10.05.2013 Views

Advogado dos diabos - Fonoteca Municipal de Lisboa

Advogado dos diabos - Fonoteca Municipal de Lisboa

Advogado dos diabos - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

CLÁUDIA ANDRADE<br />

Diz Canijo,<br />

referindo-se<br />

ao método da<br />

sua actriz, que<br />

Anabela<br />

Moreira “tem<br />

a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ser maluca e<br />

sujeita-se a<br />

isso”. Para<br />

“Mal<br />

Nascida”,<br />

cuidou <strong>de</strong><br />

animais,<br />

engordou 25<br />

quilos (em<br />

baixo)<br />

Quando João Canijo lhe pediu<br />

para fazer “Mal Nascida”, no<br />

dia seguinte Anabela Moreira<br />

estava a caminho <strong>de</strong> Co<strong>de</strong>çoso,<br />

Minho, a al<strong>de</strong>ia on<strong>de</strong> o fi lme foi<br />

rodado. Mais provas da entrega<br />

com que se atirou ao papel:<br />

passou um mês com a família<br />

que vivia no “décor”, cuidou <strong>de</strong><br />

animais, engordou 25 quilos<br />

– i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>la. “Quase todas as<br />

pessoas daquela al<strong>de</strong>ia tinham<br />

uma corporalida<strong>de</strong> diferente<br />

da minha, eu ali no meio quase<br />

parecia uma mo<strong>de</strong>lo.”<br />

João Canijo: “A Anabela tem<br />

a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser maluca<br />

e sujeita-se a isso. Mas não<br />

consigo que os outros actores<br />

façam isso. E isso é um<br />

<strong>de</strong>feito português, porque<br />

os americanos fazem-no. O<br />

exemplo clássico é o Robert<br />

De Niro andar a conduzir táxis<br />

em Nova Iorque durante seis<br />

meses. Não é uma questão <strong>de</strong><br />

imitação, é uma questão <strong>de</strong><br />

ser contagiado. E o contágio,<br />

só com a continuida<strong>de</strong>, com a<br />

insistência...”<br />

Para “Sangue do Meu<br />

Sangue”, Canijo pediu à actriz<br />

para ir viver para o Bairro<br />

Padre Cruz, durante “15 dias”.<br />

E ela foi fi cando. As fi lmagens<br />

no “décor” já começaram e ela<br />

continua a viver lá. “Arrisquei<br />

fi car mais tempo. Mas nunca<br />

pensei continuar aqui durante<br />

as fi lmagens”, diz. A verda<strong>de</strong><br />

é que isso se começou a notar<br />

no seu trabalho. “Os ensaios<br />

que o João Canijo fez com os<br />

actores foram sendo fi lma<strong>dos</strong> e<br />

houve uma gran<strong>de</strong> diferença da<br />

minha parte em relação ao que<br />

já tínhamos feito. Estava mais<br />

dura, dur com um ar mais pesado.”<br />

É um método que lhe vai<br />

bem. be Quando já estava a viver<br />

no “décor” do fi lme, Anabela<br />

pparticipou<br />

num “workshop”<br />

no Teatro D. Maria II sobre<br />

a técnica Stanislavski e<br />

lembra-se <strong>de</strong> ter ouvido a<br />

frase: “Ser-se actor <strong>de</strong>ixa<br />

marcas”.<br />

O método <strong>de</strong> Canijo,<br />

justifi ca, “é uma tentativa<br />

<strong>de</strong> aproximação à<br />

personagem para que<br />

não parta tudo <strong>de</strong> um<br />

‘cliché’. ‘ Não é que eu sirva<br />

<strong>de</strong> d referência, mas já me<br />

aconteceu aco ver os outros actores<br />

a representarem re<br />

uma cena e<br />

dize dizer: ‘É isso mesmo’. Ou: ‘Uma<br />

pess pessoa daqui nunca falaria<br />

14 • Sexta-feira 18 Junho 2010 • Ípsilon<br />

Anabela Moreira<br />

actriz do método<br />

Canijo pediu à actriz para ir viver para o Bairro Padre<br />

Cruz, durante “15 dias, mais ou menos”. Ela foi fi cando. As<br />

fi lmagens já começaram e ela continua a viver lá.<br />

assim.’ Os ‘clichés’ do que é<br />

ser pobre e viver no Bairro<br />

Padre Cruz acabam por ser<br />

<strong>de</strong>smistifi ca<strong>dos</strong>. Esses ‘clichés’<br />

são os maiores obstáculos<br />

quando se procura a verda<strong>de</strong><br />

enquanto actor.”<br />

Não é só uma questão <strong>de</strong> ser<br />

contagiado nos pormenores,<br />

“coisas subtis” – como “falar<br />

com as pessoas no café e <strong>de</strong>ixar<br />

ser corrompida pelo português<br />

<strong>de</strong>las”. É procurar enten<strong>de</strong>r as<br />

pessoas, com a disponibilida<strong>de</strong><br />

do olhar – <strong>de</strong> qualquer forma,<br />

ser actor é uma ciência humana,<br />

daí a empatia que muitos criam<br />

com as suas personagens, por<br />

mais sórdidas que possam<br />

ser. “A maioria das pessoas da<br />

equipa, quando chegou aqui o<br />

primeiro dia para fi lmar, fi cou<br />

horrorizada com os vizinhos<br />

do lado, o senhor António e a<br />

dona Manuela, com o cheiro, a<br />

linguagem, a forma como eles<br />

vivem. Ao fi m <strong>de</strong> algum tempo<br />

<strong>de</strong> estar aqui, o sentimento que<br />

eu tinha em relação a eles é<br />

diferente. Vivem num estado <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>silusão total com a vida. Só<br />

estão a tentar sobreviver. E isso<br />

é que o João Canijo está a tentar<br />

Anabela participou<br />

num “workshop”<br />

no D. Maria II sobre<br />

Stanislavski e<br />

lembra-se <strong>de</strong> ouvir<br />

a frase: “Ser-se actor<br />

<strong>de</strong>ixa marcas”<br />

fazer com este fi lme: como é que<br />

o amor sobrevive em condições<br />

extremas.”<br />

Mas Anabela faz questão<br />

<strong>de</strong> dizer que “não é <strong>de</strong>fensora<br />

<strong>de</strong> nada”. “Não acho que<br />

exista um método. Cada actor<br />

vai <strong>de</strong>scobrindo como é que<br />

funciona melhor. Isto também é<br />

contraproducente, o que estou a<br />

fazer. Quando chega a altura da<br />

rodagem <strong>de</strong>ves estar relaxada,<br />

para conseguires fazer o<br />

melhor. Ao estar a fazer esta<br />

experiência, estou um pouco<br />

cansada. Não vim para aqui com<br />

o meu iPod, não trouxe o meu<br />

computador. Não vim para aqui<br />

viver outra coisa.”<br />

As pessoas do bairro sabem<br />

que ela é actriz? “Algumas<br />

sabem mas esquecem-se. No<br />

princípio pensavam que eu era<br />

da Câmara, ou assistente social.<br />

Estive três dias fora, em casa, e<br />

o vizinho do lado perguntou: ‘A<br />

menina não esteve aqui, on<strong>de</strong> é<br />

que andou?’ Esquecem-se que<br />

sou actriz. Também porque, na<br />

cabeça <strong>de</strong>les, ser actriz não é<br />

isto. Associam um actor a um<br />

estilo <strong>de</strong> vida. Vêem a equipa,<br />

vêem as câmaras, e mesmo<br />

assim não têm noção.” K.G.<br />

“Ele [ João Canijo]<br />

enten<strong>de</strong> os actores<br />

como ninguém”<br />

Rita Blanco<br />

samente humano. Na génese, houve<br />

a pergunta: “O que é que representaria<br />

mais o amor incondicional entre<br />

uma mãe e uma filha? A mãe escon<strong>de</strong><br />

à filha que esta está a ter uma relação<br />

<strong>de</strong> incesto com o pai. Porque é que<br />

ela não conta logo à filha, quando <strong>de</strong>scobre?”<br />

A resposta, diz Canijo, só podia<br />

ter vindo <strong>de</strong> uma mulher. “Porque,<br />

se a filha não souber, não aconteceu<br />

para a filha. Isto é a <strong>de</strong>scoberta<br />

da Rita [Blanco]. Nunca um homem<br />

chegaria lá. Eu estive uma semana a<br />

pensar: porque é que uma mãe não<br />

diz à filha?”<br />

Cassavetes, Mike Leigh...<br />

Em 2006, João Canijo e Rita Blanco<br />

fizeram juntos um espectáculo, “Improviso<br />

Encenado”, apresentado no<br />

CCB, durante o Festival Temps<br />

d’Images. Definiu-se que Blanco e Vera<br />

Barreto, aluna do Conservatório,<br />

fariam <strong>de</strong> mãe e filha, e o fio dramatúrgico<br />

foi aparecendo através <strong>de</strong> um<br />

processo <strong>de</strong> improvisos e ensaios, em<br />

que as duas actrizes iam reagindo<br />

uma à outra enquanto personagens.<br />

De certa forma, Canijo quis prolongar<br />

essa experiência em “Sangue do Meu<br />

Sangue”. Depois <strong>de</strong> “Improviso Encenado”,<br />

explica Rita Blanco, “o João<br />

disse: ‘E agora, o que vamos fazer? E<br />

eu disse que achava porreiro não continuar<br />

a fazer filmes do João em que<br />

tudo acabasse mal. O João disse: ‘Quero<br />

falar sobre o amor incondicional.’”<br />

A “i<strong>de</strong>ia da abnegação”, em que “preferimos<br />

morrer para que o outro possa<br />

sobreviver”, agradou à actriz.<br />

A i<strong>de</strong>ia era ter Rita Blanco e Vera<br />

Barreto, <strong>de</strong> novo, como mãe e filha.<br />

Mas Barreto foi substituída por Cleia<br />

Almeida (a filha mais nova <strong>de</strong> “Noite<br />

Escura”).<br />

“O filme foi escrito com os actores<br />

durante dois anos <strong>de</strong> ensaios”, diz<br />

Canijo. “As personagens são construídas<br />

por eles.” O método foi o mesmo<br />

<strong>de</strong> “Improviso Encenado”: reacção,<br />

improviso. E assim foi nascendo um<br />

argumento. “Isto é mais Cassavetes”,<br />

diz. Nós pensamos em Mike Leigh (até<br />

porque “Sangue do Meu Sangue” soa<br />

como o “kitchen sink drama” <strong>de</strong> Canijo),<br />

que também faz ensaios “teatrais”<br />

com os seus actores antes <strong>de</strong><br />

começar a rodar. “Quando disse Cassavetes,<br />

também podia dizer Mike<br />

Leigh”, corrobora Canijo.<br />

Que se saiba, não há outro realizador<br />

português a trabalhar assim. Canijo<br />

diz que neste filme (produzido<br />

pela Midas) consegue levar mais longe<br />

o que sempre quis fazer, mas nunca<br />

conseguiu “dada a falta <strong>de</strong> interesse<br />

e <strong>de</strong> perspectiva estratégica do<br />

anterior produtor”, Paulo Branco,<br />

com o qual rompeu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Mal<br />

Nascida”. “Suspeito que todas as pessoas<br />

minimamente inteligentes gostariam<br />

<strong>de</strong> trabalhar assim”, diz, mas<br />

os produtores “pensam que é mais<br />

caro”. Dois anos a fazer ensaios significa<br />

pagar a actores durante dois<br />

anos.<br />

A vantagem é que quando se “faz a<br />

cena”, já não precisa <strong>de</strong> dirigir. “Aliás,<br />

dirigir não tem interesse. Não faz sentido<br />

impor uma interpretação a um<br />

intérprete.” É um processo generoso<br />

para os actores. “É muito bom trabalhar<br />

assim porque temos mais tempo<br />

para perceber e mais espaço para intervir”,<br />

diz Rita Blanco. “Ele põe os<br />

actores nisso. E isso passa a ser um<br />

problema também teu. Fazer uma<br />

personagem só para fazer um papel<br />

não me interessa.” E, a seguir: “Ele já<br />

dirigiu mais os actores, já largou isso.<br />

É um sinal <strong>de</strong> evolução. Um bom director<br />

é um director que dá material<br />

aos actores para eles trabalharem e<br />

que sabe on<strong>de</strong> quer chegar.” Isso é<br />

algo que os actores repetem: “O João<br />

Canijo sabe perfeitamente o que<br />

quer” (Marcello Urgeghe). “Ele agarra<br />

em certas coisas que tu dizes e<br />

quando lhe interessa acaba por te levar,<br />

sem perceberes, para uma <strong>de</strong>terminada<br />

construção”, explica Anabela<br />

Moreira. “E muitas vezes não te<br />

impõe, mas pergunta: ‘Porque é que<br />

estás a dizer isto?’ Ou: ‘Porque é que<br />

não fazes isto assim e assim?’ Ele quer<br />

que <strong>de</strong>scubras <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> ti o porquê<br />

para ser como ele quer e, <strong>de</strong> repente,<br />

olhas para o guião e dizes: ‘Meu <strong>de</strong>us,<br />

eu criei esta monstruosida<strong>de</strong> que está<br />

aqui?’ Mas foi ele que te levou para<br />

ali sem te aperceberes 100 por cento.<br />

E quando te apercebes, ele tem toda<br />

a razão. Ele está <strong>de</strong> fora, a ver com<br />

mais objectivida<strong>de</strong> do que nós, que<br />

estamos envolvi<strong>dos</strong>.”<br />

Rita Blanco: “Ele enten<strong>de</strong> os actores<br />

como ninguém”. Anabela Moreira:<br />

“Somos co-autores. Foi um gran<strong>de</strong><br />

elogio ele dizer: acredito em ti para<br />

criar o meu argumento”. Marcello<br />

Urgeghe: “Ele não tem medo <strong>de</strong> passar<br />

horas a pensar. Eu também não<br />

– aqui encontramo-nos. Representar<br />

é perguntar: ‘Como é que se faz?’ É<br />

uma equação, é matemática pura.”<br />

No processo <strong>de</strong> ensaios <strong>de</strong>senhouse,<br />

inclusivamente, a biografia das<br />

personagens, a história passada, informação<br />

que não tem <strong>de</strong> estar no<br />

filme, mas que é matéria-prima para<br />

os actores – “para, no momento, usares<br />

tudo o que sabes, se quiseres”, diz<br />

Urgeghe. “É tudo matéria para se perceber<br />

porque é que se faz assim e não<br />

se faz assado.”<br />

Rita sob infl uência<br />

Tal como nos anteriores filmes, Canijo<br />

pediu aos actores para fazerem um<br />

“estágio” <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>: em “Sangue<br />

Em “Sangue<br />

do Meu<br />

Sangue” uma<br />

mãe (Rita<br />

Blanco)<br />

escon<strong>de</strong> à<br />

filha que esta<br />

está a ter uma<br />

relação <strong>de</strong><br />

incesto com o<br />

pai...

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!