a organização argumentativa do texto de pré-universitários
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas<br />
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª <strong>do</strong> Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana<br />
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3<br />
SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.<br />
A ORGANIZAÇÃO ARGUMENTATIVA DO TEXTO DE PRÉ-<br />
UNIVERSITÁRIOS: MOVIMENTOS DISCURSIVOS DA MOBILIZAÇÃO DE<br />
SABERES<br />
Eliana Vasconcelos da Silva ESVAEL 1<br />
RESUMO: Como parte <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> avaliação classificatória, a redação <strong>de</strong><br />
vestibular é uma prática letrada socialmente situada em condições especificas <strong>de</strong><br />
letramento. Os enuncia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> gênero redação <strong>de</strong> vestibular são produzi<strong>do</strong>s numa<br />
situação <strong>de</strong> enunciação altamente responsiva e, por isso, revelam uma relação dialógica<br />
peculiar, em que <strong>de</strong>terminadas marcas lingüísticas mostram as representações <strong>de</strong>sses<br />
estudantes diante <strong>do</strong> seu <strong>texto</strong> e <strong>do</strong> seu interlocutor, o examina<strong>do</strong>r. Nosso objetivo é<br />
investigar, por meio <strong>de</strong> expressões qualifica<strong>do</strong>ras, as estratégias <strong>argumentativa</strong>s<br />
utilizadas pelos vestibulan<strong>do</strong>s para construir o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>minante na <strong>organização</strong><br />
<strong>do</strong> <strong>texto</strong> e a mobilização <strong>de</strong> saberes envolvi<strong>do</strong>s nessa construção. O corpus é composto<br />
<strong>de</strong> 100 redações elaboradas por candidatos ao curso <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo – Brasil, por ocasião <strong>do</strong> vestibular <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 2006, cujo tema era “o trabalho”. A<br />
fundamentação teórica alia Bakhtin, para discutir a questão <strong>do</strong> gênero redação <strong>de</strong><br />
vestibular, a Ducrot e a Anscombre e Ducrot, para discutir os conceitos relativos à<br />
argumentação. Os resulta<strong>do</strong>s, ainda parciais, revelam que, nos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos<br />
discursivos das estratégias <strong>argumentativa</strong>s marcadas por expressões qualifica<strong>do</strong>ras,<br />
po<strong>de</strong>-se apreen<strong>de</strong>r o encontro imprevisto (?) <strong>do</strong>s diferentes saberes mobiliza<strong>do</strong>s pelos<br />
vestibulan<strong>do</strong>s.<br />
PALAVRAS-CHAVE: redação <strong>de</strong> vestibular; estratégias <strong>argumentativa</strong>s; expressões<br />
qualifica<strong>do</strong>ras; ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>minante; mobilização <strong>de</strong> saberes.<br />
Consi<strong>de</strong>rações Iniciais<br />
Este estu<strong>do</strong> 2 tem como interesse a análise <strong>de</strong> um gênero discursivo específico, a<br />
redação <strong>de</strong> vestibular 3 , elaborada por candidatos ao curso <strong>de</strong> Letras, por ocasião <strong>do</strong><br />
1 Doutoranda pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo; Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia Letras e Ciências Humanas;<br />
Departamento <strong>de</strong> Letras Clássicas e Vernáculas. Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Filologia e Língua<br />
Portuguesa. Rua <strong>do</strong> Lago, 717 – Cida<strong>de</strong> Universitária - São Paulo - SP – Brasil - CEP 05508-900. E-mail:<br />
elianaesvael@usp.br<br />
2 Trata-se <strong>de</strong> um recorte da minha pesquisa <strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento.<br />
3 Vestibular é o exame que possibilita o acesso às universida<strong>de</strong>s brasileiras.<br />
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas<br />
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª <strong>do</strong> Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana<br />
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SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.<br />
exame da FUVEST 4 -2006. O vestibular é um evento singular da instituição escolar,<br />
uma vez que marca um episódio importante na vida <strong>do</strong> estudante: o acesso ao ensino<br />
superior. Em se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> vestibular da FUVEST, é ainda mais marca<strong>do</strong> porque regula<br />
o acesso a uma universida<strong>de</strong> pública, representante das instituições educacionais <strong>de</strong> boa<br />
qualida<strong>de</strong>. Trata-se da investigação da escrita em um con<strong>texto</strong> <strong>de</strong> avaliação. A redação,<br />
apesar <strong>de</strong> sua circulação restrita na socieda<strong>de</strong>, é uma prática social; portanto, analisamos<br />
a língua em seu uso concreto.<br />
A configuração <strong>do</strong> corpus<br />
A prova <strong>de</strong> redação 5 que <strong>de</strong>u origem ao corpus da pesquisa teve como tema “o<br />
trabalho”, trata<strong>do</strong> sob diferentes visões, por meio <strong>de</strong> uma coletânea composta por três<br />
fragmentos <strong>de</strong> <strong>texto</strong>s, que reproduzimos a seguir:<br />
Texto 1:<br />
O trabalho não é uma essência atemporal <strong>do</strong> homem. Ele é uma<br />
invenção histórica e, como tal, po<strong>de</strong> ser transforma<strong>do</strong> e mesmo<br />
<strong>de</strong>saparecer.<br />
Texto 2:<br />
Adapta<strong>do</strong> <strong>de</strong> A. Simões<br />
Há algumas décadas, pensava-se que o progresso técnico e o aumento<br />
da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção permitiriam que o trabalho ficasse<br />
razoavelmente fora <strong>de</strong> moda e a humanida<strong>de</strong> tivesse mais tempo para<br />
si mesma. Na verda<strong>de</strong>, o que se passa hoje é que uma parte da<br />
humanida<strong>de</strong> está se matan<strong>do</strong> <strong>de</strong> tanto trabalhar, enquanto a outra parte<br />
está morren<strong>do</strong> por falta <strong>de</strong> emprego.<br />
Texto 3:<br />
M.A. Marques<br />
4<br />
FUVEST: Fundação Universitária para o Vestibular. Trata-se <strong>do</strong> exame que dá acesso à Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
São Paulo – USP.<br />
5<br />
A prova <strong>de</strong> português completa está disponível no site da FUVEST:<br />
, acessa<strong>do</strong> em fevereiro 2007.<br />
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O trabalho <strong>de</strong> arte é um processo. Resulta <strong>de</strong> uma vida. Em 1501,<br />
Michelangelo retorna <strong>de</strong> viagem a Florença e concentra seu trabalho<br />
artístico em um gran<strong>de</strong> bloco <strong>de</strong> mármore aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Quatro anos<br />
mais tar<strong>de</strong> fica pronta a escultura “David”.<br />
Adapta<strong>do</strong> <strong>de</strong> site da Internet<br />
O terceiro <strong>texto</strong> está acompanha<strong>do</strong> da imagem <strong>de</strong> uma escultura criada por<br />
Michelangelo, “Davi”. Além <strong>do</strong>s fragmentos, há também uma instrução para a<br />
elaboração da redação, cuja comanda é relacionar esses três fragmentos e elaborar uma<br />
dissertação, argumentan<strong>do</strong> sobre as idéias neles contida e outras que o candidato julgue<br />
pertinentes.<br />
O objetivo <strong>de</strong>sta apresentação é <strong>de</strong>stacar algumas das estratégias <strong>argumentativa</strong>s<br />
utilizadas pelos candidatos, para construir o ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>minante na <strong>organização</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>texto</strong>. Trata-se <strong>de</strong> analisar os mo<strong>do</strong>s qualificar o trabalho, verifican<strong>do</strong> o que se po<strong>de</strong><br />
apreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos discursivos.<br />
Pressupostos Teóricos<br />
Para compreen<strong>de</strong>r melhor o processo da produção escrita e especificamente da<br />
escrita <strong>de</strong> uma redação <strong>de</strong> vestibular, partimos da abordagem <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s na perspectiva<br />
enunciativo-discursiva. Para isso, tomamos a construção <strong>de</strong> ponto(s) <strong>de</strong> vista na<br />
<strong>organização</strong> <strong>do</strong> <strong>texto</strong> como movimentos <strong>de</strong> posicionamentos, ou “posturas enunciativas”<br />
(MAINGUENEAU, 2004) que, a partir <strong>de</strong> lugares discursivos, o sujeito po<strong>de</strong> se<br />
constituir como autor. Esses lugares discursivos são passíveis <strong>de</strong> observações <strong>de</strong><br />
elementos concernentes ao enuncia<strong>do</strong>r, bem como da permeabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s discursos e<br />
saberes que os contornam.<br />
Na análise <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> construção <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>minante na<br />
<strong>organização</strong> <strong>do</strong> <strong>texto</strong>, que envolve a <strong>organização</strong> <strong>argumentativa</strong> interna ao <strong>texto</strong> e sua<br />
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relação com os tipos <strong>de</strong> saberes mobiliza<strong>do</strong>s em sua construção, consi<strong>de</strong>ramos a<br />
presença <strong>de</strong> elementos qualifica<strong>do</strong>res como uma estratégia <strong>argumentativa</strong> e/ou como<br />
parte <strong>de</strong> estratégias <strong>argumentativa</strong>s que caracterizam a <strong>organização</strong> <strong>do</strong> <strong>texto</strong>. Buscamos<br />
em Anscombre e Ducrot (1983) e Ducrot (1987 [1976]) a noção <strong>de</strong> orientação<br />
<strong>argumentativa</strong> e alguns aspectos da teoria polifônica da enunciação, a saber, a noção <strong>de</strong><br />
locutor e <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>r. Esclarecemos que este estu<strong>do</strong> insere-se no campo da análise <strong>do</strong><br />
discurso e, como tal, não é o estu<strong>do</strong> da argumentação na língua nela mesma; pelo<br />
contrário, buscamos apreen<strong>de</strong>r o gênero redação <strong>de</strong> vestibular em sua dimensão social e<br />
em seu caráter eminentemente dialógico (BAKHTIN, 1986, 1992), ou seja, aquilo que<br />
diz respeito a sua <strong>de</strong>terminação sócio histórica e ao acontecimento social <strong>do</strong> qual os<br />
enuncia<strong>do</strong>s das redações integram. Faz-se necessário, então, investigar a ligação <strong>do</strong>s<br />
argumentos com as diversas fontes <strong>de</strong> saber que os constituem e como essa ligação está<br />
inscrita nos <strong>texto</strong>s.<br />
Os enuncia<strong>do</strong>s das redações apresentam uma estrutura dissertativo-<br />
<strong>argumentativa</strong>, o que pressupõe construções complexas em que se tomam posições<br />
diante <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> tema e, ao mesmo tempo, orientam para uma conclusão. Destacamos<br />
para este trabalho, as construções concernentes aos elementos qualifica<strong>do</strong>res que, a<br />
nosso ver, são utilizadas como estratégias <strong>argumentativa</strong>s com a função <strong>de</strong> orientar a<br />
dissertação-argumentação para um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista. Nesse senti<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos<br />
dizer que temos nos enuncia<strong>do</strong>s das redações elementos qualifica<strong>do</strong>res cuja função<br />
primeira é qualificar o referente – o trabalho –, <strong>de</strong>limitan<strong>do</strong>-o ou explicitan<strong>do</strong> suas<br />
características. Ao qualificar o referente, o sujeito assume posicionamentos e mobiliza<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s saberes para sustentar esses posicionamentos. Po<strong>de</strong>mos dizer que os<br />
elementos qualifica<strong>do</strong>res são lugares privilegia<strong>do</strong>s para observarmos os saberes<br />
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mobiliza<strong>do</strong>s pelos estudantes, bem como para apreen<strong>de</strong>rmos os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos<br />
discursivos <strong>de</strong>ssa mobilização.<br />
Para Ducrot e Anscombre (1983), to<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> tem uma orientação<br />
<strong>argumentativa</strong> em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma conclusão R. Tomamos os qualifica<strong>do</strong>res como parte<br />
das seqüências <strong>argumentativa</strong>s que constroem uma orientação em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>terminada conclusão. A orientação <strong>argumentativa</strong> postulada pelos autores é ancorada<br />
na teoria polifônica da enunciação, em que Ducrot (1987 [1976]), ao contestar a<br />
unicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito falante, concebe o enuncia<strong>do</strong> toma<strong>do</strong> por vários sujeitos: os<br />
locutores e os enuncia<strong>do</strong>res. Locutor é o ser <strong>do</strong> discurso, que o autor difere <strong>de</strong> sujeito<br />
falante – o ser empírico – no nosso caso, o vestibulan<strong>do</strong>. Além <strong>do</strong>s locutores, estão<br />
presentes nos enuncia<strong>do</strong>s os enuncia<strong>do</strong>res. Para o autor, os enuncia<strong>do</strong>res “servem para<br />
fazer aparecer no enuncia<strong>do</strong> um sujeito diferente não somente daquele que fala <strong>de</strong> fato<br />
(romancista/sujeito empírico/falante [o vestibulan<strong>do</strong>]), mas também daquele <strong>de</strong> que se<br />
diz que fala (narra<strong>do</strong>r/locutor)” (DUCROT, 1987 [1976], p. 197). Eles ocupam, no<br />
enuncia<strong>do</strong>, diferentes lugares, diferentes posições, ou seja, diferentes pontos <strong>de</strong> vista. E<br />
entram em cena, segun<strong>do</strong> o autor, para que o locutor possa dirigir-se ao interlocutor.<br />
Para nós, a argumentação se constitui no jogo entre esses enuncia<strong>do</strong>res, entre os<br />
pontos <strong>de</strong> vista que, ao entrarem em cena, aproximam-se ou distanciam-se <strong>do</strong> locutor.<br />
Nesse movimento, o locutor assume posicionamentos que po<strong>de</strong>m se apresentar sob três<br />
perspectivas em relação aos enuncia<strong>do</strong>res: (a) a <strong>de</strong> solidarizar-se a eles; (b) a <strong>de</strong> refutá-<br />
los; (c) ou mesmo a <strong>de</strong> não tomar posição diante <strong>de</strong>les. Vemos esses posicionamentos<br />
<strong>do</strong> locutor como lugares discursivos <strong>do</strong>s quais transparecem, nos enuncia<strong>do</strong>s das<br />
redações, discursos singulares em função <strong>do</strong> acontecimento social que <strong>de</strong>terminou o<br />
gênero estuda<strong>do</strong>: o exame vestibular.<br />
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Nesse senti<strong>do</strong>, o gênero redação <strong>de</strong> vestibular é visto como processo e não como<br />
produto, uma vez que envolve a relação <strong>do</strong> sujeito com a língua e com a história, porque<br />
é resulta<strong>do</strong> da interação social, da relação entre o eu e o tu. Em função <strong>de</strong>ssa relação, o<br />
sujeito constrói imagens <strong>de</strong> si e imagens <strong>do</strong> outro, o seu interlocutor. Imagens que estão<br />
inscritas nos enuncia<strong>do</strong>s das redações e revelam as representações sociais <strong>do</strong>s<br />
vestibulan<strong>do</strong>s: representações <strong>de</strong> si e <strong>do</strong> outro, representações da escrita, bem como<br />
representações sociais <strong>do</strong> trabalho. A construção <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista na <strong>organização</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>texto</strong> se dá a partir <strong>de</strong>ssas representações, que são mediadas pela situação <strong>de</strong><br />
enunciação, ou seja, pela dimensão social <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> e por sua finalida<strong>de</strong> discursiva.<br />
É nesse senti<strong>do</strong> que concebemos a perspectiva teórica a<strong>do</strong>tada: enunciativo-<br />
discursiva. Nessa perspectiva, concebemos o ponto <strong>de</strong> vista extrapolan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong><br />
enuncia<strong>do</strong> tal como concebi<strong>do</strong> na semântica <strong>argumentativa</strong> (DUCROT, 1987 [1976])<br />
para chegar ao <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> concreto, liga<strong>do</strong> ao gênero (BAKHTIN, 1992).<br />
Isso porque o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> não está na língua, “em si mesmo”, mas nas<br />
<strong>de</strong>terminações das posições i<strong>de</strong>ológicas, resultantes <strong>do</strong> processo sócio-histórico da sua<br />
produção (PÊCHEUX, 1997).<br />
Portanto, se, por um la<strong>do</strong>, com os estu<strong>do</strong>s enunciativos preten<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar a<br />
hierarquização <strong>do</strong>s enuncia<strong>do</strong>res em busca <strong>de</strong> um <strong>do</strong>minante, a fim <strong>de</strong> encontrar as<br />
estratégias a<strong>do</strong>tadas pelos candidatos para posicionar-se diante <strong>do</strong> tema da<strong>do</strong>; por outro,<br />
a perspectiva discursiva permitirá observar como os diferentes saberes, provenientes <strong>de</strong><br />
formações discursivas <strong>de</strong>terminadas, intervêm nas ligações e nas fissuras<br />
<strong>argumentativa</strong>s <strong>do</strong> <strong>texto</strong>. As posturas enunciativas, ou seja, os pontos <strong>de</strong> vista se<br />
constituem, assim, no interior das formações discursivas, mas também na<br />
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interdiscursivida<strong>de</strong>, pois é em função <strong>do</strong>s já-ditos, em função <strong>do</strong> outro que os discursos<br />
se constituem.<br />
Vimos em Ducrot (1987 [1976]) que o locutor introduz enuncia<strong>do</strong>res nos<br />
enuncia<strong>do</strong>s para po<strong>de</strong>r dirigir-se ao outro. Entretanto, o enuncia<strong>do</strong> não é somente<br />
dirigi<strong>do</strong> ao outro, mas toma<strong>do</strong> pelas palavras <strong>do</strong> outro. Cada ponto <strong>de</strong> vista é<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> na correlação com outros pontos <strong>de</strong> vistas toma<strong>do</strong>s em outros enuncia<strong>do</strong>s:<br />
“O enuncia<strong>do</strong> está repleto <strong>do</strong>s ecos e lembranças <strong>de</strong> outros enuncia<strong>do</strong>s” (BAKHTIN,<br />
1992, p. 316). Escrevemos o que já foi escrito, dizemos o que já foi dito. Os ditos, bem<br />
como os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> dizer esse dito, são <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pela enunciação, como afirma<br />
Maingueneau (1991, p. 107-8): “cada enuncia<strong>do</strong>, antes <strong>de</strong> ser um fragmento da língua a<br />
analisar, é o produto <strong>de</strong>sse acontecimento único, sua enunciação, relaciona<strong>do</strong> a uma<br />
situação <strong>de</strong> enunciação cujos parâmetros são as pessoas o tempo e o lugar da<br />
comunicação”.<br />
Analisar a redação <strong>de</strong> vestibular, a partir <strong>do</strong>s elementos qualifica<strong>do</strong>res é, para<br />
nós, analisar não um fragmento da língua, mas o enuncia<strong>do</strong> como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um<br />
acontecimento singular na história: o exame <strong>de</strong> redação <strong>do</strong> vestibular. Nesse<br />
acontecimento único, o lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se fala e os papéis sociais <strong>do</strong>s interlocutores estão<br />
bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s e estão impregna<strong>do</strong>s com seus <strong>pré</strong>-construí<strong>do</strong>s, com suas representações<br />
enunciativas e discursivas. É nesse espaço, enunciativo-discursivo, que o sujeito se<br />
constitui. Ele se constrói no seio <strong>de</strong> seu próprio discurso, na interação, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> marcas,<br />
pistas da configuração <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista – ora <strong>do</strong>minantes, ora concorrentes – na<br />
<strong>organização</strong> <strong>do</strong> <strong>texto</strong>.<br />
Assim, como parte <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> avaliação classificatória, a redação <strong>de</strong><br />
vestibular é uma prática letrada, socialmente situada em condições especificas <strong>de</strong><br />
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letramento. Os enuncia<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sse gênero são produzi<strong>do</strong>s numa situação <strong>de</strong> enunciação<br />
altamente responsiva e, por isso, revelam uma relação dialógica peculiar, em que<br />
<strong>de</strong>terminadas marcas lingüísticas mostram as representações <strong>de</strong>sses estudantes diante <strong>do</strong><br />
seu <strong>texto</strong>, <strong>do</strong> seu interlocutor, o examina<strong>do</strong>r, bem como <strong>do</strong> próprio trabalho, tema da<strong>do</strong><br />
pelo enuncia<strong>do</strong> da prova <strong>de</strong> redação. Nessas representações estão inscritos diferentes<br />
posicionamentos, diferentes pontos <strong>de</strong> vista que portam diferentes saberes com seus<br />
valores e crenças. Saberes que o vestibulan<strong>do</strong> julga como <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, porque o<br />
próprio evento – o exame vestibular – orienta o que dizer e o como dizer.<br />
Analisar os enuncia<strong>do</strong>s das redações enquanto gênero (enuncia<strong>do</strong> concreto) é<br />
consi<strong>de</strong>rar as interações e as relações interdiscursivas, uma vez que eles respon<strong>de</strong>m aos<br />
enuncia<strong>do</strong>s anteriores e antecipam os enuncia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seus interlocutores:<br />
O enuncia<strong>do</strong> é um elo na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> comunicação verbal e não po<strong>de</strong> ser<br />
separa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s elos anteriores que o <strong>de</strong>terminam, por fora e por <strong>de</strong>ntro,<br />
e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância<br />
dialógica (BAKHTIN, 1992, p. 320).<br />
Como reação-resposta aos enuncia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s fragmentos da coletânea, po<strong>de</strong>mos<br />
dizer que os vestibulan<strong>do</strong>s respon<strong>de</strong>m ao enuncia<strong>do</strong> da prova <strong>de</strong> duas maneiras: a) pelo<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> qualificar o trabalho e, b) pelos tipos <strong>de</strong> saberes por eles mobiliza<strong>do</strong>s. A partir<br />
<strong>de</strong>ssas respostas, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>mos os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos discursivos das estratégias<br />
<strong>argumentativa</strong>s marcadas nos enuncia<strong>do</strong>s por expressões qualifica<strong>do</strong>ras.<br />
Alguns resulta<strong>do</strong>s<br />
Explicitar os movimentos discursivos da mobilização <strong>de</strong> saberes presentes na<br />
<strong>organização</strong> <strong>argumentativa</strong> da redação <strong>de</strong> vestibular significa consi<strong>de</strong>rar a cena<br />
enunciativa que a gerou, uma vez que é a partir <strong>de</strong>la que os sujeitos se posicionam.<br />
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Apresentamos, assim, alguns resulta<strong>do</strong>s que revelam os posicionamentos enunciativos e<br />
os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos discursivos das estratégias <strong>argumentativa</strong>s marcadas pelos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
qualificar o trabalho nas redações <strong>de</strong> vestibular.<br />
Observamos nos enuncia<strong>do</strong>s das redações que as expressões qualifica<strong>do</strong>ras<br />
<strong>de</strong>ixam transparecer as formações discursivas que representam seus enuncia<strong>do</strong>res e<br />
revelam seus posicionamentos diante <strong>do</strong> tema da<strong>do</strong>, o trabalho. Estão presentes nos<br />
enuncia<strong>do</strong>s das redações <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s dicotômicos <strong>de</strong> qualificar o trabalho ou as relações<br />
entre o homem e o trabalho: (1) com proposições positivas e, (2) com proposições<br />
negativas.<br />
No primeiro mo<strong>do</strong>, encontramos uma formação discursiva cujo discurso<br />
qualifica o trabalho como imprescindível, essencial para a sobrevivência e o que<br />
dignifica o homem, como po<strong>de</strong>mos observar, nos fragmentos a seguir:<br />
[1] 6<br />
[...] o trabalho é essencial para a sobrevivência das pessoas.<br />
(T09)<br />
[2]<br />
[...] o trabalho é um processo indispensável. (T95)<br />
[3]<br />
[...] [o trabalho é] elemento dignificante <strong>de</strong> ser humano. (T97).<br />
Nos exemplos [1] a [3], o locutor introduz um enuncia<strong>do</strong>r cujo ponto <strong>de</strong> vista<br />
engran<strong>de</strong>ce o trabalho. Trata-se <strong>de</strong> um discurso revela<strong>do</strong>r da i<strong>de</strong>ologia capitalista que<br />
toma o trabalho como a razão <strong>de</strong> viver.<br />
6 Os exemplos são apresenta<strong>do</strong>s com recortes, pois a FUVEST não autorizou a publicação integral <strong>do</strong>s<br />
<strong>texto</strong>s das redações.<br />
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No segun<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> qualificar o trabalho, o enuncia<strong>do</strong>r assume um ponto <strong>de</strong><br />
vista que <strong>de</strong>squalifica o trabalho e a sua relação com o homem, revelan<strong>do</strong> um discurso<br />
que toma o trabalho como obrigação, castigo, o responsável pelo males <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />
[4]<br />
[...] o trabalho é uma obrigação. (T05).<br />
[5]<br />
Visto na maioria das vezes como uma obrigação, um far<strong>do</strong> a ser<br />
carrega<strong>do</strong> [...]. (T08)<br />
[6]<br />
[...] a forma como o sistema capitalista e a população elitista<br />
conduziu o trabalho é o motivo <strong>do</strong>s piores problemas da<br />
socieda<strong>de</strong> [...]. (T57).<br />
Esses <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s dicotômicos <strong>de</strong> qualificar o trabalho ou a sua relação com o<br />
homem revelam as representações sociais <strong>do</strong> vestibulan<strong>do</strong>, que vê o trabalho ora como<br />
bom, gratificante, ora como ruim, <strong>de</strong>gradante. São representações tomadas <strong>do</strong> senso<br />
comum e que traz para a cena enunciativa um saber mobiliza<strong>do</strong> em função da relação<br />
que o vestibulan<strong>do</strong> estabelece com o trabalho.<br />
Como parte das estratégias <strong>argumentativa</strong>s <strong>do</strong> vestibulan<strong>do</strong>, o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
qualificar o trabalho revela também sua preocupação com o interlocutor. Como<br />
dissemos anteriormente, os enuncia<strong>do</strong>s das redações foram produzi<strong>do</strong>s numa situação<br />
<strong>de</strong> enunciação altamente dialógica por se tratar <strong>de</strong> uma avaliação. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />
<strong>de</strong>stacamos a presença <strong>de</strong> pistas que evi<strong>de</strong>nciam as imagens que o sujeito constrói <strong>de</strong> si<br />
e <strong>de</strong> seu interlocutor, ao a<strong>do</strong>tar como estratégia <strong>argumentativa</strong>, por exemplo, a<br />
qualificação <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> arte – tema <strong>do</strong> terceiro fragmento da<strong>do</strong> pela coletânea da<br />
prova <strong>de</strong> redação – com proposições positivas:<br />
[7]<br />
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SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.<br />
O trabalho <strong>do</strong> artista é um processo on<strong>de</strong> transforma-se algo<br />
aparentemente sem significa<strong>do</strong> em algo belo. (T53)<br />
[8]<br />
A poesia, a música, a arte em geral, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma<br />
forma sublime <strong>de</strong> trabalho que <strong>de</strong> uma maneira ou <strong>de</strong> outra<br />
atinge to<strong>do</strong>s à sua volta. Os gran<strong>de</strong>s gênios artísticos fazem com<br />
que, o que para muitos po<strong>de</strong> se tornar cansativo e entediante,<br />
algo que seja extremamente precioso aos olhos e ouvi<strong>do</strong>s. (T67)<br />
[9]<br />
Portanto, o trabalho po<strong>de</strong> causar conseqüências boas e ruins. As<br />
negativas são <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo<br />
<strong>de</strong>snecessária que uma pessoa po<strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir e as positivas são<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às expressões artísticas. (T83)<br />
Além <strong>de</strong> qualificar o trabalho <strong>de</strong> arte num eixo eufórico, o vestibulan<strong>do</strong><br />
classifica-o como o trabalho i<strong>de</strong>al, como aquele que <strong>de</strong>veria servir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para to<strong>do</strong>s<br />
os tipos <strong>de</strong> trabalho:<br />
[10]<br />
O mun<strong>do</strong> não tem <strong>de</strong> esperar pelo dia que não haverá mais<br />
trabalho, nem que to<strong>do</strong>s sejam artistas [...], <strong>de</strong>ve-se almejar o<br />
prazer naquilo que se faz, a paixão pela ativida<strong>de</strong> que exerce e o<br />
amor <strong>de</strong> produzir algo útil ao meio que se vive. (T13)<br />
[11]<br />
Que ele traga mais beleza à vida, como o trabalho <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s<br />
artistas. (T23)<br />
[12]<br />
[...] acredita-se que o trabalho po<strong>de</strong> sim evoluir, [...] e será como<br />
uma obra <strong>de</strong> arte nas mãos <strong>do</strong>s homens [...]. (T29)<br />
[13]<br />
A solução para tantas discrepancias <strong>de</strong>ve ser buscada em um<br />
processo <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> e eficaz como na formulação <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong><br />
arte. (T62)<br />
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SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.<br />
Estão também inscritos nos enuncia<strong>do</strong>s das redações, saberes mobiliza<strong>do</strong>s pelos<br />
vestibulan<strong>do</strong>s. Saberes que <strong>de</strong>notam igualmente a imagem que querem mostrar <strong>de</strong> si ao<br />
examina<strong>do</strong>r, como po<strong>de</strong>mos observar em [14]:<br />
[14]<br />
Um exemplo típico <strong>de</strong>ssa situação é a ilha <strong>de</strong> Manhattan, nos<br />
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m-se ver altos executivos <strong>do</strong>s<br />
gran<strong>de</strong>s escritórios internacionais trabalhan<strong>do</strong> muitas horas por<br />
dia, conviven<strong>do</strong> com os <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>s que ficam pelas ruas na<br />
eterna esperança <strong>de</strong> obter um emprego, por mais simples e<br />
humilhante que esse possa ser. (T06)<br />
No exemplo [14], o locutor, para dirigir-se a seu interlocutor, introduz<br />
enuncia<strong>do</strong>res que marcam no enuncia<strong>do</strong> discrepâncias entre trabalha<strong>do</strong>res bem<br />
emprega<strong>do</strong>s e aqueles sem emprego. Ele tenta construir, <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, a imagem <strong>de</strong> um<br />
sujeito crítico, que sabe posicionar-se diante das mazelas sócio-econômicas da<br />
socieda<strong>de</strong>. As expressões qualifica<strong>do</strong>ras traduzem um discurso que circula na esfera<br />
midiática e revelam um sujeito preocupa<strong>do</strong> com sua imagem diante <strong>do</strong> examina<strong>do</strong>r:<br />
trata-se da construção da imagem <strong>de</strong> um sujeito bem informa<strong>do</strong>, que tem conhecimentos<br />
<strong>de</strong> fatos internacionais, que não apenas lê jornais, mas lê e se posiciona criticamente<br />
diante das informações dadas, como é comumente recomenda<strong>do</strong> aos vestibulan<strong>do</strong>s.<br />
Nos exemplos [15] e [16], o sujeito mobiliza saberes da esfera literária, ao fazer<br />
referência aos livros <strong>de</strong> Oscar Wil<strong>de</strong> e <strong>de</strong> Macha<strong>do</strong> Assis. Em ambos os exemplos,<br />
marca<strong>do</strong>s por expressões qualifica<strong>do</strong>ras, principalmente as relativas, o sujeito enuncia<br />
<strong>de</strong>talhes das obras <strong>de</strong>sses autores, como po<strong>de</strong>mos notar, a seguir:<br />
[15]<br />
[o <strong>texto</strong>] intitula<strong>do</strong> “A alma <strong>do</strong> homem sob o Socialismo”,<br />
escrita pelo irlandês Oscar Wil<strong>de</strong>. Nesse, Wil<strong>de</strong> prevê uma<br />
utopia artística, na qual homens serão dispensa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seus<br />
empregos para que possam se <strong>de</strong>dicar a suas habilida<strong>de</strong>s<br />
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criativas <strong>de</strong> forma livre <strong>de</strong> qualquer tirania e tédio. Isso só virá<br />
[...] com uma revolução, na qual os excluí<strong>do</strong>s da socieda<strong>de</strong> atual<br />
se levantarão e irão exigir os seus direitos a uma vida mais digna<br />
e melhor. (T13)<br />
[16]<br />
Trabalhar é algo necessário, em tese. Conhecemos a personagem<br />
"Brás Cubas" <strong>de</strong> Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis, por exemplo, que viveu<br />
normalmente sem trabalhar, porém sabemos que esta até po<strong>de</strong><br />
ser a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> famílias ricas, pois na maioria da população<br />
que é pobre isto é impossível <strong>de</strong> ocorrer. (T65)<br />
Ao <strong>de</strong>talhar essas obras, o sujeito enuncia<strong>do</strong>r está tentan<strong>do</strong> construir a imagem<br />
<strong>de</strong> um bom candidato, conhece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> obras literárias. Nesse senti<strong>do</strong>, mobiliza saberes<br />
que julga como <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e, ao mesmo tempo, como saberes valoriza<strong>do</strong>s pela<br />
instituição escolar. Trata-se <strong>de</strong> um sujeito que tem a ilusão <strong>de</strong>, por meio da mobilização<br />
<strong>de</strong>sses saberes, construir a imagem <strong>de</strong> um sujeito leitor, como é exigi<strong>do</strong> pela<br />
universida<strong>de</strong>.<br />
Ainda com relação aos saberes julga<strong>do</strong>s como <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, encontramos nos<br />
três exemplos a seguir, a mobilização <strong>de</strong> saberes relaciona<strong>do</strong>s a fatos e personagens da<br />
história. Nos exemplos [17] e [18], os fatos e personagens cita<strong>do</strong>s estão diretamente<br />
relaciona<strong>do</strong>s com a temática <strong>do</strong> trabalho, mas aquela ligada à luta <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />
trabalha<strong>do</strong>r:<br />
[17]<br />
Essa questão [o trabalho] chegou mesmo a ser a força motriz<br />
que impulsionava os pais <strong>do</strong> pensamento econômico, com Karl<br />
Marx, Keynes e outros, mas também impulsiona ainda nossos<br />
pensa<strong>do</strong>res atuais, nossos lí<strong>de</strong>res sindicais, a igreja e muitos<br />
outros extratos da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. (T23)<br />
[18]<br />
[...] exatamente no ano <strong>de</strong> 1848, Karl Marx e Frie<strong>de</strong>rich Engels<br />
lançariam o livro "Manifesto <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista" que viria a<br />
dar novamente <strong>de</strong>nominações ruins ao trabalho. (T87)<br />
Temos nos exemplos [17] e [18] a construção <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista que está<br />
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orienta<strong>do</strong> para a valorização <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r. A construção <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista é<br />
concretizada por meio da mobilização <strong>de</strong> um saber histórico e bastante singular. O<br />
sujeito enuncia<strong>do</strong>r toma<strong>do</strong> por esses outros discursos tentar construir uma boa imagem<br />
<strong>de</strong> si, aproprian<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>sses ditos para construir seu ponto <strong>de</strong> vista: aquele que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
o trabalha<strong>do</strong>r sofre<strong>do</strong>r, o proletaria<strong>do</strong>.<br />
No exemplo [19], os saberes mobiliza<strong>do</strong>s circulam em outras duas esferas: a<br />
religiosa e a popular:<br />
[19]<br />
o trabalho adquiriu características positivas com o aumento da<br />
burguesia que [...] conduziu alguns séculos mais tar<strong>de</strong> a<br />
Reforma Protestante que na figura <strong>de</strong> João Calvino enobrecia o<br />
trabalho e afamaria a máxima "o trabalho dignifica o homem."<br />
[...]. (T87)<br />
Temos em [19] um enuncia<strong>do</strong>r cujo ponto <strong>de</strong> vista é a <strong>de</strong>fesa daquilo que<br />
dignifica o homem, ou seja, o discurso da valorização <strong>do</strong> trabalho. Para isso, o locutor<br />
recorre ao saber popular, marca<strong>do</strong> no enuncia<strong>do</strong> pelo provérbio, “o trabalho dignifica o<br />
homem”. Entretanto, o ponto <strong>de</strong> vista da<strong>do</strong> pelo provérbio, apesar <strong>de</strong> valorizar o<br />
trabalho e o trabalha<strong>do</strong>r, não é o mesmo da<strong>do</strong> no exemplo anterior [18]. Neste, a relação<br />
entre o trabalho e o homem é marca<strong>do</strong> pela luta contra a exploração <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, ou<br />
seja, o centro da questão é o trabalha<strong>do</strong>r. Enquanto que em [19], trata-se <strong>de</strong> um discurso<br />
que valoriza o trabalho porque ele enaltece o homem. O foco central é o trabalho e não<br />
o trabalha<strong>do</strong>r. Esses pontos <strong>de</strong> vista são enuncia<strong>do</strong>s na relação <strong>do</strong> sujeito enuncia<strong>do</strong>r<br />
com as formações discursivas que o <strong>de</strong>terminam. Formações discursivas que ora<br />
valorizam o trabalho, em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, ora o seu inverso.<br />
A mobilização <strong>de</strong>sses saberes, assim, evi<strong>de</strong>ncia um sujeito trabalhan<strong>do</strong> com a<br />
linguagem e que tenta posicionar-se criticamente diante <strong>do</strong> tema da<strong>do</strong>, construin<strong>do</strong> a<br />
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SLG 14 – Práticas escritas na escola: letramento e representação.<br />
imagem <strong>de</strong> um sujeito conhece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> fatos históricos.<br />
Temos nesses exemplos, saberes que os vestibulan<strong>do</strong>s mobilizam a fim mostrar<br />
ao examina<strong>do</strong>r seu conhecimento e que possuem certo <strong>do</strong>mínio sobre o tema que<br />
disserta. São saberes que circulam em esferas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s variadas e são revela<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong> seus diferentes letramentos.<br />
Po<strong>de</strong>mos, pois, dizer que as expressões qualifica<strong>do</strong>ras com as quais o<br />
vestibulan<strong>do</strong> qualifica o trabalho e sua relação com o homem, são lugares privilegia<strong>do</strong>s<br />
para apreen<strong>de</strong>rmos os tipos <strong>de</strong> saberes que ele julga como <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>. Desse mo<strong>do</strong>,<br />
as expressões qualifica<strong>do</strong>ras funcionam como são estratégias <strong>argumentativa</strong>s ou como<br />
parte das estratégias <strong>argumentativa</strong>s para construir pontos <strong>de</strong> vista na <strong>organização</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>texto</strong>.<br />
Os saberes mobiliza<strong>do</strong>s pelos vestibulan<strong>do</strong>s não são aleatórios. Eles lançam mão<br />
<strong>de</strong> saberes para reforçar o ponto <strong>de</strong> vista que estão construin<strong>do</strong>. E, sobretu<strong>do</strong>, mobilizam<br />
<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s saberes em função <strong>de</strong> seu interlocutor, ou melhor, das imagens que ele<br />
constrói <strong>de</strong>sse interlocutor, a universida<strong>de</strong>, representada pelo examina<strong>do</strong>r. Desse mo<strong>do</strong>,<br />
os saberes mobiliza<strong>do</strong>s emolduram os argumentos e constituem a sua força, conduzin<strong>do</strong><br />
a orientação <strong>argumentativa</strong> <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> da redação para uma conclusão que ele julga<br />
como condizente com o ponto <strong>de</strong> vista que constrói e organiza em seu <strong>texto</strong>.<br />
Po<strong>de</strong>mos dizer que, enunciativamente, o vestibulan<strong>do</strong> se marca no <strong>texto</strong> por<br />
meio <strong>de</strong>sses mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> qualificar o trabalho ou relação <strong>do</strong> trabalho com o homem. Ao<br />
mesmo tempo, temos movimentos <strong>de</strong> discursos outros; os já ditos inerentes a to<strong>do</strong>s os<br />
enuncia<strong>do</strong>s, que são introduzi<strong>do</strong>s nos enuncia<strong>do</strong>s das redações por meio <strong>do</strong>s diferentes<br />
enuncia<strong>do</strong>res que se marcam nos <strong>texto</strong> ora pela qualificação <strong>do</strong> trabalho com<br />
proposições positivas, ora com proposições negativas. Além disso, os tipos <strong>de</strong> saberes<br />
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mobiliza<strong>do</strong>s revelam o funcionamento discursivo da redação <strong>de</strong> vestibular porque marca<br />
um dito e um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> dizer esse dito.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Na totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> corpus analisa<strong>do</strong>, encontramos diferentes movimentos<br />
discursivos da<strong>do</strong>s pelas expressões qualifica<strong>do</strong>ras e pelos tipos <strong>de</strong> saberes mobiliza<strong>do</strong>s<br />
pelos vestibulan<strong>do</strong>s. Vimos que a qualificação <strong>do</strong> trabalho ou <strong>de</strong> sua relação com o<br />
homem se dá ora com proposições positivas, ora com proposições negativas. Dentre a<br />
valorização com proposições positivas, encontramos, também, o discurso da valorização<br />
<strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> arte, toma<strong>do</strong> como o tipo <strong>de</strong> trabalho i<strong>de</strong>al, que <strong>de</strong>veria ser mo<strong>de</strong>los para<br />
os <strong>de</strong>mais tipos <strong>de</strong> trabalho. Temos, assim, movimentos discursivos que ora valorizam o<br />
trabalho porque ele enaltece, dignifica o homem, ora o <strong>de</strong>svalorizam porque é a causa<br />
da exploração <strong>do</strong> homem.<br />
Trata-se, então, <strong>de</strong> um jogo enunciativo, com <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos discursivos em<br />
que o sujeito toma por estratégias <strong>argumentativa</strong>s os tipos <strong>de</strong> saberes mobiliza<strong>do</strong>s e os<br />
mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> qualificar o trabalho. Os diferentes enuncia<strong>do</strong>res que entram na cena<br />
enunciativa marcam um sujeito toma<strong>do</strong> pelas formações discursivas que o <strong>de</strong>terminam.<br />
Na construção <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista, transparecem seu conhecimento <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> e seu<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> concebê-lo. Transparecem igualmente suas práticas letradas: seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ler a<br />
própria coletânea dada pelo exame e seus letramentos advin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sua formação, seja na<br />
instituição escolar ou fora <strong>de</strong>la.<br />
Ao mobilizar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s saberes em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outros, o vestibulan<strong>do</strong> leva<br />
em consi<strong>de</strong>ração a posição <strong>de</strong> seu interlocutor. Nesse senti<strong>do</strong>, temos um locutor que se<br />
investe <strong>de</strong> um papel social – da posição <strong>de</strong> vestibulan<strong>do</strong> – e é investi<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma posição<br />
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<strong>de</strong> <strong>de</strong>stinatário – a universida<strong>de</strong>. O movimento discursivo é constituí<strong>do</strong>, assim, em<br />
função das imagens que ele quer mostrar <strong>de</strong> si e das imagens que ele constrói <strong>de</strong> seu<br />
interlocutor. O que nos remete ao princípio dialógico da linguagem, postula<strong>do</strong> por<br />
Bakhtin (1986 [1929]): to<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> é dialógico e pressupõe o outro. Além disso, as<br />
posições assumidas pelo locutor são correlacionadas em função <strong>de</strong> outras posições<br />
(BAKHTIN, 1992 [1979]).<br />
Temos nos <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s antagônicos da qualificação <strong>do</strong> trabalho um jogo <strong>de</strong><br />
posicionamentos, ou seja, pontos <strong>de</strong> vista que são construí<strong>do</strong>s a partir das imagens que<br />
os enuncia<strong>do</strong>res constroem tanto <strong>de</strong> si como também <strong>do</strong> outro – o examina<strong>do</strong>r (que<br />
representa a universida<strong>de</strong>). Os saberes são mobiliza<strong>do</strong>s em função das práticas letradas<br />
<strong>do</strong>s candidatos e <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pela situação <strong>de</strong> enunciação. Além disso, são molda<strong>do</strong>s<br />
por suas crenças e representações.<br />
As redações feitas em situação <strong>de</strong> vestibular, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> respon<strong>de</strong>m à<br />
proposição que diz respeito à proposta a ser <strong>de</strong>senvolvida pelo candidato – dada pelo<br />
exame. Isto é, fatos <strong>de</strong> cerceamento da dêixis discursiva, consi<strong>de</strong>rada em relação ao<br />
enuncia<strong>do</strong>r que se coloca prioritariamente como um sujeito <strong>de</strong>ôntico: o aluno <strong>de</strong>ve<br />
escrever segun<strong>do</strong> o tema que é imposto como avaliação a ser executada. No outro pólo<br />
da circunscrição da dêixis discursiva da redação <strong>do</strong> vestibular está o interlocutor,<br />
configura<strong>do</strong> como “banca examina<strong>do</strong>ra” e que representa a Universida<strong>de</strong>. Os papéis <strong>do</strong>s<br />
interlocutores e o gênero estão <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s e impostos pelo evento, o exame vestibular.<br />
Submisso ou não a essas coerções, encontramos um sujeito trabalhan<strong>do</strong> um dito e um<br />
mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> dizer, manifestan<strong>do</strong> posicionamentos, pontos <strong>de</strong> vista, a partir <strong>de</strong> outros pontos<br />
<strong>de</strong> vista, para construir um <strong>do</strong>minante.<br />
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l’archive. Paris : Hachette, 1991.<br />
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PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação <strong>do</strong> óbvio. Trad.<br />
Eni P. Orlandi [et al]. 3ª Ed. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1997.3<br />
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