Literatura Brasileira dos anos 1940 aos anos 1950 - marcelo::frizon
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A LITERATURA<br />
BRASILEIRA DOS<br />
ANOS <strong>1940</strong>/<strong>1950</strong>
1. JOÃO CABRAL DE<br />
MELO NETO (1920-1999)<br />
João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife. Seus pais descendiam de<br />
duas tradicionais famílias pernambucanas e por isso o futuro poeta<br />
passou a infância no mundo <strong>dos</strong> engenhos. Adolescente, estudou com os<br />
maristas. Seus primeiros interesses literários, ainda em Recife, foram no<br />
campo da crítica, mas em seguida direcionou-se para a criação lírica e<br />
<strong>aos</strong> vinte e dois <strong>anos</strong> de idade lançou a primeira obra poética, Pedra do<br />
sono. Em seguida mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 1945, ingressou<br />
na carreira diplomática, tendo servido numa série de cidades européias.<br />
Em 1966, seu poema Morte e vida Severina teve uma montagem teatral<br />
de grande sucesso e e transformou-se em um <strong>dos</strong> textos mais li<strong>dos</strong> da<br />
poesia brasileira em to<strong>dos</strong> os tempos. João Cabra de Melo Neto faleceu<br />
no Rio de Janeiro em 1999.<br />
OBRAS PRINCIPAIS: Pedra do sono (1942); O engenheiro (1945);<br />
Psicologia da composição (1947); O cão sem plumas (<strong>1950</strong>); Morte e<br />
vida severina (1956); A educação pela pedra (1966); Museu de tudo<br />
(1975).
Como nenhum outro autor de sua época, João<br />
Cabral de Melo Neto vê a lírica como a elaboração<br />
de um artefato de linguagem. Para ele, a criação<br />
poética, longe de ser o resultado da inspiração ou do<br />
transe (a exemplo do que românticos, simbolistas e<br />
surrealistas pensavam), é entendida como uma lenta e<br />
sofrida pesquisa de expressão. Por isso, ele despreza a<br />
intuição, o mistério e as revelações inconscientes como<br />
móveis do fazer literário, oferecendo em troca uma<br />
poética em que tudo é medido, calculado, trabalhado,<br />
em um meticuloso processo de construção. O poeta<br />
busca a palavra objetiva, a palavra exata, como<br />
quem procurasse uma fórmula matemática para<br />
representar o mundo. O resultado de seu esforço é<br />
uma lírica cerebral que rompe com a poesia feita nos<br />
i<strong>dos</strong> de <strong>1940</strong>, excessivamente palavrosa, prisioneira da<br />
musicalidade fácil e do exagero metafórico.<br />
Pode-se entender melhor a concepção de João<br />
Cabral a respeito do fazer poético lendo-se o trecho<br />
abaixo da obra Psicologia da composição:
Não a forma encontrada<br />
como uma concha, perdida<br />
nos frouxos areais<br />
como cabelos;<br />
não a forma obtida<br />
em lance santo ou raro,<br />
tiro nas lebres de vidro<br />
do invisível;<br />
mas a forma atingida<br />
como a ponta do novelo<br />
que a atenção, lenta,<br />
aranha; como o mais<br />
extremo<br />
desse fio frágil, que se<br />
rompe<br />
ao peso, sempre, das mãos<br />
enormes. (...)
As primeiras obras de João Cabral (Pedra do<br />
sono, O engenheiro, Psicologia da composição)<br />
iniciam o trabalho do despojamento: a linguagem<br />
torna-se cada vez mais rigorosa e seca. O poeta dá<br />
a impressão de estar experimentando e definido o<br />
seu instrumental. E os poemas geralmente<br />
tematizam o próprio fazer poético. Quando muito,<br />
centram-se no mundo objetivo. Em nenhum<br />
momento, o escritor se deixa atrair pela confissão<br />
sentimental. O eu está fora de seu horizonte lírico.<br />
CÃO SEM PLUMAS :: As produções iniciais<br />
de João Cabral de Melo Neto, contudo,<br />
ressentem-se de uma matéria-prima mais<br />
significativa. Apenas com o poema longo O cão<br />
sem plumas a linguagem depurada parece<br />
encontrar uma temática a altura: o rio Capibaribe,<br />
rio-detrito, com sua sujeira, seus detritos com a<br />
população miserável que lhe habita as margens,<br />
trágico espelho do subdesenvolvimento:
(...) Aquele rio<br />
era como um cão sem plumas.<br />
Nada sabia da chuva azul,<br />
da fonte cor de rosa,<br />
da água do copo de água,<br />
da água do cântaro,<br />
<strong>dos</strong> peixes de água,<br />
da brisa na água.<br />
Sabia <strong>dos</strong> caranguejos<br />
de lodo e ferrugem.<br />
Sabia da lama<br />
como de uma mucosa. (...)<br />
Aquele rio<br />
jamais se abre <strong>aos</strong> peixes,<br />
ao brilho,<br />
à inquietação de faca<br />
que há nos peixes. (...)<br />
Abre-se em flores<br />
pobres e negras<br />
como negros.<br />
Abre-se numa flora<br />
suja e mais mendiga<br />
como são os mendigos negros. (...)<br />
Na paisagem do rio<br />
difícil é saber<br />
onde começa o rio;<br />
onde a lama<br />
começa no rio;<br />
onde a terra<br />
começa da lama;<br />
onde o homem,<br />
onde a pele<br />
começa da lama;<br />
onde começa o homem<br />
naquele homem.
MORTE E VIDA SEVERINA :: A sua obra mais<br />
conhecida (por causa da montagem teatral) é Morte e<br />
vida severina, que traz como subtítulo: Auto de Natal<br />
pernambucano. Isso confere ao texto uma marcante<br />
duplicidade: é lírico na linguagem, mas narrativo e<br />
dramático no encadeamento das cenas e na<br />
apresentação direta <strong>dos</strong> personagens através de<br />
diálogos e monólogos.<br />
O estilo despojado de João Cabral de Melo Neto<br />
realça ainda mais o aspecto pungente do assunto: a<br />
trajetória de Severino, um migrante que abandona o<br />
sertão rumo ao litoral, encontrando nesta longa<br />
viagem apenas a morte. Este sertanejo, a exemplo <strong>dos</strong><br />
personagens <strong>dos</strong> autos medievais, é um tipo,<br />
encarnando de maneira genérica as características de<br />
uma classe social. Assim, seu sofrimento é o de toda a<br />
sua gente. Da mesma forma, a morte, que o espreita e<br />
persegue, é morte que ataca a to<strong>dos</strong> os pobres da<br />
região, “mesma morte Severina”. Cabe ao próprio<br />
Severino apresentar-se no início da obra:
(...) Somos muitos Severinos<br />
iguais em tudo na vida:<br />
na mesma cabeça grande<br />
que a custo é que se equilibra,<br />
no mesmo ventre crescido<br />
sobre as mesmas pernas finas,<br />
(...)<br />
E se somos Severinos<br />
iguais em tudo na vida,<br />
morremos de morte igual,<br />
mesma morte severina:<br />
que é a morte de que se morre<br />
de velhice antes <strong>dos</strong> trinta,<br />
de emboscada antes <strong>dos</strong> vinte,<br />
de fome um pouco por dia<br />
(de fraqueza e de doença<br />
é que a morte severina<br />
ataca em qualquer idade,<br />
e até gente não nascida).<br />
Somos muitos Severinos<br />
iguais em tudo e na sina:<br />
a de tentar despertar<br />
terra sempre mais extinta,<br />
a de querer arrancar<br />
algum roçado de cinza.<br />
Mas, para que me conheçam<br />
melhor Vossas Senhoritas<br />
e melhor possam seguir<br />
a história de minha vida,<br />
passo a ser o Severino<br />
que em vossa presença emigra.
Em sua trajetória rumo à cidade, o sertanejo encontra os irmãos das<br />
almas que conduzem um cadáver. Severino acaba tomando o lugar de<br />
um deles na condução de um defunto. Pouco a pouco, vai percebendo<br />
que apenas os que fazem da morte “ofício ou bazar” conseguem trabalho:<br />
rezadeiras, farmacêuticos, coveiros, etc. Na continuação de sua<br />
caminhada, assiste a um enterro de um trabalhador. Ouve, então, o que<br />
os amigos do morto dizem no cemitério:<br />
- Essa cova em que estás,<br />
com palmos medida,<br />
é a conta menor<br />
que tiraste em vida.<br />
- É de bom tamanho,<br />
nem largo nem fundo,<br />
É a parte que te cabe<br />
deste latifúndio.<br />
- Não é cova grande,<br />
é cova medida,<br />
é a terra que querias<br />
ver dividida.<br />
- É uma cova grande<br />
para teu pouco defunto,<br />
mas estarás mais ancho<br />
que estavas no mundo.<br />
- É uma cova grande<br />
para teu defunto parco,<br />
porém mais que no mundo<br />
te sentirás largo.<br />
- É uma cova grande<br />
para tua carne pouca,<br />
mas a terra dada<br />
não se abre a boca. (...)<br />
Chico Buarque musicou<br />
Morte e Vida Severina,<br />
inclusive o poema ao lado.
Severino continua o seu roteiro até chegar ao Recife. Lá ouve a<br />
conversa de dois coveiros. Um deles diz a respeito <strong>dos</strong> sertanejos que<br />
vinham de fora para morrer na capital: “Não é viagem o que fazem, /<br />
vin<strong>dos</strong> por essas caatingas, vargens; / aí está o seu erro: / vem é<br />
seguindo o seu próprio enterro.”<br />
O retirante percebe e percebe então a absoluta precariedade de sua<br />
condição humana e resolve se suicidar. Antes disso, dialoga com um<br />
tipo pobre da cidade, José, mestre carpina, a respeito da fundura do<br />
rio Capibaribe. Neste momento, o mestre carpina recebe a notícia do<br />
nascimento de um filho. Severino o acompanha. Há uma espécie de<br />
auto dentro do auto: vizinhos, amigos e ciganas vem “adorar” e levar<br />
presentes ao menino recém nascido, como se ele fosse o próprio<br />
Cristo, revivido em Pernambuco. Severino assiste a tudo. E, por fim, o<br />
mestre carpina encerra o poema, respondendo ao retirante que aquela<br />
vida - mesmo sendo franzina - era a prova da resistência de to<strong>dos</strong> os<br />
severinos do Nordeste contra a morte:
(...) E não há melhor resposta<br />
que o espetáculo da vida:<br />
vê-la desfiar seu fio,<br />
que também se chama vida,<br />
ver a fábrica que ela mesma,<br />
teimosamente, se fabrica,<br />
vê-la brotar como há pouco<br />
em nova vida explodida;<br />
mesmo quando é assim pequena,<br />
a explosão como a ocorrida;<br />
mesmo quando é uma explosão<br />
como a de há pouco, franzina;<br />
mesmo quando é a explosão<br />
de uma vida severina.
Graciliano Ramos<br />
Falo somente com o que falo:<br />
com as mesmas vinte palavras<br />
girando ao redor do sol<br />
que as limpa do que não é faca:<br />
de toda uma crosta viscosa,<br />
resto de janta abaianada,<br />
que fica na lâmina e cega<br />
seu gosto da cicatriz clara.<br />
Falo somente do que falo:<br />
do seco e de suas paisagens,<br />
Nordestes, debaixo de um sol<br />
ali do mais quente vinagre:<br />
que reduz tudo ao espinhaço,<br />
cresta o simplesmente folhagem,<br />
folha prolixa, folharada,<br />
onde possa esconder-se na fraude.<br />
Falo somente por quem falo:<br />
por quem existe nesses climas<br />
condiciona<strong>dos</strong> pelo sol,<br />
pelo gavião e outras rapinas:<br />
e onde estão os solos inertes<br />
de tantas condições caatinga<br />
em que só cabe cultivar<br />
o que é sinônimo da míngua.<br />
Falo somente para quem falo:<br />
quem padece sono de morto<br />
e precisa um despertador<br />
acre, como o sol sobre o olho:<br />
que é quando o sol é estridente,<br />
a contrapelo, imperioso,<br />
e bate nas pálpebras como<br />
se bate numa porta a socos.
2. JOÃO GUIMARÃES<br />
ROSA (1908-1967)<br />
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, pequena<br />
cidade do interior de Minas Gerais. Filho de um<br />
comerciante da região, ali fez seus estu<strong>dos</strong> primários,<br />
indo posteriormente a Belo Horizonte, onde cursou o<br />
secundário e ingressou na Faculdade de Medicina,<br />
formando-se médico, condição em que participou da<br />
Revolução Constitucionalista de 1932. Mudando-se para<br />
o Rio de Janeiro em 1932, fez concurso para a carreira<br />
de diplomata no então Ministério do Exterior, iniciando<br />
uma atividade que o levaria a varias partes do mundo.<br />
Obras: Sagarana (contos - 1946); Corpo de baile<br />
(novelas, 1956 - Manuelzão e Miguilim; No<br />
Urubuquaquá no Pinhém; Noites do sertão); Grande<br />
sertão: veredas (romance, 1956); Primeiras estórias<br />
(contos, 1962); Tutaméia (contos, 1967); Estas estórias<br />
(contos, 1969).
GRANDE SERTÃO: VEREDAS :: Apesar de respeitado por alguns<br />
críticos e já reconhecido como renovador do conto brasileiro, João<br />
Guimarães Rosa ficou quase desconhecido até 1956, quando a publicação<br />
de Grande Sertão: veredas o tornou um nome internacional. Na verdade,<br />
ele provocou um verdadeiro choque entre leitores e críticos brasileiros,<br />
principalmente por sua linguagem, fortemente marcada pela variante<br />
caboclo-sertaneja da língua portuguesa, e pela temática, de um lado<br />
ligada <strong>aos</strong> temas do coronelismo e da jagunçagem e, de outro, impregnada<br />
de uma problemática metafísica e teológica (o problema de Deus, o<br />
sentido da vida, etc.).<br />
Em termos simplifica<strong>dos</strong>, Grande sertão: veredas é um longo diálogo/<br />
monólogo em que o protagonista, Riobaldo, um velho jagunço que há<br />
muito deixara de "cachorrar pelo sertão", conta sua vida a um jovem<br />
doutor que chega à sua fazenda. Este ouvinte, porém, jamais fala,<br />
informando o texto apenas sobre suas risadas, suas desconfianças<br />
estampadas no rosto, etc. Para Riobaldo, o centro de sua vida e, portanto,<br />
da história que narra é não tanto o fato de ter sido jagunço e chefe de um<br />
bando deles mas o de ter se apaixonado por uma moça, Maria Deodorina<br />
da Fé Betancourt Marins, a Diadorim, que, sendo filha única de um<br />
fazendeiro, Joca Ramiro, se travestira de homem para conseguir viver<br />
como jagunço.
Riobaldo conta, entre outras coisas, como ele ficava perturbado diante<br />
de seu sentimento pelo "companheiro" de luta, pois, não sabendo que<br />
Diadorim era mulher, julgava sua paixão pouco normal. Ao final da<br />
história, Diadorim morre e to<strong>dos</strong> descobrem que era uma mulher, com o<br />
que Riobaldo se retira da jagunçagem, casa com Otacília, também filha<br />
de fazendeiros, e fica sabendo ser possuidor de outras duas fazendas,<br />
que herdara com a morte de seu pai, Selorico Mendes. É numa destas<br />
fazendas que o doutor o visita e ouve sua história.<br />
Seguindo a análise do crítico José Hildebrando Dacanal, podemos<br />
levantar três elementos fundamentais da estrutura narrativa e da<br />
temática da obra:<br />
1) o plano do presente - isto é, a narração de Riobaldo ao doutor - é o<br />
tempo não só da própria narração em si mas também do filosofar do<br />
protagonista sobre suas experiências do passado.<br />
2) o plano do passado é o tempo em que ocorrem os eventos<br />
narra<strong>dos</strong>, ou seja, a vida de Riobaldo desde sua infância até o momento<br />
em que deixa a jagunçagem, passando, obviamente, pelo período mais<br />
importante de sua vida: o encontro, a convivência com Diadorim e seu<br />
amor por ela, que morre tragicamente na batalha final contra os<br />
jagunços inimigos de seu pai, Joca Ramiro.
3) a passagem de uma consciência mítico-sacral<br />
(Riobaldo-jagunço) para uma consciência lógicoracional<br />
(Riobaldo a partir do episódio de Veredas<br />
Mortas, quando pretendia fazer um pacto com o<br />
Diabo mas este não aparece). O primeiro tipo de<br />
consciência - comum <strong>aos</strong> indígenas e às sociedades<br />
<strong>dos</strong> sertões brasileiros e latino-americ<strong>anos</strong> - explica o<br />
mundo segundo uma visão em que existem poderes<br />
superiores como Deus e o Diabo, além de outros seres<br />
misteriosos como lobisomens, sereias, etc. O segundo<br />
tipo, próprio da civilização racionalista moderna, vê o<br />
mundo de um ponto de vista científico, ou seja, como<br />
um conjunto de forças mecânicas, físicas e químicas<br />
em interação. No caso de Grande sertão: veredas,<br />
Riobaldo, no plano do presente, quando narra sua<br />
vida ao doutor, tende a recusar a visão mítico-sacral<br />
(ou mágica), aceitando apenas a existência do<br />
"homem humano", como diz ao terminar sua história.<br />
A primeira página já coloca toda a problemática da<br />
obra:
- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus<br />
esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu<br />
acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram<br />
me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem<br />
ser - se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar.<br />
Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava<br />
rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão; determinaram - era o demo.<br />
Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar<br />
minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe:<br />
quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,<br />
instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere,<br />
isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os camposgerais<br />
a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do<br />
Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito<br />
sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem<br />
de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de<br />
morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de<br />
autoridade. O Urucuia vem <strong>dos</strong> montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele,<br />
tudo dá - fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as<br />
vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até<br />
ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem<br />
tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é<br />
questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.
3. ARIANO SUASSUNA<br />
(1927)<br />
Ariano Suassuna nasceu na então cidade de Nossa Senhora<br />
das Neves - hoje João Pessoa, capital da Paraíba. Logo em<br />
seguida, tendo seu pai, João Suassuna, deixado o governo do<br />
estado, Ariano acompanha a família de volta para a região do<br />
alto sertão paraibano, onde a mesma tinha várias fazendas.<br />
Assassinado o pai, a família deixa a região, mudando-se para<br />
a cidade de Taperoá, no chamado sertão seco, onde o futuro<br />
dramaturgo e romancista faz seus estu<strong>dos</strong> primários. Em<br />
1938 há nova mudança, desta vez para Recife, onde cursa o<br />
ginásio, estudando também música e pintura. Em 1946 entra<br />
para a Faculdade de Direito, ligando-se ao círculo de poetas,<br />
escritores e artistas da capital pernambucana e interessan<strong>dos</strong>e<br />
cada vez mais pelo romanceiro popular nordestino e pelo<br />
teatro. Em 1952 começa a trabalhar em advocacia mas logo<br />
abandona a profissão, dedicando-se ao magistério e à<br />
atividade de escritor.
Obra: Com extensa obra teatral - publicou, entre outras, as peças<br />
Auto da Compadecida, O santo e a porca, A farsa da boa preguiça -,<br />
Ariano Suassuna escreveu em 1956 A história do amor de Fernando<br />
e Isaura, romance até hoje inédito. Em 1958 começou a trabalhar em<br />
Quaderna, o decifrador, uma trilogia composta de: I - A pedra do<br />
reino; II - O rei degolado; III - Senésio, o alumioso.
A PEDRA DO REINO :: Publicado em 1970, A pedra do reino continua<br />
sendo considerado um romance completo, pois até hoje as duas outras partes<br />
da trilogia não vieram a público, pelo menos em edições comerciais. Em vista<br />
disso, a possibilidade de análise é um tanto precária, apesar de a obra<br />
oferecer, em suas mais de 600 páginas, matéria suficiente não apenas para<br />
ensaios como para livros inteiros.<br />
De leitura um pouco árida na primeira centena de páginas, A pedra do<br />
reino, mesmo isolada da trilogia de que faz parte, é um verdadeiro<br />
monumento literário que se liga à cultura caboclo-sertaneja nordestina, muito<br />
marcada pelas tradições do mundo ibérico (Portugal e Espanha), trazidas<br />
pelos primeiros colonizadores europeus e transformadas ao longo <strong>dos</strong><br />
séculos.<br />
Em linhas gerais, A pedra do reino é a apresentação do memorial -<br />
obviamente em primeira pessoa - de D. Dinis Ferreira - Quaderna, que, preso<br />
em Taperoá, faz sua própria defesa perante o corregedor e, para tanto, conta a<br />
história de sua família, das desavenças, das lutas e das controvérsias políticas,<br />
literárias e filosóficas em que se vira envolvido. Como diz um crítico, na obra<br />
de Suassuna podem ser percebidas "duas distintas tradições a informarem a<br />
concepção de mundo do herói: a tradição mítico-sertaneja e a tradição<br />
erudita" (J. H. Weber). O que faz, como no caso de todas as demais obras da<br />
nova narrativa, com que A pedra do reino se diferencie claramente do<br />
romance brasileiro tradicional.
AUTO DA COMPADECIDA :: Auto da<br />
Compadecida é um raro exemplo de um<br />
clássico instantâneo, aquele tipo de obra<br />
que tem seu valor reconhecido<br />
imediatamente após sua divulgação.<br />
Escrita em 1955 por Ariano Suassuna, a<br />
peça estreou no ano seguinte e, já em<br />
1957, ano em que foi publicada, venceu a<br />
Medalha de Ouro da Associação<br />
<strong>Brasileira</strong> de Críticos Teatrais. No Auto,<br />
Ariano consegue o equilíbrio perfeito<br />
entre a tradição popular e a elaboração<br />
literária ao recriar para o teatro episódios<br />
registra<strong>dos</strong> na tradição popular do<br />
cordel. Chicó e João Grilo, os<br />
protagonistas dessa peça, são dois<br />
malandros que fazem de tudo para se dar<br />
bem e acabam gerando uma enorme<br />
confusão envolvendo os outros<br />
personagens.
4. CLARICE LISPECTOR<br />
(1920-1977)<br />
De origem judaica, a família de Clarice sofreu a perseguição <strong>aos</strong> judeus,<br />
durante a Guerra Civil Russa, de 1918 a1921. Seu nascimento ocorreu<br />
em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia, antes<br />
da viagem de emigração ao continente americano. Chegou ao Brasil<br />
quando tinha dois meses de idade.<br />
A família estabeleceu-se inicialmente em Maceió, em março de 1922.<br />
Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade<br />
do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre<br />
eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma<br />
materno, o iídiche.<br />
Além de escritora, trabalhou como jornalista. No auge de sua<br />
carreira, foi hospitalizada pouco tempo depois da publicação do<br />
romance A Hora da Estrela por causa de um câncer no ovário. Faleceu<br />
no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu 57° aniversário.
Obra :: Em dezembro de 1943, publicou seu primeiro romance,<br />
Perto do coração selvagem. Escrito quando tinha apenas 19 <strong>anos</strong>, o<br />
livro apresenta Joana como protagonista, a qual narra sua história em<br />
dois pl<strong>anos</strong>: a infância e o início da vida adulta. Clarice Lispector<br />
surpreendeu a crítica com seu romance, seja pela problemática de<br />
caráter existencial, completamente inovadora, seja pelo estilo solto,<br />
elíptico e fragmentário. Este estilo de escrita se tornou marca<br />
característica da autora, como pode ser observado em seus trabalhos<br />
subsequentes.<br />
Na época da publicação, muitos associaram o seu estilo literário<br />
introspectivo ao de Virginia Woolf e James Joyce, embora ela tenha<br />
afirmado não ter lido nenhum destes autores antes de ter escrito seu<br />
romance inaugural. Perto do coração selvagem ganhou o prêmio da<br />
Fundação Graça Aranha de melhor romance de estréia, em outubro de<br />
1944.
Além de escritora, Clarice foi colunista do Jornal do Brasil, do<br />
Correio da Manhã e do Diário da Noite. As colunas, que foram<br />
publicadas entre as décadas de 60 e 70, eram destinadas ao público<br />
feminino, e abordavam assuntos como dicas de beleza, moda e<br />
comportamento. Em mea<strong>dos</strong> de 1970, Lispector começou a trabalhar<br />
no livro Um sopro de vida: pulsações, publicado postumamente. Este<br />
livro consiste de uma série de diálogos entre o "autor" e sua criação,<br />
Angela Pralini, personagem cujo nome foi emprestado de outro<br />
personagem de um conto publicado em Onde estivestes de noite. Esta<br />
abordagem fragmentada foi utilizada no seu penúltimo e, talvez, mais<br />
famoso romance, A hora da estrela, que conta a história de Macabéa,<br />
uma datilógrafa semi-analfabeta criada no estado de Alagoas que<br />
migra para o Rio de Janeiro e vai morar em uma pensão, tendo sua<br />
rotina narrada por um escritor fictício chamado Rodrigo S.M. O livro<br />
descreve a pobreza e a marginalização no Brasil, temática que pouco<br />
apareceu ao longo da sua obra. A história de Macabéa foi publicada<br />
poucos meses antes da morte de Clarice. A seguir, reproduzimos um<br />
de seus contos mais famosos, retirado do livro Laços de Família.
AMOR<br />
UM CONTO DE CLARICE LISPECTOR<br />
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô,<br />
Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a<br />
andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de<br />
meia satisfação.<br />
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta.<br />
Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcria<strong>dos</strong>, instantes cada<br />
vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado<br />
dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam <strong>aos</strong> poucos<br />
pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara<br />
lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o<br />
calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha<br />
na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua<br />
rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque,<br />
cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com<br />
os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do<br />
edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua<br />
corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa.<br />
Certa hora da tarde as árvores que<br />
plantara riam dela. Quando nada mais<br />
precisava de sua força, inquietava-se. No<br />
entanto sentia-se mais sólida do que<br />
nunca, seu corpo engrossara um pouco e<br />
era de se ver o modo como cortava blusas<br />
para os meninos, a grande tesoura dando<br />
estali<strong>dos</strong> na fazenda. Todo o seu desejo<br />
vagamente artístico encaminhara-se há<br />
muito no sentido de tornar os dias<br />
realiza<strong>dos</strong> e belos; com o tempo, seu<br />
gosto pelo decorativo se desenvolvera e<br />
suplantara a íntima desordem. Parecia<br />
ter descoberto que tudo era passível de<br />
aperfeiçoamento, a cada coisa se<br />
emprestaria uma aparência harmoniosa;<br />
a vida podia ser feita pela mão do<br />
homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de<br />
sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar<br />
perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos,<br />
viera a cair num destino de mulher, com a<br />
surpresa de nele caber como se o tivesse<br />
inventado. O homem com quem casara era um<br />
homem verdadeiro, os filhos que tivera eram<br />
filhos verdadeiros. Sua juventude anterior<br />
parecia-lhe estranha como uma doença de vida.<br />
Dela havia <strong>aos</strong> poucos emergido para descobrir<br />
que também sem a felicidade se vivia: abolindoa,<br />
encontrara uma legião de pessoas, antes<br />
invisíveis, que viviam como quem trabalha —<br />
com persistência, continuidade, alegria. O que<br />
sucedera a Ana antes de ter o lar estava para<br />
sempre fora de seu alcance: uma exaltação<br />
perturbada que tantas vezes se confundira com<br />
felicidade insuportável. Criara em troca algo<br />
enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim<br />
ela o quisera e o escolhera.<br />
A atriz Beth Goulart em<br />
cena da peça<br />
Simplemente Eu
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde,<br />
quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro<br />
da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu<br />
coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar<br />
para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma<br />
habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para<br />
fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família<br />
à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do<br />
colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De<br />
manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de<br />
novo empoeira<strong>dos</strong> e sujos, como se voltassem arrependi<strong>dos</strong>. Quanto a ela<br />
mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E<br />
alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e<br />
escolhera.<br />
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento<br />
mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora<br />
instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu<br />
rosto um ar de mulher.<br />
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de<br />
descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.<br />
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De<br />
pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?<br />
Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego<br />
mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.<br />
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam<br />
jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego<br />
profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na<br />
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da<br />
mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e<br />
deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem<br />
a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a<br />
olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita<br />
jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se<br />
do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de<br />
parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os<br />
passageiros olharam assusta<strong>dos</strong>.
Incapaz de se mover para apanhar suas<br />
compras, Ana se aprumava pálida. Uma<br />
expressão de rosto, há muito não usada,<br />
ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta,<br />
incompreensível. O moleque <strong>dos</strong> jornais ria<br />
entregando-lhe o volume. Mas os ovos se<br />
haviam quebrado no embrulho de jornal.<br />
Gemas amarelas e viscosas pingavam entre<br />
os fios da rede. O cego interrompera a<br />
mastigação e avançava as mãos inseguras,<br />
tentando inutilmente pegar o que acontecia.<br />
O embrulho <strong>dos</strong> ovos foi jogado fora da rede<br />
e, entre os sorrisos <strong>dos</strong> passageiros e o sinal<br />
do condutor, o bonde deu a nova arrancada<br />
de partida.<br />
Poucos instantes depois já não a olhavam<br />
mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o<br />
cego mascando goma ficara atrás para<br />
sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os de<strong>dos</strong>, não íntima<br />
como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar<br />
num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com<br />
as compras no colo. E como uma estranha música, o<br />
mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê?<br />
Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava,<br />
Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que<br />
existiam antes do acontecimento estavam agora de<br />
sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O<br />
mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários <strong>anos</strong><br />
ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus<br />
próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram<br />
periclitantes, que se mantinham por um mínimo<br />
equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a<br />
falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam<br />
para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito<br />
que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse<br />
cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas<br />
com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer<br />
intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor<br />
se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais<br />
altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma<br />
revolução, as grades <strong>dos</strong> esgotos estavam secas, o ar empoeirado.<br />
Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura<br />
sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo<br />
cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto<br />
dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar,<br />
depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois<br />
namora<strong>dos</strong> entrelaçavam os de<strong>dos</strong> sorrindo... E o cego? Ana caíra<br />
numa bondade extremamente dolorosa.<br />
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não<br />
explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma<br />
pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem<br />
usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de<br />
modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma<br />
despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma<br />
vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na<br />
fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com<br />
pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um<br />
momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.<br />
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de<br />
medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida<br />
que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais<br />
misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde<br />
localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os<br />
portões do Jardim Botânico.<br />
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não<br />
havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no<br />
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.<br />
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela<br />
adormecia dentro de si.<br />
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra<br />
<strong>dos</strong> ramos cobria o atalho.<br />
Ao seu redor havia ruí<strong>dos</strong> serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas<br />
entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressa<strong>dos</strong><br />
da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por<br />
um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande<br />
demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada<br />
parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso<br />
gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.<br />
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras<br />
vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com malestar,<br />
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um<br />
trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.<br />
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão<br />
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros<br />
apodreci<strong>dos</strong>. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade<br />
intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as<br />
luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O<br />
assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.<br />
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com<br />
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram<br />
percorri<strong>dos</strong> por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a<br />
repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha<br />
nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.<br />
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a<br />
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada.<br />
A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele,<br />
estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde<br />
vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na<br />
relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e<br />
escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as<br />
pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos<br />
envia<strong>dos</strong> pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as<br />
flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim<br />
era tão bonito que ela teve medo do Inferno.<br />
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na<br />
sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era<br />
fascinante, e ela sentia nojo.<br />
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara<br />
culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,<br />
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o<br />
Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os<br />
portões fecha<strong>dos</strong>, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia<br />
apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.<br />
Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia?<br />
A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia<br />
seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as<br />
maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava<br />
— que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora<br />
pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou<br />
correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a<br />
abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a<br />
vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava<br />
com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com<br />
aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava,<br />
avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de<br />
um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem<br />
queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível,<br />
disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria<br />
sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava<br />
deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os<br />
braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o,<br />
olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer,<br />
disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a<br />
porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais<br />
recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os de<strong>dos</strong> ainda presos na rede. De<br />
que tinha vergonha?<br />
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na<br />
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não<br />
olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era<br />
só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.<br />
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O<br />
homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter<br />
passado para o la<strong>dos</strong> que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim<br />
Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que<br />
pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua<br />
misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca<br />
seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma,<br />
pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia<br />
água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma<br />
pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no<br />
seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,<br />
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamavaa<br />
como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego!<br />
pensou com os olhos molha<strong>dos</strong>. No entanto não era com este sentimento<br />
que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantouse<br />
e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.<br />
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e<br />
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do<br />
fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a<br />
água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas<br />
mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de<br />
lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O<br />
mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os<br />
besouros de verão. O horror <strong>dos</strong> besouros inexpressivos. Ao redor havia<br />
uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado<br />
para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da<br />
cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma<br />
noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios<br />
escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.<br />
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos<br />
<strong>dos</strong> irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião<br />
estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos<br />
ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas,<br />
brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a<br />
dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.<br />
Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas<br />
janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansa<strong>dos</strong> do dia, felizes em<br />
não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o<br />
coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno<br />
deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os de<strong>dos</strong><br />
antes que ele nunca mais fosse seu.<br />
Depois, quando to<strong>dos</strong> foram embora e as crianças já estavam<br />
deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade<br />
estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos<br />
seus dias? Quantos <strong>anos</strong> levaria até envelhecer de novo? Qualquer<br />
movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de<br />
amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitóriasrégias<br />
boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do<br />
Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!<br />
pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do<br />
café derramado.<br />
— O que foi?! gritou vibrando toda.<br />
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:<br />
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com<br />
olheiras.<br />
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.<br />
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.<br />
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.<br />
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,<br />
respondeu ele sorrindo.<br />
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa<br />
tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É<br />
hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que<br />
pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar<br />
para trás, afastando-a do perigo de viver.<br />
Acabara-se a vertigem de bondade.<br />
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do<br />
espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se<br />
deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
5. ANTONIO CALLADO<br />
(1917-1997)<br />
Antonio Carlos Callado nasceu em Niterói, sendo filho de uma família de alta<br />
classe média. Seu pai, que era médico, sofria de tuberculose pulmonar e<br />
mudou-se com a família para Petrópolis, em busca de um clima mais saudável,<br />
mas veio a falecer em 1928, fato que obrigou Callado a trabalhar desde cedo<br />
como jornalista. Mesmo assim, o futuro romancista continuou seus estu<strong>dos</strong>,<br />
formando-se em Direito alguns <strong>anos</strong> depois. Sua carreira profissional, no<br />
entanto, deu-se na imprensa: passou de repórter a redator-chefe do extinto<br />
Correio da Manhã. Em 1941 foi para Londres e lá exerceu a função de<br />
correspondente de guerra da BBC, emissora na qual permaneceu por vários<br />
<strong>anos</strong>. Em 1947, retornou ao Brasil e à redação do Correio da Manhã. Viajou por<br />
muitos lugares, entre os quais o Nordeste, o Xingu, Cuba, o Vietnã, sempre<br />
produzindo reportagens de grande repercussão. Contudo, seus primeiros<br />
romances, publica<strong>dos</strong> na década de <strong>1950</strong>, não tiveram o mesmo êxito. O<br />
sucesso literário veio apenas com Quarup, que se constituiu num<br />
acontecimento político, quando de seu lançamento, em 1967. Apesar de seus<br />
hábitos quase aristocráticos e tími<strong>dos</strong>, Antônio Callado tornou-se uma estrela<br />
da esquerda intelectual brasileira, sendo várias preso durante a ditadura.<br />
Faleceu no Rio de Janeiro, <strong>aos</strong> oitenta <strong>anos</strong>.
OBRAS PRINCIPAIS: Assunção de<br />
Salviano (1954); A Madona de cedro<br />
(1957); Quarup (1967); Bar Don Juan<br />
(1971); Reflexos do baile (1976);<br />
Sempreviva (1981); A e x p e d i ç ã o<br />
Montaigne (1982).<br />
Escritor que sempre transitou do<br />
jornalismo para a literatura, e vice-versa,<br />
Antonio Callado procurou em suas obras<br />
mais importantes, aproveitar o material<br />
que sua vasta experiência como repórter<br />
lhe fornecera. Após lançar dois romances<br />
de qualidade apenas regular (Assunção de<br />
Salviano e A Madona de cedro),<br />
surpreendeu os meios literários com a<br />
publicação de Quarup, em 1967. O clima da<br />
época (polarização política, enfrentamento<br />
entre setores da sociedade civil e o regime<br />
autoritário), garantiu à obra de Callado<br />
extraordinária ressonância.<br />
* Quarup é o ritual<br />
indígena de celebração<br />
<strong>dos</strong> mortos. Mas, ao invés<br />
de lamentações, os índios<br />
realizam uma grande festa<br />
em homenagem <strong>aos</strong> que<br />
partiram (bebida, comida,<br />
alegria), pois neste dia<br />
eles revivem. Trata-se,<br />
portanto, de um ritual de<br />
renascimento.
QUARUP :: O enredo do romance centra-se na figura do<br />
padre Nando, que vive num mosteiro, no Recife, e alimenta a<br />
idéia de criar com os índios, na floresta amazônica, uma<br />
sociedade utópica (no modelo das reduções jesuíticas do<br />
século XVIII). Não se atreve, porém, a viajar rumo ao coração<br />
do Brasil, pois teme não resistir ao espetáculo da nudez das<br />
índias e pecar contra a castidade. Mas uma amiga inglesa,<br />
resolve o problema de Nando, iniciando-o sexualmente.<br />
Pronto para ir ao Xingu, Nando passa uma temporada no<br />
Rio de Janeiro, onde entra em contato com integrantes do<br />
Serviço de Proteção ao Índio (hoje FUNAI). Ali amplia suas<br />
experiências sexuais e participa de sessões em que as pessoas<br />
(inclusive ele) se drogam com lança-perfume. Finalmente, a<br />
expedição parte para o Xingu. Outros personagens adquirem<br />
relevo na narrativa: Ramiro, um <strong>dos</strong> chefes do SPI, sua<br />
sobrinha e secretária, Vanda, a jovem Sônia, que to<strong>dos</strong> os<br />
homens desejam fisicamente e que acaba fugindo com um<br />
índio, o sertanista Fontoura, etc.
No capítulo seguinte do romance – passado alguns <strong>anos</strong> – to<strong>dos</strong><br />
retornam ao Xingu (menos Sônia), querem demarcar o centro geográfico<br />
do Brasil. A nova participante é a jovem Francisca, recém-chegada da<br />
Europa e cujo noivo Levindo fora morto pela polícia por razões políticas.<br />
Nando se apaixona por ela e os dois se relacionam sexualmente dentro<br />
da floresta. Neste capítulo ocorrem as cenas mais dramáticas do<br />
romance, como a destruição coletiva de um tribo, atingida pelas doenças<br />
trazidas pelos brancos (os índios se “dissolvem” em terríveis diarréias), e<br />
a morte do sertanista Fontoura, bêbado, o rosto sobre um gigantesco<br />
formigueiro, bem no centro geográfico do Brasil, como se as formigas<br />
corroessem o coração do país.<br />
Depois disso, Nando abandona a batina e retorna a Pernambuco com<br />
Francisca que vai trabalhar na alfabetização de camponeses. Ocorre<br />
então golpe de 1964 e Nando é preso. Quando o soltam, Francisca havia<br />
retornado para a Europa. O ex-padre dedica-se então a uma pitoresca<br />
vida de “apóstolo do amor”, relacionando-se com inúmeras mulheres e<br />
ensinado sua (agora refinada) técnica sexual a pescadores e a gente do<br />
povo. No final do romance, Nando decide partir para o sertão, a fim de<br />
integrar um movimento guerrilheiro de oposição à ditadura, adotando o<br />
codinome de Levindo, o antigo noivo de Francisca.
O QUE OBSERVAR EM QUARUP<br />
-No romance estão to<strong>dos</strong> os assuntos<br />
que então dominavam o debate político e<br />
existencial: a mudança de perspectiva da<br />
Igreja a respeito da questão social, as luta<br />
<strong>dos</strong> estudantes e das Ligas Camponesas, as<br />
razões do golpe de 1964, a revolução<br />
sexual, o feminismo, a proteção <strong>aos</strong> índios,<br />
a guerrilha, as drogas, etc.<br />
-O quadro histórico – traçado com<br />
bastante nitidez – tem peso direto no<br />
desenvolvimento da narrativa, abrangendo<br />
acontecimentos que transcorrem do<br />
governo democrático de Getúlio Vargas ao<br />
ditatorial de Castelo Branco. O escritor<br />
parece alimentar a idéia de fazer de Quarup<br />
uma suma da sociedade brasileira nas<br />
décadas de <strong>1950</strong> e 1960, na linha <strong>dos</strong><br />
romances totalizantes do realismo europeu<br />
do século XIX.
- O resultado do ambicioso projeto de Antônio Callado, todavia, é<br />
problemático. Há no romance um tal acúmulo de ações, muitas das<br />
quais inúteis ou inverossímeis, uma tal profusão de caracteres mal<br />
trabalha<strong>dos</strong>, a começar pela própria psicologia do padre Nando – que<br />
passa da castidade ao furor orgíaco com a maior naturalidade e sem<br />
nenhum drama interior – que a impressão final do leitor é de<br />
perplexidade. Como numa montanha-russa, Quarup alterna<br />
vertiginosamente altos e baixos, acertos esplêndi<strong>dos</strong> (algumas cenas<br />
eróticas, as passagens em que os brancos representam o apocalipse<br />
para os indígenas e a construção dramática do impasse do sertanista<br />
Fontoura ao se dar conta que “contatar” os índios era necessariamente<br />
destruí-los), e passagens menores, quase ridículas (Nando assumindo a<br />
condição de professor de sexo, a cosmopolita Sônia fugindo da<br />
civilização e embrenhando-se nos confins da floresta com um índio,<br />
etc).<br />
- Outro aspecto questionável em Quarup é a tentativa do autor de<br />
mesclar um estilo real-naturalista com freqüentes monólogos interiores<br />
e certos delírios verbais que hoje parecem gratuitos. O resultado desta<br />
mistura nem sempre é literariamente equilibrado e convincente.
- Um elemento positivo do romance e que funciona como<br />
representação artisticamente fiel da realidade é a<br />
“desalienação”(Ferreira Gullar) de Nando, que deixa de sonhar com<br />
uma utopia indianista e passa a lutar pelos desvali<strong>dos</strong> nordestinos.<br />
Este processo traduz claramente as mudanças que se verificam na<br />
Igreja, na década de 1960, com a crescente politização de seus<br />
sacerdotes.<br />
- A proposição melhor realizada do romance é a identificação do<br />
centro do país não apenas como metáfora da plena integração<br />
nacional, mas também da descoberta de um sentido de vida para<br />
cada personagem que participa da expedição ao Xingu. Estabelecese,<br />
assim, uma ligação umbelical entre as existências individuais e o<br />
destino do Brasil. Por isso, a morte do sertanista Fontoura com o<br />
rosto enfiado dentro do grande formigueiro, onde ficará o marco do<br />
centro do país, é a derrocada simbólica de um sonho de unidade e<br />
de desenvolvimento da nação e um augúrio pessimista a respeito<br />
<strong>dos</strong> acontecimentos que, na década seguinte (1960), traumatizariam<br />
os brasileiros.
REFLEXOS DO BAILE :: A crise geral <strong>dos</strong> <strong>anos</strong> de 1970<br />
parece tornar inviável a formulação neo-realista, predominantes<br />
nos romances anteriores de Antonio Callado, e encontra sua<br />
tradução no caótico Reflexos do baile (1976). O autor tenta compor<br />
um mosaico de época, centrando sua narrativa no seqüestro de um<br />
embaixador durante um baile de gala. Guerrilheiros, diplomatas,<br />
familiares de ambos os grupos e policiais misturam-se e se revelam<br />
parcialmente através de falas alternadas, bilhetes e cartas, criando<br />
uma fragmentação de tal ordem que o entendimento do enredo só<br />
se torna possível no final da obra. À confusão formal soma-se uma<br />
visão de mundo igualmente estilhaçada e nebulosa, fazendo com<br />
que o romance não tenha um eixo que lhe dê equilíbrio, tornan<strong>dos</strong>e<br />
bastante confuso.<br />
As demais obras ficcionais de Antonio Callado, produzidas nas<br />
décadas de 70 e 80 não acrescentaram nada de fundamental à sua<br />
carreira.
6. RUBEM BRAGA<br />
(1913-1990)<br />
Nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no ano de 1913, onde fez seus<br />
primeiros estu<strong>dos</strong>. Concluiu o colegial em Niterói e ingressou da<br />
Faculdade de Direito do Rio Janeiro. Muito jovem, tornou-se repórter e,<br />
em seguida, cronista, trabalhando na imprensa da antiga capital federal,<br />
mas também em São Paulo, Porto Alegre e no Recife. Seu primeiro livro<br />
de crônicas saiu em 1936, O conde e o passarinho, sendo muito bem<br />
recebido pelo público. Em 1944, já famoso, acompanhou a Força<br />
Expedicionária <strong>Brasileira</strong> ao front europeu, resultando desta experiência<br />
as crônicas reunidas na obra Com a FEB na Itália (1945). Nos <strong>anos</strong> 50<br />
desempenhou cargos diplomáticos no Chile e no Marrocos. Além disso,<br />
integrou a célebre equipe de cronistas da revista Manchete. Nas décadas<br />
de 1960 e de 1970, já estava convertido num mito vivo da literatura<br />
brasileira.
Nos últimos <strong>anos</strong> de vida, Rubem Braga retirou-se para a sua<br />
célebre cobertura no Leblon, onde “cultivava aves, árvores e amigos”. De<br />
lá assistiu desencantado <strong>aos</strong> desdobramentos da ditadura militar, à crise<br />
da Manchete, que fora o seu mais relevante local de trabalho e as<br />
rapidíssimas transformações ocorridas nas grandes cidades brasileiras<br />
as quais, desumanizando-se, tornaram quase impossível o tipo de<br />
crônica lírica produzida pelo escritor. O “velho Braga”, como ele próprio<br />
se designava morreu de câncer em 1990.<br />
OBRAS PRINCIPAIS: Um pé de milho (1948); O homem rouco<br />
(1949); A borboleta amarela (1956); A cidade e a roça (1957); Ai de ti,<br />
Copacabana! (1960); A traição das elegantes (1967).<br />
Entre to<strong>dos</strong> os cronistas brasileiros, Rubem Braga deixou a obra<br />
mais singular e, talvez, a mais permanente. Partindo – a exemplo <strong>dos</strong><br />
demais praticantes do gênero – <strong>dos</strong> fatos triviais do cotidiano, ele<br />
conseguiu ultrapassar os limites da crônica (compromisso excessivo<br />
com acontecimentos quase sempre perecíveis e linguagem<br />
insuficientemente elaborada) e alcançou um patamar artístico<br />
apreciável. Dois fatores parecem explicar esta superação do caráter<br />
circunstancial da crônica: a sua forma de encarar a realidade e o seu<br />
estilo.
UMA VISÃO LÍRICA E MELANCÓLICA :: Apesar de ter escrito<br />
alguns textos irônicos, o melhor de Rubem Braga – conforme a lúcida<br />
observação do crítico Davi Arrigucci Jr., resulta da captação do<br />
inesperado poético que brota de pequenas cenas do cotidiano. O cronista se<br />
interessa por notícias desimportantes, pelas manifestações comuns da<br />
natureza (o vento, o sol, a nuvem, a lua, a mudança das estações), pelos<br />
olhares rápi<strong>dos</strong> troca<strong>dos</strong> nas ruas, por lembranças súbitas do seu passado<br />
interiorano ou por alguma antiga amada cuja evocação o comove. É um<br />
escritor <strong>dos</strong> momentos que estão passando ou já passaram. Até a guerra, da<br />
qual participara como correspondente, pareceu interessá-lo mais em suas<br />
pequenas histórias dramáticas do que em sua abrangência histórica.<br />
Nesses instantes fugazes, Rubem Braga descobre o sentido profundo<br />
daquilo que é aparentemente irrelevante, intui o lírico na banalidade e ouve<br />
dentro de seu próprio coração as ressonâncias do mundo objetivo. Mas o<br />
que ele compreende, especialmente, é que tudo na vida tem um caráter<br />
transitório: objetos, pessoas e sentimentos. A consciência da dimensão<br />
passageira de todas as coisas leva-o a uma percepção melancólica da<br />
existência. E também a uma celebração da memória, pois através dela o<br />
cronista recupera (ainda que precariamente) as emoções que estão se<br />
diluindo sob o efeito do tempo destruidor. Veja-se estes excertos, retira<strong>dos</strong><br />
da crônica Às duas horas da tarde de Domingo:
No meio de muita aflição e tristeza houve um momento, lembras-te?<br />
Foi por acaso, foi de repente, foi roubado, e se alguém tivesse a mais<br />
leve suspeita seria uma ignomínia*. Mas houve um momento; e dentro<br />
deste momento houve silêncio e beleza. (...)<br />
Serão lembranças verdadeiras? Como volta àquele apartamento,<br />
reconstituir aquelas duas horas da tarde, lembrar a data, verificar a<br />
posição <strong>dos</strong> móveis e o ângulo da incidência do sol? Do chão ou da<br />
porta do banheiro – creio que do chão – ele iluminava os teus olhos<br />
claros que me fitavam quietos.(...)<br />
Houve um momento. Talvez a pintura da parede hoje seja diferente;<br />
creio que era rosa. Tua roupa de banho era preta, tinha alça, lembro as<br />
marcas das alças. (...)<br />
A lembrança que ficou é de um momento em que boiamos no bojo de<br />
uma nuvem, longe da cidade e do mundo, e to<strong>dos</strong> os ruí<strong>dos</strong> se<br />
distanciaram e se apagaram, ainda estavas toda salgada do mar, teus<br />
olhos me miravam quietos, sérios, teus olhos sempre de menina, teus<br />
cabelos molha<strong>dos</strong>, teu grande corpo de um dourado pálido.<br />
* desonra, infâmia
Houve um momento, aquele momento em<br />
que a carne se fez alma; e depois, muito<br />
depois, me disseste a mesma coisa que eu<br />
sentira, aquele momento suspenso no ar<br />
como uma flor, o estranho silêncio, sim, te<br />
lembras! (...)<br />
Ah, não me podes mais responder. Falo<br />
sozinho. Estás longe demais; e talvez tivesse<br />
de olhar duas vezes para reconhecer neste<br />
homem de cabelos brancos e de cara<br />
marcada pela vida aquele que fui um dia, o<br />
que te fez sofrer e sofreu; mas quero que tu<br />
saibas que te vejo apenas como eras naquele<br />
momento, teu corpo ainda molhado do mar<br />
às duas horas da tarde (...), naquele<br />
momento eras bela e pura como uma deusa<br />
e eras minha eternamente, eternamente.<br />
(...) Naquele edifício daquela rua, naquele<br />
apartamento , entre aquelas paredes e<br />
aquele feixe de sol, eternamente. (...)
O ESTILO POÉTICO :: O efeito<br />
sugestivo <strong>dos</strong> textos de Rubem Braga<br />
origina-se também de uma linguagem<br />
melodiosa, cheia de nuanças e evocações,<br />
dominada por frases e perío<strong>dos</strong> mais<br />
longos que os cronistas usam<br />
normalmente. Na trilha <strong>dos</strong> grandes<br />
poetas brasileiros do século XX, o autor<br />
de Ai de ti, Copacabana! mescla o<br />
coloquial e o padrão culto da língua,<br />
estabelecendo um estilo de<br />
inquestionável vigor literário. Observese,<br />
por exemplo, este fragmento de Visão:<br />
No centro do dia cinzento, no meio da<br />
banal viagem, e nesse momento em que<br />
a custo equilibramos to<strong>dos</strong> os motivos de<br />
agir e de cruzar os braços de insistir e<br />
desesperar, e ficamos quietos, neutros e<br />
presos ao mais medíocre equilíbrio – foi<br />
então que aconteceu.
Eu vinha sem raiva nem desejo – no fundo do coração as feridas<br />
mal cicatrizadas, e a esperança humilde como ave doméstica – eu<br />
vinha como um homem que vem e vai, e já teve noites de tormenta e<br />
madrugadas de sede, e dias vivi<strong>dos</strong> com to<strong>dos</strong> os nervos e com toda a<br />
alma, e charnecas* de tédio atravessadas com a longa paciência <strong>dos</strong><br />
pobres (...) – eu vinha como um elemento altamente banal, de paletó e<br />
gravata (...) – assim eu vinha, como quem ama as mulheres de seu<br />
país, as comidas de sua infância e as toalhas de seu lar – quando<br />
aconteceu. (...)<br />
Foi apenas um instante antes de se abrir um sinal numa esquina,<br />
dentro de um grande carro negro, uma figura de mulher que nesse<br />
instante me fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a<br />
boca fresca e viva; que depois ainda moveu de leve os lábios como se<br />
fosse dizer alguma coisa – e se perdeu, a um arranco do carro, na<br />
confusão do tráfego da rua estreita e rápida. Mas foi como se, preso<br />
na penumbra da mesma cela eternamente, eu visse uma parede se<br />
abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de to<strong>dos</strong> os sonhos de luz.<br />
(...)
7. POESIA CONCRETA<br />
Em 1956, a Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada na cidade<br />
de São Paulo, lançou oficialmente o mais controverso movimento de poesia<br />
vanguardista brasileira: o concretismo*.<br />
Criada por Décio Pignatari (1927), Haroldo de Campos (1929) e<br />
Augusto de Campos (1931), a poesia concreta era um ataque à produção<br />
poética da época, dominada pela geração de 1945, a quem os jovens paulistas<br />
acusavam de verbalismo, subjetivismo, falta de apuro e incapacidade de expressar a<br />
nova realidade gerada pela revolução industrial.<br />
São Paulo vivia então o apogeu do desenvolvimentismo da Era J.K. e seus<br />
intelectuais buscavam uma poética ideológica/artística cosmopolita, como tinham<br />
feito os modernistas de 1922. Por isso, um <strong>dos</strong> modelos adota<strong>dos</strong> pelos concretos<br />
foi Oswald de Andrade cuja lírica sintética (“poemas-pílula”) representava para<br />
eles o vanguardismo mais radical.<br />
Desde 1952, os jovens intelectuais paulistas vinham procurando um novo caminho<br />
através de uma revista chamada Noigandres, palavra tirada de um poema de Erza<br />
Pound e que não significa nada.
“TODO POEMA É UMA AVENTURA<br />
PLANIFICADA”<br />
Em síntese, os criadores do concretismo propugnavam um experimentalismo<br />
poético (planificado e racionalizado) que obedecia <strong>aos</strong> seguintes princípios:<br />
- Abolição do verso tradicional, sobretudo através da eliminação <strong>dos</strong> laços<br />
sintáticos (preposições, conjunções, pronomes, etc.), gerando uma poesia objetiva,<br />
concreta, feita quase tão somente de substantivos e verbos;<br />
- Um linguagem necessariamente sintética, dinâmica, homóloga à sociedade<br />
industrial (“A importância do olho na comunicação mais rápida... os anúncios<br />
luminosos, as histórias em quadrinhos, a necessidade do movimento....”);<br />
- Utilização de paronomásias, neologismos, estrangeirismos; separação de<br />
prefixos e sufixos; repetição de certos morfemas; valorização da palavra solta<br />
(som, forma visual, carga semântica) que se fragmenta e recompõe na página;<br />
- O poema transforma-se em objeto visual, valendo-se do espaço gráfico como<br />
agente estrutural: uso <strong>dos</strong> espaços brancos, de recursos tipográficos, etc.; em<br />
função disso o poema deverá ser simultaneamente lido e visto.
Exemplo destas propostas<br />
pode ser encontrado no<br />
poema “terra” (1956) de<br />
Décio Pignatari:<br />
Haroldo, Décio e Augusto, 1952
Observe-se o despojamento e o<br />
jogo verbal do poema a seguir, de<br />
Haroldo de Campos:<br />
de sol a sol<br />
soldado<br />
de sal a sal<br />
salgado<br />
de sova a sova<br />
sovado<br />
de suco a suco<br />
sugado<br />
de sono a sono<br />
sonado<br />
sangrado<br />
de sangue a sangue<br />
Haroldo, Décio e Augusto, 1952
A INFLUÊNCIA DOS<br />
CONCRETOS<br />
Os autores concretistas desintegraram o lirismo pretensioso e retórico da<br />
geração anterior e transformaram seu movimento, por alguns <strong>anos</strong>, em um<br />
divisor de águas entre a velha poesia e a nova vanguarda. Apesar da escassa<br />
receptividade pública de suas obras, as mesmas tiveram inegável importância na<br />
problematização estética da época.<br />
Cultos e sofistica<strong>dos</strong>, emitiram um sem número de manifestos e de<br />
interpretações da própria poesia. A autopublicidade e autocitação contínuas do<br />
grupo (combinadas com a incapacidade de aceitar qualquer outro tipo de<br />
poesia) renderam-lhe admiradores e inimigos, a tal ponto que, nos <strong>anos</strong> de<br />
1960, nenhum poeta poderia estrear sem fazer a opção “concreto x não-concreto”.<br />
No entanto, quase to<strong>dos</strong> os primeiros adeptos do movimento acabaram se<br />
afastando do núcleo fundador. Entre eles, Ferreira Gullar, que não apenas<br />
renegou o concretismo, como passou a combatê-lo, vendo na poética inovadora<br />
da década de <strong>1950</strong> apenas um vanguardismo vazio e historicamente datado:<br />
“Trata-se de uma poesia artificiosa, imposta pela teoria. Uma novidade que logo<br />
passou.”
É preciso reconhecer, contudo, que o objetivo de criar uma “poesia de<br />
exportação”, tão presente no fundadores do movimento obteve êxito, pois<br />
grupos concretos de maior ou menor relevância se formaram em vários países:<br />
Alemanha, Suíça, Portugal, França, etc.<br />
Observe-se, por outro lado, que nas artes plásticas nacionais, o concretismo<br />
dialogou com criadores muito importantes como Lígia Clark, Hélio<br />
Oiticica e outros. Também a música popular brasileira sofreu o impacto do<br />
projeto paulista. Os chama<strong>dos</strong> tropicalistas, em especial, se apropriaram de<br />
certas características do movimento para compor suas letras mais ousadas.<br />
Alguns <strong>anos</strong> depois, na canção Sampa, Caetano Veloso celebraria os<br />
fundadores da vanguarda concretista: Quando eu cheguei por aqui / Eu nada<br />
entendi / Da dura poesia concreta de tuas esquinas.<br />
Os recursos visuais :: Em Pós-tudo, escrito no fim da década de 80,<br />
Augusto de Campos parece fazer o inventário de sua participação no<br />
concretismo, identificando o seu papel nas mudanças poéticas e reconhecendo<br />
que o caminho revolucionário acabara na mudez*:
pós-tudo (1984)<br />
Mudo aqui tem um sentido ambivalente. Além da indicação de mudez, o<br />
termo poderia ser interpretado como forma verbal de mudar, traduzindo<br />
assim o início uma nova busca de alternativas por parte do autor, após a<br />
experiência concretista.
viva vaia
código, 1973
Também há espaço para a crítica social, como no<br />
conhecido poema “luxolixo”.
tudo está dito (1974)
o quasar (1975)
o pulsar (1975)
onaldo azeredo: velocidade, 1958
josé lino grünewald: vai e vem, 1959
haroldo de campos: crisantempo, 1998
décio pignatari: beba coca-cola, 1957
décio pignatari: life, 1957
poemas de pedro xisto
8. NELSON RODRIGUES<br />
(1912-1980)<br />
Nelson Rodrigues Falcão nasceu no Recife, sendo filho de Mário<br />
Rodrigues um célebre jornalista da época. Ainda menino, Nelson seguiu<br />
com a família para o Rio de Janeiro, onde o pai foi buscar melhores<br />
chances profissionais. Já adolescente, o futuro dramaturgo viveu um<br />
acontecimento que lhe deixou marcas indeléveis: uma mulher, senti<strong>dos</strong>e<br />
ultrajada por uma escandalosa matéria publicada por Mário<br />
Rodrigues, invadiu a redação do pequeno jornal que ele dirigia e, não o<br />
encontrando, assassinou um de seus filhos, o desenhista Roberto<br />
Rodrigues, irmão de Nelson. O pai, atormentado pela culpa, sofreu um<br />
infarto semanas depois e, em seguida, faleceu. A partir de então, a<br />
família enfrentou toda sorte de dificuldades, na luta pela sobrevivência.<br />
Nelson Rodrigues dedicou-se de corpo e alma ao jornalismo. Para piorar<br />
a situação, ele e um de seus irmãos ficaram tuberculosos e tiveram várias<br />
passagens por sanatórios. Por isso, o teatro representou para o escritor,<br />
em um primeiro momento, apenas a chance de aumentar os seus parcos<br />
rendimentos de jornalista.
Após o relativo fracasso de A mulher sem pecado, veio o sucesso de Vestido<br />
de noiva, obra de dimensão inovadora, profundamente marcada pelas<br />
revoluções estilísticas do Modernismo no teatro – com Eugene O’Neill, Luigi<br />
Pirandello ou Henrik Ibsen –, autores que Nelson, aliás, dizia não conhecer,<br />
embora isso fosse pouco provável.<br />
A fatalidade, no entanto, continuou perseguindo o dramaturgo. Perdeu<br />
um irmão tuberculoso, outro em um desabamento, teve uma filha cega e seu<br />
filho entrou na guerrilha para lutar contra o regime militar. Já no campo<br />
teatral, seu nome pouco a pouco converteu-se numa unanimidade. Nelson<br />
Rodrigues morreu no Rio de Janeiro, sua cidade de adoção, <strong>aos</strong> sessenta e<br />
oito <strong>anos</strong>.<br />
DIVISÃO DAS PEÇAS<br />
Sábato Magaldi dividiu as peças de Nelson Rodrigues em três grandes<br />
grupos:<br />
PEÇAS PSICOLÓGICAS: A mulher sem pecado (1941); Vestido de noiva<br />
(1943); Valsa nº 6 (1951); Viúva, porém honesta (1957); Anti-Nelson Rodrigues<br />
(1973).<br />
PEÇAS MÍTICAS: Álbum de família (1945); Anjo Negro (1947); Senhora<br />
<strong>dos</strong> afoga<strong>dos</strong> (1947); Dorotéia (1949).<br />
TRAGÉDIAS CARIOCAS: A falecida (1953); Perdoa-me por me traíres<br />
(1957); Os sete gatinhos (1958); Boca de ouro (1959); Beijo no asfalto (1960);<br />
Otto Lara Resende ou Bonitinha mas ordinária (1962); Toda nudez será<br />
castigada (1965); A serpente (1978).
Esta divisão não é estanque. Como o próprio crítico observou, as<br />
peças psicológicas contém elementos míticos e das tragédias cariocas.<br />
As peças míticas lidam com a análise psicológica e não deixam de<br />
revelar a realidade urbana do Rio de Janeiro. E, finalmente, as<br />
denominadas tragédias cariocas incorporam o mundo psicológico e<br />
mítico das obras anteriores.<br />
O traço marcante de todas essas obras é a tentativa de desvelar a<br />
interioridade mais recôndita <strong>dos</strong> protagonistas. Além da análise<br />
psicológica tradicional, Nelson Rodrigues procura, sob influência<br />
freudiana (que ele negava, afirmando nunca ter lido Freud), aproximarse<br />
<strong>dos</strong> abismos do inconsciente e do subconsciente, além de uma criar<br />
uma galeria de personagens arquetípicos.<br />
Jamais houve no teatro brasileiro um mergulho tão profundo na<br />
psique humana. O resultado dessa investigação artística, no entanto, é<br />
também assustadora. Destruí<strong>dos</strong> os bloqueios morais impostos pela<br />
civilização, o que aparece é um mundo infernal de desejos proibi<strong>dos</strong>,<br />
crueldade, amoralismo e “nostalgia da lama”. O instintos arrastam os<br />
personagens – dentro do próprio quadro familiar – ao incesto, à<br />
perversão e ao crime, ao mesmo tempo que o sonho de uma impossível<br />
pureza segue atormentando-os.
A obsessão pelo sexo na obra de Nelson Rodrigues parece resultar<br />
tanto da derrocada <strong>dos</strong> pilares patriarcalistas e católicos presentes em<br />
sua formação quanto de seu conhecimento de teorias psicanalíticas. É<br />
um erro grave, contudo, julgá-lo um autor pornográfico. Ou, ainda, um<br />
autor de peças eróticas, como certas minisséries de tevê e certos filmes<br />
tentam apresentá-lo. Nelson Rodrigues, na verdade, é um moralista. Sua<br />
concepção de mundo mostra os seres como vítimas de paixões selvagens<br />
e ruinosas. Os instintos (sobretudo o sexo) são abomináveis. Esta<br />
complexa visão do dramaturgo a respeito da natureza humana faz com<br />
que suas peças sejam de difícil encenação.<br />
A estréia de Nelson Rodrigues ocorreu com A mulher sem pecado.<br />
Apesar de ser uma peça menor, ela já apresentava alguns <strong>dos</strong> elementos<br />
que marcariam o conjunto de sua obra:<br />
- O comportamento obsessivo e paranóico <strong>dos</strong> personagens.<br />
- O clima mórbido, que embaralha as noções do normal e do doentio.<br />
- O diálogo enxuto, direto, com o ritmo e o sabor da fala carioca.<br />
- A trama folhetinesca, tornada complexa pelos dilemas morais e<br />
ambigüidades comportamentais <strong>dos</strong> protagonistas.
VESTIDO DE NOIVA<br />
Em uma de suas crônicas, Nelson Rodrigues relembrou o processo<br />
de nascimento de Vestido de noiva: “...o processo de ações simultâneas,<br />
em tempos diferentes. Uma mulher morta assistia ao próprio velório e<br />
dizia do próprio cadáver: ‘Gente morta como fica feia.’ Morrera<br />
assassinada em 1905 e contracenava com a noiva de 1943”.<br />
A peça, dirigida pelo diretor polonês Ziembinski, com cenários de<br />
Santa Rosa, teve extraordinária repercussão. Tanto o texto quanto a<br />
encenação eram experiências radicalmente novas para os espectadores.<br />
Manuel Bandeira captou o sentimento da intelectualidade do Rio de<br />
Janeiro que assistira à montagem revolucionária:<br />
Sem dúvida, o teatro desse estreante desnorteia bastante, porque<br />
nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da realidade<br />
física. Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer<br />
versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom<br />
divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. Vestido de noiva<br />
em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem<br />
aceita, consagrará...o público.
A peça tem a ação dividida em três pl<strong>anos</strong>:<br />
A) Realidade: No plano da realidade, que dá início a peça, o<br />
estrépito de um acidente de carro é seguido de repórteres que<br />
comunicam o atropelamento de uma mulher. Esta é identificada: Alaíde<br />
Moreira, 25 <strong>anos</strong>, casada com o industrial Pedro Moreira. Na mesa de<br />
cirurgia, Alaíde delira – assim o espectador passa <strong>aos</strong> pl<strong>anos</strong> da memória<br />
e da alucinação. Por fim, os médicos anunciam a morte da jovem.<br />
B) Alucinação: Sem a interdição da censura moral, to<strong>dos</strong> os desejos<br />
de Alaíde se libertam. Às cenas de delírio soma-se a lembrança de fatos<br />
reais, vivi<strong>dos</strong> pela personagem. Divagando, Alaíde procura Madame<br />
Clessi, prostituta do início do século que fora assassinada por um amante<br />
adolescente. Na representação da memória, o espectador descobre que<br />
Alaíde tinha um diário da mundana, encontrado no sótão da casa em que<br />
vivera antes de casar. O casamento sem grandes aventuras e o cotidiano<br />
banal haviam transformado Alaíde numa Bovary carioca, o que a faz<br />
projetar seus impulsos e seus desejos na figura da prostitua Clessi.
C) Memória: Alaíde concentra<br />
o esforço ordenador da memória<br />
na reconstituição das cenas do<br />
casamento. Um dado verdadeiro<br />
que já surgira no plano da<br />
alucinação: ela roubara Pedro da<br />
irmã, Lúcia. É da consciência<br />
culpada da protagonista que surge<br />
a imagem da Mulher de Véu – que<br />
depois se revelará como sendo a<br />
própria Lúcia. Misturando num<br />
ritmo gradativo as ações <strong>dos</strong> três<br />
pl<strong>anos</strong>, a peça encaminha-se para<br />
o desfecho no qual Lúcia acaba por<br />
casar-se com Pedro. É Alaíde<br />
quem entrega o buquê à noiva,<br />
acompanhada de Madame Clessi.<br />
A peça se encerra com apenas uma<br />
luz sobre o túmulo de Alaíde.
O QUE OBSERVAR<br />
- O predomínio <strong>dos</strong> pl<strong>anos</strong> da memória e da<br />
alucinação. Este procedimento que se tornará comum<br />
em inúmeras peças de Nelson Rodrigues. A realidade é<br />
apresentada a partir do filtro da mente <strong>dos</strong><br />
personagens. Com forte efeito psicológico, esse<br />
procedimento é evidente em Vestido de noiva. A<br />
matéria fundamental da peça está no plano do delírio<br />
e, ao mesmo tempo, no plano da memória de Alaíde.<br />
- Ao situar a ação da obra no território livre do<br />
subconsciente (em que se situam o plano da memória e<br />
mesmo o da alucinação) o autor favorece as<br />
possibilidades de criação. Fora do alcance da censura –<br />
que a psicanálise chamaria de super ego –, a heroína<br />
pode liberar sua libido, seus desejos reprimi<strong>dos</strong>. É<br />
assim que surge, em Alaíde, como projeção de suas<br />
fantasias na figura da prostituta, Madame Clessi.<br />
Infeliz no casamento, insatisfeita com a realidade<br />
mesquinha da vida ordinária, a protagonista encontra<br />
na identificação com a prostituta uma compensação.
- Percebe-se em Vestido de Noiva a inclinação do autor para uma<br />
estética expressionista, em que o exagero, a deformação ou a obsessão<br />
<strong>dos</strong> personagens, ao invés de proporcionarem o tom cômico, funcionam<br />
como elementos intensificadores da dramaticidade de cenas e<br />
situações.Além de reforçar a capacidade de criação visual, imagética, os<br />
elementos grotescos da peça contribuem para estabelecer uma visão<br />
pessimista e sombria da realidade.<br />
- Há em Vestido de noiva – como em outras peças de Nelson<br />
Rodrigues – a presença do folhetinesco, traduzida na disputa das duas<br />
irmãs por Pedro. O dramaturgo sempre foi um entusiasmado leitor de<br />
folhetins e soube usar os temas simplistas e melodramáticos do gênero<br />
para buscar um sentido psicológico profundo para seus personagens,<br />
alcançando, muitas vezes, uma concepção trágica da existência.<br />
- A ação da peça transcorre no âmbito familiar. A família é o núcleo de<br />
todas danações <strong>dos</strong> personagens de Nelson Rodrigues, nesta e em suas<br />
demais peças, seja esta família de origem suburbana, de classe média ou<br />
burguesa. É no interior dessa comunidade que deveria proteger seus<br />
membros, que os dramas ocorrem. Paixões proibidas, ódio recalcado,<br />
violência, crueldade e outros sentimentos degrada<strong>dos</strong> implodem a<br />
estrutura familiar, transformando-a em um inferno em que os<br />
personagens das peças vivem como seres para sempre amaldiçoa<strong>dos</strong>.
A CRÔNICA DE<br />
NELSON RODRIGUES<br />
OBRAS PRINCIPAIS: O óbvio ululante (1969);<br />
A cabra vadia (1970); O reacionário (1977).<br />
Apesar das maiores realizações artísticas de<br />
Nelson Rodrigues estarem na dramaturgia, é<br />
inegável sua importância para a crônica brasileira,<br />
tanto por seu estilo personalíssimo, marcado por uma<br />
quase inesgotável capacidade de criar frases de efeito<br />
(que nem sempre primavam pelo bom gosto), quanto<br />
pela veia polemista e iconoclasta com que retratou os<br />
costumes do Brasil urbano, num período<br />
compreendido entre as décadas de <strong>1950</strong> a 1970.<br />
Muitas de suas frases e expressões acabaram<br />
ingressando numa espécie de memória cultural<br />
brasileira por serem provocantes e até agressivas:
– Num adultério, há homens que preferem ser o marido, não o amante.<br />
Os homens adoram ser traí<strong>dos</strong>.<br />
– Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor.<br />
– Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.<br />
– No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.<br />
– O Sábado é uma ilusão.<br />
– Aos dezoito <strong>anos</strong>, o homem não sabe nem como se diz bom-dia a uma<br />
mulher. O homem devia nascer com trinta <strong>anos</strong> feitos.<br />
– O amigo trai na primeira esquina. Ao passo que o inimigo não trai<br />
nunca. O inimigo é fiel. O inimigo é o que vai cuspir na cova da gente.<br />
– Toda mulher gosta de apanhar.<br />
– O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é<br />
um orçamento.<br />
– Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de<br />
47 <strong>anos</strong>.<br />
– Se cada um conhecesse a intimidade sexual <strong>dos</strong> outros, ninguém<br />
cumprimentaria ninguém.<br />
– Toda unanimidade é burra.
Outra peculiaridade na elaboração de suas crônicas é que,<br />
apresentando-as sob a forma tradicional de comentários sobre o<br />
cotidiano (portanto, como expressão direta das idéias do escritor a<br />
respeito da vida), ele introduz nelas personagens ficcionais e seres reais,<br />
que coexistem e dialogam entre si ou com o próprio autor.<br />
Entre os personagens cria<strong>dos</strong>, alguns aparecem reiteradamente,<br />
transformando-se em tipos inesquecíveis: Palhares, o canalha; a grãfina<br />
com narinas de cadáver; a estagiária de calcanhar sujo; a freira<br />
de minissaia, o Sobrenatural de Almeida, a cabra vadia. Já entre as<br />
personalidades concretas surgem com muita freqüência: Otto Lara<br />
Rezende, Carlos Heitor Cony, Hélio Pellegrino, Alceu<br />
Amoroso Lima, Dom Helder Câmara e outros. O resultado é<br />
surpreendente: trata-se de uma desabusada e criativa mescla de ficção e<br />
de idéias, rara no gênero. Observe o trecho a seguir:
Se Deus me intimasse a optar entre o<br />
Hélio Pellegrino e a humanidade, eu daria<br />
a seguinte e fulminante resposta: –<br />
“Morra a humanidade!”. E se fosse, não o<br />
Hélio, mas o Paulinho Mendes Campos,<br />
diria do mesmo jeito e com a mesma<br />
ênfase: – “Morra a humanidade!”. E, com<br />
isso, ficaria claro que, para mim, o amigo<br />
é o grande acontecimento, e repito: – só o<br />
amigo existe e o resto é paisagem. Os<br />
“outros” teriam assim uma estrita e<br />
secundária função paisagística.<br />
Didaticamente, pode-se dividir as crônicas do autor em três<br />
categorias temáticas:<br />
- Crônicas esportivas<br />
- Crônicas sociais e comportamentais<br />
- Crônicas memorialistas
CRÔNICAS ESPORTIVAS<br />
O que interessa a Nelson Rodrigues no futebol nunca é o<br />
esporte em si. O estádio, os jogadores e a multidão não<br />
passam de um grande cenário, um pano de fundo para o que<br />
realmente representa, na visão do autor, uma partida de<br />
futebol: a metáfora da batalha vital de paixões e de tragédias<br />
que move a existência humana.<br />
Isto pode ser observado no seguinte trecho da coluna À<br />
sombra das chuteiras imortais:<br />
Sempre digo, nas minhas crônicas, que a arbitragem<br />
normal e honesta confere às partidas um tédio profundo,<br />
uma mediocridade irremediável. Só o juiz gatuno, o juiz<br />
larápio dá ao futebol uma dimensão nova e, se me<br />
permitem, shakespeariana. O espetáculo deixa de se resolver<br />
em termos especificamente técnicos, táticos e esportivos.<br />
Passa a ter uma grandeza específica e terrível. Eis a<br />
verdade: – o juiz ladrão revolve, no time prejudicado e<br />
respectiva torcida, esse fundo de crueldade, de insânia, de<br />
ódio que existe, adormecido, no mais íntegro <strong>dos</strong> seres. O<br />
mínimo que nos ocorre é beber-lhe o sangue.
CRÔNICAS SOCIAIS E COMPORTAMENTAIS<br />
Durante os <strong>anos</strong> 1960, Nelson Rodrigues assumiu uma posição<br />
bastante controversa em relação ao regime militar. Se nunca o apoiou<br />
com vigor, contra as esquerdas brasileiras dirigiu críticas duríssimas,<br />
sempre permeadas, é claro, por um misto de ironia, coloquialidade<br />
que o aproximava do leitor comum e um extremo sau<strong>dos</strong>ismo de um<br />
Brasil e de um mundo desapareci<strong>dos</strong> com a modernidade. Essa<br />
postura valeu-lhe o título de “reacionário”.<br />
Outra de suas constantes obsessões, era a proliferação <strong>dos</strong> idiotas e<br />
o espaço crescente que obtinham na mídia:<br />
Durante 40 mil <strong>anos</strong>, o pateta sabia-se pateta e como tal se<br />
comportava. Os melhores pensavam por ele, sentiam por ele,<br />
decidiam por ele. Mas em nosso tempo, e só em nosso tempo, os<br />
idiotas descobrem que estão em maior número. E, então, investido<br />
da onipotência numérica, quer derrubar tudo. Diz o bom dr. Alceu<br />
que o grande acontecimento do século [XX] foi a Revolução Russa.<br />
Errou. Houve e continua uma outra muito maior, sim, muito mais<br />
profunda: – a Revolução <strong>dos</strong> Idiotas. (O Reacionário)
CRÔNICAS MEMORIALISTAS<br />
É perceptível ao longo de toda a crônica rodrigueana uma constante<br />
nostalgia e uma saudade do Rio de Janeiro da época de Machado de<br />
Assis, pré-vacina obrigatória. Apesar do Nelson Rodrigues histórico<br />
não ter vivido nesse Rio, toda sua obra estará marcada pela visão do<br />
menino, que em suas próprias palavras “enxerga o mundo através do<br />
buraco da fechadura”.<br />
Em suas confissões e principalmente nas memórias de caráter<br />
extremamente pessoal, o resgate da infância é um tema recorrente:<br />
Em 1913, mesmo meu pai e minha mãe pareciam não ter nada a<br />
ver com a vida real. Vagavam, diáf<strong>anos</strong>, por entre as mesas e<br />
cadeiras. Depois, eu os vejo para<strong>dos</strong>, com uma pose meio espectral de<br />
retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não<br />
os ouvia. O que me espanta é que essa primeira infância não tem<br />
palavras. Não me lembro de uma única voz. Não guardei um bomdia,<br />
um gemido, um grito. Não há um canto de galo no meu primeiro<br />
e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio. (A menina sem<br />
estrela)<br />
Suas memórias, algumas vezes, como no trecho seguinte, atingem<br />
um lirismo extraordinário:
Volto <strong>aos</strong> meus quatro <strong>anos</strong>. E, de repente, os cegos aparecem.(...)<br />
Eram quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho,<br />
gravata, colete, botinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram<br />
violino. Não acordeão, não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta<br />
e fui ver, de perto, os ceguinhos. (...) Uma certeza se cravou em mim: – eu<br />
ia ficar cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus. (...)<br />
Muito <strong>anos</strong> depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, numa de nossas<br />
conversas, falei-lhe assim: – “Desde criança, tenho medo de ficar cego.<br />
Mas se isso acontecesse, eu...”. Fiz a pausa e completei: – “... eu meteria<br />
uma bala na cabeça”. (...)<br />
Depois, a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com<br />
cesariana. (...) O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana,<br />
terá de amá-la até a última lágrima. (...) Se for menina, o nome é<br />
Daniela”, disse Lúcia. (...)<br />
Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para casa. Tão miudinha a<br />
garota, meu Deus, que cabia numa caixa de sapatos.<br />
Dois meses depois, dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha<br />
filha, fez to<strong>dos</strong> os exames. Meia hora depois, descemos juntos. Ele estava<br />
no carro e eu ia para a TV Rio, ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No<br />
caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase<br />
imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega. (A menina sem<br />
estrela)
A VIDA COMO ELA É<br />
Não seria equivocado<br />
acrescentar ainda a essa<br />
tipologia da crônica de<br />
Nelson Rodrigues os<br />
relatos de A vida como ela é.<br />
Estrutura<strong>dos</strong> ficcionalmente<br />
como contos, giram em torno<br />
das eternas obsessões do<br />
escritor: amores proibi<strong>dos</strong>,<br />
adultérios, perversões<br />
familiares, etc. Produzidas<br />
sob pressão jornalística<br />
diária, estas pequenas<br />
histórias se ressentem de<br />
maior profundidade e de<br />
melhor acabamento formal, a<br />
exemplo de obras similares<br />
feitas por outros cronistas.
O TEATRO DE<br />
PLÍNIO MARCOS<br />
Plínio Marcos de Barros (1935-1999) foi um escritor brasileiro, autor de<br />
inúmeras peças de teatro, escritas principalmente na época da ditadura<br />
militar. Foi também ator, diretor e jornalista. De família modesta, Plínio<br />
Marcos não gostava de estudar e terminou apenas o curso primário. Foi<br />
funileiro, quis ser jogador de futebol, serviu na Aeronáutica e chegou a<br />
jogar na Portuguesa Santista, mas foram as incursões ao mundo do<br />
circo, desde os 16 <strong>anos</strong>, que definiram seus caminhos. Atuou em rádio e<br />
também na televisão, em Santos.<br />
Em 1958, por influência da escritora e jornalista Pagu, começou a se<br />
envolver com teatro amador em Santos. Nesse mesmo ano,<br />
impressionado pelo caso verídico de um jovem estuprado na cadeia,<br />
escreveu sua primeira peça teatral, Barrela. Por sua linguagem crua, ela<br />
permaneceria proibida durante 21 <strong>anos</strong> após a primeira apresentação.
Em 1960, com 25 <strong>anos</strong>, foi para São Paulo, onde<br />
inicialmente foi camelô. Depois, trabalhou em teatro,<br />
como ator (apareceu no seriado Falcão Negro da TV<br />
Tupi de São Paulo), administrador e faz-tudo, em<br />
grupos como o Arena, no grupo de Cacilda Becker e no<br />
teatro de Nydia Lícia. A partir de 1963, produziu textos<br />
para a TV de Vanguarda, programa da TV Tupi, onde<br />
também atuou como técnico. No ano do golpe militar,<br />
fez o roteiro do espetáculo Nossa gente, nossa música.<br />
Em 1965, conseguiu encenar Reportagem de um<br />
tempo mau, colagem de textos de vários autores, e que<br />
ficou apenas um dia em cartaz.<br />
Em 1968, participou como ator da telenovela Beto<br />
Rockfeller, vivendo o cômico motorista Vitório. O<br />
personagem seria repetido no cinema e também na<br />
telenovela de 1973, A volta de Beto Rockfeller, com<br />
menor sucesso. Ainda nos <strong>anos</strong> 1970, Plínio Marcos<br />
voltaria a investir no teatro, chegando ele mesmo a<br />
vender os ingressos na entrada das casas de<br />
espetáculo. Ao fim das peças, como a de Jesus-<br />
Homem, ele subia ao palco e conversava pessoalmente<br />
com a plateia.
Na década de 1980, apesar da censura do governo, que visava<br />
principalmente <strong>aos</strong> artistas, Plínio Marcos viveu sem fazer<br />
concessões, sendo intensamente produtivo e sempre norteado pela<br />
cultura popular. Escreveu nos jornais Última Hora, Diário da Noite,<br />
Guaru News, Folha de S. Paulo e Folha da Tarde e também na<br />
revista Veja, além de colaborar com diversas publicações, como<br />
Opinião, O Pasquim, Versus, Placar e outras.<br />
Depois do fim da censura, Plínio continuou a escrever romances e<br />
peças de teatro, tanto adultas como infantis. Tornou-se palestrante,<br />
chegando a fazer 150 palestras-shows por ano, vestido de preto,<br />
portando um bastão encimado por uma cruz e com aura mística de<br />
leitor de tarô.<br />
Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em francês,<br />
espanhol, inglês e alemão e estudado em teses em universidades do<br />
Brasil e do exterior. Recebeu os principais prêmios nacionais em<br />
todas as atividades que abraçou em teatro, cinema, televisão e<br />
literatura, como ator, diretor, escritor e dramaturgo.<br />
Morreu <strong>aos</strong> 64 <strong>anos</strong>, na cidade de São Paulo, por falência múltipla<br />
<strong>dos</strong> órgãos em decorrência de um derrame cerebral.
Comentário crítico: As obras deste<br />
autor paulista causaram grande impacto no<br />
público brasileiro quando de seu<br />
lançamento. O país começava a viver então<br />
um período de crescimento econômico com<br />
a ditadura militar e peças como Dois<br />
perdi<strong>dos</strong> numa noite suja (1965), Navalha<br />
na carne (1966), O abajur lilás(1975) e<br />
Quando as máquinas param (1978) vieram<br />
mostrar uma realidade oculta às classes<br />
médias e altas: o submundo das prostitutas,<br />
<strong>dos</strong> gigolôs, <strong>dos</strong> desemprega<strong>dos</strong> e de outros<br />
tipos que viviam à margem do sistema. Ao<br />
contrário <strong>dos</strong> contos de João Antônio, em<br />
que a marginalia é tratada com algum<br />
lirismo, nos textos de Plínio Marcos há<br />
lugar apenas para a violência e o desespero.<br />
O realismo cênico torna-se ainda mais<br />
brutal pela linguagem assustadoramente<br />
crua <strong>dos</strong> protagonistas.