flutuar dos seus ademanes sacerdotais,<br />
mirando aquela missa de reagentes e ganchos, e partindo<br />
felizes, se algum calhau desaparecia num estojo de damasco, a<br />
caminho da porta de armas do quartel. Manoel de Sousa de<br />
Sep£lveda arrumava ent„o a j¢ia num sacr rio escondido por uma<br />
cortina de folhos, e aguardava a sexta-feira em que o amigo<br />
inspector da Pide, mangan„o de bigode que carregava nos<br />
espirituosos, ia jantar l a casa o coelho habitual, para lhe<br />
passar a camanga que o pol¡cia, depois de sumir a sua comiss„o<br />
nas profundas das cal‡as, enviava … Zƒmbia por um portador de<br />
confian‡a, e o<br />
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ra- careca recebia o chequezinho da Holanda ou da B‚lþti-<br />
gica mal o cascalho tombava na unha de um primo<br />
no lapidador emigrado em Amesterd„o,com loja de ouriis-<br />
ves no bairro das mulheres de m fama,aboboradas<br />
os nas suas vitrinas como Budas de carne.Mas mais imtis<br />
portante que as pedras,e cada vez mais importante<br />
sa … medida que o p¢ da solid„o grelava a roupa da den-<br />
funta nos arm rios,era apanhar da gaveta o alicate<br />
; de podar,desprender o chap‚u de palha dos cornos<br />
s- de palanca do bengaleiro,esconder a cara,apesar da<br />
sombra da aba,nuns ¢culos de mica,e assistir … <strong>hora</strong>