Miolo Bioma _CS3.indd - Instituto Paulo Freire
Miolo Bioma _CS3.indd - Instituto Paulo Freire
Miolo Bioma _CS3.indd - Instituto Paulo Freire
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Histórias de<br />
aprender-e-ensinar<br />
para mudar o mundo
Organizadores:<br />
Kleber Maia Marinho<br />
Valéria Viana Labrea<br />
Histórias de<br />
aprender-e-ensinar<br />
para mudar o mundo<br />
Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN<br />
<strong>Instituto</strong> BioMA<br />
Paulínia, SP<br />
2007
Copyright © <strong>Instituto</strong> <strong>Bioma</strong> 2007<br />
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização, por escrito, da instituição<br />
resonsável.<br />
Tiragem: 8.000 exemplares<br />
Ilustração da capa<br />
Lucas Félix<br />
Projeto Gráfico/ Editoração eletrônica<br />
Projects Brasil Multimidia Ltda.<br />
Impressão e acabamento<br />
Gráfica Brasil<br />
Direitos reservados à<br />
<strong>Instituto</strong> <strong>Bioma</strong> - Associação de Preservação do Meio Ambiente Natural e Melhoria da Qualidade de<br />
Vida<br />
Avenida 9 de Julho, nº. 400<br />
Bairro: Nova Paulínia<br />
Paulínia - SP<br />
CEP 13140-000<br />
Tel.: (19) 3844 - 8774<br />
Endereço eletrônico: http://institutobioma.org.br<br />
Correio eletrônico: bioma@institutobioma.org.br<br />
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP<br />
Bibliotecária responsável: Thaís Moraes CRB-1/1922<br />
Histórias de aprender-e-ensinar para mudar o mundo. Projeto Jovem<br />
Cidadão Amigo da Natureza - PJCAN / Organizadores: Kleber Maia<br />
Marinho,<br />
Valéria Viana Labrea. – Paulínia, SP: <strong>Instituto</strong> <strong>Bioma</strong>, 2007.<br />
200 p. : il. color.; 21 x 28 cm.<br />
Inclui bibliografia.<br />
ISBN<br />
1. Meio-ambiente. 2. Cidadania. 3. Recurso natural. 4. Qualidade de<br />
vida. I. Título.<br />
CDD – 333.7
Não é possível refazer este país, democratizá-lo,<br />
humanizá-lo, torná-lo sério,<br />
com adolescentes<br />
brincando de matar gente, ofendendo a vida,<br />
destruindo o sonho, inviabilizando o amor.<br />
Se a educação sozinha não transformar a sociedade,<br />
sem ela tampouco a sociedade muda.<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />
Não é deslocando a<br />
direção do nosso olhar<br />
iludido que conseguimos<br />
torná-lo lúcido e calmo.<br />
É criando em nós um novo<br />
modo de olhar e de sentir.<br />
Fernando Pessoa
“Um projeto dessa magnitude envolve muitos braços dedicados no seu fazer.<br />
Assim, preferimos deixar aqui expresso nosso imenso agradecimento a todas<br />
as pessoas que estiveram e ainda estão envolvidas neste projeto”.
Apresentação<br />
Sumário<br />
PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA: UM PROJETO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO .....9<br />
Aiêska Marinho Lacerda Silva e Luiz Carlos Palomar Fernandez<br />
Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN<br />
PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA ............................................................. 13<br />
Luiz Carlos Palomar Fernandez<br />
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
PARA ENTENDER O PROCESSO .................................................................................... 19<br />
Valéria Viana Labrea<br />
DIAGNÓSTICO VIVO ................................................................................................. 21<br />
Rita Mendonça<br />
PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA ............ 24<br />
Maria Marcia Sigrist Malavasi<br />
SUSTENTABILIDADE, EDUCAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA ........................................................... 31<br />
Dagoberto Lorenzetti<br />
AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, TRANSDISCIPLINARIDADE E<br />
ORGANIZAÇÃO EM REDES SOCIAIS OU UMA OUTRA ESCOLA É POSSÍVEL .................................. 41<br />
Valéria Viana Labrea<br />
HISTÓRIA ORAL – UMA ESTRATÉGIA A SER UTILIZADA NO DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS<br />
EDUCACIONAIS. ...................................................................................................... 46<br />
Meire Terezinha Muller<br />
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
UM ETHOS PARA SALVAR A TERRA ................................................................................ 55<br />
Leonardo Boff<br />
A ECOPEDAGOGIA COMO PEDAGOGIA APROPRIADA AO PROCESSO DA CARTA DA TERRA ............... 66<br />
Moacir Gadotti<br />
A CARTA DA TERRA COMO INSTRUMENTO EDUCATIVO E INSPIRADOR NA CONSTRUÇÃO DE SOCIEDADES<br />
SUSTENTÁVEIS ....................................................................................................... 77<br />
Mirian Vilela
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 83<br />
Aiêska Marinho Lacerda Silva<br />
EDUCAR PARA REAPROXIMAR DA TERRA ........................................................................ 89<br />
Kleber Maia Marinho<br />
REAPROXIMAR PELA ESPIRITUALIDADE .......................................................................... 96<br />
Denise Lopes de Souza<br />
A CARTA DA TERRA E O EDUCAR PARA A IDENTIDADE TERRENA: PRINCÍPIOS E RUMOS<br />
Sementes de Esperança em Experiências Educacionais do Ensino Fundamental no Pontal do<br />
Paranapanema .....................................................................................................103<br />
José J. Queiroz<br />
CUIDADO NA ERA DO DESCUIDO: O PROBLEMA DA LINGUAGEM............................................115<br />
<strong>Paulo</strong> Roberto Monteiro de Araujo<br />
MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: DIÁLOGO DE SABERES E TRANSFORMAÇÃO DAS PRÁTICAS<br />
EDUCATIVAS – UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIAS DE APRENDER E ENSINAR ............................122<br />
Pedro Roberto Jacobi<br />
Atividades<br />
Titulo: Árvore do bem e do mal .................................................................................133<br />
Título: É brincando que se aprende ............................................................................139<br />
Titulo: Campanha do leite ........................................................................................147<br />
Título: Carta ao inquilino .........................................................................................153<br />
Título: Dengue .....................................................................................................161<br />
Título: Identidade ..................................................................................................167<br />
Titulo: Lugar de lixo é no lixo ...................................................................................173<br />
Título: Diagnóstico Vivo – um pouquinho da nossa história ...............................................177<br />
Título: Uma receita para o ambiente ..........................................................................185<br />
Título: Reconstrução ..............................................................................................191<br />
Título: Plante uma semente .....................................................................................197
PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA:<br />
UM PROJETO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO<br />
Apresentação<br />
Mestre não é aquele que sempre ensina, mas aquele que de repente aprende.<br />
Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas<br />
É muito difícil se fazer uma síntese ou comentar em poucas palavras o signifi cado deste livro.<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo não é uma obra de fi cção; muito pelo<br />
contrário, é o resumo da implantação de um projeto inovador de construção de conhecimento,<br />
desenvolvido por meio do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN, criado pelo<br />
<strong>Instituto</strong> BioMa 1 e fi nanciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, do Ministério<br />
da Educação – FNDE/MEC, visando promover ações relacionadas ao meio-ambiente e cidadania.<br />
Desenvolvido junto a escolas de ensino fundamental em 14 municípios do estado de São <strong>Paulo</strong>,<br />
o projeto envolveu mais de 16 mil alunos e 600 profi ssionais de educação.<br />
O objetivo principal do projeto era implementar ações complementares de educação,<br />
envolvendo as escolas e a comunidade, assegurando que os princípios da inclusão, da humanização<br />
e da “cidadania ativa” fossem efetivamente praticados e disseminados.<br />
Para tanto, o PJCAN estabeleceu uma estratégia de eleição das escolas como centro gerador,<br />
acumulador, propagador do conhecimento e catalizador das ações desenvolvidas na comunidade,<br />
promovendo um trabalho de capacitação de professores, alunos e comunidade na busca da cidadania,<br />
do desenvolvimento de espírito participativo e, em última instância, da qualidade de vida humana.<br />
Era necessário garantir a continuidade do processo de construção do conhecimento, assim<br />
como a disposição para resolver problemas e, a partir deles, criar novos modelos e técnicas a<br />
serem aplicadas continuamente, dando andamento ininterrupto às ações iniciadas.<br />
Desta forma, trabalhando com os princípios da Carta da Terra, o PJCAN buscou a construção<br />
do conhecimento dentro da comunidade, refl etindo o conceito de visão global e atuação local.<br />
Acreditando que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente<br />
de sua utilidade para os seres humanos, os participantes do projeto passaram a adotar uma<br />
visão mais sistêmica e integrada de Comunidade Planetária, buscando a administração e uso dos<br />
1 <strong>Instituto</strong> BioMA é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – Oscip, fundada em 2002, voltada para o desenvolvimento<br />
Humano e Melhoria de Qualidade de Vida. Para saber mais, consulte o site www.bioma.org.br.
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
recursos sem causar danos ao meio ambiente. Preservando a liberdade de ação de cada geração,<br />
mas condicionando esta liberdade ao direito das gerações futuras ao atendimento de suas<br />
necessidades, espera-se obter a construção de sociedades democráticas justas, participativas,<br />
sustentáveis e pacífi cas.<br />
Mais do que garantir a qualidade de vida prevenindo o dano ao ambiente, o projeto procurou<br />
despertar nos participantes o desejo de adotar padrões de produção, consumo e reprodução<br />
que protejam as capacidades regenerativas da Terra (Reduzir, Reutilizar e Reciclar), os direitos<br />
humanos e o bem-estar comunitário, erradicando a pobreza e garantindo o acesso à água<br />
potável, ao ar puro e à segurança alimentar, entre outros.<br />
Muito além de meramente um discurso, o projeto buscou oferecer meios de educação<br />
que garantam oportunidades para assegurar uma subsistência sustentável, reconhecendo os<br />
conhecimentos tradicionais em todas as culturas, trabalhando pela construção de uma fi losofi a<br />
de democracia, não-violência e paz.<br />
Buscou, ainda, a defesa dos valores fundamentais do ser humano, o fortalecimento das<br />
comunidades locais, capacitando-as a cuidar dos seus próprios ambientes, por meio da construção<br />
do conhecimento coletivo com base na educação formal e não formal, não só preservando os<br />
ecossistemas onde interagem, como também estimulando e apoiando o entendimento mútuo,<br />
a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, implementando estratégias amplas para<br />
prevenir confl itos e usar a colaboração na resolução de problemas.<br />
Por intermédio das ofi cinas de capacitação onde se abordaram temas como Carta da Terra,<br />
Agenda 21 Escolar, Elaboração de Projetos, Trabalho em Rede, Diagnóstico Vivo (cartografi a<br />
social), Convivência Social, os profi ssionais de educação e o grupo de monitores (estagiários)<br />
adquiriram as ferramentas necessárias à execução do projeto e as propagaram nas comunidades<br />
com a participação ativa dos alunos de cada escola.<br />
A construção do conhecimento nas escolas se deu através de uma abordagem transdisciplinar,<br />
que propõe a integração teórica e prática, numa perspectiva da totalidade, existindo cooperação e<br />
troca de informações na sala de aula, além de aberta ao diálogo e ao planejamento. As disciplinas<br />
interagem entre si em distintas conexões e estão ligadas à realidade concreta, histórica e cultural<br />
tendo como ponto de convergência as ações pré-estabelecidas por cada um dos projetos.<br />
Este enfoque transdisciplinar, baseado na Carta da Terra, buscou conceitos originais, métodos<br />
e estruturas teóricas por meio da aglutinação dos conceitos, de metodologias e conteúdos das<br />
diferentes disciplinas e do conhecimento universal, ou seja, uma transmissão de conhecimentos<br />
não dividida em vários campos; aprende-se a toda hora, não apenas na sala de aula.<br />
Parte-se do conceito que a relação com a aquisição do saber deve ser direta, participativa,<br />
pessoal e particular. O conhecimento é uma totalidade e o todo é formado pelas partes, mas não<br />
é apenas a sua soma; é maior e diferente das partes que o constitui. Aprendemos quando nos
Apresentação<br />
envolvemos emocional e racionalmente no processo de reprodução e criação do conhecimento,<br />
na certeza de que aprendemos todos os dias ao longo da vida, em todos os lugares, com todos<br />
os indivíduos e transmitindo, também, a cada um, nossa própria vivência e experiência.<br />
Este modelo de construção de conhecimento é uma forma de transformação orientada para<br />
o autoconhecimento e para a criação de uma nova forma de viver em sociedade. Seu objetivo<br />
é a compreensão do mundo presente, onde se busca a unidade do conhecimento, sem qualquer<br />
limite rígido entre as disciplinas e a construção de uma relação interpessoal, reciprocidade,<br />
eqüidade, cooperação e participação comunitária cujo fi m último é a solidariedade, o respeito<br />
à diversidade, a sustentabilidade e a justiça social.<br />
O ponto de culminância de todo o trabalho desenvolvido pelo PJCAN foi a construção e<br />
execução, por parte da comunidade, de um projeto, escolhido entre muitos que surgiram<br />
durante a realização do diagnóstico vivo. Alguns deles estão ligados à competência local de<br />
agricultura, mais especifi camente a hortas orgânicas, ervas medicinais e pomares. Outros<br />
focaram problemas que envolvem a qualidade de vida, a convivência em sociedade e o respeito<br />
à diversidade, além daqueles que se voltaram a questões do meio ambiente. As comunidades<br />
desenvolveram parcerias com as prefeituras, universidades, comércio local e outras instituições<br />
para implementar os projetos escolhidos, sem depender de recursos públicos e contando com a<br />
participação dos pais, alunos e professores da localidade o que, em última instância, desenvolveu<br />
o sentimento de pertencimento e participação ativa na vida social e comunitária.<br />
O grande mérito do PJCAN foi ter sido aceito e posto em prática como uma construção coletiva,<br />
em comunidades que difi cilmente têm a oportunidade de se fazerem representar, de participar, de<br />
criar e desenvolver ações em conjunto com seus fi lhos.<br />
Desta forma, o que ora se apresenta neste livro é a síntese desse trabalho de quase dois<br />
anos, dividido em duas partes: A construção do conhecimento e as práticas desenvolvidas com<br />
os alunos em sua aplicação.<br />
Acreditamos que mais que um simples relato, este livro serve para um momento de refl exão<br />
sobre os modelos de acúmulo, disseminação e prática do conhecimento humano. Uma nova<br />
forma de transformar a qualidade de vida através da educação, garantindo a construção de um<br />
planeta mais justo e sustentável para esta e para as gerações que estão por vir.<br />
Aiêska Marinho Lacerda Silva<br />
Luiz Carlos Palomar Fernandez
Conh
1 – Conhecendo o BioMA<br />
e o PJCAN<br />
PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA<br />
Luiz Carlos Palomar Fernandez<br />
Não se passa uma semana sem que eu tenha que explicar a alguém, conhecido ou recém-apresentado,<br />
o que é o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN. Quando conto o que estamos fazendo,<br />
através do <strong>Instituto</strong> BioMA, todos fi cam muito interessados pelo assunto, alguns até gostariam de<br />
participar e outros se dispõem a ajudar, desde, é claro, que não tenham que ir aonde vamos.<br />
Acho que é por isso que esse projeto nasceu.<br />
Quando falamos em baixo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, a primeira coisa que<br />
vem à cabeça de nosso interlocutor é o Nordeste. Sem sombra de dúvida, essa é uma realidade,<br />
porém, o estado de São <strong>Paulo</strong> também tem problemas, que não são poucos, mas, como somos<br />
conhecidos como a locomotiva que puxa o trem chamado Brasil, ninguém acredita que haja<br />
pobreza, ou pelo menos aquela “pobreza miserável”, que estamos acostumados a ver nos<br />
documentários da televisão.<br />
Como membro do <strong>Instituto</strong> BioMA, transitamos pelo Pontal do Paranapanema desde 2002 ConhParte<br />
e sabemos muito bem o que signifi ca estar no “interiorzão” de São <strong>Paulo</strong>. Primeiro porque,<br />
infelizmente, as cidades do eixo da Raposo Tavares aparecem na mídia sempre que acontece uma<br />
rebelião, fi cando conhecidas pelos seus presídios e seus “moradores” famosos, mas difi cilmente<br />
são divulgadas suas competências.<br />
Desde que fomos para o Pontal para trabalhar no Programa de Desenvolvimento Local<br />
Integrado e Sustentável, parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas<br />
– Sebrae, encontramos várias pessoas que sonhavam, sonhavam, mas não colocavam seus planos<br />
em prática. A crença coletiva é que “foi assim, é assim, e será assim”.<br />
Já naquela primeira oportunidade, conhecemos pessoas fantásticas, que descobriram que são<br />
donas de seu destino, seres capazes de transformar suas vidas e as comunidades onde vivem.
14<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Logo em seguida, ainda através do BioMA, fi zemos um novo projeto, também em parceria com<br />
o Sebrae, chamado Empreendedorismo Ambiental, voltado para ações de geração de trabalho e<br />
renda, cujo objetivo era a melhoria de qualidade de vida e preservação ambiental. Novamente,<br />
pessoas maravilhosas, que deixaram para trás o sonho vazio e passaram a trabalhar para a<br />
mudança do seu próprio futuro e, principalmente, de sua comunidade. Para muitos, o grande<br />
sonho era garantir uma boa educação para os fi lhos, de modo a dar-lhes oportunidades de<br />
trabalho, para que pudessem permanecer em seu canto e ser felizes, sem ter que abandonar a<br />
família buscando trabalho na Capital.<br />
Depois de um ano de encerramento dos projetos, voltamos ao Pontal para ver o que tinha<br />
germinado de todo aquele trabalho. Não posso dizer que fi camos totalmente desanimados mas,<br />
sinceramente, não foi um resultado para nos deixar totalmente satisfeitos. Em que tínhamos<br />
errado? Por que quase tudo o que germinou morreu ou anda à velocidade de tartaruga? Por<br />
que as coisas não funcionaram tão bem quanto esperávamos? O que faltou para mudanças<br />
efetivamente acontecerem?<br />
Foi então que nos demos conta de que estávamos cometendo os mesmos erros que ocorrem<br />
em tantos outros projetos: não tínhamos gerado a massa crítica para que andassem sozinhos.<br />
Quando nos afastávamos, a comunidade perdia a coesão e os projetos começavam a degringolar.<br />
Um ou outro membro dos grupos conseguia ir adiante, mas as difi culdades eram enormes e a<br />
chance de sucesso era pequena.<br />
Precisávamos construir um outro modelo de participação. Precisávamos garantir a continuidade<br />
do processo de construção do conhecimento, assim como a disposição para resolver problemas<br />
e, a partir deles, criar novos modelos, novas técnicas a serem aplicadas continuamente, dando<br />
andamento ininterrupto às ações iniciadas. Mas quem seria o receptor desse processo? Quem<br />
seria o fi el depositário do conhecimento construído? Quem seria o parceiro para nos ajudar<br />
nessa empreitada?<br />
Uma luz surgiu no fi nal do túnel quando percebemos que estivemos sempre ao lado da<br />
solução e não tínhamos percebido: as escolas. A comunidade escolar. Os formadores das futuras<br />
gerações. Era isso. Essa era a solução.<br />
Assim, quando nos deparamos com o edital do FNDE que oferecia recursos para o<br />
desenvolvimento de ações complementares ao ensino fundamental, percebemos que poderíamos<br />
tentar acertar novamente. Mas, o que fazer com isso? Como o BioMa poderia participar? Qual<br />
poderia ser nossa contribuição? Tínhamos em mente o que não queríamos: colocar crianças<br />
desenhando micos-da-cara-preta, baleias e tartarugas. Não era isso que estávamos procurando,<br />
era algo maior, que desse uma nova dimensão ao tema transversal “meio ambiente” e que se<br />
confi gurasse como uma ação contínua e interiorizada por todos os participantes.<br />
O projeto começou a ser concebido em março de 2005 em suas grande linhas e foi “costurado”<br />
e entregue ao FNDE em 29 de julho de 2006.
Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN<br />
Nossa inserção no Pontal do Paranapanema nos dirigia pra lá, mas o desejo de realizar o<br />
projeto também perto de nossa sede nos levou a consultar várias cidades da região de Campinas,<br />
sendo que apenas Sumaré se interessou em participar.<br />
Assim, o projeto nasceu com 14 cidades participantes, formando um mosaico muito estranho,<br />
pois estávamos na região de Campinas, na Alta Paulista e no Pontal do Paranapanema. Apenas<br />
a título de localização, a distância representa 500 km de deslocamento só para chegarmos de<br />
Campinas ao Pontal e outros 100 km entre uma cidade e outra, em pontos extremos da região.<br />
Uma loucura total, mas de uma insanidade construtiva.<br />
Enquanto esperávamos a resposta se havíamos ou não sido escolhidos para aplicação do<br />
projeto, estávamos trabalhando na sua estruturação. Por nossa conta e risco, contratamos<br />
doutores e mestres nas áreas de Pedagogia e Meio Ambiente para nos ajudar a formatar o<br />
projeto e a proposta pedagógica. Tivemos que fazer correções em nossa proposta inicial e<br />
fi camos aguardando o posicionamento do FNDE/MEC.<br />
Por fi m, nos últimos dias de dezembro recebemos a informação: o projeto havia sido aprovado.<br />
Com cortes.<br />
Terminado 2005, meados de janeiro de 2006, reunidos vários secretários e dirigentes de<br />
educação de municípios do Pontal do Paranapanema e Alta Paulista no auditório do Serviço<br />
Social da Indústria – Sesi, de Presidente Prudente, lá estávamos nós explicando o projeto, o<br />
que seria, qual o fruto esperado desse trabalho, qual seria a responsabilidade de cada um no<br />
transcorrer das atividades. Uma ansiedade enorme, um desejo de que acabasse logo e que todos<br />
aderissem ao projeto de corpo e alma. Mas não foi assim tão fácil. Era o nosso sonho, mas não<br />
era o sonho de todos. Tivemos desistências logo na primeira reunião; muitos que ali estavam<br />
não tinham certeza se o projeto chegaria a um fi m e muitos não tinham o poder de decisão para<br />
aderir defi nitivamente a ele. O grande consolo era que a maioria tinha gostado da proposta e o<br />
diretor do Sesi local estava nos apoiando, o que signifi cava um grande e poderoso aliado.<br />
Inicialmente aderiram 12 municípios, sendo que Dracena, que originalmente não participaria<br />
do projeto, foi incorporado ao mesmo. Contando com a cidade de Sumaré, na região de<br />
Campinas, chegamos aos 14 municípios envolvidos: Sumaré, Platina, Dracena, Salmourão,<br />
Presidente Bernardes, Presidente Venceslau, Caiuá, Sandovalina, Alvares Machado, Mirante do<br />
Paranapanema, Regente Feijó, Presidente Epitácio, Pirapozinho e Martinópolis.<br />
Começamos o trabalho pela seleção de estagiários, que seriam nosso ponto de apoio, atuando<br />
diretamente nas escolas com os professores e com os alunos. Era absolutamente necessário<br />
criar canais de comunicação, portanto os estagiários deveriam dominar ferramentas básicas de<br />
informática e ter acesso a computadores. Embora pareça simples, tudo foi muito complicado.<br />
Os estagiários tinham que aprender a usar ferramentas que nem sempre dominavam, as escolas<br />
tinham acesso limitado à internet e o acesso era por linha discada. Isso quando a escola tinha<br />
internet. O que fazer? Trabalhar com o possível. Deixar o impossível para depois.<br />
15
16<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Nós tínhamos uma idéia do que poderia ser feito, mas cada escola tinha características<br />
diferentes e conseqüentemente demandas diferentes. Conseguimos concentrar todas as<br />
capacitações no Sesi de Presidente Prudente, o que nos permitiu racionalização do trabalho.<br />
Os estagiários trabalharam como loucos para obter todas as informações necessárias para<br />
início das atividades. Os professores, diretoras e coordenadores ajudavam como podiam. Alguns<br />
digitavam os dados na escola, levavam para a faculdade e passavam os arquivos de lá para nossa<br />
sede. Outros entregavam em disquetes para nossa supervisora.<br />
As capacitações começaram com uma sensibilização, passaram por uma avaliação da situação<br />
ambiental e qualidade de vida no mundo, avaliação e construção dos projetos político-pedagógicos<br />
e integração dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN com a metodologia do PJCAN.<br />
Tudo o que era percebido como demanda para o andamento do projeto era providenciado:<br />
Ofi cinas sobre a Carta da Terra, Agenda 21 Escolar, Elaboração de Projetos, Trabalho em Rede,<br />
Diagnóstico Vivo (cartografi a social), Convivência Social, entre outros.<br />
Tivemos a felicidade de poder contar com excelentes profi ssionais que nos ajudaram nesse<br />
processo de capacitação, com a participação de mais de 100 educadores de cada vez.<br />
Nessa nossa jornada, encontramos pessoas fantásticas, que entenderam o espírito do projeto<br />
e nos ajudaram a desenvolver cada etapa do processo com muito trabalho e dedicação.<br />
Às vezes não é fácil explicar para as pessoas que não estávamos trazendo um projeto<br />
pronto. Nosso objetivo era capacitar os professores e a comunidade local para que elas<br />
lidassem com sua problemática e encontrassem as suas soluções. Cada escola desenvolveria<br />
seus projetos e as crianças seriam o elemento de ligação entre a escola e as famílias, além<br />
de agentes da transformação.<br />
Em alguns lugares, a proposta só começou a fazer sentido quando, após o diagnóstico vivo<br />
e a discussão dos princípios da Carta da Terra, com ampla participação da comunidade, os<br />
projetos começaram a tomar forma e as pessoas começaram a se sentir capazes de transformar<br />
a sua realidade.<br />
Alguns projetos estão ligados à competência local de agricultura, mais especifi camente a<br />
hortas orgânicas, ervas medicinais e pomares. Outros projetos focaram problemas que envolvem<br />
a qualidade de vida, a convivência em sociedade e respeito à diversidade, além daqueles<br />
que se voltaram às questões do meio ambiente. Algumas escolas conseguiram parcerias com<br />
as prefeituras, universidades, órgãos públicos e já começaram a implementar os projetos<br />
escolhidos, sem depender de recursos públicos e contando com a participação dos pais, alunos<br />
e professores da localidade. Em maio de 2006, o projeto começou a ser implementado na cidade<br />
paulista de Sumaré e, com a experiência adquirida no Pontal, as difi culdades foram menores,<br />
porém, apareceram outras decorrentes de suas peculiaridades.
Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN<br />
Ao todo o PJCAN envolve quase 16 mil alunos, 600 profi ssionais de educação e 32 estagiários.<br />
Quando olho para trás, não acredito em tudo o que passamos, mas quando olho para a frente<br />
vejo o muito que ainda tem que ser feito.<br />
Acredito que criamos um novo referencial na forma de gerir e construir projetos e tenho a<br />
esperança de que, nas comunidades onde tivemos a honra de poder participar, as coisas nunca<br />
mais serão as mesmas e os sonhos serão, cada vez mais, projetos da realidade, mais justa e<br />
digna para todos.<br />
Luiz Carlos Palomar Fernandez é engenheiro industrial, especialista em Gestão e Estratégia<br />
de empresas e engenheiro de Segurança do Trabalho, pela Universidade Estadual de Campinas<br />
– Unicamp, gerente do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza junto ao FNDE, consultor do<br />
Sebrae, professor da Universidade São Marcos – Campus Paulínia, capacitador em Programas<br />
de Desenvolvimento Humano e Programas Educacionais por meio do <strong>Instituto</strong> BioMA e membrofundador<br />
do <strong>Instituto</strong> BioMA.<br />
17
Histó
2 – Histórias de aprender: as<br />
ofi cinas de formação de professores<br />
PARA ENTENDER O PROCESSO<br />
Valéria Viana Labrea<br />
Nada é impossível de mudar<br />
Desconfi ai do mais trivial, na aparência singelo.<br />
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.<br />
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,<br />
pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,<br />
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,<br />
nada deve parecer natural<br />
nada deve parecer impossível de mudar.<br />
Bertold Brecht<br />
As ofi cinas de formação realizadas pelo <strong>Instituto</strong> BioMA ocorreram ao longo de 2006 e 2007<br />
e tiveram a participação de cerca de 600 professores dos 14 municípios onde ocorreu o Projeto<br />
Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN. O leitor observará que as diferentes capacitações<br />
adicionadas foram escolhidas para atender as especifi cidades do projeto e abordaram desde<br />
questões metodológicas e práticas – organização dos Projetos Políticos Pedagógicos – PPP, plano<br />
HistóParte<br />
diretor da escola e o PJCAN – a questões mais abrangentes – organização em redes, educação e<br />
sustentabilidade, oralidade, Carta da Terra, Agenda 21.<br />
Dessa aparente miscelânea é que nasce um diálogo entre saberes que vai dar sustentação<br />
aos futuros projetos de cada escola. O intuito era evitar as limitações da abordagem disciplinar,<br />
especializada mas fragmentada, que não dá conta dos diferentes níveis de realidade. Foi adotado<br />
nesse sentido um enfoque transdisciplinar, buscando criar uma visão coerente do problema a<br />
partir de modelos explicativos compartilhados e baseados em conceitos e teorias que integram<br />
várias disciplinas.
20<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Além disso, considerou-se em todo o processo as experiências da comunidade escolar, mantendo<br />
uma escuta atenta aos desejos e aos saberes que carregam consigo. Todos os diferentes<br />
grupos foram ouvidos. As conversas com os professores, estagiários, merendeiras, coordenação<br />
e diretoria, alunos, pais e mães dos alunos, vizinhança, e com o poder público, enfi m com todos<br />
os diferentes componentes da comunidade escolar e local fez emergir um novo conhecimento<br />
integrador, resultado da fusão dos conhecimentos formais e saberes populares.<br />
A busca como menciona Guattari (1990) é articular esses conhecimentos para contribuir na<br />
realização de um projeto societário ambientalista autônomo e libertário em três níveis: no<br />
plano mental (a relação do indivíduo consigo mesmo), no plano social (a relação com o outro,<br />
com a família e os sujeitos coletivos) e no plano ambiental (a relação indivíduo-natureza e<br />
sociedade-natureza).<br />
O determinante para o sucesso dessa fase do projeto foi o desejo de aprender desses<br />
professores comprometidos com o PJCAN mas principalmente, comprometidos com seus<br />
alunos e uma visão de futuro onde, a partir de sua escola, um outro modelo de educação e<br />
gestão é possível.
DIAGNÓSTICO VIVO<br />
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
Rita Mendonça<br />
O Diagnóstico Vivo tem como objetivo despertar o olhar do educador em relação ao seu<br />
entorno, enriquecendo-o com elementos refl exivos e de imagem, para que ele possa ver além<br />
do costumeiro, transcender seus próprios condicionamentos, conhecer as relações e entrar<br />
em contato com a realidade viva que tem à sua volta. Esse trabalho começa com a percepção<br />
do próprio corpo, ele próprio formado por camadas de história, sentimentos, experiências e<br />
ações. Partimos da idéia de que a partir das condições iniciais de nascimento somos nós que<br />
moldamos nosso próprio corpo e somos responsáveis por ele. E que, ao tomarmos consciência e<br />
nos apropriarmos de nossa própria história, podemos compreender os mecanismos que podem<br />
nos levar a ser também os atores transformadores do mundo em que vivemos.<br />
A percepção do vivo não é coisa fácil. Educados que somos no sistema mental linear, nos<br />
satisfazemos em descrever e classifi car as manifestações da vida, sem nos aproximar daquilo<br />
que põe os seres vivos em sintonia, ou seja, o pulsar da vida. Perceber o mais óbvio do óbvio é<br />
o primeiro passo para o transcendermos.<br />
Certa vez fi z um passeio de balão. Além de ser uma experiência extraordinária, do silêncio<br />
e da visão do mundo de lá de cima, mas não de tão alto e fechado como a visão de dentro dos<br />
aviões, fi z uma descoberta de algo bem conhecido e evidente: o balão se desloca pelo vento; e<br />
quando estamos no vento, não o sentimos, ou seja, temos a impressão de que estamos parados.<br />
Podemos estar a mais de 100 km/hora e temos a sensação de estar parados. Esse passeio me<br />
trouxe a refl exão sobre a vida que desejo transmitir nos cursos do Diagnóstico Vivo: estamos<br />
vivos e por isso achamos isso óbvio! Não percebemos, não sentimos o pulsar da vida. Somente<br />
quando estamos doentes é que vislumbramos algo, ou quando acompanhamos e nos despedimos<br />
de quem está nos deixando nesta vida. No entanto, perceber a vida é essencial e, quando isso<br />
ocorre, a visão de mundo muda, as prioridades, as formas de organização cotidiana, as relações<br />
de trabalho, tudo muda. Perceber a vida é, desculpem o humor, vital!<br />
O processo para chegar a essa percepção é essencialmente vivencial. São exercícios, sons e<br />
imagens que buscam conduzir os participantes no caminho do desenvolvimento da sensibilidade,<br />
até que possam perceber a unidade que existe entre suas próprias vidas e a vida do planeta,<br />
a vida de hoje, do passado e do futuro. Apenas após a experiência é que consolidamos a<br />
compreensão com fatos e dados para serem discutidos. O que cada um percebe e sente é<br />
sempre mais importante do que as informações prontas que eu possa preparar para eles.<br />
O processo educativo vivencial considera os indivíduos de forma integral, incluindo e<br />
priorizando o aprendizado através do corpo, dos sentidos e da percepção mais sutil de si mesmos,<br />
dos outros, do mundo, da natureza, e dos processos vitais que dão origem e sustentam a vida,<br />
21
22<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
cuidando para que as informações científi cas não se interponham na interação de aprendizagem<br />
e mascarem ou inibam os processos de natureza mais delicada. O corpo é considerado um<br />
elemento muito importante para a aprendizagem. Isso pode parecer óbvio uma vez que a sede<br />
de nosso cérebro está no corpo e é nele que nossas memórias fi cam armazenadas.<br />
Apesar dessa evidência, nosso cérebro é tão complexo que nos permite abstrair a realidade<br />
de forma que podemos percorrer enormes distâncias no tempo e no espaço sem nos deslocarmos<br />
fi sicamente. Podemos aprender na abstração, sem perceber a participação ativa e decisiva do<br />
corpo. “Usamos o cérebro para tornar nosso próprio corpo um objeto. Originalmente, esse<br />
processo de criação de imagens destinava-se a organizar a experiência. Agora, ele tomou o<br />
lugar da experiência corporal” (KELEMAN, 1999). Ou seja, temos tendência a não perceber a<br />
base física (das percepções, dos sentidos, das emoções que formam registros corporais) das<br />
experiências que temos e a viver baseados nas imagens que fazemos das coisas e não nas<br />
relações diretas que temos com elas.<br />
Nossa educação tradicional é baseada nessa possibilidade que temos de conhecer sem vivenciar<br />
as informações e sem inseri-las num contexto, ou seja, sem se comprometer com o conhecimento<br />
e sem transformá-lo num saber. Podemos – e é o que mais fazemos - apreender conhecimentos<br />
revelados pela experiência de outras pessoas, mesmo que esse conhecimento não nos faça sentido.<br />
Assim, criamos um sistema educacional formal muito complexo e extenso em conteúdo. Na escola,<br />
alguns conhecimentos são verifi cados em aulas de laboratório; em outras situações são realizados<br />
estudos do meio, mas essas estratégias de ensino consideram o sujeito que aprende separado<br />
daquilo que é aprendido, que o conhecimento pode existir em separado daquele que aprende. Essa<br />
é a diferença fundamental entre o ensino convencional e o vivencial.<br />
No aprendizado vivencial, é o corpo inteiro que aprende, não só o cérebro, e ele aprende porque<br />
interage com o que deve ser aprendido. As vivências permitem que a pessoa se aproxime de si<br />
mesma, fazendo com que o aprendizado se torne autêntico, pois é seu próprio corpo que vai produzir<br />
o conhecimento. Para realizar as vivências é preciso estar presente, sensível aos sinais de seu corpo,<br />
perceptivo ao que está acontecendo nos ambientes externo e interno, dando menos espaço às<br />
idéias e aos pensamentos e emoções difusos e esparsos que normalmente costumamos ter. Estando<br />
plenos no aqui e agora, saímos do mundo exclusivo das idéias e observamos as diferentes formas que<br />
um estímulo repercute em nosso corpo. Via de regra, essa repercussão no corpo é bem diferente<br />
da imagem que faríamos se estivéssemos imaginando apenas aquela situação. Como exemplo, a<br />
sensação térmica, tátil, olfativa e sonora ao realizar um exercício no meio de uma fl oresta tropical<br />
é fundamentalmente diferente da sensação que advém da imaginação da mesma situação. Os<br />
registros corporais são diferentes. O aprendizado sobre o fl uxo de energia e de matéria, sobre as<br />
relações ecossistêmicas, sobre a presença humana na natureza, sobre os contextos planetário e<br />
cósmico será diferente se tudo isso for “ensinado” na sala de aula.<br />
Nesse caminho, depois do corpo vivo, a percepção da paisagem. Ao descortinar as diferentes<br />
possibilidades de interpretação da paisagem, o educador pode começar a sentir e visualizar<br />
as diversas camadas de história, as diversas infl uências sócio-econômicas contemporâneas e
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
vislumbrar algo sobre as possibilidades futuras do seu lugar. Estimular seu vínculo com seu<br />
próprio lugar, o lugar onde vive e trabalha, onde se relaciona e sonha, é essencial. Ele é<br />
estimulado a pesquisar sobre a água e seu caminho, como é que ela “passa” por seu lugar,<br />
sobre o solo, sobre os ventos, as sementes, as fl ores, os animais. As pessoas e suas capacidades<br />
de transformação da paisagem. As relações ecológicas que existem em todos os lugares. A<br />
movimentação da Terra em relação ao Sol e ao céu. As sombras, a percepção de nossa relação<br />
do que está além de nosso planeta. A observação de que o mundo de cada um é construído por<br />
cada um e que as coisas só passam a existir para nós à medida que as percebemos.<br />
Por exemplo, somente percebemos os sons à nossa volta se paramos para ouvi-los. E quanto<br />
mais aquietamos nossa mente, mais conseguimos ouvir. Deixamos de ouvir nossos próprios ruídos<br />
para ouvir os do mundo, conectando-nos com eles. Os educadores, através dos exercícios, vão<br />
aprendendo a observar as próprias relações sistêmicas, tanto as físicas como as que ocorrem em<br />
suas mentes. Algumas vezes conseguem perceber que fazem parte da mesma dinâmica.<br />
Essa formação destaca também as diferentes formas de conhecer: conhecer pelas informações<br />
(forma a que estamos mais acostumados) e conhecer pela experiência (forma mais rara e ainda<br />
menos valorizada). Como o próprio educador passa pela experiência, “conhece” a diferença e está<br />
apto a apropriar-se dela em seu trabalho na sala de aula. O aprendizado pela experiência pode não<br />
dar conta de toda a grade curricular a que o professor deve atender, mas promove uma compreensão<br />
que fi ca internalizada e vai infl uenciar nas suas formas de aprendizagem e relacionamentos futuros.<br />
Dessa forma, desestabiliza as estruturas convencionais de chegar ao conhecimento, abrindo espaço<br />
para outras formas de pensar e perceber o mundo em que vivemos.<br />
Estimula também a consciência de que são formadores de opinião, pretendendo ajudá-los de<br />
alguma forma a superar eventuais mecanismos de apatia e acomodação face à difícil realidade<br />
a que têm que fazer face no cotidiano.<br />
É uma grata satisfação poder compartilhar neste texto a concepção do Diagnóstico Vivo, uma<br />
vez que temos sabido de transformações importantes ocorridas nas atuações dos professores<br />
nas regiões em que pudemos trabalhar. Esperamos com isso despertar o interesse de um público<br />
crescente, dando-nos assim a oportunidade de participar da construção de um mundo mais<br />
participativo, mais estimulante, mais consciente e solidário.<br />
Rita Mendonça é bióloga, socióloga e coordenadora no Brasil da Sharing Nature Foundation e<br />
diretora geral do <strong>Instituto</strong> Romã de Vivências na Natureza. Coordena as Caminhadas Ecológicas<br />
e Filosófi cas da Associação Palas Athena e o Grupo de Diálogo Filosofi as da Natureza.<br />
23
24<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA<br />
Maria Marcia Sigrist Malavasi<br />
Refl etir sobre a importância e o papel do Projeto Político Pedagógico – PPP nas instituições<br />
de ensino de todos os níveis (desde a educação infantil até o ensino superior) continua sendo<br />
uma tarefa ao mesmo tempo importante e difícil. Importante porque esse é um instrumento<br />
que possibilita transformações no interior dos espaços educativos que buscam a melhoria de<br />
seu papel no âmbito do ensino e da sociedade. Difícil porque, analisando inúmeros PPPs 3 ,<br />
encontramos visões bastante discrepantes acerca de sua defi nição e mesmo de sua função nas<br />
instituições de ensino.<br />
Especialmente no âmbito escolar, o PPP tem sido mais utilizado como um documento solitário,<br />
produzido para gavetas e arquivos, esporadicamente apresentado a alguém que represente<br />
ofi cialmente órgãos educacionais. A escrita desse “documento”, na maioria das vezes, é feita<br />
por um gestor da escola (coordenadora pedagógica, orientadora educacional, supervisora de<br />
ensino, diretora) e ele não é facilmente disponibilizado para a comunidade ou qualquer outra<br />
pessoa que o requisite. Esses princípios se contrapõem frontalmente ao objetivo e à função de<br />
um verdadeiro PPP.<br />
Mais do que um documento obrigatório e atualmente exigido em todos os espaços educacionais,<br />
o PPP é um documento de identidade da escola e deve apresentar a instituição escolar para<br />
toda a sociedade no que ela – escola - tem como função, objetivos, missão, concepções e<br />
decisões coletivas. Sua construção deve ser necessariamente coletiva para que possa garantir<br />
a participação de todos, inclusive representando a diversidade existente na realidade escolar.<br />
Deve ser um instrumento de melhoria da qualidade das instituições (escolas) entendida como<br />
um pressuposto a ser partilhado por todos, uma vez que:<br />
A qualidade não é um produto, não é um dado. A qualidade constrói-se. Fazer<br />
qualidade é um trabalho que se desendera com o tempo, que não se pode dizer<br />
nunca que esteja concluído, que cresce em si mesmo com um movimento em espiral<br />
(BONDIOLLI, 2004, p.16).<br />
Movimento esse que aponta soluções gestadas pela refl exão apresentada pelo PPP para os<br />
problemas enfrentados pela escola. Mas pode apontar também os problemas existentes que<br />
ainda não foram solucionados pela comunidade escolar. Elencá-los pode ser o “primeiro passo”<br />
para resolvê-los coletivamente. Nesse processo é esperado que o PPP sirva para provocar<br />
transformações no espaço escolar. Caso contrário, ele não terá signifi cado. Dessa forma, tomar<br />
a escola como lugar onde ocorre a construção coletiva de um importante instrumento como<br />
o PPP é um caminho de transformação. Mas se o PPP se confi gurar como um instrumento de<br />
imposição dos gestores da escola sobre os demais segmentos dela, certamente não produzirá
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
mudanças. Além disso, o PPP que não leva a mudanças também não é levado a sério pela<br />
comunidade. Pais, professores, funcionários, estudantes e gestores devem se constituir como<br />
um grupo que pensa a escola de maneira ampla, tendo sensibilidade para perceber quais são os<br />
problemas e onde residem as soluções para aquela comunidade escolar.<br />
Sendo assim, alguns indicadores são importantes se desejamos investigar os processos de<br />
construção do PPP. Indagar sobre a forma escolhida pela escola nesse processo é um dos mais<br />
esclarecedores, pois esse caminho desnuda o tipo e o estilo de gestão implantada em seu<br />
interior. Outro importante indicador reside no grau de envolvimento e de defesa dos integrantes<br />
da escola acerca dela mesma construir seu próprio PPP e através dele gerar outros projetos<br />
importantes como o da avaliação institucional, enveredando pelas dimensões internas e externas<br />
a partir de indicadores de qualidade de ensino coletivamente propostos.<br />
A gestão da escola também é um importante indicador a ser observado, pois dela dependem<br />
os rumos e processos decisórios que irão ser postos, possibilitando o avanço ou impondo o<br />
retrocesso no desenvolvimento do PPP.<br />
O PPP indicando o perfi l do gestor<br />
Muitos argumentos tentam desmobilizar as possibilidades da construção de um PPP e, vencida<br />
a primeira etapa - sua construção –, outros tantos argumentos apontam a impossibilidade dele<br />
possuir força de ação na comunidade. Dentre os argumentos destacam-se os de ser o PPP apenas<br />
um documento ofi cial que não guarda nenhum valor; não ser um instrumento respeitado pela<br />
comunidade escolar; não ter sido produzido coletivamente; não ter alcance signifi cativo; prestarse<br />
apenas como documento formal e burocrático quando requisitado; não ser representativo<br />
de toda comunidade escolar, dentre outros. Esses mesmos argumentos podem ser utilizados,<br />
em sentido oposto, para fortalecer o grupo construtor de um projeto no interior da escola.<br />
Argumentos motivadores de mudanças operacionais que podem tornar esse instrumento um<br />
balizador e indicador da autonomia da escola, pois essa:<br />
mais uma vez se apresenta como elemento indispensável na organização do trabalho<br />
pedagógico escolar e na participação efetiva das pessoas como resposta às imposições<br />
dos planejamentos tradicionais (MALAVAZI, 2003).<br />
Além de indicador da autonomia escolar, o PPP pode operar como facilitador da organização<br />
de um currículo mais includente, transformando-o em um instrumento de ação forte, legítimo<br />
e motivador para os integrantes da instituição, contrapondo-se a todos os demais instrumentos<br />
legais e formais impostos externa e internamente.<br />
As relações sociais existentes no interior da escola não podem ser entendidas como ingênuas e<br />
desprovidas de intencionalidade. Elas são, sobretudo, relações de poder, dominação e submissão<br />
que produzem decisões e podem se materializar no modelo de PPP construído pela escola. Se<br />
25
26<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
acreditarmos na possibilidade do PPP apontar sempre para essa direção, nos tornaremos reféns<br />
dessa possibilidade o que inviabilizaria a decisão de construí-lo. Segundo FREITAS (2003, p. 35):<br />
...a “forma escola” constitui-se uma maneira de organizar o trabalho pedagógico a mando<br />
de funções sociais que são atribuídas à instituição escolar. Contrariar essa lógica é, no<br />
âmbito de nossa sociedade atual, um processo possível apenas como resistência. Isso não<br />
diminui sua importância como possibilidade, mas alerta para seus limites.<br />
Muito mais apropriado acreditar nas potencialidades democráticas, participativas e coletivizadas<br />
desse instrumento e tentar construí-lo sobre essas bases.<br />
A administração e a burocracia<br />
Ao longo dos anos foram percebidas diferentes funções para a estrutura administrativa e<br />
burocrática da escola. Segundo TRATEMBERG (1982 p. 40):<br />
...a conduta burocrática implica uma exagerada dependência dos regulamentos e padrões<br />
quantitativos, impessoalidade exagerada nas relações intra e extragrupo, resistência<br />
à mudança, confi gurando os padrões de comportamento na escola encarada como<br />
organização complexa. Em suma, o administrativo tem precedência sobre o pedagógico.<br />
Nesse contexto é que se pensavam os planejamentos escolares, que representavam instrumentos<br />
técnicos sinalizadores da forma como a escola tratava e entendia sua própria função, ou seja, como<br />
controle e domínio. Em seguida, a burocracia e a administração foram vistas como ferramentas de<br />
apoio da estrutura escolar em toda sua complexidade. Entretanto, nos tempos modernos, quando<br />
a escola é instrumento de formação de mão de obra necessária ao mercado de trabalho, a lógica<br />
da burocracia e da administração também repete esse movimento e assume a função de impor,<br />
discriminar e alienar. A estrutura escolar não tem como base princípios formativos e humanitários.<br />
Assim, o PPP da escola tanto pode ser um importante instrumento construído coletivamente,<br />
quanto pode ser um elemento de imposição escrito individualmente. Estudar os processos<br />
de construção do PPP das escolas e os estilos de gestão que a representam pode fornecer<br />
alguns indicadores que, categorizados, auxiliariam na construção de uma gestão democrática e<br />
autônoma para a escola.<br />
O gestor tem, dentre outras funções, a de mediar e conduzir o processo de construção do PPP.<br />
Independentemente do seu perfi l, ele é um agente determinante no processo. Assim sendo, ele<br />
tanto pode assumir o papel de um gestor impositivo e autoritário, conduzindo o PPP nesse caminho,<br />
resultando em um instrumento de coerção utilizado para controlar os grupos no interior da escola;<br />
como pode assumir o papel de gestor democrático e participativo. Conduzindo o processo de<br />
construção do PPP por essa via, certamente contribuirá para que o mesmo seja representativo de<br />
toda a comunidade escolar. Ainda que possamos questionar a possibilidade de um só elemento (no
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
caso o diretor) possuir tanta força, sabemos que a estrutura hierarquizada que comanda as escolas<br />
básicas no país permite que um só elemento da escola, munido de força decisória e permissionária<br />
de instâncias superiores, possa manipular e controlar os demais grupos. Nesse sentido é possível que<br />
o resultado objetivado em um PPP não seja representativo do grupo totalitário da escola e assim as<br />
pessoas não se reconheçam nela. A marca de um projeto pode mostrar ou não a identidade de seus<br />
integrantes.<br />
Gestão do PPP e o PPP como gestão: quem comanda o quê?<br />
O PPP pode ser entendido como um “grande acordo coletivo que se faz no interior da escola”<br />
(MALAVAZI, 1995). Assim como a escola é uma instituição com uma dimensão política (é possível<br />
existir objetividade, mas não há neutralidade em educação), o PPP também possui uma dimensão<br />
política que, muitas vezes, precisa ser posicionada em função de seus objetivos. Daí a escola se<br />
organizar não sem confl itos e disputas inclusive na forma de orientar e reorientar seu PPP, pois<br />
“A escola não é, nem nunca foi, uma ilha isolada dos interesses políticos, sociais e econômicos<br />
na sociedade em que se insere, (SORDI, MALAVAZI, 2004).<br />
Pensamos que o PPP deva ser um instrumento facilitador e aglutinador, propiciando uma refl exão<br />
permanente entre seus membros. Se o que chamamos de PPP propicia a refl exão e a escola é<br />
refl exiva, então estamos caminhando na direção de nossa crença premissa, ou seja, o PPP como<br />
instrumento de construção de uma escola democrática. Caso contrário, ou seja, se a escola não<br />
é facilitadora da refl exão e cada um de seus membros atua individualmente, mesmo anunciando<br />
seu desejo de construção de uma nova sociedade, será mais o alcance desse objetivo, uma vez<br />
que ele não atende à premissa básica de um PPP: ser coletivo e propiciador da refl exão. Assim, é<br />
preciso buscar objetivos afi nados com o projeto que se quer/pretende realmente implantar.<br />
É importante lembrar que as formas utilizadas para a construção do PPP são importantes, mas,<br />
mais importante ainda, é a observação atenta da posição política dos atores que o constróem,<br />
pois os mesmos podem auxiliar a efetivação e consolidação de um PPP que representa os anseios<br />
de uma cultura dominante e podem organizar o currículo da escola com base nessa parcela da<br />
população, não levando em conta a realidade da comunidade em que a escola se insere. As<br />
decisões sobre o PPP devem ser de competência da própria escola e da comunidade na qual ela se<br />
insere. Sendo democrática e autônoma, não tem como base parâmetros externos de avaliação. As<br />
experiências realizadas não devem ser tomadas como modelos aplicáveis a todas as realidades. A<br />
autonomia da escola deve ter como pressuposto o atendimento ao grupo no qual ela se insere e seu<br />
PPP deve ser um instrumento coletivo norteador do trabalho docente, provisório e inacabado.<br />
Evidentemente os atores internos à escola possuem visões diferenciadas do signifi cado de<br />
uma gestão e essas diferentes visões estarão expressas no PPP.<br />
O PPP é também um instrumento catalizador das orientações externas “ofi ciais” e estas, via<br />
de regra, se cumprem de forma hierárquica. Mas o que diferencia uma instituição escolar de<br />
27
28<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
outra é, também, o grau de autonomia que ela constrói em relação aos órgãos externos ligados<br />
a ela. Quanto menor a autonomia da escola, mais se expressam no PPP as orientações recebidas<br />
hierarquicamente, como indicadores de modelos administrativos, de formação e de instrução a<br />
serem cumpridos por ela. Por outro lado, em direção oposta, quanto maior o grau de autonomia<br />
da escola em relação aos órgãos externos, expresso no modelo e no processo de construção<br />
do seu PPP, maior será sua independência para a tomada de decisões. Evidentemente, mesmo<br />
com esse grau de autonomia altamente demarcado, a escola sempre estará ligada às instâncias<br />
superiores que a regem, ainda que administrativamente falando.<br />
Algumas questões importantes<br />
Para efeito de análise e observação, algumas questões podem nortear nosso olhar indicando<br />
o grau de autonomia da escola e do PPP. São questionamentos aparentemente simples, mas<br />
que, ao serem efetivados, podem dar início a um novo movimento de transformação no interior<br />
da escola. Questões tais como:<br />
•<br />
•<br />
•<br />
•<br />
•<br />
•<br />
Quais elementos indicam que o PPP foi construído pela comunidade?<br />
Quais elementos indicam que o PPP não é artifi cial para a comunidade escolar que ele<br />
representa?<br />
Quais elementos indicam que o PPP representa a posição da instituição como um todo<br />
e não a visão particular ou parcial de poucos?<br />
Quais elementos indicam que o PPP expressa o conjunto dos sujeitos envolvidos no<br />
ambiente escolar?<br />
Como o PPP expressa a avaliação institucional da escola (entendendo-a como Instituição)?<br />
Sabendo que as relações de poder tem repercussões importantes no cotidiano da<br />
escola, como elas ocorrem no processo de construção do PPP?<br />
Essas questões, iniciais, podem ganhar atributos importantes de acordo com a comunidade<br />
em que ele – PPP- esteja inserido. Além disso, são questões facilitadoras objetivando gerar<br />
novos questionamentos e permitir que a comunidade esteja permanentemente construindo e<br />
reconstruindo seu PPP a partir das suas necessidades locais.<br />
Possibilidade de superação via PPP<br />
Políticas educacionais apropriadas, nova administração do tempo e espaço escolares, melhor<br />
estrutura organizativa, avaliação do processo de aprendizagem progressivo e seqüencial,
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
organização do ensino em etapas de acordo com cada grupo costumam ser sinalizados após um<br />
processo maduro e responsável de construção do PPP. São questões mais abrangentes que têm<br />
repercussões diretas em todos os espaços escolares. Pela mesma via, acabam sendo contemplados<br />
e inseridos como objetivos a serem vislumbrados a longo prazo na construção de um PPP, pois, de<br />
forma geral, o ensino brasileiro atravessa uma grave crise de qualidade uma vez que:<br />
Quanto mais parece que o direito de possuir é dado a todos, mais se ensina o dever<br />
de consumir e de aprender a consumir/desejar a partir do lugar social que ocupa.<br />
Assim, o direito à educação (inclusão em todos os níveis de ensino) contrapõe-se o<br />
dever de aceitar uma determinada concepção de qualidade de ensino, que oculta<br />
seus benefi ciários e que fabrica trilhas diferenciadas e meritocráticas de sucesso e de<br />
fracasso (exclusão por dentro) (FREITAS, L., SORDI, FREITAS, H., MALAVAZI 2004).<br />
Importante registrar que, embora alguns setores ou grupos insista em anunciar o oposto, respaldados<br />
pelo número de estudantes matriculados nas escolas nos vários níveis de ensino, esta é uma realidade<br />
que deve preocupar a todos. Não se trata apenas de colocar todos na escola, como querem os liberais,<br />
mas de garantir uma escola de qualidade para todos. Buscar soluções rápidas, decretadas, mágicas<br />
e externas à instituição já mostrou ser um caminho de insucesso garantido. É preciso, então, que as<br />
propostas de transformação e qualidade de ensino partam do interior das escolas e tenham respaldo<br />
dos setores aos quais elas pertencem. Algumas experiências positivas já foram historicamente<br />
registradas e, caso não tivessem sido abortadas em seu processo de construção, poderiam servir como<br />
exemplo. De qualquer maneira os PPP podem sinalizar possibilidades de superação, uma vez que<br />
partem do diagnóstico de sua própria realidade e levam em conta as potencialidades da comunidade<br />
local. Não deve somente contemplar a instrução ou informação necessária ao estudante, mas deve<br />
levar em conta a formação que pretende e deve oferecer. Por isso, costumamos dizer que um projeto<br />
pedagógico deve tomar decisões coletivas que não são apenas técnicas ou acadêmicas, mas são<br />
também políticas. Por isso, não causa estranheza que, em todos os níveis de ensino, essa via de<br />
construção coletiva e democrática obtenha resistência; afi nal, ela rejeita internamente processos<br />
decisórios individuais e autoritários e, externamente, rejeita todos os mecanismos de imposição por<br />
decretos e leis que não a retratem. E esses processos não estão isentos de identidades. São pessoas,<br />
grupos, entidades, categorias que, por trás deles, procuram criar mecanismos para que a própria<br />
comunidade acadêmica desacredite dos processos decisórios internos, coletivos e educativos. Essa<br />
resistência tem sido percebida em muitas ocasiões, inclusive nos absurdos acordos e decisões que em<br />
nada auxiliam o verdadeiro ensino de qualidade do país. Mesmo conhecendo-os, é preciso continuar<br />
resistindo a eles, pois essa é a única forma de não permitir um avanço ainda mais irresponsável na<br />
área educacional e, ao mesmo tempo, é a forma de anunciar a crença na possibilidade de superação<br />
e avanço, na busca de melhores condições para a educação no Brasil.<br />
Maria Marcia Sigrist Malavasi é professora e coordenadora associada do Curso de Pedagogia da<br />
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.<br />
29
30<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Referências<br />
BONDIOLI, A. O Projeto Político Pedagógico da creche e sua avaliação. Campinas/SP: Autores<br />
Associados, 2004.<br />
FREITAS, L.C., SORDI, M.R.L.; FREITAS, H.C.L.; MALAVAZI, M.M.S. Dialética da Inclusão e da<br />
Exclusão: por uma qualidade negociada e emancipadora nas escolas. In: Geraldi, C.M.; RIOLFI,<br />
C.R.; GARCIA, M.F. (orgs). ESCOLA VIVA: elementos para a construção de uma educação de<br />
qualidade social. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.<br />
FREITAS, L.C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto entre duas lógicas. São <strong>Paulo</strong>: Moderna,<br />
2003 (Coleção cotidiano escolar).<br />
MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: uma construção possível. In:<br />
EVANGELISTA, Francisco, GOMES, <strong>Paulo</strong> de Tarso (Organizadores) EDUCAÇÃO PARA O PENSAR.<br />
Campinas: Átomo Alínea, 2003.<br />
MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist. A construção de um projeto político pedagógico: registro e<br />
análise de uma experiência. Dissertação de mestrado-Departamento de Metodologia de Ensino,<br />
UNICAMP, maio de 1995.<br />
SORDI, Mara Regina Lemes, MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist,. Avaliação do ensino e da<br />
aprendizagem: concepções e mitos. Série Acadêmica. Revista da Pontifícia Universidade<br />
Católica de Campinas, nº 18, janeiro, 2004.<br />
TRATEMBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São <strong>Paulo</strong>: Autores Associados:<br />
Cortez, 1982. Cap. 1: A escola como organização complexa, p. 35 a 54.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
SUSTENTABILIDADE, EDUCAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA<br />
Dagoberto Lorenzetti<br />
“Aquilo que não tem solução, está resolvido”<br />
ditado popular<br />
Vivemos hoje uma situação única na história da vida neste planeta. Não se trata apenas de<br />
mais um episódio de alteração climática e ambiental e uma conseqüente extinção em massa. A<br />
situação, conforme revela a maioria esmagadora da produção científi ca séria das últimas três<br />
décadas, tem pelo menos dois aspectos novos: sua velocidade e a participação ativa de nossa<br />
espécie como causa-raiz do problema.<br />
A deterioração está se processando de maneira particularmente assustadora em países<br />
de desenvolvimento recente e nas regiões mais pobres do planeta. A região do Pontal do<br />
Paranapanema, assim como outras que tive a fortuna de conhecer ainda nos anos 50 do século<br />
passado, vem sendo modifi cada e depauperada em sua exuberância e diversidade. Grilagem,<br />
destruição, violência ambiental e social. Os problemas são muitos e a busca de soluções de<br />
desenvolvimento sustentável é um imperativo para a região.<br />
Obviamente todos sabemos que a crise de sustentabilidade não se circunscreve ao Pontal.<br />
Ela é planetária. Na prática, desconhece fronteiras.<br />
Esta crise demanda ação educacional célere, imediata e efetiva. Crise, na escrita<br />
ideográfi ca chinesa, é grafada com dois caracteres: um representa risco e outro, oportunidade.<br />
A educação, entendida como um processo de formação e informação através do qual as<br />
pessoas adquirem novos conhecimentos, desenvolvem novas habilidades e adotam novas<br />
atitudes, é instrumental adequado para o enfrentamento dos riscos e ao aproveitamento das<br />
oportunidades que se nos apresentam. Dirigentes e trabalhadores de todas as lides, adultos,<br />
jovens e crianças, todos, inclusive os professores, precisam aprender como enfrentar e como<br />
prosperar nestes novos tempos.<br />
O momento presente demanda comprometimento de todos. Não há solução trivial. Não há<br />
solução individual. Há consenso que a crise é problema de todos. Sem um amadurecimento<br />
profundo, uma metanóia em escala planetária, que redunde na auto-regulação de ações<br />
individuais e coletivas, difi cilmente superaremos a crise.<br />
Os cientistas e os mestres, de profi ssão e vocação, têm papel fundamental. Eles têm que<br />
mostrar o caminho. Eles têm que divulgar os diagnósticos. Eles têm que responder ou procurar<br />
respostas às perguntas.<br />
31
32<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Vale aqui elencar pelo menos três. Onde estamos? Quem somos? Para onde vamos? No<br />
arrazoado que segue vou procurar respondê-las, discorrendo também sobre os caminhos que<br />
se abrem com desenvolvimentos recentes de princípios, abordagens e tecnologias que se<br />
pretendem sustentáveis.<br />
Há centenas de bilhões de galáxias no Universo e há centenas de bilhões de estrelas na Via<br />
Láctea. O Sol é apenas uma delas. Em torno desta estrela, a uma distância de 150 milhões<br />
de km, gira nosso planeta, a terceira órbita, depois de Mercúrio e Vênus. Como a luz viaja,<br />
no vácuo, a 300 mil km por segundo, são necessários cerca de 500 minutos para a luz do Sol<br />
chegar à Terra. Assim, se o Sol “apagasse” agora, só saberíamos do ocorrido daqui a 8 minutos<br />
e 20 segundos! Se houvesse uma “estrada” para o Sol, levar-se-ia 176 anos para lá chegar,<br />
dirigindo a 80 km por hora.<br />
A Terra, com seus 13 mil km de diâmetro tem, hoje, cerca de 70% de sua superfície coberta<br />
por água. A confi guração exata dos continentes, a proporção exata entre terras secas e água, há<br />
cerca de 3 bilhões e meio de anos, não é conhecida. Há evidências, entretanto, que foi nessa<br />
época que a vida se instaurou nos mares. Com o passar do tempo, ela se diversifi cou, gerou uma<br />
atmosfera protetora e povoou a terra, compondo a biosfera.<br />
A biosfera é uma região especialíssima do Universo. É nela que estamos. É sensível e diminuta,<br />
em termos relativos. Para se ter uma idéia de seus limites, se num modelo em escala a Terra<br />
fosse representada por uma esfera com 1,3 m, equivalente aos seus 13 mil km de diâmetro, o<br />
Sol seria um edifício de 140 m de altura, a cerca de 18 km de distância.<br />
A biosfera seria um verniz sobre aquela esfera de 1,3 m, com espessura pouco superior a<br />
1 mm.<br />
É aí que nós e a vida estamos.<br />
A vida é uma ocorrência misteriosa e muito especial. Depois que o estudo do DNA revelou<br />
que todos os seres vivos são muito semelhantes e que os cogumelos estão mais próximos de<br />
nós do que da alface, é importante compreender o que somos. Nós somos a biosfera, nós e<br />
todas as demais espécies vivas com as quais coabitamos. Não existe uma biosfera “lá fora”.<br />
Nós somos a vida.<br />
A Terra tem 4,5 bilhões de anos. Se este tempo fosse um ano calendário, a vida teria<br />
surgido em março e o homem teria aparecido nos últimos instantes do dia 31 de dezembro.<br />
Nossa espécie acabou de chegar para a festa da vida, tem “somente” cerca 1 milhão de anos<br />
de existência.<br />
É um paradoxo, mas a história da vida sobre na Terra tem sido contada mais pelos mortos do<br />
que pelos vivos. A partir de estudos de fósseis e de rastros de atividades de espécies extintas,<br />
estima-se que 99,99% das espécies que já existiram sobre a Terra já desapareceram. A duração
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
típica de uma espécie está entre 2 milhões e 10 milhões de anos. Algumas espécies duram mais.<br />
Outras duram menos. Em média, são “apenas” cerca de 4 milhões de anos. Por cinco vezes,<br />
nos últimos 500 milhões de anos, processos de extinção em massa, devidos a causas variadas,<br />
praticamente varreram da face da Terra a maioria dos seres vivos.<br />
A preocupação do homem com sua sobrevivência e bem-estar é, certamente, anterior ao<br />
surgimento das civilizações humanas. Os humanóides que nos antecederam aprenderam, através<br />
de processos que duraram gerações, a identifi car quais ervas ingerir quando uma refeição<br />
mais pesada, muitas vezes um ser de sua própria espécie, lhes causava desconforto. Ao longo<br />
dos milênios, muitas formas e fórmulas para cuidar da saúde apareceram. Em determinado<br />
momento, religião, medicina e magia se misturavam. Muitos vigários e vigaristas seguramente<br />
prosperaram. Marco importante foi o aparato conceitual, fi losófi co e razoavelmente formalizado<br />
que surgiu na ilha de Kós, na Grécia de Hipócrates, a quase cinco séculos antes de Cristo.<br />
A percepção da essencialidade de condições “sanitárias” para se garantir a saúde pública<br />
também é antiga. A capacidade olfativa é um trunfo importante para a sobrevivência de muitas<br />
espécies, inclusive o homem. E a atmosfera, o recurso natural “ar”, é o componente da biosfera<br />
mais sensível a alterações. Além de ser extremamente tênue, a camada de ar que cobre a Terra<br />
é, em certo sentido, o elemento mais importante para nossa existência. Podemos sobreviver<br />
semanas sem comer, dias sem beber água, mas apenas quatro minutos sem ar.<br />
Movimentos migratórios ocorreram por força do desconforto e da percepção de agravos<br />
à saúde devidos à degradação do meio circundante ao longo da Histórica e da Pré-História.<br />
Movimentos migratórios aqui mesmo em nossa Terra Brasilis podem ser atribuídos a secas,<br />
exaurimento de recursos locais, eras glaciais e ao mau cheiro gerado pelo acúmulo de lixo nas<br />
cercanias dos assentamentos primevos.<br />
Na Babilônia de Hamurabi, já se faziam registrar a ocorrência de odores desagradáveis dezoito<br />
séculos antes de Cristo. Quase um milênio depois, o rei Tukulti, em visita a Hit, localizada<br />
a oeste de Babilônia, relatava o desconforto causado pelas emanações de rochas ricas em<br />
dióxido de enxofre e sulfeto de hidrogênio. Em 500 a.C, a Cloaca Maxima (a grande fossa) foi<br />
construída em Roma pelos etruscos e, imagina-se hoje, quão grande não terá sido o desconforto<br />
dos que residiam a barlavento. Platão (427-347 a.C) comparou os montes e montanhas gregos,<br />
depauperados por anos de extração, queima e destruição, aos ossos de um corpo aviltado e<br />
putrefeito. Sêneca, no ano 61 da Era Cristã, registrava sua alegria e melhora de saúde quando<br />
saía de Roma, contaminada pela fumaça e pelos odores fétidos. Os curtumes, não só em Roma,<br />
mas em outras cidades da Antiguidade, só eram permitidos em locais afastados.<br />
Legislação promulgada pelo Rei Edward I, em 1272, proibiu a queima de carvão mineral<br />
marinho (sea coal), devido aos inconvenientes de sua fumaça. John Evelyn (1620-1706) publicou<br />
o Fumifugium – or The Inconvenience of the aer and smoak of London dissipated together with<br />
some remedies humbly proposed” (Fumifugium ou a inconveniência do ar e da fumaça dissipada<br />
de Londres junto a alguns remédio humildemente propostos).<br />
33
34<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Foi bem mais tarde, no século XVII, que Bernardino Ramazini, na Itália, focalizou a doença<br />
e a saúde ocupacional. Um texto de 1844, editado em Paris 144 anos depois do De Morbis<br />
Artifi cum Diatriba (Doenças do Trabalho), intitulado “Du Climat et des Maladies du Brésil” 2 ,<br />
descreve moléstias de índios, de negros e de mineiros, entre outras. A doença ocupacional,<br />
entre outras mazelas causadas pelo descaso com que se tratam as pessoas e o ambiente, ainda<br />
é um problema sério de saúde pública no Brasil de hoje.<br />
O especialista em História Natural e professor de Biologia, Dr. Manuel Pereira de Godoi, de<br />
Pirassununga, já estudava o Rio Mogi-Guaçú e o corimba, nos anos 50. Recolhendo diligente e<br />
atentamente amostras de água contaminada pela lixívia lançada pelas indústrias e realizando<br />
experimentos para avaliar as conseqüências na população de corimbas e em outras espécies de<br />
peixes, tornou-se conhecido no mundo todo como importante ictiologista. Na cidade onde morava<br />
era reconhecido por seus alunos e pessoas de bem como uma sumidade ambiental engajada,<br />
ainda que esta expressão inexistisse à época. Por parte da parcela reacionária da população, era<br />
taxado de “comunista”, acusação grave e muito perigosa naqueles anos de chumbo.<br />
Muitos outros pesquisadores, professores e cidadãos que se indignaram com a destruição e a<br />
pilhagem de nosso patrimônio comum, nossos recursos naturais, nestes anos de industrialização<br />
desavisada, fi zeram o que foi possível para denunciar problemas e encontrar respostas. Mas,<br />
a exemplo da garota surda em Húmulus, peça de Bertold Brecht, a sociedade demora muito a<br />
ouvir. Pode até escutar, mas a compreensão é por vezes tardia.<br />
A grave crise ambiental e seus desdobramentos que ora enfrentamos está sendo causada, em<br />
sua maior parte, pela ação antrópica. O Homo sapiens medrou e proliferou. Os mais de 6 bilhões<br />
e 500 milhões de representantes de nossa espécie presentes hoje na biosfera, junto aos seus<br />
quase 800 milhões de veículos, aos mais de 90 milhões de barris de petróleo queimados por dia<br />
e outros dispositivos e atividade destruidoras, estão impondo às cerca de 30 milhões de outras<br />
espécies, que conosco formam a “teia da vida” na biosfera, uma taxa de desaparecimento 100<br />
vezes superior ao que poderia ser chamado de “taxa natural”.<br />
Para onde estamos indo?<br />
Desmatamento e exploração mineral desmedidos, agricultura que empobrece e destrói matas<br />
e solos, exploração à extinção completa de espécies de valor comercial, introdução diuturna de<br />
grandes quantidades de antigas e de novas espécies químicas sintetizadas na ecosfera, além de<br />
outras ações predatórias compõem um quadro óbvio de destruição crescente e sistemática. Em<br />
nosso país esta destruição se faz mais cruel, dadas as condições desiguais que prevalecem ao<br />
longo dos séculos em uma economia que parece perseguir um ciclo de extração após outro. Até<br />
iniciativas que apresentam uma lógica ambiental e politicamente correta, como por exemplo<br />
o biodiesel e outras culturas focadas no seqüestro de carbono, tem alta probabilidade de criar<br />
miséria e destruição ambiental.<br />
2 Ou “Do Clima e das Doenças do Brasil”. O texto encontra-se na Biblioteca do Museu da Faculdade de Medicina de São <strong>Paulo</strong>.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
Em anos recentes certas discussões sobre temas ligados ao meio ambiente e à saúde pública têm fugido<br />
aos limites dos círculos de especialistas e chegado à grande mídia. Todos já ouviram falar da depleção<br />
da camada de ozônio, das epidemias virais e bacterianas fora de controle, das alterações climáticas e do<br />
efeito estufa. Ouve-se muitas vezes dizer que as opiniões divergem. E de fato isso ocorre e há uma razão.<br />
O ex-vice-presidente americano Al Gore publicou o seu Inconvenient Truth (Verdade inconveniente)<br />
e atuou no fi lme homônimo, recém lançado também em vídeo. Gore relata a resistência que tem<br />
encontrado ao longo da vida para ver apreciados temas ambientais e outras questões de importância<br />
global pelo “establishment” autista em seu país. Esta postura é encontrada em praticamente todos os<br />
países industrializados ou de industrialização recente. É como se a revolução industrial, a ciência, a<br />
tecnologia e as organizações humanas tivessem colocado nas mãos de determinadas pessoas um poder<br />
muito superior à sua capacidade crítica e de gerenciamento. Além disso, Gore mostra que as “dúvidas” a<br />
respeito de temas como os malefícios do tabaco e o efeito estufa têm sido, em grande parte, “plantadas”<br />
em órgãos de imprensa por grupos interessados em fazer as denúncias caírem em descrédito. Tal atitude,<br />
além de criminosa, é imoral. Revela um grau muito alto de egoísmo e ignorância.<br />
É sempre importante lembrar e divulgar que a biosfera é, na prática, um sistema fechado. Os<br />
ecossistemas insulares confi guram uma boa aproximação do que seja um sistema fechado. Paul<br />
Hawken relata, em seu The Ecology of Commerce (A ecologia do comércio) o caso da Ilha de São<br />
Mateus, no Mar de Bering. Em 1944 foram importados 29 veados e zootecnistas calcularam que as<br />
características fi siográfi cas da ilha permitiriam acomodar entre 5 e 7 veados por km 2 ou, seja, dada a<br />
área disponível, entre 1.600 e 2.300 animais. Em 1963 a população chegou a incríveis 6.000 cabeças,<br />
dada a inexistência de predadores. Não se pode abusar de um sistema fechado por tanto tempo,<br />
impunemente. O excesso de população levou a uma brutal destruição do habitat e a fome e a doença<br />
reduziram a população de veados para apenas 42 indivíduos em 1966. Voltando aos problemas que<br />
afl igem a humanidade e a renitência dos conservadores. “Deixar como está para ver como é que fi ca”<br />
é a pior das decisões. Ao fi nal, ninguém está a salvo das conseqüências. O sistema é fechado.<br />
A saúde da nossa própria espécie, a exemplo de tantas outras e dos próprios veados da Ilha<br />
de São Mateus, está deteriorando. O Dr. Samuel Epstein, autoridade mundial em etiologia e<br />
prevenção de câncer, afi rma que um em cada dois homens e uma em cada três mulheres que<br />
vivem nos dias de hoje já tem um encontro marcado com a doença neoplásica. Mais do que<br />
isso, afi rma que esta verdadeira “epidemia de câncer” é devida, em larga medida, à ação<br />
irresponsável de grandes corporações transnacionais de capital aberto, gigantescas, verdadeiros<br />
leviatãs, que detêm a maior parcela de poder de fato no mundo moderno.<br />
Joel Bakan publicou, em 2004, o livro The Corporation: the pathological pursuit of profi t<br />
and power (A Corporação: a busca patológica pelo lucro e pelo poder) e produziu, junto com<br />
Mark Achbar e Jennifer Abbott, o fi lme homônimo. Através de entrevistas e depoimentos de<br />
personalidades de expressão, de um amplo espectro ideológico, o autor mostra o passado,<br />
discute o presente e especula a respeito do futuro destas que são as instituições humanas mais<br />
poderosas sobre a Terra. Através das palavras e opiniões de baluartes da ortodoxia econômicofi<br />
nanceira mundial, como o Nobel de Economia Milton Friedman, recentemente falecido,<br />
e expoentes intelectuais engajados no combate aos efeitos daninhos da globalização e das<br />
35
36<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
organizações transnacionais, como Noam Chomski e Vandana Shiva, é possível delinear um<br />
quadro bastante claro do papel que as organizações em geral e as grandes corporações de capital<br />
aberto em particular podem desempenhar em todos os quadrantes da vida contemporânea.<br />
Uma constatação grave é que bem ou mal conduzidas essas organizações são máquinas<br />
externalizadoras. São desenhadas para maximizar receitas e minimizar custos, deixando, sempre<br />
que possível, custos ambientais e sociais de suas operações para serem pagos por terceiros. Por<br />
terceiros entenda-se a população em geral e sua parcela mais pobre em particular.<br />
Assim, da mesma forma que um tubarão foi desenhado e está de certa forma “otimizado”<br />
para predar no mar, as corporações transnacionais de capital aberto foram desenhadas para<br />
externalizar e maximizar a riqueza dos acionistas, predando no ambiente dos negócios.<br />
Problemas de saúde e segurança ocupacional, problemas ambientais têm sido provocados por<br />
estas externalizações. E tem sido tratado de forma independente. Dividir para reinar.<br />
O conceito de sustentabilidade teve o condão de aglutinar estas preocupações. O conceito<br />
decorreu de um processo evolutivo, parte do qual é comentado a seguir.<br />
A primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente foi realizada na cidade<br />
de Estocolmo em junho de 1972. Reuniu 1.200 representantes de 112 países e produziu um<br />
Plano de Ação para o Meio Ambiente. Constituiu-se em verdadeiro divisor de águas em assuntos<br />
ligados ao sistema global de produção e das relações do homem com o meio ambiente. Ali se<br />
argumentava que, para eliminar a ameaça prescrita, não bastaria limitar o crescimento das<br />
nações ora subdesenvolvidas. Era primordial que os países mais ricos se comprometessem em<br />
reduzir seu consumo de recursos e geração de poluição.<br />
Como mencionado, as organizações humanas, em especial as voltadas para a consecução do lucro,<br />
em especial as grandes organizações de ação transnacional, são uma presença onipresente no planeta,<br />
pelo menos desde a virada do século XIX para o século XX. Têm grande dose de responsabilidade e<br />
um importante papel a desempenhar no contexto da sustentabilidade e da sobrevivência de nossa<br />
espécie e da vida no planeta, pelo menos da maneira como as conhecemos.<br />
Ainda que seja possível identifi car alguns pioneiros anteriores à conferência de Estocolmo,<br />
a partir dela um número crescente de organizações, a maior parte organizações de vanguarda,<br />
em diferentes setores de atividade produtiva, começaram a incluir a variável ambiental em suas<br />
considerações, planejamento e políticas. Por outro lado, indivíduos e profi ssionais – religiosos,<br />
políticos, fi lósofos, economistas e a comunidade científi ca mundial – também manifestavam<br />
ciência a respeito da necessidade premente de um novo paradigma para o desenvolvimento.<br />
A consciência em relação à gravidade dos problemas ambientais veio aumentando e a<br />
Comissão Brundtland acabou por defi nir, em 1987, desenvolvimento sustentável como “o uso de<br />
recursos para o atendimento de necessidades de hoje sem impedir que gerações futuras possam<br />
ter acesso a estes recursos para atender suas necessidades”.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
Karl-Henrik Robèrt que, a exemplo da primeira-ministra sueca que emprestou seu nome à<br />
Comissão, dra. Grö Harlem Brundtland, é médico oncologista e, impressionado com a escalada<br />
do câncer, acabou por desenvolver um conjunto de princípios denominados The Natural Step<br />
(O Passo Natural).<br />
Para Robèrt, o problema com o modelo de realidade vigente, no qual a organização é<br />
considerada uma “máquina”, é que há graves pontos cegos sociais, ambientais e pessoais. Há<br />
dois processos centrais, na abordagem do TNS.<br />
O primeiro processo, de percepção da natureza insustentável da atual direção que a sociedade<br />
e os negócios estão tomando e da lógica da busca da sustentabilidade, e outro de compreensão<br />
das quatro condições sistêmicas para a sustentabilidade:<br />
1) não submeter a natureza ao aumento sistemático das concentrações de substâncias<br />
extraídas da crosta terrestre;<br />
2) não submeter a natureza ao aumento sistemático das concentrações de substâncias<br />
produzidas pela sociedade;<br />
3) não submeter a natureza à degradação por meios físicos; e<br />
4) nesta sociedade as necessidades das pessoas são atendidas em todos os lugares da Terra.<br />
Propõe também um método denominado back casting (retro-concepção), através do qual indivíduos<br />
e organizações podem planejar a mudança. Assim que a demanda da sociedade aumenta por aumento<br />
populacional e sofi sticação de hábitos de consumo, a disponibilidade de recursos recrudesce. O<br />
processo pode ser associado à visão em corte de um funil. À medida que o tempo passa, a margem<br />
de ação vai fi cando mais estreita e pode chegar a um ponto em que os recursos serão insufi cientes.<br />
37
38<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A idéia do back casting é planejar a partir de um determinado ponto no futuro e introduzir as<br />
mudanças necessárias de maneira a evitar um “choque” com a parede do funil em algum ponto<br />
de um futuro próximo.<br />
No início da década de 90, acontecimentos relevantes para o desenvolvimento da gestão<br />
ambiental no âmbito empresarial tiveram lugar. Alguns fl agrantemente reativos. Ocorreu a 2ª<br />
Conferência Mundial da Indústria sobre Gerenciamento Ambiental, em Roterdam, no ano de 1991.<br />
Resultou uma “Carta” com 15 princípios fundamentais para a gestão ambiental nas indústrias.<br />
Em 1992, vinte anos após a Conferência de Estocolmo, na cidade do Rio de Janeiro, teve<br />
lugar a segunda conferência da Organização das Nações Unidas - ONU sobre meio ambiente, a<br />
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.<br />
Nela emergiu um conceito mais sólido de desenvolvimento sustentável, incluindo a dimensão<br />
social de forma explícita na defi nição. Surgiu também um plano de sustentabilidade para o<br />
século XXI, formalizado no documento ofi cial desta conferência, conhecido como Agenda 21.<br />
Foram ali registradas explicitamente três dimensões sine qua non para o desenvolvimento<br />
sustentável: a econômica, a ambiental e a social.<br />
Este tripé, conhecido pela sua denominação em língua inglesa como o triple bottom line, tem<br />
norteado as ações de organizações em todo o mundo. Encontra-se parafraseado, por exemplo,<br />
no relatório de sustentabilidade da empresa petrolífera anglo-holandesa Shell como os 3 Ps -<br />
people, planet, profi t (pessoas, planeta, lucro).<br />
O pilar econômico representa a geração de riqueza pela sociedade através da exploração<br />
comedida e inteligente de meios de produção e de consumo duráveis. O ecológico é pertinente<br />
à conservação e ao adequado manejo dos recursos naturais. O social compete à eqüidade e à<br />
participação de todos os grupos sociais na construção e manutenção do equilíbrio do sistema,<br />
compartilhando direitos e responsabilidades.<br />
É essencial buscar o equilíbrio entre estas três dimensões. E, importante enfatizar, o homem<br />
moderno é um “animal econômico”, como diriam Mark London e Brian Kelly.<br />
Na prática, a dimensão ambiental está condicionada a considerações sociais . Em 1972, por<br />
exemplo, a declaração da primeira-ministra indiana, Indira Ghandi, reiterada pelo nosso ministro<br />
do Interior à época, general Costa Cavalcanti, de que a “pior forma de poluição é a da pobreza”,<br />
mostrou claramente que a visão predominante era a de que preocupações ambientais seriam um<br />
luxo que apenas os países avançados poderiam ter.<br />
Também na prática os interesses, a distribuição desigual de poder e infl uência e os<br />
paradigmas cristalizados fazem com que a dimensão econômico-fi nanceira se imponha como a<br />
mais “coerente” e importante.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
Da Rio-92 esperava-se que emergisse uma nova declaração de princípios e direitos sobre proteção<br />
ambiental e desenvolvimento sustentável, já recomendada pela Comissão Brundtland em 1987,<br />
que servisse de guia para todas as pessoas e nações. Esta Carta da Terra não se materializou por<br />
divergências relativas a seu conteúdo e, em seu lugar, foi aprovado um documento de certa forma<br />
menos assertivo, com 27 princípios, denominado Declaração de Princípios do Rio ou Declaração do<br />
Rio de Janeiro. Três anos depois, reuniram-se em Haia, em um seminário internacional, proponentes<br />
de uma Carta da Terra, onde se estabeleceram as necessidades, os elementos principais e a forma<br />
de elaboração da referida Carta. A versão atual do documento, com 16 princípios agrupados em<br />
quatro categorias (respeito e cuidado com a comunidade da vida, integridade ecológica, justiça<br />
social e econômica e democracia, não violência e paz) enfatiza a essencialidade de uma visão<br />
compartilhada e a adoção destes princípios como guia e referencial de avaliação da conduta de<br />
indivíduos, organizações, empresas, governos e instituições transnacionais.<br />
O documento exorta a humanidade a reunir esforços para a “proteção da vitalidade, diversidade e<br />
beleza da Terra”, nosso lar, como um dever sagrado. Tece considerações a respeito da situação global,<br />
que pode ser revertida, cujos padrões atuais de produção e consumo são injustos e desavisados,<br />
estão levando à devastação generalizada da biosfera e a um agravamento do fosso existente entre<br />
ricos e pobres. Os desafi os ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais que se apresentam<br />
formam um conjunto conexo e carece conceber e implementar soluções includentes.<br />
As resistências à Carta da Terra, bem como a outras iniciativas sustentáveis, podem ser aquilatadas<br />
pelos mais de dez anos necessários para se chegar a um texto-base passível de aprovação. Muitas outras<br />
iniciativas, podendo-se imaginar até que, dentre elas, algumas destinadas a tirar o vigor e diminuir a<br />
importância dos 16 princípios, tiveram lugar desde então. Vale mencionar algumas muito positivas. As<br />
8 Metas do Milênio, o Protocolo de Cartagena sobre a Biodiversidade, a Convenção Contra a Corrupção.<br />
O difícil avanço na última convenção sobre biodiversidade, marchas e contra-marchas na discussão e<br />
implementação da Agenda 21 Local, e a corrupção generalizada que se pode observar aqui e no mundo<br />
são provas cabais de que muito esforço ainda terá que ser empregado para a obtenção de resultados.<br />
Há uma postura discutível, que é a do “se se deseja resultados e não se pode enfrentá-los,<br />
que tal juntar-se a eles?” O capitalismo ortodoxo é renitente e só ouve aquilo que lhe chega<br />
aos ouvidos em seu próprio jargão. Ativistas como Paul Hawken, Amory Lovin e L. Hunter Lovins<br />
escreveram o texto Natural Capitalism (traduzido como Capitalismo natural pela Cultrix) 3 ,<br />
onde apresentam o que denominam quatro estratégias centrais do capitalismo natural. Estas<br />
estratégias têm tido aplicação prática em empresas de todo o mundo. Claro está que “uma<br />
andorinha não faz verão”, mas trata-se de um processo em curso. As estratégias são:<br />
1) Resource Productivity (Produtividade dos Recursos): buscar a produtividade máxima no<br />
uso dos recursos escassos do planeta, não desperdiçar;<br />
3 Além das quatro estratégias do “capitalismo natural”, apresentam o conceito de “capital natural” propriamente dito. Este seria o<br />
valor de todos os organismos e sistemas vivos que nos prestam serviços de despoluição atmosférica, limpeza da água, recuperação<br />
de solos e outros. Estes serviços, estima-se, valem, a cada ano, o equivalente a um “PIB Mundial”, algo na casa dos 40 trilhões de<br />
dólares, hoje. Se 40 milhões são o “juro” anual, o capital natural seria o “principal”, equivalente a, digamos, mais de dez vezes<br />
este valor, algo na casa de meio quatrilhão de dólares. Toda vez que se derruba mata nativa na Amazônia para plantar soja, está-se<br />
fazendo um saque no principal, não se está utilizando apenas o “juro”.<br />
39
40<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
2) Biomimicry (Biomimetismo): buscar inspiração nos organismos vivos e nos processos naturais;<br />
3) Service and Flow (economia de serviços e fl uxo): onde empresas deixam de vender<br />
produtos que logo se deterioram e passam a fabricar para si próprias e alugar para<br />
usuários fi nais. Se a empresa produzir um produto, por exemplo, uma geladeira, que<br />
quebre facilmente, estará “dando um tiro no próprio pé”. A empresa não poderia<br />
vender a geladeira, somente alugá-la;<br />
4) Investing in natural capital (Investir em capital natural): adotar uma abordagem que<br />
transcende a mera sustentabilidade e tenta ser restauradora.<br />
Há métodos antigos que podem ser úteis, como a prática de certifi cação de conformidade com<br />
normas de gestão ambiental e tecnologias promissoras sendo desenvolvidas ou aperfeiçoadas nas<br />
mais variadas indústrias, em especial na de geração de energia e no setor de transporte. Trens<br />
magnéticos, veículos híbridos que funcionam a combustível fóssil e eletricidade consomem menos e<br />
se enquadram na estratégia 1. Biocombustível-elétricos, veículos à célula de combustível (pilha de<br />
hidrogênio), geração eólica, fotovoltaicas etc., são iniciativas sustentáveis ou quase sustentáveis.<br />
Novos materiais e soluções biomiméticas trazem grandes oportunidades e esperanças, mesmo que<br />
o uso intensivo de tecnologia contradiga, em certo sentido, o pensamento de Einstein, que afi rmava<br />
ser impossível resolver um problema usando-se o mesmo sistema de referências que o criou.<br />
Se, por um lado, é verdade que a consciência a respeito dos graves problemas ambientais e<br />
sociais que vivemos cresce a cada dia, por outro a distância entre o que deve ser feito e o que<br />
efetivamente tem sido feito tem aumentado muito.<br />
Há muito ainda por fazer. Carece especular. Carece educar. Dada a premência dos fatos,<br />
talvez, em especial, talvez, talvez careça educar primeiro nossa classe política, nossa classe<br />
empresarial e nossos dirigentes.<br />
Ao refl etir sobre o tema da sustentabilidade me ocorre que talvez já tenhamos passado do “ponto<br />
de não-retorno”. Ratos, baratas e seres humanos são espécies bastante adaptáveis e, talvez, a nossa<br />
também possa escapar da extinção. De qualquer forma, o que não tem solução, resolvido está.<br />
Dagoberto Lorenzetti é doutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração<br />
e Contabilidade da Universidade de São <strong>Paulo</strong> – FEA/USP, mestre pela The Johns Hopkins<br />
University, pós-graduado em Engenharia Nuclear pelo convênio da Escola Politécnica da USP –<br />
<strong>Instituto</strong> de Estudos Avançados – EPUSP-IEA, pós-graduado em Análise de Sistemas pela Fundação<br />
Armando Álvares Penteado – FAAP e engenheiro pelo <strong>Instituto</strong> Tecnológico de Aeronáutica – ITA.<br />
É professor do POI (departamento de produção, operações em serviços e logística) da Escola de<br />
Administração de Empresas de São <strong>Paulo</strong>/Fundação Getúlio Vargas – EAESP/FGV.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, TRANSDISCIPLINA-<br />
RIDADE E ORGANIZAÇÃO EM REDES SOCIAIS OU UMA OUTRA ESCOLA É POSSÍVEL<br />
Valéria Viana Labrea<br />
A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer<br />
o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que<br />
experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e<br />
da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.<br />
Leonardo Boff<br />
A educação para a sustentabilidade contempla não somente aspectos relativos ao meio<br />
ambiente, como também aqueles produzidos pelo nosso modelo civilizatório: pobreza, habitação,<br />
saúde, segurança alimentar, geração e distribuição de renda, matriz energética, passando pelos<br />
debates da sociedade, como democracia, questões de gênero, direitos humanos e paz, resultando<br />
em um imperativo moral e ético, no qual o conhecimento tradicional e as diferentes culturas<br />
devem ser respeitados. Essa postura supõe a crítica aos atuais modelos de produção e consumo e<br />
às relações sociais e suas construções simbólicas, imaginárias e materiais.<br />
Educar para a sustentabilidade implica em formar e preparar cidadãos para a refl exão<br />
crítica e para uma ação social emancipatória e transformadora da sociedade e do sistema, de<br />
forma a tornar viável o desenvolvimento integral dos seres humanos, reconstruindo desejos e<br />
necessidades, estimulando a vida comunitária, processos autogestionários e descentralizados<br />
implicando integração de esforços e coordenação de setores fundamentais, rápidas e radicais<br />
mudanças de conduta e estilo de vida, bem como nos padrões de produção e consumo, impondo<br />
uma nova dinâmica nessa relação, pautada por uma nova consciência ecológica.<br />
A partir da Carta da Terra e seus princípios, entende-se sustentabilidade considerando seus<br />
diferentes aspectos, um tema portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar<br />
e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade,<br />
para todos (GADOTTI: 2003). Na perspectiva de educação, pensa-se hoje numa Pedagogia<br />
da Terra, uma pedagogia que inclui a necessária preocupação em inter-relacionar educação e<br />
sustentabilidade, a interdependência entre os seres, os valores para modifi carmos o sistema. A<br />
Carta da Ecopedagogia (1999) indica que a sustentabilidade deve ser transdisciplinar e a educação,<br />
o planejamento escolar, o projeto político-pedagógico devem ser reorganizados a partir desse novo<br />
paradigma e o trabalho da escola refl etir a preocupação com a formação de ecocidadãos.<br />
As escola precisa conhecer a realidade da comunidade onde está inserida, deve ser um<br />
espaço de diálogo, de abertura. O desenvolvimento de um processo educativo implica que se<br />
realize logo de início um reconhecimento, por parte do educador, da realidade em que vive<br />
41
42<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
o educando: seus desejos, interesses, sonhos e aspirações, porque a partir do momento que<br />
ele o conhece pode estabelecer os objetivos educacionais a serem alcançados, relacionando os<br />
conhecimentos formais às suas outras necessidades. Uma educação transformadora envolve não só<br />
uma visão ampla de mundo, como também a clareza da fi nalidade do ato educativo, uma posição<br />
política - uma determinada concepção de homem e de mundo - e uma competência técnica para<br />
implementar projetos a partir do aporte teórico formador do profi ssional competente.<br />
Educar para tornar possível mudanças desse porte requer uma nova abordagem, de caráter<br />
interdisciplinar, sustentada pelas informações e saberes acumulados, dispersos pelas diversas<br />
especialidades. Para que a educação para a sustentabilidade se efetive é necessário que<br />
conhecimentos e habilidades sejam incorporados e que atitudes sejam formadas a partir<br />
de valores éticos e de justiça social, pois são essas as atitudes que predispõe à ação. Cabe<br />
lembrar que consciência sem ação transformadora ajuda a manter a sociedade tal qual ela<br />
se encontra.<br />
Ao tentar incorporar no trabalho e na vida valores e saberes, estes são ressignifi cados e<br />
adquirem uma dimensão que torna possível transcender o senso comum e perceber o homem,<br />
no dizer de Leonardo Boff (2000), como um projeto infi nito. Um ser histórico, que se faz<br />
a cada minuto, superando interditos, aberto, em processo, incompleto, sempre à procura,<br />
nunca pronto. Nossa educação nunca acaba, estamos sempre aprendendo e ensinando e esse<br />
olhar criativo, desafi ador, que não se deixa enquadrar ou limitar é, sem dúvida, nossa melhor<br />
qualidade. Vamos, assim, alimentando nosso horizonte utópico, sonhando e realizando.<br />
Transdisciplinaridade<br />
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...<br />
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer<br />
Porque eu sou do tamanho do que vejo<br />
E não, do tamanho da minha altura...<br />
Alberto Caeiro<br />
A transdisciplinaridade é um esforço em articular saberes dispersos, diversos e adversos e<br />
ir além do enfoque estritamente disciplinar sem dispensar a contribuição específi ca de cada<br />
disciplina para o conhecimento. Tal superação requer uma postura essencialmente dialógica,<br />
tolerante, participativa e com pleno envolvimento, inserida no paradigma da complexidade<br />
porque simultaneamente separa e associa os conhecimentos, permitindo uma compreensão<br />
de outros níveis da realidade, sem os reduzir ou encapsular. Essa compreensão demanda a<br />
valorização da diversidade cultural, social e biológica, indicando para uma forma emergente de<br />
aprendizado, fundada na curiosidade do pensar, do experimentar, do criar e do ousar e para a<br />
humildade na aceitação das próprias defi ciências, a qual permite apreender e aprender com o<br />
olhar do outro, como nos ensina <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
E. Morin (2000) afi rma que a escola precisa se reorganizar e que essa reorganização não<br />
se refere simplesmente ao ato de ensinar, mas passa pelos defeitos que o sistema incorpora<br />
e passa a reproduzir. Um exemplo é o ensino de disciplinas separadas e sem comunicação<br />
entre si, o que acaba por produzir uma fragmentação e uma dispersão que nos impede de ver<br />
globalmente coisas que são importantes no mundo. Existem problemas centrais e fundamentais<br />
que permanecem completamente ignorados ou esquecidos e que são importantes para qualquer<br />
sociedade e qualquer cultura.<br />
Educar no caminho da cidadania planetária exige novas estratégias de fortalecimento<br />
da consciência crítica. Essa refl exão crítica deve gerar a práxis, isto é, ação-refl exão-ação;<br />
para preparar homens e mulheres para exigir direitos e cumprir deveres. <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, em<br />
Pedagogia do Oprimido (1992), complementa: o conhecimento mais crítico da realidade, que<br />
adquirimos através do seu desvelamento, não opera por si só a mudança da realidade... Ao<br />
desvelá-la, contudo, dá-se um passo para superá-la, desde que se engajem na luta política pela<br />
transformação das condições concretas em que se dá a opressão.<br />
A escola, ao se reorganizar, tem na transdisciplinaridade uma abordagem que permite<br />
fazer a conexão entre os saberes das disciplinas e os saberes que cada sujeito carrega<br />
consigo, contextualizando e mostrando, nas palavras de Morin (1997), que temos em nós<br />
mesmo tudo aquilo que a escola quer separar e que o papel de cada indivíduo só se explica<br />
em relação ao outro.<br />
Rede<br />
Cada ser humano recebe a anunciação e,<br />
grávido de alma, leva a mão à garganta, em susto e angústia.<br />
Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida,<br />
a anunciação de que há uma missão a cumprir.<br />
A missão não é leve:<br />
cada homem é responsável pelo mundo inteiro.<br />
Clarice Lispector<br />
A organização em rede é baseada em princípios democráticos, inclusivos, emancipadores e<br />
que buscam a sustentabilidade. Trabalhamos com um conceito de rede que seja fundamentado<br />
em práticas e princípios democráticos, emancipatórios do ponto de vista político, inclusivos do<br />
ponto de vista social, sustentáveis do ponto de vista ambiental, abertos e polissêmicos do ponto<br />
de vista cultural. Criando conexões abre-se à nossa frente um enorme horizonte de possibilidades.<br />
Podem ser parcerias, trocas, amizades, afetos, novos valores e formas de convivência, criação<br />
de conhecimentos, aprendizados, apoios, diálogos, participação, mobilização, força política,<br />
conquistas e muito mais. A rede se apresenta como um projeto deliberado de organização da<br />
ação humana.<br />
43
44<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A primeira e mais óbvia propriedade de qualquer rede é a sua não-linearidade – ela se estendem<br />
em todas as direções, são sistemas descentrados por defi nição, com capacidade de autoorganização<br />
e de operar sem hierarquia. Uma pré-condição da rede é a participação voluntária<br />
(MARTINHO: 2003). Aqui reside uma das razões mais simples da capacidade da rede de trabalhar<br />
sem hierarquia: pessoas participam da rede quando querem e porque assim o desejam. Elas não<br />
são obrigadas a fazê-lo; decidem compartilhar do projeto coletivo da rede porque acreditam<br />
e investem nele. O trabalho em rede depende, a todo momento, da ação autônoma de cada<br />
um. Em suma, depende de participação ativa, sem a qual nenhuma iniciativa vai adiante. A<br />
preservação da autonomia orienta o funcionamento e os relacionamentos no âmbito da rede.<br />
Como decorrência, na medida em que os integrantes da rede são diferentes entre si, outro<br />
fundamento básico do modo horizontal de operação é o respeito à diferença. Ser autônomo quer<br />
dizer ser diferente, ter modos diferenciados de agir, pensar e existir. Autonomia e diferença são<br />
as duas faces de uma mesma concepção.<br />
Uma rede surge no momento em que um grupo identifi ca entre si uma “capacidade de projeto<br />
comum”. Foi assim no projeto: uma descoberta espontânea no âmbito de dinâmicas coletivas<br />
de participação. Um desdobramento lógico da construção do projeto da rede é também uma<br />
pactuação sobre os princípios e valores orientadores da ação. Tais princípios e valores devem<br />
incorporar aqueles que fundamentam a prática das redes, tais como a cooperação, a democracia,<br />
a ausência de hierarquia, a isonomia, a desconcentração de poder, a multiliderança, o respeito<br />
à autonomia, o respeito à diferença.<br />
Tecendo as relações<br />
Por que, para que e, a mais importante, para quem,<br />
são as três perguntas fundamentais que deveríamos fazer<br />
ao primeiro-ministro, ao professor, ao pai, ao fi lho,<br />
quase a propósito de tudo o que ocorre.<br />
O problema é que isso dá um pouco de trabalho.<br />
José Saramago<br />
A idéia principal ao articular a ecopedagogia, a transdisciplinaridade e a organização em redes<br />
é propor uma mudança na fi sionomia da escola. Vale dizer, entender a sustentabilidade como<br />
o novo padrão civilizacional e a partir dessa compreensão fundar um outro espaço educativo<br />
onde se realize a autogestão, as responsabilidades sejam compartilhadas, os saberes sejam<br />
construídos a partir de um diálogo entre a academia a os saberes populares, onde são considerados<br />
os desejos da comunidade escolar, enfatizando as interconexões e interdependências como<br />
processos sistêmicos, mantendo a historicidade e as contradições e confl itos que permeiam os<br />
acontecimentos A escola, nessa perspectiva, passa a ser um pólo irradiador de conhecimento<br />
para toda a comunidade que ali se vê refl etida e fortalecida. A organização em redes, aliada ao<br />
pensamento complexo, permite que as pessoas se agreguem em função de desejos e aptidões.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
Entendo que não exista uma fórmula a ser seguida, que a tendência a homogeneizar uma<br />
prática é nociva e impede o pensamento crítico. Somente exercitando uma prática diferente do<br />
formato atual, onde essas dimensões sejam contempladas, que cada escola pode desenvolver<br />
o seu projeto, único, ideal para sua comunidade, é que a escola vai encontrar o seu caminho.<br />
O importante é haver essa refl exão e uma abertura ao desconhecido, a curiosidade, tentar<br />
estabelecer relações, selecionar o que interessa do que nem tanto, hierarquizar e priorizar áreas<br />
e ações, articulando o que está dissociado e distinguido e de distinguir o que está indissociado.<br />
Uma outra escola é possível, urgente e necessária. Essa utopia crítica, articulada e comprometida<br />
com um outro modelo civilizatório, é transformadora e a base da nova cidadania planetária.<br />
Valéria Viana Labrea é educadora, coordenadora do Núcleo de Amigos da Infância e Adolecência<br />
– NAIA, entidade fi liada à Carta da Terra Internacional, no qual foi responsável pelo FórumZINHO<br />
Social Mundial, Encontro Vivemos Juntos – Conhecer e Viver a Carta da Terra. Desenvolve ofi cinas<br />
e projetos socioambientais, tendo como marco pedagógico a Carta da Terra e a ecopedagogia.<br />
Organizou a Carta da Terra para Crianças, disponível no site www.forumzinho.org.br e www.<br />
cartadaterra.com.br<br />
Referências<br />
ALVES, Rubem in: BRANDÃO, Carlos R. (org.). O educador: vida e morte – escritos sobre uma<br />
espécie em perigo. São <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1982.<br />
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São <strong>Paulo</strong>: Martins Fontes, 2003.<br />
FREIRE, <strong>Paulo</strong>. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.<br />
FREIRE, <strong>Paulo</strong>. Pedagogia da autonomia. São <strong>Paulo</strong>: Paz e Terra, 1996.<br />
GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido. Novo Hamburgo:<br />
Feevale, 2003.<br />
MARTINHO, Cássio. Redes, uma introdução às dinâmicas da conectividade e da autoorganização.<br />
Brasília: WWF, 2003.<br />
MORIN, Edgar. Entrevista à revista Thot, da Associação Palas Athena, nº. 66, São <strong>Paulo</strong>, agosto<br />
de 1997.<br />
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São <strong>Paulo</strong>: Cortez; Brasília:<br />
Unesco, 2000.<br />
45
46<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
HISTÓRIA ORAL – UMA ESTRATÉGIA A SER UTILIZADA NO DESENVOLVIMENTO DE<br />
PROJETOS EDUCACIONAIS<br />
Meire Terezinha Muller<br />
Até os anos fi nais do século XIX, o estudo da História tinha um enfoque eminentemente político,<br />
sendo considerados “históricos” apenas os documentos concretos – escritos e imagéticos 4 . Os<br />
historiadores pertenciam às elites, às classes que governavam e que voltavam, evidentemente,<br />
seu interesse para o registro relativo às lutas pelo poder. Não mereciam atenção os problemas<br />
e a vida das pessoas comuns, dos trabalhadores, das mulheres, a não ser em tempos de crise ou<br />
quando algum evento especialmente inoportuno os envolvesse.<br />
Mesmo que alguém quisesse escrever sobre esses anônimos das classes populares, teria<br />
encontrado muita difi culdade, pois os documentos não eram preservados ou, caso fossem,<br />
tinham acesso restrito, perdidos ou guardados em gavetas e arquivos mal conservados, quase<br />
sempre sem catalogação. Os registros de nascimento, casamento, históricos escolares, jornais,<br />
atas de reuniões, diários de bordo, de viagens e conquistas, dentre outros, eram produzidos<br />
pelos indivíduos letrados e representavam exclusivamente as classes dominantes. Quanto mais<br />
um documento fosse pessoal, menor o interesse nele despertado, menor a possibilidade de que<br />
continuasse a existir. Por outro lado, os papéis tidos como “ofi ciais” permaneceram, fazendo<br />
com que, nas palavras de Thompson (1992), a estrutura de poder funcionasse “como um grande<br />
gravador, que modelava o passado à sua própria imagem”.<br />
Nesse universo, seria impensável o aproveitamento, como fonte de saber acadêmico, de<br />
dados colhidos através da oralidade, de entrevistas e de conversas com pessoas comuns sobre<br />
sua experiência de vida. As poucas biografi as até então existentes, na maioria sobre a vida<br />
dos reis ou dos santos, interessavam aos leitores apenas do ponto de vista literário e fi ccional,<br />
sem lhes ser atribuído valor histórico algum. Mas como separar ou ignorar a ligação, os elos<br />
indissolúveis entre memória e história?<br />
Para alguns estudiosos, a memória não pode ser assim desprezada, já que a oralidade antecede<br />
a escrita, sendo uma forma de preservação da história muito mais antiga que esta. Desde tempos<br />
imemoriais, e ainda em nossos dias, existem povos sem um sistema de linguagem escrita, porém<br />
com uma grande riqueza cultural, transmitida oralmente de geração a geração, através do<br />
tempo, constituindo o que há de mais autêntico dentro daquele determinado grupo social: sua<br />
4 Entendendo-se, aí, as fotografi as, fi lmes, iconografi a, cartografi a e outras formas de preservação física da memória e de fatos.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
memória e sua história. Mesmo na pré-história, acredita-se que pinturas rupestres tenham sido<br />
feitas a partir de relatos de caçadas e de situações vivenciadas por membros do grupo.<br />
Quando o homem das cavernas deixou nas paredes desta fi guras que se supõe formarem<br />
um sentido, estava transmitindo um conhecimento que possuía e que talvez já tivesse<br />
recebido um nome, estando já designado por palavra. O fruto de suas descobertas estava<br />
assim concretizado e passava aos demais, inclusive aos pósteros (QUEIROZ, 1998).<br />
Assim, nos parece que a História Oral pode contribuir para o desenvolvimento de projetos no<br />
Ensino Fundamental, sejam eles de que área forem, levando-se em consideração a estratégia de<br />
ouvir, recuperar, analisar e compilar dados que, por motivos vários, não existem em outro suporte.<br />
No desenvolvimento do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN, essa metodologia<br />
foi aplicada às atividades do Diagnóstico Vivo para o “levantamento da situação socioambiental<br />
local segundo percepção da coletividade e o percurso histórico que contribuiu para confi gurar a<br />
situação atual” (PJCAN – Metodologia).<br />
Na Grécia Antiga, acreditava-se que a memória fosse pré-condição para o pensamento<br />
humano. No mundo mitológico grego, Mnemósine, a deusa da memória universal, teria gerado<br />
nove musas encarregadas de preservar os poderes criadores da mente: Clio (História), Euterpe<br />
(Música), Tália (Comédia), Melpômene (Tragédia), Terpsícore (Dança), Hérato (poesia lírica e<br />
erótica), Polimnia (Oratória), Urânia (Astronomia e Ciências Exatas) e Calíope (Poesia Heróica<br />
ou Épica). Para os gregos, Mnemósine era a única deusa que poderia contestar Cronos (o Tempo),<br />
ao preservar a matéria sobre a qual reina: a memória. Para o homem grego, só os mortais<br />
tinham necessidade de recorrer a Mnemósine, já que os deuses, por serem imortais, viviam num<br />
continuum que abrangia em si o passado, o presente e o futuro, realizados indefi nidamente num<br />
só tempo. Como forma de se apropriarem dessa circularidade imortal, os homens buscavam<br />
recuperar continuamente o passado para que este se perpetuasse no presente e se estendesse<br />
ao futuro, aproximando-os da imortalidade e afastando a idéia do fi m – da morte.<br />
Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo,<br />
localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega, ela era vidência e êxtase. O<br />
passado revelado desse modo não é o antecedente do presente: é a sua fonte (BOSI, 1995).<br />
Para estabelecer uma relação entre memória e história, voltamo-nos novamente para a<br />
Grécia, já que é aí que encontramos o primeiro esforço considerado consciente de se proceder<br />
à história como exercício reconstitutivo, por meio do registro de narrativas épicas.<br />
Muito antes do surgimento da escrita, o relato oral constituiu-se na maior fonte<br />
humana de conservação do saber, sendo que a educação, através dos séculos, baseouse<br />
principalmente na narrativa. Grandes obras hoje apresentadas em suporte escrito,<br />
como a Odisséia e a Ilíada (de Homero) e Eneida (Virgílio), foram transmitidas oralmente<br />
através das gerações até serem escritas muito tempo depois (QUEIROZ, 1998).<br />
47
48<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Nos povos ágrafos, a memória é transmitida através de suas lendas, poemas, mitos e<br />
rituais, servindo para manter a própria estrutura grupal e preservar sua cultura, que depende<br />
exclusivamente do quanto conseguem transmitir às gerações vindouras para sobreviver como<br />
grupo social. Como não dispõem de registros “físicos” – escritos – para cristalizar os feitos<br />
transmitidos às futuras gerações, os indivíduos dessas sociedades não se preocupam em<br />
“conferir” ou “buscar provas” de veracidade dos fatos narrados. O que atesta a legitimidade<br />
e credibilidade das narrativas é a permanência do saber nela contido. Ao transmitir suas<br />
informações, o indivíduo seleciona ou omite dados, e essa seletividade ou omissão tem o seu<br />
signifi cado. A cada nova geração, a transmissão vai sendo enriquecida com a versão do então<br />
narrador, infl uenciado pelos fatos ocorridos no seu próprio tempo de vida, com sua visão subjetiva<br />
sobre os acontecimentos. A narrativa passa a ser uma composição social, representativa da<br />
coletividade que a mantém ao longo dos anos.<br />
Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em<br />
conservar o narrado que deve poder ser reproduzido. A memória é faculdade épica<br />
por excelência. Não se pode perder, nos desertos do tempo, uma só gota da água<br />
irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. A história<br />
deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fi os se cruzem,<br />
prolongando o original, puxados por outros dedos (BOSI, 1995).<br />
Em sociedades sem escrita, evidentemente o poder fi ca associado ao saber e à capacidade<br />
de lembrar. Normalmente os mais idosos são os guardiães dos saberes da comunidade, uma vez<br />
que, tendo vivido muito, podem apropriar-se dos conhecimento de várias gerações. Isso não<br />
signifi ca que a função cabe apenas a eles pois, sendo idosos, por outro lado, resta-lhes pouco<br />
tempo de vida para transmitir aos demais. Assim, toda a comunidade é responsável por ouvir,<br />
saber, lembrar para, depois, transmitir.<br />
O surgimento da escrita 5 constituiu-se num avanço tecnológico sem precedentes. A partir<br />
dela, houve a possibilidade de se concretizar o saber, guardá-lo e dele se valer, legando-o aos<br />
descendentes. A escrita possibilita a materialização do presente, para ser consultado no futuro,<br />
oferecendo às novas gerações os dados e informações relativos ao grupo do qual se faz parte.<br />
Esses dados, guardados de forma concreta pelos documentos escritos, vão atestar e comprovar<br />
a existência do passado. Porém, até o advento da imprensa, era restrita a alguns poucos eleitos:<br />
a elite, que passou a registrar a sua história, a sua vida e a sua verdade.<br />
Na Idade Média, a utilização da escrita restringia-se principalmente ao clero, havendo os “copistas”<br />
que transcreviam os textos sagrados para serem lidos apenas por outros clérigos, uma vez que o<br />
povo, na grande maioria, continuava ou iletrado ou sem acesso ao material escrito. Para gravar de<br />
maneira concreta os ensinamentos religiosos ao povo, a Igreja valia-se de elementos pictóricos, de<br />
modo a fi xar as narrativas bíblicas através de vitrais, afrescos, iluminuras, esculturas etc.<br />
5 Segundo a Enciclopédia da Folha, a escrita alfabética é atribuída aos fenícios e teria aparecido em 1700 a.C. Entre os sumérios,<br />
havia já em 3400 a.C. um sistema de escrita a partir de pictogramas.
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
A arte da memória, tal como foi praticada no mundo antigo, era uma arte pictórica,<br />
enfocando imagens de preferência a palavras. Ela tratava a visão como primária.<br />
Punha o visual em primeiro plano. Sinais externos eram necessários se as memórias<br />
deviam ser retidas e recuperadas. A primazia do visual foi ainda mais evidente na Idade<br />
Média, quando as imagens eram sistematicamente mobilizadas (SAMUEL, 1997).<br />
Nesse período, a oralidade ainda era extremamente útil na transmissão de conhecimentos.<br />
Trovadores e jograis percorriam os castelos e povoados medievais apresentando suas “cantigas”-<br />
poesias cantadas exaustivamente, com a fi nalidade de levar os ouvintes a decorarem as letras,<br />
divulgando-as. Há registros escritos das cantigas, mas muito posteriores à sua composição.<br />
No Renascimento, o advento da imprensa, criada por Gutemberg por volta de 1442, deu<br />
início à “memória do papel” 6 , em que os fatos, para serem considerados verdadeiros e críveis<br />
têm que constar, por escrito, em algum documento. Estes passaram a ser vistos como objetos<br />
de culto, sendo-lhes imputada a capacidade de preservar a verdade, agora acessível a grande<br />
número de pessoas. Com a escrita, a memória que passa a ter importância é aquela anotada.<br />
Antes de seu surgimento (imprensa), os registros escritos eram produzidos artesanal e<br />
artisticamente e, naturalmente, em pequeno número. Com a imprensa, a elaboração de<br />
manuscritos enquanto produção artística diminui sensivelmente, passando a restringirse<br />
a pequenos círculos de erudição. A multiplicação do número de documentos escritos<br />
faz com que seja humanamente impossível a sua apreensão constante e imediata. O<br />
homem, a partir desse momento, não consegue mais fazer de sua mente o repositório<br />
de seu passado, tanto individual quanto coletivo (BRITO, 1989).<br />
Diante da impossibilidade de assimilação de tamanho número de novas informações, a arte da<br />
memória declina inexoravelmente e tudo o que não for escrito vai cair no descrédito enquanto<br />
fonte de preservação da memória. Os iletrados começaram a ser discriminados e excluídos, como<br />
se suas lembranças não fossem reais nem historicamente importantes, por não constarem de<br />
documentos escritos. Os relatos orais foram então relegados à categoria de folclore ou lendas.<br />
Para Raphael Samuel, em seu Theatres of Memory (1997), a memória é muito mais que<br />
simples receptáculo de lembranças do passado armazenadas; é, ao contrário, uma força<br />
ativa, dinâmica, que se altera ao longo do tempo, infl uenciada pelos acontecimentos pelos<br />
quais se desloca.<br />
Ela porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido.<br />
Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória<br />
é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece<br />
permanecer igual (SAMUEL, 1997).<br />
6 Cf. Leibniz, fi lósofo e matemático alemão do século XVIII.<br />
49
50<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Marc Bloch e Lucien Febvre revolucionaram o conceito sobre os documentos históricos, no<br />
fi nal do século XIX, ao afi rmar que estes, tidos como “verdadeiros” e “reais” foram produzidos<br />
a partir da subjetividade e parcialidade de seu gerador 7 . O que eles defendiam é que esses<br />
documentos “relatam” a verdade, em especial, de um indivíduo, refl etindo seu lugar na<br />
sociedade à qual pertence e, por isso, devem ser lidos sob nova ótica, percebendo os objetivos<br />
do gerador, sua subjetividade, o implícito. A historiografi a passou, então, a valorizar não apenas<br />
documentos escritos, mas toda manifestação humana, incluindo, aí, a memória, que havia<br />
carregado por anos o rótulo de forma pouco segura e confi ável de preservação da história<br />
e dos conhecimentos adquiridos. Sob este novo olhar, à falta de documentos escritos sobre<br />
determinados assuntos, há como criá-los, buscando relatos da experiência pessoal, da vida de<br />
pessoas comuns, utilizando-se daquilo que se convencionou chamar de “história oral”.<br />
A partir da década de 60, surgiram muitas instituições e pesquisadores preocupados em<br />
resgatar a importância dos relatos orais, revalorizando a memória como forma legítima de se<br />
entender a história, dando voz e vez aos esquecidos (idosos, iletrados e moradores da periferia<br />
das grandes cidades, por exemplo). Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1998).<br />
História Oral é termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de<br />
fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer<br />
completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiência<br />
de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste<br />
último caso, busca-se uma convergência de relatos sobre o mesmo acontecimento<br />
ou sobre um período de tempo. A história oral pode captar a experiência efetiva<br />
dos narradores, mas também recolhe destes tradições e mitos, narrativas de fi cção,<br />
crenças existentes no grupo, assim como relatos que contadores de história, poetas,<br />
cantadores inventam num momento dado. Na verdade tudo quanto se narra oralmente<br />
é história, seja história de alguém, seja história de um grupo, seja história real, seja<br />
ela mítica (QUEIROZ, 1998).<br />
Portanto, atividades com história oral, quando desenvolvidas em escolas, são extremamente<br />
interessantes e, se bem preparadas e com objetivos vem defi nidos, podem surpreender pelos<br />
resultados 8 .<br />
A técnica, relativamente simples, requer o levantamento dos critérios para escolha dos<br />
entrevistados. Normalmente orientam-se as crianças para optar por pessoas que possam contribuir<br />
com o trabalho que se pretende realizar, ou por terem participado de eventos considerados<br />
relevantes ao processo ou, mesmo, pela idade (acima de uma faixa etária estabelecida pelo<br />
grupo). Preferencialmente é interessante que disponham de um gravador, através do qual<br />
7 Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram, em 1929, a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, que deu origem ao que se<br />
convencionou chamar de Escola dos Annales.<br />
8 THOMPSON, Paul dedica todo seu livro A Voz do Passado: História Oral a analisar e sugerir atividades com História Oral para<br />
crianças de Ensino Fundamental
Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />
possam gravar toda a conversa. As perguntas não precisam ser duramente seguidas, como num<br />
processo investigatório, devendo apenas servir como um roteiro para uma conversa tranqüila,<br />
descontraída e o mais informal possível, que possa levar às respostas. Ao fi nal da entrevista,<br />
pode-se perguntar se o depoente tem fotos ou documentos relativos ao assunto em questão,<br />
que enriquecerão e complementarão o depoimento e o resultado do trabalho. Toda entrevista<br />
deve ser transcrita, literalmente, para posterior análise e tratamento de dados.<br />
Importante frisar que toda atividade com história oral pressupõe uma devolutiva aos<br />
envolvidos, ou seja, os depoentes devem assinar um termo concordando que sua entrevista<br />
seja utilizada e, mais importante, devem ser convidados para ver o resultado fi nal em que<br />
sua participação foi aproveitada. Essa devolutiva pode ser feita através da participação dos<br />
envolvidos no resultado do trabalho que ajudaram a construir, e que pode se expressar através<br />
de uma exposição, de um livro, de uma peça de teatro, um sarau, uma apresentação de canto,<br />
um fi lme ou qualquer outra forma que a professora defi na previamente com os alunos.<br />
Do ponto de vista pedagógico, a história oral propicia o desenvolvimento de uma série de<br />
habilidades. Os envolvidos são levados, por exemplo, a desenvolver interesse por pesquisas.<br />
Na maioria das vezes, assim que defi nem o tema e começam a entrevistar os depoentes, as<br />
crianças sentem uma tendência natural a conhecer melhor o assunto pesquisado, buscando mais<br />
informações nas bibliotecas ou diferentes fontes. Outro aspecto incrementado em atividades<br />
de história oral são as habilidades lingüísticas, tanto em relação à fala quanto à escrita. Para<br />
conversar e, depois, transcrever, os entrevistadores interagem num processo de comunicação<br />
muito rico, uma vez que o vocabulário, as expressões, as gírias e o próprio registro lingüísticos<br />
são bastante diversos, pela própria diferença de idade e de vivência entre os interlocutores.<br />
Há também o desenvolvimento de habilidades técnicas no manejo dos instrumentos necessários<br />
à coleta de dados, como o gravador, atualmente substituído por pequeníssimos aparelhos de<br />
MP3, e o computador para a transcrição, todos eles desejáveis mas não imprescindíveis.<br />
Porém, o principal incremento nas habilidades adquiridas pelos envolvidos se dá no âmbito<br />
das relações humanas, sociais e no desenvolvimento da auto-estima: o entrevistador aprenderá<br />
a ter paciência ao ouvir, dando importância ao narrador, valorizando sua história de vida e<br />
respeitando o indivíduo idoso e seu conhecimento pessoal. Além disso, como o sucesso do<br />
trabalho dependerá da cooperação entre os colegas do grupo, a capacidade de trabalhar em<br />
equipe será também propiciada.<br />
Meire Terezinha Muller é doutoranda em História da Educação – FE Unicamp e diretora do<br />
Campus Paulínia da Universidade São Marcos. Foi secretária municipal de Educação de Paulínia<br />
no período 1997–2000.<br />
51
52<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Referências<br />
AVANZI, Maria Rita, GODOI, Elisandra G. e COSTA-PINTO, Alessandra B. Projeto Jovem Cidadão<br />
Amigo da Natureza: Proposta metodológica. <strong>Instituto</strong> BioMA, 2005.<br />
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São <strong>Paulo</strong>: Editora Companhia das<br />
Letras, 7ª edição, 1995.<br />
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Volume I, Petrópolis: Ed. Vozes, 1997<br />
BRIOSCHI, Lucila Reis e TRIGO, Maria Helena Bueno. Família, representações e cotidiano:<br />
refl exão sobre um trabalho de campo. São <strong>Paulo</strong>: CERU, 1989.<br />
BRITO, Marilza Elizardo. Memória e Cultura. Rio de Janeiro: Centro de Memória da Eletricidade<br />
no Brasil, 1989.<br />
FERNANDES, Florestan e GATTAS, Ramzia. A história de vida na investigação sociológica: a seleção<br />
dos sujeitos e suas implicações.<br />
KENSKI, Vani Moreira. Memória e prática docente. Coleção SEMINÁRIOS.<br />
LANG, Alice B.S. Gordo e CAMPOS, Maria C.S. Souza, DEMARTINI, Zeila de B. Fabri. História Oral<br />
e Pesquisa Sociológica: a experiência do Ceru. São <strong>Paulo</strong>: Humanitas Publicações.<br />
MENESES, Adélia Bezerra de. Memória, Matéria de Mimese – Caderno “Seminários”.<br />
PARK, Margareth Brandini. Memória, educação e cidadania: tecendo o cotidiano de creches<br />
e pré-escolas em Itupeva. Campinas: CMU/UNICAMP, 1996.<br />
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: do indizível ao dizível, in SIMSON, Olga R. de<br />
Moraes Von (Org). Experimentos com Histórias de vida: Itália-Brasil. São <strong>Paulo</strong>: Vértice, 1988.<br />
ROCHA, Ana Luiza Carvalho da Rocha e ECKERT, Cornélia. O desterro das lembranças: memória,<br />
narrativa e as histórias do mundo. XXIII Encontro Anual da ANPOCS.<br />
SAMUEL, Raphael. Teatros de Memória. Trad. RIBEIRO, Maria Therezinha Janini e MALUF, Vera<br />
Helena Prado. São <strong>Paulo</strong>: PUC-SÃO PAULO, 1997.<br />
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.
Histó
Histó<br />
Parte 3 – Histórias de ensinar:<br />
a Carta da Terra<br />
UM ETHOS PARA SALVAR A TERRA<br />
Leonardo Boff<br />
Entre os muitos ensaios sobre ética mundial, ressalta por sua abrangência, alcance e beleza<br />
aquele proposto pela Carta da Terra. Esta representa a cristalização bem sucedida da nova<br />
consciência ecológica e planetária, fundadora de um novo n paradigma civilizatório.<br />
A Carta da Terra, cujo surgimento e signifi cado relataremos logo a seguir, parte de uma visão ética<br />
integradora e holística. Considera as interdependências entre pobreza, degradação ambiental,<br />
injustiça social, confl itos étnicos, paz, democracia, ética e crise espiritual. Ela representa um<br />
grito de urgência face às ameaças que pesam sobre a biosfera e o projeto planetário humano e<br />
também um libelo em favor da esperança e de um futuro comum da Terra e da Humanidade.<br />
Seus formuladores dizem-no claramente:<br />
A Carta da Terra está concebida como uma declaração de princípios éticos fundamentais<br />
e como um roteiro prático de signifi cado duradouro, amplamente compartido por<br />
todos os povos. De forma similar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das<br />
Nações Unidas, a Carta da Terra será utilizada como um código universal de conduta<br />
para guiar os povos e as nações na direção de um futuro sustentável (La Carta de la<br />
Tierra. Valores y principios para un futuro sostenible, Secretaria Internacional del<br />
Proyecto Carta de la Tierra, San José, Costa Rica, 1999, 12).<br />
O processo de elaboração da Carta da Terra<br />
O texto da Carta da Terra madurou durante muitos anos a partir de uma ampla discussão em<br />
nível mundial.<br />
Um nicho de pensamento se encontra no seio da ONU. Criada em l945, se propunha como tarefa<br />
fundamental a segurança mundial sustentada por três pólos principais: os direitos humanos, a paz
56<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
e o desenvolvimento sócio-econômico. Não se fazia ainda nenhuma menção à questão ecológica.<br />
Esta irrompeu estrepitosamente em l972 com o Clube de Roma, o primeiro grande balanço sobre<br />
a situação da Terra, que denunciava a forma destrutiva dos meios de produção e propunha como<br />
terapia limites ao crescimento. Nesse mesmo ano a ONU organizou o primeiro grande encontro<br />
mundial sobre o meio-ambiente em Estocolmo, na Suécia. Aí surgiu a consciência de que o meioambiente<br />
deve constituir a preocupação central da humanidade e o contexto concreto de todos<br />
os problemas. Inarredavelmente o futuro da Terra e da humanidade depende das condições<br />
ambientais e ecológicas propícias à vida. Impõe-se desenvolver valores e propor princípios que<br />
garantam um equilíbrio ecológico, capaz de manter e fazer desenvolver a vida.<br />
Em 1982, na seqüência desta preocupação ecológica, publicou-se a Carta Mundial para a<br />
Natureza. Em 1987, a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Comissão<br />
Brundtland) propunha o motto que continua fazendo fortuna até os dias de hoje, o “desenvolvimento<br />
sustentável”. Sugeria, outrossim, uma Carta da Terra que regulasse as relações entre<br />
esses dois campos, o meio ambiente e o desenvolvimento.<br />
Em 1992 por ocasião da Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, foi proposta uma Carta da<br />
Terra que havia sido discutida em nível mundial por organizações não governamentais, por grupos<br />
comprometidos e científi cos, bem como por governos nacionais. Ela deveria funcionar como o<br />
cimento ético a conferir coerência e unidade a todos os projetos dessa importante reunião. Mas<br />
não houve consenso entre os governos, seja porque o próprio texto não estava sufi cientemente<br />
maduro, seja porque faltava o sufi ciente estado de consciência por parte dos participantes da<br />
Cúpula da Terra que permitisse acolher uma Carta da Terra. Em seu lugar adotou-se a Declaração<br />
do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Tal rejeição provocou grande frustração nos<br />
meios mais conscientes e comprometidos com o futuro ecológico da Terra e da Humanidade.<br />
Surgiu, então, o segundo e decisivo nicho de pensamento e criação: duas organizações<br />
internacionais não governamentais, a saber, a Cruz Verde Internacional e o Conselho da Terra,<br />
com o apoio do governo holandês. Estas duas entidades assumiram o desafi o de buscar formas<br />
para se chegar a uma Carta da Terra.<br />
Em 1995 co-patrocinaram um encontro em Haia, na Holanda, onde 60 representantes das<br />
mais diversas áreas, junto com outros interessados, criaram a Comissão da Carta da Terra, com<br />
o propósito de organizar uma consulta mundial durante dois anos, ao fi m dos quais dever-se-ia<br />
chegar a um esboço de Carta da Terra.<br />
Ao mesmo tempo, foram recopilados os princípios e os instrumentos existentes de direito<br />
internacional, identifi cáveis na vasta documentação ofi cial sobre questões ecológicas. O<br />
resultado foi a confecção de um informe com o título Princípios de Conservação Ambiental e<br />
Desenvolvimento Sustentado: Resumo e Reconhecimento.<br />
Em 1997, criou-se a Comissão da Carta da Terra, composta por 23 personalidades mundiais,<br />
oriundas de todos os continentes, para acompanhar o processo de consulta e redigir um primeiro
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
esboço do documento, sob a coordenação de Maurice Strong (do Canadá e coordenador geral da<br />
Cúpula da Terra, Rio-92) e Mikhail Gorbachev (da Rússia, presidente da Cruz Verde Internacional).<br />
Em março de 1997, durante o Fórum Rio+5, a Comissão apresentou um primeiro esboço da Carta<br />
da Terra. Os anos de 1998 e 1999 foram de ampla discussão em todos os continentes e em todos<br />
os níveis (desde escolas primárias, comunidades de base até centros de pesquisa e ministérios de<br />
Educação) sobre a Carta da Terra. Cerca de 46 países e mais de 100 mil pessoas foram envolvidas.<br />
Muitos projetos de Carta da Terra foram propostos. Até que, em abril de 1999, sob a orientação de<br />
Steven Rockfeller, budista e professor de fi losofi a da religião e de ética, escreveu-se um segundo<br />
esboço de Carta da Terra, reunindo as principais ressonâncias e convergências mundiais. De 12 a<br />
14 de março de 2000, na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –<br />
Unesco, em Paris, incorporaram-se as últimas contribuições e se ratifi cou a Carta da Terra.<br />
A partir de agora temos a ver com um texto ofi cial, aberto a discussões e a novas incorporações<br />
até que seja proposto ao endosso da ONU, após ampla discussão. Aprovou-se uma campanha<br />
mundial de apoio à Carta da Terra com o propósito de conquistar mais e mais pessoas, instituições<br />
e governos a essa nova visão ética e ecológica, capaz de fundar um princípio civilizatório<br />
benfazejo para o futuro da Terra e da humanidade. Depois de apresentada e discutida pela<br />
Assembléia da ONU – esse é o propósito -, terá o mesmo valor que a Carta dos Direitos Humanos,<br />
inicialmente, com lei branda, depois como lei de referência mundial, em nome da qual os<br />
violadores da dignidade da Terra poderão ser levados à barra dos tribunais.<br />
Princípios e valores éticos da Carta da Terra<br />
O mérito principal da Carta é colocar como eixo articulador a categoria da inter-retro-relação de<br />
tudo com tudo. Isso lhe permite sustentar o destino comum da Terra e da humanidade e reafi rmar a<br />
convicção de que formamos uma grande comunidade terrenal e cósmica. As perspectivas desenvolvidas<br />
pelas ciências da Terra, pela nova cosmologia, pela física quântica, pela biologia contemporânea e os<br />
pontos mais seguros do paradigma holístico da ecologia subjazem ao texto da Carta.<br />
Ela se divide em quatro partes: um preâmbulo, princípios fundamentais, princípios de apoio<br />
e uma conclusão.<br />
O preâmbulo afi rma enfaticamente que a Terra está viva e, com a humanidade, forma parte<br />
de um vasto Universo em evolução. Nessa afi rmação cuidadosamente formulada ressoa não só a<br />
teoria da Gaia proposta por James Lovelock e outros, mas também a crença ancestral dos povos<br />
segundo a qual a Terra é a Grande Mãe, geradora de toda a vida. Hoje esse superorganismo<br />
vivo está ameaçado em seu equilíbrio dinâmico devido às formas exploradoras e predatórias do<br />
modo de produção dos bens, modo esse mundialmente integrado.<br />
Face a esta situação global, temos o dever sagrado de assegurar a vitalidade, a diversidade, a<br />
integridade e a beleza de nossa Casa Comum. Para isso, precisamos refazer uma nova aliança com<br />
57
58<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
a Terra e refundar um novo pacto social de responsabilidade entre todos os humanos, radicado<br />
numa dimensão espiritual de reverência face ao mistério da existência, de gratidão pelo presente<br />
da vida, e de humildade diante do lugar que o ser humano ocupa no conjunto dos seres.<br />
Melhor do que resumir os conteúdos éticos, faríamos bem transcrever os 16 princípios<br />
fundantes do novo ethos mundial:<br />
I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA<br />
1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.<br />
a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor,<br />
independentemente de sua utilidade para os seres humanos.<br />
b. Afi rmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial<br />
intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.<br />
2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.<br />
a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever<br />
de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os direitos das pessoas.<br />
b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica<br />
responsabilidade na promoção do bem comum.<br />
3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e<br />
pacífi cas.<br />
a. Assegurar que as comunidades em todos níveis garantam os direitos humanos e as<br />
liberdades fundamentais e proporcionem a cada um a oportunidade de realizar seu<br />
pleno potencial.<br />
b. Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de uma<br />
subsistência signifi cativa e segura, que seja ecologicamente responsável.<br />
4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.<br />
a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas<br />
necessidades das gerações futuras.<br />
b. Transmitir às futuras gerações valores, tradições e instituições que apóiem, em<br />
longo prazo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológicas da Terra.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
Para poder cumprir estes quatro amplos compromissos, é necessário:<br />
II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA<br />
5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial<br />
preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam<br />
a vida.<br />
a. Adotar planos e regulamentações de desenvolvimento sustentável em todos os níveis<br />
que façam com que a conservação ambiental e a reabilitação sejam parte integral<br />
de todas as iniciativas de desenvolvimento.<br />
b. Estabelecer e proteger as reservas com uma natureza viável e da biosfera, incluindo<br />
terras selvagens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de sustento à vida da<br />
Terra, manter a biodiversidade e preservar nossa herança natural.<br />
c. Promover a recuperação de espécies e ecossistemas ameaçadas.<br />
d. Controlar e erradicar organismos não-nativos ou modifi cados geneticamente que<br />
causem dano às espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a introdução desses<br />
organismos daninhos.<br />
e. Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos fl orestais e vida<br />
marinha de forma que não excedam as taxas de regeneração e que protejam a<br />
sanidade dos ecossistemas.<br />
f. Manejar a extração e o uso de recursos não-renováveis, como minerais e combustíveis<br />
fósseis, de forma que diminuam a exaustão e não causem dano ambiental grave.<br />
6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e,<br />
quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.<br />
a. Orientar ações para evitar a possibilidade de sérios ou irreversíveis danos ambientais<br />
mesmo quando a informação científi ca for incompleta ou não conclusiva.<br />
b. Impor o ônus da prova àqueles que afi rmarem que a atividade proposta não causará<br />
dano signifi cativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados pelo dano<br />
ambiental.<br />
c. Garantir que a decisão a ser tomada se oriente pelas conseqüências humanas globais,<br />
cumulativas, de longo prazo, indiretas e de longo alcance.<br />
59
60<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
d. Impedir a poluição de qualquer parte do meio ambiente e não permitir o aumento<br />
de substâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias perigosas.<br />
e. Evitar que atividades militares causem dano ao meio ambiente.<br />
7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades<br />
regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário.<br />
a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e consumo<br />
e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos.<br />
b. Atuar com restrição e efi ciência no uso de energia e recorrer cada vez mais aos<br />
recursos energéticos renováveis, como a energia solar e do vento.<br />
c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência eqüitativa de tecnologias<br />
ambientais saudáveis.<br />
d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de<br />
venda e habilitar os consumidores a identifi car produtos que satisfaçam as mais<br />
altas normas sociais e ambientais.<br />
e. Garantir acesso universal à assistência de saúde que fomente a saúde reprodutiva<br />
e a reprodução responsável.<br />
f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e subsistência material<br />
num mundo fi nito.<br />
8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a ampla<br />
aplicação do conhecimento adquirido.<br />
a. Apoiar a cooperação científi ca e técnica internacional relacionada à sustentabilidade,<br />
com especial atenção às necessidades das nações em desenvolvimento.<br />
b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual<br />
em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar<br />
humano.<br />
c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a<br />
proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao<br />
domínio público.
III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA<br />
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.<br />
a. Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à segurança alimentar, aos solos nãocontaminados,<br />
ao abrigo e saneamento seguros, distribuindo os recursos nacionais<br />
e internacionais requeridos.<br />
b. Prover cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma subsistência<br />
sustentável, e proporcionar seguro social e segurança coletiva a todos aqueles que<br />
não são capazes de manter-se por conta própria.<br />
c. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem e<br />
permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações.<br />
10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam<br />
o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.<br />
a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações.<br />
b. Incrementar os recursos intelectuais, fi nanceiros, técnicos e sociais das nações em<br />
desenvolvimento e isentá-las de dívidas internacionais onerosas.<br />
c. Garantir que todas as transações comerciais apóiem o uso de recursos sustentáveis,<br />
a proteção ambiental e normas trabalhistas progressistas.<br />
d. Exigir que corporações multinacionais e organizações fi nanceiras internacionais<br />
atuem com transparência em benefício do bem comum e responsabilizá-las pelas<br />
conseqüências de suas atividades.<br />
11. Afi rmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento<br />
sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde<br />
e às oportunidades econômicas.<br />
a. Assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com toda<br />
violência contra elas.<br />
b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida econômica,<br />
política, civil, social e cultural como parceiras plenas e paritárias, tomadoras de<br />
decisão, líderes e benefi ciárias.<br />
c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a educação amorosa de todos os<br />
membros da família.<br />
61
62<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente<br />
natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e<br />
o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos<br />
indígenas e minorias.<br />
a. Eliminar a discriminação em todas suas formas, como as baseadas em raça, cor,<br />
gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.<br />
b. Afi rmar o direito dos povos indígenas à sua espiritualidade, conhecimentos, terras e<br />
recursos, assim como às suas práticas relacionadas a formas sustentáveis de vida.<br />
c. Honrar e apoiar os jovens das nossas comunidades, habilitando-os a cumprir seu<br />
papel essencial na criação de sociedades sustentáveis.<br />
d. Proteger e restaurar lugares notáveis pelo signifi cado cultural e espiritual.<br />
IV. DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ<br />
13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes<br />
transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na<br />
tomada de decisões e acesso à justiça.<br />
a. Defender o direito de todas as pessoas no sentido de receber informação clara<br />
e oportuna sobre assuntos ambientais e todos os planos de desenvolvimento e<br />
atividades que poderiam afetá-las ou nos quais tenham interesse.<br />
b. Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação<br />
signifi cativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.<br />
c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de assembléia pacífi ca,<br />
de associação e de oposição.<br />
d. Instituir o acesso efetivo e efi ciente a procedimentos administrativos e judiciais<br />
independentes, incluindo retifi cação e compensação por danos ambientais e pela<br />
ameaça de tais danos.<br />
e. Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas.<br />
f. Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as a cuidar dos seus próprios<br />
ambientes, e atribuir responsabilidades ambientais aos níveis governamentais onde<br />
possam ser cumpridas mais efetivamente.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos,<br />
valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.<br />
a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e jovens, oportunidades educativas que<br />
lhes permitam contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável.<br />
b. Promover a contribuição das artes e humanidades, assim como das ciências, na<br />
educação para sustentabilidade.<br />
c. Intensifi car o papel dos meios de comunicação de massa no sentido de aumentar a<br />
sensibilização para os desafi os ecológicos e sociais.<br />
d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência sustentável.<br />
15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.<br />
a. Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de<br />
sofrimentos.<br />
b. Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem<br />
sofrimento extremo, prolongado ou evitável.<br />
c. Evitar ou eliminar ao máximo possível a captura ou destruição de espécies não visadas.<br />
16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.<br />
a. Estimular e apoiar o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre<br />
todas as pessoas, dentro das e entre as nações.<br />
b. Implementar estratégias amplas para prevenir confl itos violentos e usar a colaboração na<br />
resolução de problemas para manejar e resolver confl itos ambientais e outras disputas.<br />
c. Desmilitarizar os sistemas de segurança nacional até chegar ao nível de uma<br />
postura não-provocativa da defesa e converter os recursos militares em propósitos<br />
pacífi cos, incluindo restauração ecológica.<br />
d. Eliminar armas nucleares, biológicas e tóxicas e outras armas de destruição em massa.<br />
e. Assegurar que o uso do espaço orbital e cósmico mantenha a proteção ambiental e a paz.<br />
f. Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo,<br />
com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade<br />
maior da qual somos parte.<br />
63
64<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A Carta expressa, como efeito fi nal, a confi ança na capacidade regenerativa da Terra e<br />
na responsabilidade compartida dos seres humanos de aprenderem a amar e a cuidar do Lar<br />
Comum. Só assim garantiremos um futuro comum e alcançaremos a paz tão ansiada, entendida<br />
como “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras<br />
culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte”. Concluindo,<br />
podemos dizer: tudo o que precisamos para o atual estado da Terra, encontramos nesta proposta<br />
de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se produziu até<br />
agora. Se esta Carta da Terra for universalmente assumida, mudará o estado de consciência<br />
da humanidade. A Terra ganhará, fi nalmente, centralidade junto com todos os fi lhos e fi lhas da<br />
Terra que se responsabilizam pelo futuro comum.<br />
Nela não haverá mais lugar para o empobrecido, o excluído e o agressor da própria Grande<br />
Mãe. Mais e mais os seres humanos se entenderão como a própria Terra, que em seu lento e<br />
progressivo evoluir alcançou o estágio do sentimento, do pensamento, do amor, do cuidado, da<br />
compaixão e da veneração.<br />
Três pontos relevantes na Carta da Terra<br />
A Carta da Terra contém uma riqueza de conteúdo inestimável, cobrindo, praticamente,<br />
todas as áreas de interesse para uma vida harmônica na nave-espacial Terra. Três pontos,<br />
entretanto, cabe ressaltar.<br />
O primeiro deles é a aura benfazeja que cerca todo o documento. Há a consciência da<br />
gravidade do estado da Terra e da Humanidade. Mas nem por isso prevalece o abatimento e a<br />
resignação. Antes, há lugar para a esperança, há confi ança na responsabilidade humana e há a<br />
certeza de um novo concerto cinegético e amoroso entre Terra e Humanidade. Deixa-se para<br />
trás a visão meramente positivista e mecanicista da natureza. Em seu lugar entra a concepção<br />
contemporânea que resgata a perspectiva ancestral que capta o caráter de mistério do Universo<br />
e da vida. Os valores da solidariedade, da inclusão e da reverência pervadem todo o texto.<br />
O segundo ponto é a superação do conceito fechado de desenvolvimento sustentável. Esta<br />
categoria é ofi cial em todos os documentos internacionais. Foi a fórmula pela qual o sistema mundial<br />
imperante conseguiu incorporar as exigências do discurso ecológico. Mas ele é profundamente<br />
contraditório em seus próprios termos. Pois o termo desenvolvimento vem do campo da economia;<br />
não de qualquer economia, mas do tipo imperante, que visa a acumulação de bens e serviços de<br />
forma crescente e linear mesmo à custa de iniqüidade social e depredação ecológica. Esse modelo<br />
é gerador de desigualdades e desequilíbrios, inegáveis em todos os campos onde ele é dominante.<br />
A sustentabilidade provém do campo da ecologia e da biologia. Ela afi rma a inclusão de<br />
todos no processo de inter-retro-relação que caracteriza todos os seres em ecossistemas.<br />
A sustentabilidade afi rma o equilíbrio dinâmico que permite todos participarem e se verem<br />
incluídos no processo global.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
Entendidos assim os termos, vê-se que a expressão “desenvolvimento sustentável” se torna,<br />
na prática, inexeqüível. Os termos se contrapõem e não revelam uma forma nova e alternativa<br />
de relação entre produção de bens necessários à vida e à comodidade humana e natureza com<br />
seus recursos limitados.<br />
A Carta da Terra, em suas redações iniciais, havia incorporado o termo “desenvolvimento<br />
sustentável” como seu eixo estruturador. Graças às acaloradas e minuciosas discussões internas,<br />
superou-se esta terminologia. Manteve-se a categoria sustentabilidade, como fundamental para<br />
o sistema-vida e o sistema-Terra. Mais que buscar um desenvolvimento sustentável, importa<br />
construir uma vida sustentável, uma sociedade sustentável e uma Terra sustentável. Garantida<br />
essa sustentabilidade básica, pode-se falar com propriedade de desenvolvimento sustentável.<br />
É dentro desta compreensão que na Carta da Terra se usa, às vezes, o termo, mas libertado de<br />
sua compreensão ofi cial.<br />
O terceiro ponto reside na ética do cuidado. Já em 1991 a União Internacional para a Conservação<br />
da Natureza (UICN), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Fundo<br />
Mundial para a Natureza (WWF) publicaram conjuntamente um dos textos mais articulados e<br />
práticos que levava como título programático “Cuidando do Planeta Terra. Uma estratégia para<br />
o Futuro da Vida (Caring for the Earth. A Strategy for Sustainable Living). O cuidado era a<br />
categoria que unia todas as práticas de preservação, regeneração e trato para com a natureza.<br />
O cuidado era apresentando como o valor principal de uma ética ecológico-social-espiritual.<br />
Com isso se resgatava o cuidado em seu sentido antropológico e ético como uma relação<br />
amorosa para com a realidade, para além dos interesses de uso. O cuidado está ligado aos<br />
processos da vida, seja em sua manutenção e reprodução, seja em sua construção social. Pelo<br />
cuidado o ser humano pessoal e coletivo supera as desconfi anças, os medos e estabelece os<br />
fundamentos para uma paz duradoura.<br />
Estas visões perpassam o texto da Carta da Terra e fazem dela uma das expressões éticas e<br />
espirituais mais acabadas dos últimos tempos.<br />
Belamente conclui a Carta: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova<br />
reverência face à vida, por um compromisso fi rme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida<br />
luta pela justiça e pela paz, e pela alegre celebração da vida”.<br />
Leonardo Boff é teólogo, representante brasileiro no Conselho da Terra, escreveu mais de<br />
60 livros nas áreas de Teologia, Filosofi a, Espiritualidade, Antropologia e Mística e recebeu,<br />
em 2001, o Prêmio Nobel da Paz Alternativo em Estocolmo. Este texto está disponível em<br />
http://www.leonardoboff.com<br />
65
66<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A ECOPEDAGOGIA COMO PEDAGOGIA APROPRIADA AO PROCESSO DA CARTA DA TERRA<br />
Moacir Gadotti<br />
Três décadas de debates sobre “nosso futuro comum” deixaram algumas pegadas ecológicas,<br />
tanto no campo da economia, quanto no campo da ética, da política e da educação que podem<br />
nos indicar um caminho diante dos desafi os do século XXI. A sustentabilidade tornou-se um tema<br />
gerador preponderante neste início de milênio para pensar não só o planeta, um tema portador<br />
de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz<br />
de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade, para todos.<br />
O cenário não é otimista: podemos destruir toda a vida no planeta neste milênio que se inicia.<br />
Uma ação conjunta global é necessária, um movimento como grande obra civilizatória de todos<br />
é indispensável para realizarmos essa outra globalização, essa planetarização, fundamentada<br />
em outros princípios éticos que não os baseados na exploração econômica, na dominação política<br />
e na exclusão social. O modo pelo qual vamos produzir nossa existência neste pequeno planeta<br />
decidirá sobre a sua vida ou a sua morte e a de todos os seus fi lhos e fi lhas. A Terra deixou de<br />
ser um fenômeno puramente geográfi co para se tornar um fenômeno histórico.<br />
Os paradigmas clássicos, fundados numa visão industrialista predatória, antropocêntrica e<br />
desenvolvimentista, estão se esgotando, não dando conta de explicar o momento presente e de<br />
responder às necessidades futuras. Necessitamos de um outro paradigma, fundado numa visão<br />
sustentável do planeta Terra. O globalismo é essencialmente insustentável. Ele atende primeiro<br />
às necessidades do capital e depois às necessidades humanas. E muitas das necessidades<br />
humanas a que ele atende tornaram-se”humanas” apenas porque foram produzidas como tais<br />
para servirem ao capital.<br />
1- Pedagogia da Terra e educação sustentável<br />
A sensação de pertencimento à Terra não se inicia na idade adulta e nem por um ato de razão.<br />
Desde a infância, sentimo-nos ligados com algo que é muito maior do que nós. Desde criança<br />
nos sentimos profundamente ligados ao Universo e nos colocamos diante dele num misto de<br />
espanto e de respeito. E, durante toda vida, buscamos respostas ao que somos, de onde viemos,<br />
para onde vamos, enfi m, qual o sentido da nossa existência. É uma busca incessante e que<br />
jamais termina. A educação pode ter um papel nesse processo se colocar questões fi losófi cas<br />
fundamentais, mas também se souber trabalhar ao lado do conhecimento essa nossa capacidade<br />
de nos encantar com o Universo.<br />
Hoje, tomamos consciência de que o sentido das nossas vidas não está separado do sentido<br />
do próprio planeta. Diante da degradação das nossas vidas no planeta, chegamos a uma
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
verdadeira encruzilhada entre um caminho Tecnozóico, que coloca toda a fé na capacidade<br />
da tecnologia de nos tirar da crise sem mudar nosso estilo poluidor e consumista de vida, e<br />
um caminho Ecozóico, fundado numa nova relação saudável com o planeta, reconhecendo que<br />
somos parte do mundo natural, vivendo em harmonia com o Universo, caracterizado pelas<br />
atuais preocupações ecológicas. Temos que fazer escolhas. Elas defi nirão o futuro que teremos.<br />
Não me parece realmente que sejam caminhos totalmente opostos. Tecnologia e humanismo<br />
não se contrapõem. Mas, é claro, houve excessos no nosso estilo poluidor e consumista de vida e<br />
que não é fruto da técnica, mas do modelo econômico. Este é que tem que ser posto em causa.<br />
E esse é um dos papéis da educação sustentável ou ecológica.<br />
O desenvolvimento sustentável, visto de forma crítica, tem um componente educativo<br />
formidável: a preservação do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a<br />
formação da consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a Pedagogia da Terra,<br />
a ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do “sentido das<br />
coisas a partir da vida cotidiana”, como dizem Francisco Gutiérrez e Cruz Prado em seu livro<br />
Ecopedagogia e cidadania planetária (São <strong>Paulo</strong>, IPF/Cortez, 1998). Encontramos o sentido ao<br />
caminhar, vivenciando o contexto e o processo de abrir novos caminhos; não apenas observando<br />
o caminho. É, por isso, uma pedagogia democrática e solidária. A pesquisa de Francisco<br />
Gutiérrez e Cruz Prado sobre a ecopedagogia se originou na preocupação com o sentido da<br />
vida cotidiana. A formação está ligada ao espaço/tempo no qual se realizam concretamente as<br />
relações entre o ser humano e o meio ambiente. Elas se dão sobretudo no nível da sensibilidade,<br />
muito mais do que no nível da consciência. Elas se dão, portanto, muito mais no nível da subconsciência:<br />
não as percebemos e, muitas vezes, não sabemos como elas acontecem. É preciso<br />
uma ecoformação para torná-las conscientes. E a ecoformação necessita de uma ecopedagogia.<br />
Como destaca Gaston Pineau em seu livro De l’air: essai sur l‘écoformation (Paris, Païdeia,<br />
1992), uma série de referenciais se associam para isso: a inspiração bachelardiana, os estudos do<br />
imaginário, a abordagem da transversalidade, da transdisciplinaridade e da interculturalidade,<br />
o construtivismo e a pedagogia da alternância.<br />
Precisamos de uma ecopedagogia e uma ecoformação hoje, precisamos de uma Pedagogia<br />
da Terra, justamente porque sem essa pedagogia para a re-educação do homem/mulher,<br />
principalmente do homem ocidental, prisioneiro de uma cultura cristã predatória, não<br />
poderemos mais falar da Terra como um lar, como uma toca, para o “bicho-homem”, como fala<br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Sem uma educação sustentável, a Terra continuará apenas sendo considerada<br />
como espaço de nosso sustento e de domínio técnico-tecnológico, objeto de nossas pesquisas,<br />
ensaios e, algumas vezes, de nossa contemplação. Mas não será o espaço de vida, o espaço do<br />
aconchego, de “cuidado” (BOFF, Leonardo, Saber cuidar, Petrópolis, Vozes, 1999).<br />
Não aprendemos a amar a Terra lendo livros sobre isso, nem livros de ecologia integral. A<br />
experiência própria é o que conta. Plantar e seguir o crescimento de uma árvore ou de uma<br />
plantinha, caminhando pelas ruas da cidade ou aventurando-se numa fl oresta, sentindo o cantar<br />
dos pássaros nas manhãs ensolaradas ou não, observando como o vento move as plantas, sentindo<br />
a areia quente de nossas praias, olhando para as estrelas numa noite escura. Há muitas formas<br />
67
68<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
de encantamento e de emoção frente às maravilhas que a natureza nos reserva. É claro, existe<br />
a poluição, a degradação ambiental para nos lembrar de que podemos destruir essa maravilha e<br />
para formar nossa consciência ecológica e nos mover à ação. Acariciar uma planta, contemplar<br />
com ternura um pôr de sol, cheirar o perfume de uma folha de pitanga, de goiaba, de laranjeira<br />
ou de um cipreste, de um eucalipto... são múltiplas formas de viver em relação permanente<br />
com esse planeta generoso e compartilhar a vida com todos os que o habitam ou o compõem. A<br />
vida tem sentido, mas ele só existe em relação. Como diz o poeta brasileiro Carlos Drummond de<br />
Andrade: “Sou um homem dissolvido na natureza. Estou fl orescendo em todos os ipês”.<br />
Isso Drummond só poderia dizer aqui na Terra. Se estivesse em outro planeta do sistema<br />
solar ele não diria o mesmo. Só a Terra é amigável com o ser humano. Os outros planetas são<br />
francamente hostis a ele, embora tenham sido originados na mesma poeira cósmica. Existirão<br />
outros planetas fora do sistema solar que abriguem a vida, talvez a vida inteligente? Se levarmos<br />
em conta que a matéria da qual se originou o Universo é a mesma, é muito provável. Mas, por<br />
ora, só temos um que é francamente nosso amigo. Temos que aprender a amá-lo.<br />
Como se traduz na educação o princípio da sustentabilidade? Ele se traduz por perguntas<br />
como: até que ponto há sentido no que fazemos? Até que ponto nossas ações contribuem<br />
para a qualidade de vida dos povos e para a sua felicidade? A sustentabilidade é um princípio<br />
reorientador da educação e principalmente dos currículos, objetivos e métodos.<br />
É no contexto da evolução da própria ecologia que surge e ainda engatinha o que chamamos<br />
de “ecopedagogia”, inicialmente chamada de “pedagogia do desenvolvimento sustentável”<br />
e que hoje ultrapassou esse sentido. A ecopedagogia está se desenvolvendo seja como um<br />
movimento pedagógico, seja como abordagem curricular.<br />
Como a ecologia, a ecopedagogia também pode ser entendida como um movimento social e<br />
político. Como todo movimento novo, em processo, em evolução, ele é complexo e pode tomar<br />
diferentes direções, até contraditórias. Ele pode ser entendido diferentemente como o são as<br />
expressões “desenvolvimento sustentável” e “meio ambiente”. Existe uma visão capitalista<br />
do desenvolvimento sustentável e do meio ambiente que, por ser anti-ecológica, deve ser<br />
considerada como uma “armadilha”, como vem sustentando Leonardo Boff.<br />
A ecopedagogia também implica uma reorientação dos currículos para que incorporem certos<br />
princípios defendidos por ela. Estes princípios deveriam, por exemplo, orientar a concepção dos<br />
conteúdos e a elaboração dos livros didáticos. Jean Piaget nos ensinou que os currículos devem<br />
contemplar o que é signifi cativo para o aluno. Sabemos que isso é correto, mas incompleto. Os<br />
conteúdos curriculares têm que ser signifi cativos para o aluno, e só serão signifi cativos para ele se<br />
esses conteúdos forem signifi cativos também para a saúde do planeta, para o contexto mais amplo.<br />
Colocada neste sentido, a ecopedagogia não é uma pedagogia a mais, ao lado de outras<br />
pedagogias. Ela só tem sentido como projeto alternativo global, no qual a preocupação não<br />
está apenas na preservação da natureza (Ecologia Natural) ou no impacto das sociedades
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
humanas sobre os ambientes naturais (Ecologia Social), mas num novo modelo de civilização<br />
sustentável do ponto de vista ecológico (Ecologia Integral), que implica uma mudança nas<br />
estruturas econômicas, sociais e culturais. Ela está ligada, portanto, a um projeto utópico:<br />
mudar as relações humanas, sociais e ambientais que temos hoje. Aqui está o sentido profundo<br />
da ecopedagogia, ou de uma Pedagogia da Terra, como a chamamos.<br />
A ecopedagogia não se opõe à educação ambiental. Ao contrário, para a ecopedagogia<br />
a educação ambiental é um pressuposto. A ecopedagogia incorpora-a e oferece estratégias,<br />
propostas e meios para a sua realização concreta. Foi justamente durante a realização do Fórum<br />
Global 92, no qual se discutiu muito a educação ambiental, que se percebeu a importância<br />
de uma pedagogia do desenvolvimento sustentável ou de uma ecopedagogia. Hoje, porém,<br />
a ecopedagogia tornou-se um movimento e uma perspectiva da educação maior do que uma<br />
pedagogia do desenvolvimento sustentável. Ela está mais para a educação sustentável, para<br />
uma ecoeducação, que é mais ampla do que a educação ambiental. A educação sustentável não<br />
se preocupa apenas com uma relação saudável com o meio ambiente, mas com o sentido mais<br />
profundo do que fazemos com a nossa existência, a partir da vida cotidiana.<br />
2 – Consciência planetária, cidadania planetária, civilização planetária<br />
A globalização, impulsionada sobretudo pela tecnologia, parece determinar cada vez mais<br />
nossas vidas. As decisões sobre o que nos acontece no dia-a-dia parecem nos escapar, por serem<br />
tomadas muito distante de nós, comprometendo nosso papel do sujeitos da história. Mas não é<br />
bem assim. Como fenômeno e como processo, a globalização tornou-se irreversível, mas não esse<br />
tipo de globalização – o globalismo – ao qual estamos submetidos hoje: a globalização capitalista.<br />
Seus efeitos mais imediatos são o desemprego, o aprofundamento das diferenças entre os poucos<br />
que têm muito e os muitos que têm pouco, a perda de poder e autonomia de muita Estados e<br />
Nações. Há pois que distinguir os países que hoje comandam a globalização – os globalizadores<br />
(países ricos) – dos países que sofrem a globalização, os países globalizados (pobres).<br />
Dentro deste complexo fenômeno podemos distinguir também a globalização econômica,<br />
realizada pelas transnacionais, da globalização da cidadania. Ambas se utilizam da mesma base<br />
tecnológica, mas com lógicas opostas. A primeira, submetendo Estados e Nações, é comandada<br />
pelo interesse capitalista; a segunda globalização é a realizada através da organização da<br />
Sociedade Civil. A Sociedade Civil globalizada é a resposta que a Sociedade Civil como um<br />
todo e as ONGs estão dando hoje à globalização capitalista. Neste sentido, o Fórum Global 92<br />
se constituiu num evento dos mais signifi cativos do fi nal de século XX: deu grande impulso à<br />
globalização da cidadania. Hoje, o debate em torno da Carta da Terra está se constituindo num<br />
fator importante de construção desta cidadania planetária. Qualquer pedagogia, pensada fora<br />
da globalização e do movimento ecológico, tem hoje sérios problemas de contextualização.<br />
“Estrangeiro eu não vou ser. Cidadão do mundo eu sou”, diz uma das letras de música<br />
cantada pelo cantor brasileiro Milton Nascimento. Se as crianças de nossas escolas entendessem<br />
69
70<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
em profundidade o signifi cado das palavras desta canção, estariam iniciando uma verdadeira<br />
revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território se<br />
pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos, na Terra. Se sou<br />
cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográfi cas,<br />
raciais e outras enfraquecem diante do meu sentimento de pertencimento à Humanidade.<br />
A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unifi cadora do planeta e<br />
de uma sociedade mundial. Ela se manifesta em diferentes expressões: “nossa humanidade<br />
comum”, “unidade na diversidade”, “nosso futuro comum”, “nossa pátria comum”, “cidadania<br />
planetária”. Cidadania Planetária é uma expressão adotada para indicar um conjunto de<br />
princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da Terra<br />
como uma única comunidade. Freqüentemente associada ao “desenvolvimento sustentável”,<br />
ela é muito mais ampla do que essa relação com a economia. Trata-se de um ponto de referência<br />
ético indissociável da civilização planetária e da ecologia. A Terra é “Gaia”, um super-organismo<br />
vivo e em evolução, o que for feito a ela repercutirá em todos os seus fi lhos.<br />
Cultura da sustentabilidade supõe uma pedagogia da sustentabilidade que dê conta da<br />
grande tarefa de formar para a cidadania planetária. Esse é um processo já em marcha. A<br />
educação para a cidadania planetária está começando através de numerosas experiências<br />
que, embora muitas sejam locais, nos apontam para uma educação para nos sentir membros<br />
para além da Terra, para viver uma cidadania cósmica. Os desafi os são enormes tanto para<br />
os educadores quanto para os responsáveis pelos sistemas educacionais. Mas já existem<br />
certos sinais, na própria sociedade, que apontam para uma crescente busca não só por<br />
temas espiritualistas e de auto-ajuda, mas por um conhecimento científi co mais profundo<br />
do Universo.<br />
Educar para a cidadania planetária implica muito mais do que uma fi losofi a educacional, do<br />
que o enunciado de seus princípios. A educação para a cidadania planetária implica uma revisão<br />
dos nossos currículos, uma reorientação de nossa visão de mundo da educação como espaço de<br />
inserção do indivíduo, não numa comunidade local, mas numa comunidade que é local e global<br />
ao mesmo tempo. Educar, então, não seria, como dizia Émile Durheim, a transmissão da cultura<br />
“de uma geração para outra”, mas a grande viagem de cada indivíduo no seu universo interior<br />
e no Universo que o cerca.<br />
O tipo de globalização de hoje está muito mais ligado ao fenômeno da mundialização do<br />
mercado, que é um tipo de mundialização. E mesmo esta mundialização, fundada no mercado,<br />
pode ser vista como uma globalização cooperativa ou como uma globalização competitiva sem<br />
solidariedade. Entre o estatismo absolutista e a mão invisível do mercado pode existir (e existe)<br />
uma nova economia de mercado (há mercados e mercados!) onde predomina a cooperação<br />
e a solidariedade e não a competitividade selvagem; uma economia solidária, a verdadeira<br />
economia da sustentabilidade. Por tudo isso, precisamos construir uma “outra globalização”<br />
(SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.<br />
São <strong>Paulo</strong>: Record, 2000), uma globalização fundada no princípio da solidariedade.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço sem<br />
precedentes na história da humanidade. O que é problemático é a globalização competitiva,<br />
onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde os interesses dos<br />
povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas transnacionais. Assim,<br />
podemos distinguir uma globalização competitiva de uma possível globalização cooperativa e<br />
solidária que, em outros momentos, chamamos de processo de “planetarização”. A primeira<br />
está subordinada apenas às leis do mercado e a segunda se subordina aos valores éticos e<br />
à espiritualidade humana. Para essa segunda globalização é que a Carta da Terra, como um<br />
código de ética universal, deveria dar uma contribuição importante, não apenas através da<br />
proclamação que os Estados podem fazer, mas, sobretudo, pelo impacto que seus princípios<br />
poderão ter na vida cotidiana do cidadão planetário.<br />
3 – Movimento pela ecopedagogia<br />
Essa travessia de milênio caracteriza-se por um enorme avanço tecnológico e também por uma<br />
enorme imaturidade política: enquanto a internet nos coloca no centro da Era da Informação, o<br />
governo do humano continua muito pobre, gerando misérias e deterioração. Podemos destruir toda<br />
a vida do planeta. Quinhentas empresas transnacionais controlam 25% da atividade econômica<br />
mundial e 80% das inovações tecnológicas. A globalização econômica capitalista enfraqueceu os<br />
Estados Nacionais, impondo limites para a sua autonomia, subordinando-os à lógica econômica<br />
das transnacionais. Gigantescas dívidas externas governam países e impedem a implantação de<br />
políticas sociais eqüalizadoras. As empresas transnacionais trabalham para 10% da população<br />
mundial que se situam nos países mais ricos, gerando uma tremenda exclusão. Esse é o cenário<br />
da travessia, um cenário ainda mais problemático pela falta de alternativas.<br />
Os paradigmas clássicos estão esgotando suas possibilidades de responder adequadamente a<br />
esse novo contexto. Não conseguem explicar essa travessia, muito menos passar por ela. Há uma<br />
crise de inteligibilidade diante da qual muitos falsos profetas e charlatães oferecem soluções<br />
mágicas. Uma nova espiritualidade surge muito bem aproveitada pelas mercorreligiões. A resposta<br />
dada pelo estatismo burocrático e autoritário é tão inefi ciente quanto o neoliberalismo do deus<br />
mercado. O neoliberalismo propõe mais poder para as transnacionais e os estatistas propõem mais<br />
poder para o Estado, reforçando as suas estruturas. No meio de tudo isso está o cidadão comum,<br />
que não é nem empresário, nem Estado. A resposta parece estar além destes dois modelos clássicos,<br />
mas certamente não numa suposta “terceira via” que deseja apenas dar sobrevida ao capitalismo,<br />
sofi sticando a dominação política, a exploração econômica e provocando enorme exclusão social.<br />
A resposta parece vir hoje do fortalecimento do controle cidadão frente ao Estado e ao mercado,<br />
a Sociedade Civil fortalecendo sua capacidade de governar-se e controlar o desenvolvimento. Aqui<br />
entra o papel importante da educação, da formação para a cidadania ativa.<br />
Podemos dizer que há uma comunidade sustentável que vive em harmonia com o seu meio<br />
ambiente, não causando danos a outras comunidades, nem para a comunidade de hoje e nem<br />
para a de amanhã. E isso não pode constituir-se apenas num compromisso ecológico, mas ético-<br />
71
72<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
político, alimentado por uma pedagogia, isto é, por uma ciência da educação e uma prática<br />
social defi nidas. Neste sentido, a ecopedagogia, inserida nesse movimento sócio-histórico,<br />
formando cidadãos capazes de escolherem os indicadores de qualidade do seu futuro, constituise<br />
numa pedagogia inteiramente nova e intensamente democrática.<br />
O Movimento pela Ecopedagogia ganhou impulso sobretudo a partir do Primeiro Encontro<br />
Internacional da Carta da Terra na Perspectiva da Educação, organizado pelo <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong><br />
<strong>Freire</strong>, com o apoio do Conselho da Terra e da Unesco, de 23 a 26 de agosto de 1999, em São<br />
<strong>Paulo</strong>, e do I Fórum Internacional sobre Ecopedagogia, realizado na Faculdade de Psicologia<br />
e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal, de 24 a 26 de março de 2000.<br />
Desses encontros surgiram os princípios orientadores desse movimento, contidos numa “Carta<br />
da Ecopedagogia”. Eis alguns deles:<br />
1. O planeta como uma única comunidade.<br />
2. A Terra como mãe, organismo vivo e em evolução.<br />
3. Uma nova consciência que sabe o que é sustentável, apropriado e faz sentido para a<br />
nossa existência.<br />
4. A ternura para com essa casa. Nosso endereço é a Terra.<br />
5. A justiça sócio-cósmica: a Terra é um grande pobre, o maior de todos os pobres.<br />
6. Uma pedagogia biófi la (que promove a vida): envolver-se, comunicar-se, compartilhar,<br />
problematizar, relacionar-se, entusiasmar-se.<br />
7. Uma concepção do conhecimento que admite só ser integral quando compartilhado.<br />
8. O caminhar com sentido (vida cotidiana).<br />
9. Uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não instrumental.<br />
10. Novas atitudes: reeducar o olhar, o coração.<br />
11. Cultura da sustentabilidade: ecoformação. Ampliar nosso ponto de vista.<br />
As pedagogias clássicas eram antropocêntricas. A ecopedagogia parte de uma consciência<br />
planetária (gêneros, espécies, reinos, educação formal, informal e não-formal...). Ampliamos<br />
o nosso ponto de vista. Do homem para o planeta, acima de gêneros, espécies e reinos. De<br />
uma visão antropocêntrica para uma consciência planetária, para uma prática de cidadania<br />
planetária e para uma nova referência ética e social: a civilização planetária.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
Não se pode dizer que a ecopedagogia representa já uma tendência concreta e notável na<br />
prática da educação contemporânea. Se ela já tivesse suas categorias defi nidas e elaboradas,<br />
ela estaria totalmente equivocada, pois uma perspectiva pedagógica não pode nascer de um<br />
discurso elaborado por especialistas. Ao contrário, o discurso pedagógico elaborado é que nasce<br />
de uma prática concreta, testada e comprovada. A ecopedagogia está ainda em formação e<br />
formulação como teoria da educação. Ela está se manifestando em muitas práticas educativas<br />
que o Movimento pela Ecopedagogia, liderado pelo <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, tenta congregar.<br />
O Movimento pela Ecopedagogia, surgido no seio da iniciativa da Carta da Terra, está dando<br />
apoio ao processo de discussão dessa Carta, indicando justamente uma metodologia apropriada<br />
que não seja a metodologia da simples “proclamação” governamental, de uma declaração<br />
formal, mas a tradução de um processo vivido e da participação crítica da “demanda”, como<br />
diz Francisco Gutiérrez.<br />
A Carta da Terra deve ser entendida sobretudo como um movimento ético global para se<br />
chegar a um código de ética planetário, sustentando um núcleo de princípios e valores que<br />
faz frente à injustiça social e à falta de eqüidade reinante no planeta. Cinco pilares sustentam<br />
esse núcleo: a) direitos humanos; b) democracia e participação; c) eqüidade; d) proteção da<br />
minoria; e) resolução pacífi ca dos confl itos. Esses pilares são cimentados por uma visão de<br />
mundo solidária e respeitosa da diferença (consciência planetária).<br />
O intercâmbio planetário que ocorre hoje em função da expansão das oportunidades de<br />
acesso à comunicação, notadamente através da internet, deverá facilitar o diálogo inter e<br />
transcultural e o desenvolvimento desta nova ética planetária. A campanha da Carta da Terra<br />
agrega um novo valor e oferece um novo impulso a esse movimento pela ética na política, na<br />
economia, na educação etc. Ela se tornará realmente forte e, talvez, decisiva, no momento<br />
em que representar um projeto de futuro, um contraprojeto global e local ao projeto políticopedagógico,<br />
social e econômico neoliberal, que não só é intrinsecamente insustentável, como<br />
também essencialmente injusto e desumano.<br />
4 – A ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da Carta da Terra<br />
Precisamos de uma Pedagogia da Terra, uma pedagogia apropriada para esse momento de<br />
reconstrução paradigmática, apropriada à cultura da sustentabilidade e da paz, por isso,<br />
apropriada ao processo da Carta Terra. Ela vem se constituindo gradativamente, benefi ciandose<br />
de muitas refl exões que ocorreram nas últimas décadas, principalmente no interior do<br />
movimento ecológico. Ela se fundamenta num paradigma fi losófi co (<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, Leonardo<br />
Boff, Sebastião Salgado, Boaventura de Sousa Santos, Milton Santos) emergente na educação,<br />
que propõe um conjunto de saberes/valores interdependentes. Entre eles podemos destacar:<br />
1) Educar para pensar globalmente. Na era da informação, diante da velocidade com que<br />
o conhecimento é produzido e envelhece, não adianta acumular informações. É preciso saber<br />
73
74<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
pensar. E pensar a realidade. Não pensar pensamentos já pensados. Daí a necessidade de<br />
recolocarmos o tema do conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias,<br />
da organização do trabalho na escola.<br />
2) Educar os sentimentos. O ser humano é o único ser vivente que se pergunta sobre o<br />
sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com<br />
sentido em cada instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos e não apenas porque<br />
pensamos. Somos parte de um todo em construção.<br />
3) Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial. Nosso destino comum<br />
no planeta, compartilhar com todos sua vida no planeta. Nossa identidade é ao mesmo tempo<br />
individual e cósmica. Educar para conquistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorála,<br />
mas para amá-la.<br />
4) Formar para a consciência planetária. Compreender que somos interdependentes. A<br />
Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não precisaríamos de passaportes.<br />
Em nenhum lugar na Terra deveríamos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro<br />
mundo signifi ca dividir o mundo para governá-lo a partir dos mais poderosos; essa é a divisão<br />
globalista entre globalizadores e globalizados, o contrário do processo de planetarização.<br />
5) Formar para a compreensão. Formar para a ética do gênero humano, não para a ética<br />
instrumental e utilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não comunicar para explorar,<br />
para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor. A Pedagogia da Terra funda-se nesse<br />
novo paradigma ético e numa nova inteligência do mundo. Inteligente não é aquele que sabe<br />
resolver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida solidário.<br />
Porque a solidariedade não é hoje apenas um valor. É condição de sobrevivência de todos.<br />
6) Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas precisam ser guiadas por<br />
novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver juntos,<br />
compartir, descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo mais responsável<br />
frente à cultura dominante que é uma cultura de guerra, de competitividade sem solidariedade,<br />
e passar de uma responsabilidade diluída à uma ação concreta, praticando a sustentabilidade<br />
na vida diária, na família, no trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se confunde com a<br />
simploriedade e a quietude não se confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade tem que<br />
ser voluntária como a mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A<br />
quietude é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto.<br />
É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe que todas e todos tenham acesso à qualidade<br />
de vida. Seria cínico falar de redução de demandas de consumo, atacar o consumismo, falar de<br />
consumismo aos que ainda não tiveram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem justiça.<br />
Diante do possível extermínio do planeta, surgem alternativas numa cultura da paz e uma<br />
cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenas com a biologia, a economia
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
e a ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que mantemos conosco mesmos, com<br />
os outros e com a natureza. A pedagogia deveria começar por ensinar sobretudo a ler o mundo,<br />
como nos diz <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, o mundo que é o próprio Universo, por que é ele nosso primeiro<br />
educador. Essa primeira educação é uma educação emocional que nos coloca diante do mistério<br />
do Universo, na intimidade com ele, produzindo a emoção de nos sentirmos parte desse sagrado<br />
ser vivo e em evolução permanente.<br />
Não entendemos o Universo como partes ou entidades separadas, mas como um todo<br />
sagrado, misterioso, que nos desafi a a cada momento de nossas vidas, em evolução, em<br />
expansão, em interação. Razão, emoção e intuição são partes desse processo, onde o próprio<br />
observador está implicado. O Paradigma-Terra é um paradigma civilizatório. E como a cultura<br />
da sustentabilidade oferece uma nova percepção da Terra, considerando-a como uma única<br />
comunidade de humanos, ela se torna básica para uma cultura de paz.<br />
O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Está muito próximo de nós. Um pequeno<br />
jardim, uma horta, um pedaço de terra, é um microcosmos de todo o mundo natural. Nele<br />
encontramos formas de vida, recursos de vida, processos de vida. A partir dele podemos<br />
reconceitualizar nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo podemos aprender<br />
muitas coisas. As crianças o encaram como fonte de tantos mistérios! Ele nos ensina os valores<br />
da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivência, os valores da paciência,<br />
da perseverança, da criatividade, da adaptação, da transformação, da renovação... Todas as<br />
nossas escolas podem transformar-se em jardins e professores-alunos, educadores-educandos,<br />
em jardineiros. O jardim nos ensina ideais democráticos: conexão, escolha, responsabilidade,<br />
decisão, iniciativa, igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade e gênero.<br />
“Carta” signifi ca “mapa”, um mapa para nos guiar nessa travessia conturbada. A Carta da<br />
Terra, nesse sentido, precisa ser considerada como um código de ética planetária a nos guiar<br />
hoje para um mundo onde predominem os valores da solidariedade e da sustentabilidade,<br />
um projeto, um movimento, um processo que pode transformar o risco de extermínio em<br />
oportunidade histórica, transformar o temor em esperança. Adotar e promover a prática de<br />
seus valores não pode ser apenas o compromisso de Estados e Nações, mas de cada ser humano<br />
individual, pessoal, como sujeito da história, como vem promovendo o Manifesto 2000 da<br />
Unesco. Precisamos de uma cultura de paz com justiça social para enfrentar a barbárie. Se<br />
aceitamos a barbárie, acostumamo-nos a um cotidiano de violência e de insustentabilidade.<br />
No nosso livro Pedagogia da Terra defendemos a necessidade de uma Carta da Terra associada<br />
a um processo de paz, a uma cultura de paz. E como a Carta da Terra é um documento ético,<br />
precisa da educação para tornar-se cada vez mais conhecido. Mas precisamos não só de mudança<br />
na consciência das pessoas. Precisamos de mudanças estruturais no campo econômico, como<br />
as propostas pela Agenda 21. A Carta da Terra precisa estar associada também à Agenda<br />
21 e ter um grande suporte na sociedade civil. Os governos podem assinar tratados, podem<br />
adotar a Carta da Terra, mas não cumprirão suas promessas se a Sociedade Civil não estiver<br />
vigilante e não pressionar os governantes para que eles cumpram o que assumem. O que foi<br />
75
76<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
socialmente construído pode ser socialmente transformado. Um outro mundo é possível. Uma<br />
outra globalização é possível. Precisamos chegar lá juntos e, sobretudo, a tempo.<br />
Moacir Gadotti é professor titular da Universidade de São <strong>Paulo</strong>, diretor do <strong>Instituto</strong><br />
<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e autor de várias obras, entre elas: História das idéias pedagógicas (Ática,<br />
1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas,<br />
2000), Pedagogia da Terra (Peirópolis, 2000) e Os Mestres de Rousseau (Cortez, 2004). O<br />
autor participou na Rio-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento),<br />
que elaborou e aprovou a Agenda 21, como representante de ONG (ICEA -<br />
Internacional Community Education Association). No Fórum Global-92, na mesma época,<br />
participou na coordenação da Jornada Internacional de Educação Ambiental, que elaborou<br />
o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global.<br />
www.paulofreire.org
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
A CARTA DA TERRA COMO INSTRUMENTO EDUCATIVO E INSPIRADOR NA<br />
CONSTRUÇÃO DE SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS<br />
Mirian Vilela<br />
O fato de que uma pessoa tenha recebido formação na escola ou universidade não<br />
necessariamente a transforma num cidadão comprometido em ajudar na resolução dos<br />
problemas da nossa sociedade. Muitas vezes são essas pessoas, que contam com um bom nível<br />
de instrução, as responsáveis por grandes injustiças, atrocidades, devastações e corrupções que<br />
afetam a todos, não somente a geração atual, mas também as futuras gerações.<br />
Em parte, a causa disto é a ausência de uma educação baseada em valores que assegurem o<br />
bem comum e promovam a responsabilidade individual e coletiva. Refi ro-me a uma educação<br />
que aborde a ética do cuidado, a ética que nos faz refl etir sobre as conseqüências e o impacto<br />
dos nossos atos e decisões sobre o nosso entorno.<br />
Uma educação que coloque a ética como um eixo central é de suma importância no processo de<br />
qualifi cação da cidadania. Falta, nos processos educativos, o desenvolvimento da sensibilidade<br />
e consciência ética em cada pessoa. Carecemos de uma educação que, no lugar de promover<br />
tanta competição e individualismo, invista na cooperação e sentido coletivos, assim como a<br />
interconexão entre diferentes saberes.<br />
Precisamos repensar como reorientar os programas educativos para que promovam melhores<br />
sociedades. Isto deve ocorrer para que os interesses coletivos e do bem comum prevaleçam sobre<br />
os interesses individuais, da mesma forma que o respeito e cuidado à vida estejam refl etidos no<br />
estilo de vida de todos. Devemos lembrar que a meta da educação não é simplesmente preparar<br />
os estudantes para ter carreiras produtivas de sucesso profi ssional e fi nanceiro, mas também,<br />
e sobretudo, para que sejam capazes de contribuir para o melhoramento do bem-estar da<br />
humanidade e do bem comum.<br />
O professor John Fien, da Austrália, levanta a seguinte pergunta: “Como levar esta mensagem<br />
aos estudantes que estão crescendo em um mundo orientado pelo consumismo e o materialismo,<br />
onde sua própria identidade esta defi nida não pelo que você é, mas pelo que você veste, pelo<br />
tipo de casa que você vive, pelo carro que você anda e pelo tipo de férias que você desfruta? O<br />
que está por detrás destes valores destorcidos?”<br />
Nessa procura de uma base ética e princípios para construir uma melhor sociedade podemos<br />
encontrar na Carta da Terra um instrumento útil. No preâmbulo desta Carta encontramos a<br />
seguinte refl exão: “Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem atingidas, o<br />
desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais, e não a ter mais”.<br />
77
78<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A Carta da Terra é uma declaração ou marco de valores e princípios que nos orientam a um<br />
mundo mais justo, sustentável e pacífi co. E é também uma iniciativa internacional que envolve<br />
indivíduos e instituições, que a utilizam de diferentes formas e a incorporam em seus trabalhos<br />
e atividades.<br />
Para melhor ilustrar isto, imaginemos a Iniciativa da Carta da Terra como uma moeda: em um<br />
lado encontramos a teoria ou a base fi losófi ca que nos orienta, ou melhor, que nos dá a direção<br />
para onde ir. Do outro lado, temos a prática, as ações do cotidiano. Um lado não pode existir<br />
sem o outro, já que a teoria sem a prática é vazia e não tem sentido, da mesma maneira que a<br />
prática sem teoria não tem direção.<br />
A legitimidade da Carta da Terra deriva do seu conteúdo (diverso, inclusivo e que, ao mesmo<br />
tempo, capta pontos chaves de documentos e declarações internacionais elaborados na década de<br />
90), de seu processo de redação amplo e participativo; e do crescente movimento de indivíduos e<br />
organizações que a adotam como marco referencial e a aplicam em suas áreas de ação. A Iniciativa<br />
da Carta da Terra oferece um bom exemplo de movimento da sociedade civil que envolve indivíduos<br />
e organizações de todas a regiões do mundo e de várias áreas de especialidade (ciência, direito<br />
internacional, ética e teologia) que utilizam a Carta da Terra de várias formas criativas.<br />
A Carta da Terra tem 16 princípios organizados em quatro partes, sendo estas: respeito e<br />
cuidado à comunidade de vida, integridade ecológica, justiça econômica e social e democracia,<br />
não violência e paz. Como documento, aborda temas chaves como: a necessidade de planejar a<br />
longo prazo; responsabilidade compartilhada; visão integral ou pensamento sistêmico.<br />
Por isso a Carta da Terra pode ser percebida como um marco prático que integra os temas de justiça<br />
social, direitos humanos, proteção ambiental como partes de um todo, ou seja, com a visão sistêmica<br />
do desenvolvimento sustentável. Ela pode ser considerada como um mapa que nos orienta em direção<br />
à sustentabilidade, que nos indica onde estamos e qual o caminho que devemos tomar. É um marco<br />
que integra a agenda de paz e sustentabilidade, com a proteção ambiental, os direitos humanos e a<br />
justiça social, os quais muitas vezes são vistos de forma fragmentada ou desarticulada.<br />
Entretanto, é importante reconhecer que existe uma certa confusão sobre o signifi cado do<br />
desenvolvimento sustentável. Todo o contexto do surgimento deste termo foi justamente gerado<br />
pela compreensão de que os recursos naturais são limitados (e não ilimitados como se achava),<br />
assim também como pela necessidade de ver as conseqüências de determinados problemas,<br />
como, por exemplo, do crescimento da pobreza no ambiente ou da degradação ambiental<br />
gerando confl itos. Quando se fala em desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade, é<br />
importante entender o sentido de “desenvolvimento” não simplesmente como crescimento<br />
econômico, mas sim no sentido real de desenvolvimento, o qual busca, tendo em vista o futuro,<br />
assegurar a qualidade de vida, restaurar o sentido de cuidado e respeito a todos os seres<br />
vivos, assim também como incentivar o sentido de responsabilidade no uso racional de recursos<br />
naturais. É preciso recuperar o sentido completo de desenvolvimento como um processo social,<br />
econômico, político, cultural e ambientalmente integrado.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
Especialmente o desenvolvimento sustentável requer a passagem de uma visão fragmentada,<br />
tradicional e limitada de cada questão para uma abordagem sistêmica ou integral, onde se<br />
permite ver a interdependência dos temas e problemas.<br />
O tema da sustentabilidade envolve: a) qualidade de vida; b) processos participativos; c) interconexões<br />
entre o bem-estar social, a economia e o meio ambiente; d) responsabilidade compartilhada.<br />
Por isso, para poder compreender melhor o que é desenvolvimento sustentável é preciso:<br />
•<br />
•<br />
•<br />
Distinguir entre desenvolvimento e crescimento econômico.<br />
Compreender as conseqüências a longo prazo de uma ação tomada hoje, ou seja, o<br />
sentido de responsabilidade compartilhada com as gerações futuras.<br />
Familiarizar-se com o conceito geral de “sistemas” (a relação entre diferentes partes,<br />
temas e questões).<br />
É justamente devido à necessidade de acelerar o processo de compreensão e implementação<br />
do desenvolvimento sustentável que se lançou a Década das Nações Unidas de Educação para<br />
o Desenvolvimento Sustentável (2005 – 2014). Esta década busca envolver a todos interessados<br />
para alcançar o objetivo geral de integrar os princípios, valores e práticas do desenvolvimento<br />
sustentável em todas as facetas da educação e aprendizagem. Um dos objetivos específi cos deste<br />
esforço é proporcionar oportunidades para afi nar e promover a perspectiva do desenvolvimento<br />
sustentável e a transição para o mesmo mediante todas as formas de educação. Além disto, a<br />
Unesco adotou, durante sua Conferência Geral em outubro de 2003, a decisão de “reconhecer<br />
a Carta da Terra como um instrumento educativo, especialmente no contexto da Década de<br />
Educação para Desenvolvimento Sustentável”.<br />
Seria interessante notar que o México, a Costa Rica e a Argentina lançaram uma estratégia<br />
ou compromisso nacional para implementar esta Década de Educação para o Desenvolvimento<br />
Sustentável. No caso do México, diferentes instituições do governo federal, especialmente<br />
da Secretaria de Educação e Secretaria do Meio Ambiente, lançaram o Compromisso Nacional<br />
pela Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Este Compromisso procura<br />
tornar realidade o desenvolvimento sustentável no México; permitir aos cidadãos participar<br />
criticamente nas tomadas de decisões para defi nir a direção em que o desenvolvimento nacional<br />
deve seguir e gerar atitudes e as habilidades necessárias para confi gurar uma ação social bem<br />
informada, que incida na prevenção e solução dos problemas de cada grupo social.<br />
No caso da Costa Rica o Compromisso Nacional pela Década da Educação para o Desenvolvimento<br />
Sustentável foi assinado por todos os ministros do governo atual e pelo presidente da<br />
República como um compromisso que deve envolver os diferentes setores do governo. Neste<br />
documento se menciona, entre outros, os seguintes compromissos da Costa Rica: a) abordar<br />
de forma integral a Educação para o Desenvolvimento Sustentável, utilizando os princípios da<br />
79
80<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Carta da Terra como marco de referência; b) promover o enfoque transdisciplinar e holístico da<br />
Educação para o Desenvolvimento Sustentável em todos os programas educativos, desde o nível<br />
pré-escolar até a educação superior; c) estabelecer projetos de educação formal, não formal e<br />
informal, sobre os temas relacionados com a Educação para o Desenvolvimento Sustentável.<br />
É importante destacar estes compromissos, pois é essencial poder contar com políticas<br />
públicas que os assumam e os incorporem em atividades concretas guiadas por uma visão<br />
nacional, o que estimula a criação de projetos e ações.<br />
Mas o que é Educação para o Desenvolvimento Sustentável? Entendemos que a Educação para<br />
o Desenvolvimento Sustentável deve promover mudanças de comportamento fundamentais e<br />
contar com várias perspectivas de todos os campos do desenvolvimento humano. Ela deve ser:<br />
•<br />
•<br />
•<br />
Participativa e inclusiva<br />
Interdisciplinária e contextual<br />
Transformadora<br />
Provavelmente, isso implica em uma necessidade de desenvolver uma abordagem pedagógica<br />
completamente nova. A proposta de incorporar o conceito de desenvolvimento sustentável<br />
de forma interdisciplinar nos processos educativos implica superar a abordagem tradicional,<br />
fragmentada da educação, mediante ação e refl exão que conduza a uma visão integral.<br />
A Carta da Terra pode contribuir com o esforço da Educação para o Desenvolvimento Sustentável,<br />
já que esta oferece uma visão integral e aclara o signifi cado do que é desenvolvimento sustentável.<br />
Como resultado de um fórum de discussão sobre o papel da Carta da Terra na educação<br />
identifi cou-se que ela pode ser utilizada para alcançar os seguintes objetivos educativos:<br />
Conscientização – o primeiro desafi o da educação é motivar as pessoas a atuar de forma mais<br />
social e ambientalmente responsável. Para isto, é necessário um processo de sensibilização<br />
para a relação existente entre a problemática ambiental, social e econômica.<br />
Conhecimento – oferece informação básica aos estudantes, o que permite formar<br />
critérios para maior compreensão dos conceitos relacionados à problemática atual e<br />
que, ao mesmo tempo, possam atuar como agentes de mudança.<br />
Aplicação de valores e princípios – a parte principal da Carta da Terra está orientada<br />
à ação e pode funcionar como um guia para estilos de vida mais sustentáveis.<br />
Um chamado à ação<br />
– a Carta da Terra conclui com um chamado à ação através de<br />
alianças entre governos, sociedade civil e o setor privado.
Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />
É preciso que os processos atuais de formação promovam valores, estilos de vida e comportamento<br />
ético necessários para um futuro melhor para todos. Devemos nos atrever e tomar este<br />
desafi o de reinventar nossos processos educativos e abordagens pedagógicas para assegurar a<br />
construção de sociedades mais justas e sustentáveis.<br />
Referências<br />
Levando a Sustentabilidade às Classes de Aula: Um Guia da Carta da Terra para Educadores<br />
Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável: documento<br />
fi nal; Plano Internacional de Implementação 2005<br />
http://www.unesco.org.br/publicacoes/livros/decadaeducacao/mostra_documento<br />
Mirian Vilela é diretora do Centro Carta da Terra de Educação para o Desenvolvimento<br />
Sustentável, na Costa Rica.<br />
81
Histó
Histó<br />
INTRODUÇÃO<br />
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Aiêska Marinho Lacerda Silva<br />
A idéia de colocar neste livro um caderno que comentasse as atividades realizadas durante<br />
o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN foi para que outros educadores pudessem<br />
refl etir sobre suas práticas pedagógicas diárias, em meio aos problemas de todo ambiente (e<br />
não meio ambiente) vividos no planeta Terra neste inicio de século XXI. Compartilhar.<br />
Quando começamos a construir o PJCAN, estávamos diante de um grande desafi o: fazer com<br />
que os participantes entendessem que ele não era um projeto “pronto”, acabado, mas sim<br />
algo a ser feito por muitas mãos: adultas e muitas vezes experientes, dispostas a ajudar, outras<br />
adolescentes, ávidas por realizar, e muitas mãos infantis que queriam e podem construir um<br />
novo futuro.<br />
Por isso o caderno de atividades agora no fi nal do livro, e não no início do projeto como uma<br />
linha diretriz. Ele é um dos resultados obtido ao longo de muitos exercícios, de muitas refl exões<br />
e práticas diárias, vividas nas escolas envolvidas no projeto.<br />
A intenção fi losófi ca e pedagógica do PJCAN ao capacitar os professores, as comunidades bem<br />
como os estagiários − nossos “braços a campo”, que estiveram durante todo o tempo com os<br />
alunos dentro de cada escola participante − era e é que todos pudessem experimentar e mudar<br />
sua ótica na prática de ensinar, que não replicassem fórmulas, mas, sim, construíssem saberes;<br />
que ao ensinar, discutir, e vivenciar os princípios da Carta da Terra conseguissem fazer refl exões<br />
e análises locais, as quais tivessem real signifi cado para cada comunidade, levando-se em conta<br />
todas as relações que nela acontecem, e que, a partir dessa prática se promovesse o impulso<br />
necessário para que cada cidadão tome para si o rumo do seu destino e do seu processo de<br />
construção de aprendizado a partir do lugar onde vive.<br />
Era enfrentar o desafi o de aprender e ensinar de forma global, planetária, e alfabetizar<br />
para a vida.
84<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
O resultado dessas atividades é fruto da construção dos estagiários e de todos os educadores (aqui<br />
incluídos absolutamente todos que fazem parte do quadro de funcionários e voluntários) das escolas<br />
envolvidas no PJCAN, as da região do Pontal do Paranapanema e as da cidade de Sumaré.<br />
As atividades são parte do resultado do PJCAN, outras partes sabemos que serão agregadas<br />
pela concretização do projeto escrito e implantado por cada uma das escolas envolvidas, como<br />
“lição de casa, comprometimento e engajamento na ação”.<br />
O processo de construção dessas atividades é legítimo e merece ser comentado para que se<br />
possa ter uma idéia do modo que foi percorrido.<br />
Precisa e deve ser melhorado, recriado, acrescido e multiplicado, assim é viver a Carta da<br />
Terra – um mais um nunca é igual a dois, é sempre igual a muitos, principalmente quando se<br />
pensa em crianças e jovens que ainda não podem caminhar sozinhos e que dependem das nossas<br />
atitudes e ações para lhes indicar a direção, tornar o trajeto menos duro, e construir pontes,<br />
para que se possa fazer travessias e escolhas ao longo da vida.<br />
Era preciso repensar a escola, pô-la em causa. A que existia não funcionava - os professores<br />
precisavam mais de interrogações do que de certezas. Concluímos que só pode haver um<br />
projecto quando todos se conhecem entre si e se reconhecem em objectivos comuns.<br />
Apercebemo-nos que um dos maiores óbices ao desenvolvimento de projectos educativos<br />
consistia na prática de uma monodocência redutora que remetia os professores para o<br />
isolamento de espaços e tempos justapostos, entregues a si próprios e à crença numa<br />
especialização generalista. Percebemos que se há alunos com difi culdades de aprendizagem,<br />
também os professores têm difi culdades de ensino. Obrigar cada um a ser um outro-igual-a<br />
todos é negar a possibilidade de existir como pessoa livre e consciente [...] 9<br />
O processo de construção e integração das atividades à rotina das escolas<br />
No meio do caminho tinha uma pedra<br />
tinha uma pedra no meio do caminho<br />
tinha uma pedra<br />
no meio do caminho tinha uma pedra.<br />
Carlos Drummond de Andrade<br />
Uma das primeiras “pedras” a ser vencida foi fazer entender a professores e coordenadores<br />
que trabalhar por projetos não é “arrumar mais serviço para eles” – e, para assegurar nosso<br />
propósito, a cada escola disponibilizamos um estagiário. 10<br />
9 Escola da Ponte. Disponível em: http://www.eb1-ponte-n1.rcts.pt/html2/portug/historia/historia.htm. Acesso em: 15/06/07.<br />
10 Estimou-se uma demanda de um estagiário para cada 300 crianças.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Outra foi mostrar que, ao se trabalhar por projetos, o professor exerce o papel de mediador,<br />
de intercessor das interações. Sua função maior é ser facilitador, o “despertador”, “o provocador<br />
da coceira da curiosidade” que resulta em querer pesquisar; o professor deve ser “ajudante”<br />
no resgate da cultura local, “aliciador” ao unir saberes, e “cúmplice” em viver a educação de<br />
forma humana e planetária.<br />
Unir a prática do PJCAN, nos currículos e cronogramas das escolas num ano letivo já iniciado (2006)<br />
e mostrar que os princípios da Carta da Terra não são modismos temporais, mas sim uma ferramenta<br />
pedagógica, foi outra pedra a ser transposta. As escolas não conheciam a Carta da Terra.<br />
Para começarmos as ações e aproximações, tomamos por base no início dos trabalhos fazer análises<br />
refl exivas e caracterizações das escolas, questionários sobre infra-estrutura e dinâmica das escolas,<br />
questionários para professores, e as análises dos PCNs realizadas pelos estagiários em cada escola.<br />
Sabíamos que os conteúdos das disciplinas deveriam ser trabalhados de forma conceitual,<br />
atitudinal e procedimental. Partimos do pressuposto que a grande maioria dos professores<br />
dominava a forma de ministrar seus conteúdos conceitualmente.<br />
Por que não se constatavam mudanças e busca por soluções diante das situações nas localidades<br />
que se agravava a cada dia? “Repetência, violência, desânimo, descrédito, abandono, falta de<br />
respeito mútuo, desinteresse, e desequilíbrio. O que era preciso ser repensado? Refl etido e<br />
colocado em prática?”. Uma pedreira inteira: afi nal como se ensina a mudar? Basta querer<br />
ensinar? Como é possível colocar as idéias a funcionarem, como é possível romper paradigmas<br />
de prática da educação formal tão arraigados decorrentes das formações que cada um de nós<br />
professores temos nas universidades? Qual é o Projeto Político Pedagógico – PPP dessa escola?<br />
Tem a “cara da escola?” Como construí-lo, reconstruí-lo de forma legitima? Como inserir o<br />
PJCAN no PPP da escola?<br />
Pegamos todas a pedras do caminho e fi zemos um caminho. Construir.<br />
A aplicação das atividades nas escolas e comunidades<br />
A cada encontro mensal, discutiam-se de um a dois princípios da Carta da Terra para Crianças,<br />
adaptação feita pelo <strong>Instituto</strong> Naia para o público infantil, ferramenta utilizada como geradora<br />
para se começar a discutir as relações e práticas da construção do aprendizado nas escolas.<br />
Vale lembrar que todos os princípios da Carta da Terra, seja ela a para “adultos” (original)<br />
ou para crianças (adaptada), estão interligados, não é mandatório ater-se à “ordem que são<br />
apresentados” (seqüência numérica). Pode-se trabalhar alternadamente, de acordo com a<br />
situação vivida no momento é possível trabalhar em conjunto com outro princípio, aliar e<br />
otimizar o conteúdo de toda e qualquer disciplina, de qualquer tema ou eixo transversal, basta<br />
para isso ter visão sistêmica, integrativa e criativa na sua utilização.<br />
85
86<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Todas as observações feitas nas visitas às escolas durante a supervisão a campo, e<br />
as informações trazidas pelos estagiários de inúmeras situações acontecidas durante o<br />
processo de ensino nas escolas foram os subsídios para a construção das atividades.<br />
Algumas das situações encontradas, debatidas e trabalhadas, que geraram as<br />
atividades aplicadas<br />
Por que a merenda servida é desperdiçada? Por que há excesso de pombos em algumas<br />
das escolas? 11 Por que há escassez de água em algumas escolas? Qual o caminho que<br />
essa água percorre para chegar à escola? E até as residências? Qual a situação dos rios<br />
locais? Por que o córrego que passa atrás da escola virou esgoto? Se a escola estava feia,<br />
maltratada, discutia-se quem é o responsável por isso. Como tornar o ambiente mais<br />
agradável, fisicamente e emocionalmente para todos?<br />
Por que a erosão está levando o pátio da escola barranco abaixo? Por que não temos<br />
muitas árvores nas escolas? O que é o cuidado da coisa coletiva, da coisa pública, das<br />
nossas coisas? Quanto e quando a comunidade participa das coisas da escola?<br />
Por que alunos pequenos são agressivos com professores? Por que as crianças não<br />
podem comer com talheres (garfo e faca) e com pratos de vidro? Por que todos têm de<br />
estar em absoluto silêncio e são instados a “calarem as vozes” quando o professor expõe<br />
o tema da aula? Quando e como se participa da vida em comunidade? Como meu bairro<br />
surgiu? Por que hoje ele está assim? Como é a história da minha escola? Por que ela tem<br />
esse nome? Onde ela começou?<br />
Onde estamos localizados, como funciona a escola, o comercio, a prefeitura? O que<br />
eles têm a ver com a escola, como são as relações entre o entorno da escola e a escola?<br />
Afinal, que local é esse? Que país é esse? O que isso tem a ver comigo? Conosco? Com o<br />
planeta? O que é mais importante agora e que podemos fazer juntos?<br />
Com isso, violência, exclusão, miséria, maus-tratos, ética, desestruturação familiar,<br />
degradação do ambiente, poluição, merenda de má qualidade, atitudes, valores e princípios,<br />
foram discutidos, debatidos, entendidos, revistos e praticados.<br />
Acordos e “combinados” foram colocados em prática e levados a termo por todos.<br />
Problemas e soluções buscados, discutidos e esmiuçados; pais, mães, tios, avós, diretoras,<br />
professoras e todo o corpo docente das escolas; moradores e vizinhos chamados a<br />
participar, a dar depoimentos, ensinar, compartilhar de suas experiências.<br />
11 Descobrimos que os pombos ali estavam pelos restos de merenda desperdiçada e jogada pelo pátio da escola.
Recursos<br />
12 Títulos de atividades, encontradas adiante.<br />
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Cada atividade foi construída de acordo com os recursos disponíveis na localidade, nas<br />
escolas, e com os ativos que muitas vezes, muito embora disponíveis, eram difíceis de ser<br />
enxergados: reuso de materiais, reciclagem de outros, redução do uso de bens naturais como a<br />
água. Uso parcimonioso e compartilhado de outros recursos.<br />
Idéias eram trazidas pelos estagiários. É para aprender brincando, fantasiam-se de palhaços<br />
e se ensina brincando. É para tratar de desperdício, vamos fazer um fi lme que fale disso. É para<br />
abordar a situação do bairro, vamos trazer os moradores mais antigos para que nos contem a<br />
história de como esse bairro começou e como chegou até aqui. A questão era atitude, sujeira na<br />
escola, falta de cidadania, falta de lazer para todos do bairro, constroem-se parques ecológicos.<br />
É para reaproveitar, vamos utilizar jornal e confeccionar caixas e mesas, e que possam servir de<br />
fonte de renda para muitos pais. A cada problema levantado, estudo e apresentação de idéias<br />
criativas: ervas medicinais, pomares, núcleos de reestruturação familiar, hortas.<br />
Toda situação em que se enxergava a possibilidade de aprendizagem e vivência, cada um dos<br />
alunos e seus professores tiveram a oportunidade de refl etir e repensar valores e atitudes, fazer<br />
refl exões e praticar novas ações.<br />
Foi assim que começamos a falar de tudo, a falar da relação de cada um com o espaço onde<br />
morava, com a escola onde estudava, com os professores e coordenadores, com o mundo,<br />
Foi o início da apropriação e do sentimento de pertencimento, de fazer parte do lugar onde<br />
se vive, de entender os porquês, e de começar a se discutir o que queríamos e poderia ser<br />
transformado, juntos. Foi reatar a capacidade e o direito de sonhar; a possibilidade de colocar em<br />
prática alguns dos sonhos de experimentar que somos capazes de realizar, através da Árvore dos<br />
Sonhos, e também de desabafar cada um dos descontentamentos no Muro das Lamentações 12 .<br />
A cada um dos princípios da Carta da Terra abordado e a cada atividade realizada eram descortinados<br />
um mundo de outras novas possibilidades, de trabalhos e de novas atividades sobre todos os conteúdos,<br />
sempre um desafi o novo de mostrar que trabalhar assim era possível. Inter, multi e transdisciplinaridade.<br />
Era como se jogar pedras num lago: círculos e mais círculos se abrindo sem fi m.<br />
A cada dia as descobertas vêm acompanhadas de um leque de novos questionamentos; podese<br />
discutir o todo e o tudo que acontece diariamente nas nossas vidas e no lugar onde vivemos<br />
e com as pessoas que nos cercam.<br />
Isso acontece tão naturalmente que muitas vezes não é preciso papel e lápis, giz e saliva,<br />
fi lmes e livros complexos ou outros recursos tecnológicos sofi sticados; é preciso ouvir e observar<br />
e estar pronto a participar e a agir.<br />
87
88<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Muitas vezes, de tão simples no modo de fazer, as atividades eram consideradas muito complexas<br />
de se entender. E como suscitavam mudanças, mais complexas ainda de se colocar em prática.<br />
Segundo Celso Antunes, trabalhar e implantar projetos é buscar a qualidade e a essência é<br />
buscar caminhos.<br />
A criança, o adolescente que aprende a trabalhar em projetos, não aprende apenas coisas, ele<br />
aprende a aprender. É possível afi rmar que uma pessoa bem sucedida é uma pessoa que tem projetos. E<br />
que, portanto, quando aquela escola onde cresce trabalha com projetos, ele aprende uma metodologia<br />
de ação que acaba ajudando-o a ser uma criatura mais completa, a desenvolver um trabalho com<br />
mais efi ciência. Enquanto escolas que trabalham saberes podem sentir a perenidade destes saberes,<br />
trabalhar por projeto não, porque o projeto envolve mais a compreensão do aluno em uma metodologia<br />
de ação diante do desafi o do que o acúmulo de conhecimentos; isto envolve este tipo de perenidade.<br />
Asseguramos que todos os participantes foram provocados e instigados a pensar incessantemente<br />
e de formas diversas, a construir a partir dos princípios da Carta da Terra as atividades e outras<br />
tantas e diversas formas de abordagem e novas práticas de ensinar e aprender. Façamos uso delas.<br />
As atividades apresentadas validam as experiências e fatos do dia a dia da maioria das<br />
escolas do Brasil. Em conjunto, todos os envolvidos trataram das questões universais e locais,<br />
abordados principalmente sob a ótica dos quatro grandes eixos da Carta da Terra: integridade<br />
ecológica, justiça econômica, justiça social e democracia, não violência e paz.<br />
Desejamos que durante a leitura das atividades 13 cada participante do PJCAN possa encontrar<br />
um pouco de si, um pouco da enorme contribuição que nos deu, amorosa e esforçadamente para<br />
que se chegasse até aqui.<br />
Aos demais, esperamos que no dia a dia da sua prática educacional e de ser humano na<br />
essência, todas as experiências e conhecimentos aqui relatados possam ser úteis, que sejam<br />
enriquecidas com o acréscimo do saber de cada um, e que solidariamente possamos ajudar a<br />
construir um caminho melhor para todos que vivem nesse planeta chamado Terra.<br />
Aiêska Marinho Lacerda Silva é pedagoga da Pontifícia Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> –<br />
PUC/SP, especialista em Gestão Ambiental pela Universidade de Santo Amaro – Unisa, em<br />
Administração de Organizações do 3º Setor – USP, e em Programas de Desenvolvimento Local e<br />
Humano pela Organização Internacional do Trabalho/Programa de Desenvolvimento das Nações<br />
Unidas – OIT/Pnud. Consultora de desenvolvimento local e territorial e para a área de estratégias<br />
da cultura da cooperação pelo Sebrae/São <strong>Paulo</strong>, é supervisora pedagógica e capacitadora de<br />
programas de desenvolvimento humano e programas educacionais por meio do <strong>Instituto</strong> BioMA.<br />
13 Não pudemos colocar todas, por isso elegemos as de maior impacto de mudança e signifi cação, dentro dos contextos de cada<br />
escola e a cada período em que foram realizadas.
EDUCAR PARA REAPROXIMAR DA TERRA 14<br />
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Kleber Maia Marinho<br />
A princípio, a proposta parece clara e simples, mas, paradoxalmente, não deixa de ser<br />
complexa e laboriosa.<br />
O uso do prefi xo “re” ligado ao verbo − “aproximar” − indica que em outro momento a<br />
Terra nos era próxima, ou seja, que já fomos íntimos. A escolha do verbo e não do substantivo<br />
− “reaproximação” − é proposital, pois à medida que este fecha, nomeia e, portanto conclui,<br />
aquele abre, atua variavelmente, fl exiona-se tal qual um camaleão que se adapta ao meio<br />
conforme a exigência plural de cada situação vivida.<br />
Para entender o que ocorre com a Terra hoje, há de se retornar ao passado e refl etir sobre<br />
como se deu o desenvolvimento da consciência ao longo da história da humanidade. Impossível<br />
discriminar um do outro; aliás, nem haveria de ser diferente, pois foi justamente o processo de<br />
aquisição da consciência que nos tornou Homo sapiens sapiens, que, por sua vez, ironicamente,<br />
isso sim constitui um fato que nos discrimina do resto dos seres vivos.<br />
Ao analisar desenhos, mitos de criação e todo registro histórico do humano primitivo,<br />
verifi ca-se a projeção de Deus sobre a fi gura de animais (lobo, urso e outros), bem como sobre<br />
elementos da natureza tal qual o Sol e a Lua. Ora seria, por exemplo, uma loba divina, que ao<br />
salvar os irmãos Rômulo e Remo origina o povo romano, ora um Deus Sol, que ao passear pelo<br />
céu em uma carruagem puxada por cavalos traz luz e vida para a Terra.<br />
Portanto, nessa fase, o ser humano vivia em um estado de imersão, por assim dizer, com a<br />
Terra. Sendo assim, natureza e ser humano faziam parte de uma totalidade, na qual o último<br />
estava de fato incluído no primeiro e vice-versa. Não havia a separação comumente encontrada<br />
nos dias vigentes, possível de ser constatada ao indagar crianças e até adultos: “o que é<br />
natureza?” E, obter como resposta: plantas, bichos árvores, matas e, quase nunca: homem,<br />
mulher, ser humano, eu ou você. Entretanto, na época primitiva a natureza apresentava-se de<br />
forma anímica, fazendo-se próxima do humano em um convívio de totalidade, isto é, era parte<br />
infl uente e integrante do dia-a-dia do humano, fosse para caçar, celebrar, prantear, rezar, entre<br />
outras tantas atividades cotidianas.<br />
Nesse sentido, é possível delinear um paralelo quanto ao desenvolvimento da consciência da<br />
criança em relação ao seu mundo circundante. No início da vida, não há uma autopercepção<br />
propriamente constituída por parte do bebê no tocante ao entorno universal. Para o recém-<br />
nascido, a mãe é sua principal fonte de referência e reconhecimento. Nesse estágio, a criança<br />
14 Esta é a primeira parte de um texto escrito em duas partes - que virá a seguir -, por dois diferentes autores, cuja proposta fi nal une<br />
as idéias de ambos.<br />
89
90<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
está unida à mãe em um processo que a psicologia chama de simbiose, ou seja, seria como se<br />
a mãe, sua voz, seu rosto e tudo mais fosse uma extensão do bebê. Lacan (1998), usando o<br />
espelho como metáfora, explica que, nos primeiros meses de vida, a criança olha-se no espelho<br />
e percebe sua imagem como se fosse um outro corpo real, do qual tenta aproximação e até se<br />
apoderar. Nesse momento, ela não possui uma imagem da totalidade de seu corpo, o qual se<br />
confi gura despedaçado (corps morcelé). Aos poucos, percebe que o refl exo no espelho não é um<br />
ser real, mas uma imagem e, por isso, pára de procurá-lo atrás do espelho. E, fi nalmente, em<br />
uma última fase, reconhece que a imagem é o refl exo de si; ocasião em que se nota um grande<br />
interesse pelo movimento do corpo, pela ação e por brincar.<br />
Resulta que somente após um processo lento e gradual a criança começa se aperceber no<br />
mundo como um ser autônomo, sendo que dependerá sobretudo da qualidade e do suporte do<br />
vínculo parental estabelecido para que ocorra o salutar desenvolvimento da autonomia com<br />
confi ança, equilíbrio e plenitude.<br />
Poderíamos então notar que em ambos os casos mencionados, tanto o homem primitivo quanto<br />
o bebê pertenceram a um estágio de mergulho no inconsciente, isto é, estiveram imersos em<br />
um todo indiferenciado cuja discriminação inexiste. Não há constituição do ego/eu. Portanto,<br />
resguardadas as diferenças, podemos traçar uma analogia entre a passagem ao estágio de Homo<br />
sapiens sapiens 15 , pelo menos no que tange o desenvolvimento da consciência, como equivalente<br />
ao que ocorre com uma criança entre o nascer e os primeiros meses de vida.<br />
Dessa forma, análogo à criança, o ser humano foi experimentando a vida e formando seu<br />
ego. Inevitavelmente, chamamos isso de “evolução”, o que, de certo modo, signifi ca dizer que<br />
atribuímos à evolução tudo que pertence à consciência, os aspectos formais, racionais e todos<br />
os códigos normativos, jamais aspectos do inconsciente como, por exemplo, a criatividade, o<br />
sentimento, a sensação ou a intuição.<br />
Entender esse processo, ajuda-nos a compreender o caminho da história humana até chegar<br />
ao panorama atual.<br />
Saímos de um estágio de vida planetária primitiva, indiferenciado e predominado pelo estado<br />
inconsciente, regido pelos instintos de sobrevivência cujo centro da vida era identifi cado na<br />
coletividade, sem discriminação ou noção de autonomia. Deu-se, por essa via, o processo histórico de<br />
mundo que hoje conhecemos. O ser humano então começa a ter consciência, experimentar o mundo,<br />
conhecer instrumentos, mecanismos e, fi nalmente, adquire conhecimento. Em seguida, inicia-se<br />
o processo de trabalho e o Homo sapiens é fragmentado, torna-se quase somente Homo faber,<br />
15 Homo sapiens (homem sábio): nome da espécie homem na nomenclatura de Lineu, cunhado pela primeira vez na obra Sistema da<br />
Natureza, em 1735. Mais adiante a expressão foi retomada por Henri Bergson (2006) para indicar o homem, único animal inteligente<br />
em face aos demais.<br />
Homo faber (homem artífi ce): locução também empregada por Henri Bergson (2006) para designar o homem primitivo ante a necessidade<br />
de forjar ele próprio os utensílios indispensáveis à manutenção da vida. ARENDT (1991), ao retomar tal conceito, produz um<br />
bom apanhado crítico sobre o histórico do Homo faber.<br />
Homo ludens (homem lúdico): refere-se à importância do lúdico, inerente ao homem, nas realizações humanas, especialmente nas<br />
de caráter intelectual. O historiador holandês Huizinga (2001) foi um dos primeiros a enfatizar o termo, que deu origem a um movimento<br />
contracultural que se opõe ao Homo faber, isto é, aquele que faz.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
deixando o Homo ludens à míngua. Partindo do Renascimento, passa-se pela Revolução Industrial e,<br />
enfi m, chega-se até a Revolução Francesa para defi nitivamente saudar a razão com luzes, êxtase e<br />
vibração. A partir de então, após esse longo caminho, o mundo não seria mais o mesmo. A construção<br />
epistemológica não teria outra chance, a não ser seguir a mesma trilha empirista, que nega a fé dos<br />
tempos teocêntricos com outra fé tão equivalente quanto aquela, cujo Deus trocava apenas seu<br />
nome para Razão, a qual, desta vez, aplicava toda Sua força à ciência monolítica.<br />
Sobre esse ponto, faz-se interessante notar que a psique age por função compensatória, ou seja,<br />
busca o equilíbrio (homeostase) por meio de um princípio autônomo de auto-regulação (JUNG,<br />
1984, 1991, 2000). Portanto, o fenômeno de fusão com o inconsciente que existia originalmente<br />
entre ser humano e mundo, verifi cado também entre indivíduo e grupo (NEUMANN, 1995),<br />
dirigiu-se ao seu oposto, que signifi ca a saída do ego de um núcleo, digamos, grupal, coletivo e<br />
inconsciente rumo ao nascimento da consciência, à conquista da individualidade. Assim, o ser<br />
humano que antes era parte integrante da psique coletiva do seu grupo, enveredou pelo caminho<br />
da unicidade constitutiva do indivíduo, que pode ser compreendida como uma busca psíquica<br />
compensatória natural. A questão crucial é o grau da medida, visto que não é possível residir em<br />
apenas uma das polaridades, pelo menos, sem que haja sérios agravos e danos.<br />
Erro foi, nesse percurso, acreditar que o pensamento pré-logico constituía incapacidade<br />
de pensar logicamente. Contrário ao que a corrente racional tentou promover por ignorância<br />
ou preconceito, o ser primitivo − assim como, por exemplo, o índio − sempre foi capaz de tal<br />
atributo, mas, obviamente, inserido em uma cosmovisão orientada por uma logicidade diferente<br />
do ser humano secularizado, pois a orientação, antes imbuída pelo inconsciente, guiava-se por<br />
funções psicológicas esquecidas como o sentimento, a intuição, a sensação, e não meramente<br />
regida pela única e exclusiva lógica da consciência e do pensamento que sobrepuja qualquer<br />
outra forma de interação com o mundo (NEUMANN, 1995).<br />
Desse modo, o ser humano foi fragmentado e se tornou um ser monolítico, surdo e insensível<br />
aos seus próprios recursos humanos, que continua a insistir em agir como se fosse possível<br />
compartimentar sentimento, sensação, intuição e pensamento e, ainda, como se não bastasse,<br />
consegue outra subdivisão de si em corpo e mente.<br />
A visão compartimentada, cientifi cista, linear, cartesiana, estruturalista, piagetiana,<br />
vigostkiana, entre inúmeras modalidades construtivistas arraigadas nos discursos de métodos,<br />
louvados especialmente no século XVII, conseguiu fundar o ser humano disciplinar, socialmente<br />
enquadrado e regrado, que para dizer o mínimo, tornou-se monocular, senão defi ciente visual<br />
(D’AMBROSIO, 2001).<br />
As fi chas foram apostadas no modelo binômico taylorista/fordista cuja estrutura de trabalho<br />
valorou o potencial humano como um produto fi nal da razão encontrada entre a relação:<br />
efi ciência e efi cácia, que, mais uma vez, fez-nos cindir, mesurando o humano em tempo<br />
produtivo e agente de ação técnico-linear; era o nascedouro do especialista.<br />
91
92<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Nesse cenário, não fi ca tão difícil compreender qual rumo a concepção de propriedade tomou<br />
em nossa história. O ser humano antes coletivo não conseguia se diferenciar da coletividade, do<br />
seu meio, o qual o incorporava para si. Então, parte para o pólo oposto, individualiza cada vez<br />
mais sua ação e fragmenta seu ser em busca da amplitude do conhecimento, de novos valores<br />
e, por conseguinte, reconhecimento social. Ocorre, portanto, a inversão de uma ordem que<br />
outrora se estruturava em uma instância macro, para o universo micro.<br />
A intenção é “reduzir”, não como se começa a apregoar na atualidade, em termos de<br />
estabelecer uma redução que pretende frear o consumo excessivo, economizar a fi m de evitar<br />
o esgotamento, para preservar, não!<br />
A idéia é outra, a redução havia de ocorrer porque a construção epistemológica pautava-se<br />
exclusivamente no método cartesiano, que se não teve êxito em bem conduzir a própria razão e<br />
encontrar a Verdade nas ciências 16 , com certeza levou o humano à fragmentação que, por meio do<br />
processo de frenesi pela divisão do método científi co, conduziu sim o próprio pensamento ao seu<br />
menor grau de escala, ao direcionar o pensar sob a tutela da valoração do que se pretende conseguir<br />
a partir do secionamento, até chegar ao tamanho mínimo, e muito melhor se o resultado for obtido<br />
em tempo mínimo, adaptável ao menor espaço, com custo mínimo, tal qual se aprecia nos celulares,<br />
palmtops e afi ns. A isso, denominamos tecnologia. A tentativa é reduzir, por exemplo, os objetos<br />
para que caibam em qualquer lugar que estejamos, pois tudo deve se adequar à utilidade, ao nosso<br />
serviço e desejo − ao encontro do legado cartesiano. Na mesma vertente, há de se reduzir também o<br />
tempo de tudo, que por curiosa contradição, quando atingido, serve para que se obtenha mais tempo<br />
para fazer mais, nunca menos; uma lógica temporal inatingível. Vale aqui ressaltar que não se trata<br />
de consubstanciar uma crítica alicerçada em um pensamento nostálgico, purista ou ingênuo, que<br />
rema na contramão do progresso ou da tecnologia, a qual, diga-se de passagem, é extremamente<br />
útil e bem-vinda, mas a pretensão é refl etir sobre o ônus que nos acarretou esse mergulho da busca<br />
do conhecimento/consciência, pois ao que parece essa imersão, talvez, chegue − se já não estiver<br />
− em fundo equivalente àquele dos nossos antepassados, porém pelo lado inverso.<br />
Submerso nessa condição, a visão de mundo do ser humano acabou também reduzindo seu<br />
olhar somente ao local setorial, voltado ao micro, sem fazer a ponte com o macro, pois em tal<br />
estado de fragmentação impossível seria sopesar o fi el da balança, o qual inevitavelmente pendeu<br />
apenas para um único lado. Longe da proposta de Pascal − que antecipava a transdisciplinaridade<br />
− de que “o todo está na parte e a parte está no todo” (PASCAL apud MORIN, 2000, p. 81). Não<br />
havia chance ao olhar holístico inserido em movimento espiral, mas somente o de estrutura<br />
piramidal que corria em lado único e exclusivamente vertical.<br />
A “descoberta” colonizadora − melhor colocada sobre o termo “invasão” (GAMBINI, 2000) − soube<br />
instaurar os ensinamentos adquiridos desde os códigos romanos de propriedade, caracterizados<br />
pelo direito absoluto e pleno que davam garantias de poder de uso, gozo e disposição perpétua<br />
16 Referência ao subtítulo da notória obra de Descartes Discurso [sobre o] do Método, conforme segue: “Para Bem Conduzir a<br />
Própria Razão e Procurar e Verdade nas Ciências” (DESCARTES, 1996, p. 61).
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
e exclusiva, a qual fazia o ser humano aderir ao espaço, tornando-o posse, inclusive dando-lhe<br />
o direito de reaver a propriedade ao detentor por diversas maneiras (D’AMBROSIO, 2001). Na<br />
idéia de “descoberta” − palavra cujo fascínio semântico tanto ludibriou −, imprime-se a posse<br />
do outro, a qual anula, despreza a origem e, ainda, consegue fazer incutir no “descoberto”<br />
a mesma crença. A isso, em outras palavras, Gambini (2000) coloca que a formação de nossa<br />
identidade já parte de uma história fantástica, a qual, à diferença de outros povos, surge como<br />
conseqüência de um feito extraordinário. Tal idéia:<br />
[...] implica que tudo que estava ali apenas à espera de ser achado, como um tronco<br />
fl utuante que o mar traz até a praia, como se a vastidão toda fosse terra de ninguém.<br />
Quando um sujeito se apossa de um objeto não identifi cado, imediatamente surge a<br />
noção de que os habitantes dessa terra sem nome, sem dono e sem passado estavam<br />
ali como peças de cenário, desprovidos de qualquer direito, até mesmo o de poderem<br />
continuar sendo o que sempre haviam sido (GAMBINI, 2000, p. 21).<br />
O tema da conseqüência da idéia de Paraíso que habitava a mente dos colonizadores<br />
europeus já foi exaustivamente discutido por autores como Bellah (1994), Gambini (2000),<br />
Holanda (1969), Junqueira (2001a, 2001b, 2003) e até, de certo modo, Tocqueville (1977).<br />
Prevaleceu, nesse confl ito, a concepção do colonizador, do estrangeiro, do outro que fez<br />
com que a Terra e todos os recursos naturais, outrora bem comuns, fossem transformados e<br />
submetidos ao pensamento “lógico”, isto é, ao sistema cultural, sociopolítico e econômico da<br />
metrópole. Usurpou-se a identidade alheia e tudo nela envolvido, fazendo-nos um mal pior,<br />
crer que nossa era a identidade e desejo do outro. Construímos e incorporamos a identidade<br />
daquele que estabelecia uma relação apenas de uso para fi ns próprios de acúmulo de riqueza<br />
em forma de bens, sem que houvesse qualquer comprometimento com a Terra, pois não havia<br />
sentimento de pertença, ou identifi cação. As terras exploradas não pertenciam a ninguém, mas<br />
sim a quem as “descobrissem”; o outro que ali vivia era selvagem, fértil forma humana a serviço<br />
de projeções européias que ora o identifi cava como mal, ora como bon sauvage, tal qual Rousseau<br />
veio a propor mais tarde; porém, o que ninguém enxerga era o que ali factualmente estava. O<br />
sentimento de bem comum, preocupação ambiental ou respeito ao lugar do outro, as diferenças<br />
e valores semelhantes são invenções contemporâneas deveras incipientes, que só vieram à tona<br />
por questões emergenciais, falta de saída, medo e outros quesitos ainda impulsionados pela<br />
lógica individualista de uma política neoliberal que quer preservar para salvar o próprio pescoço<br />
ou, quando muito elaborado, de gerações ‘suas’ futuras...o outro? Quem é o outro?<br />
Contudo, as atividades educacionais propostas que seguem neste livro com certeza não<br />
resolverão grandes questões ambientais ou salvarão o mundo, mas lançaram nas mãos de quem<br />
as fez, de quem participou delas e lançarão nas de quem agora nos lê sementes; um fi o de<br />
refl exão que poderá multiplicar uma idéia.<br />
Já passa da hora de trabalhar, em escolas, a transdisciplinaridade, fundamentada em um<br />
pensamento que vê, quer e enxerga a vida de modo fl uido, sistêmico, interligado e relacionado<br />
93
94<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
por trocas. Não há mais como imaginar um campo disciplinar do saber e do conhecimento. O<br />
centro do saber e do conhecimento está em toda parte e com todos. Já é mais do que sabido<br />
que a construção científi ca não é puramente empírica e que a própria construção do saber e<br />
do conhecimento é axiomática, pois não há uma relação de inferência igual à outra no mundo,<br />
mesmo que seja observada sob conceito formal idêntico.<br />
As proposições colocadas nos eixos transversais das atividades podem ser visíveis em qualquer<br />
ação cotidiana do indivíduo; por isso, uma vez refl etida na escola é possível que seja levada<br />
para a família, para a comunidade local e, com muita esperança e fé, chegue a mudar o<br />
pensamento futuro.<br />
Impossível pensar a escola, a vida e o futuro do planeta sem considerar questões postas nos<br />
princípios e compromissos da Carta da Terra, já tão debatidos neste livro e ampliados nas escolas<br />
com as crianças por meio das atividades “inter-trans-pluri-disciplinares” que trabalharam<br />
temas urgentes como ética, diversidade, multiculturalismo, intraculturalidade, transculturalidade,<br />
respeito às diferenças e às minorias, troca de saberes, resgate histórico, tradições,<br />
cultura popular, participação comunitária, cooperação, trabalho em rede, coletividade, cidadania,<br />
conscientização ambiental, economia solidária, sustentabilidade, preservação do patrimônio<br />
comum e do trabalho alheio, alteridade, identidade, saúde, gênero, desenvolvimento<br />
humano...e, se não esquecemos algum, com a vida.<br />
Para terminar esta primeira parte, fi ca uma mensagem de Heidegger (1973, apud BUZZI,<br />
2001, p. 197) sobre ensinar:<br />
É bem sabido que ensinar é ainda mais difícil que aprender. Mas raramente se pensa<br />
nisso. Por que ensinar é mais difícil que aprender?<br />
Não porque o mestre deva possuir um maior acervo de conhecimentos e os ter sempre<br />
à disposição.<br />
Ensinar é mais difícil do que aprender porque ensinar quer dizer deixar aprender.<br />
Aquele que verdadeiramente ensina não faz aprender nenhuma outra coisa que não<br />
seja o aprender. É por isso que o seu fazer causa muitas vezes a impressão que junto<br />
dele nada se aprende. Isso acontece porque inconsideradamente entendemos por<br />
aprender a só aquisição de conhecimentos utilizáveis.<br />
O mestre que ensina ultrapassa os alunos que aprendem somente nisto: que ele deve<br />
aprender ainda muito mais do que eles, porque deve aprender a deixar aprender.<br />
O mestre deve poder ser mais ensinável [sic] que os alunos.<br />
O mestre é muito menos seguro do seu ofício que os alunos do seu. Por isso, no<br />
relacionamento do mestre que ensina e dos alunos que aprendem, quando o<br />
relacionamento for verdadeiro, jamais entram em jogo a autoridade de quem sabe<br />
muito nem a infl uência autoritária do representante magisterial.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Por causa disso é ainda uma grandeza ser mestre – que é bem outra coisa que ser<br />
professor célebre. Se hoje – onde tudo é medido sobre o que é baixo e conforme ao<br />
que é baixo, por exemplo, sobre o lucro – ninguém mais deseja ser mestre, isso é<br />
devido sem dúvida ao que esta grande coisa implica e a grandeza de si própria.<br />
Kleber Maia Marinho é educador, coordenador pedagógico, autor de livros didáticos para o<br />
ensino médio, tradutor-intérprete, psicólogo e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia<br />
Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> – PUC/SP.<br />
95
96<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
REAPROXIMAR PELA ESPIRITUALIDADE 17<br />
Denise Lopes de Souza<br />
A leitura do pensamento de Heidegger exposto no texto anterior permite interpretá-lo como<br />
uma representação da complexidade e da riqueza do que é ensinar. Felizmente já sabemos que<br />
a educação ultrapassa os limites técnicos e está sedenta por reaproximar-se não só do planeta,<br />
mas também do próprio fato de ser humano. A vida escolar não pode mais ser considerada<br />
como somente o ensino de disciplinas como matemática, português ou ciências, mas sim como<br />
a refl exão sobre o que somos na totalidade e do que precisamos para viver em harmonia.<br />
Ao pesquisar o sentido etimológico da palavra “educar”, encontra-se a origem latina “educare”<br />
que signifi ca literalmente “conduzir para fora” (VALENTE, 1993), ou seja, desenvolver algo<br />
já latente. Assim, a educação deve assumir como objetivo a promoção do desenvolvimento<br />
prático das habilidades inatas no ser humano entre as quais está, naturalmente, a interação<br />
dos indivíduos com o meio em que vivem. A convivência comunitária das pessoas pode ser<br />
representada por uma complexa rede de inter-relações que abrange diversos aspectos: culturais,<br />
individuais, ambientais, sociais, étnicos, religiosos, psicológicos e espirituais. Em outras<br />
palavras, a educação deve tomar para si a preocupação em “conduzir para fora” aptidões inatas<br />
nos indivíduos que os permitam interagir harmoniosamente com os aspectos acima citados.<br />
No entanto, o que temos visto em nosso processo educacional é tanto a fragmentação disciplinar<br />
que impossibilita o entendimento das coisas em sua complexidade e interação com o meio, quanto<br />
o foco da educação voltado para o pragmatismo. Conforme já abordado, a Revolução Industrial<br />
exerceu marcante infl uência na construção do pensamento moderno e, conseqüentemente, no<br />
processo educacional, o qual se desenvolveu direcionado exclusivamente para o mercado. Somos<br />
herdeiros de uma colonização que não passou de uma empreitada comercial, o que resultou<br />
na comercialização até de seres humanos. Tendo em vista este ambiente colonizador, “não<br />
teria sido possível um tipo de relações humanas que pudesse criar disposições mentais fl exíveis<br />
capazes de levar o homem a formas de solidariedade que não fossem as exclusivamente privadas”<br />
(FREIRE, 1967, p. 73). Conseqüentemente, tampouco teria sido possível o desenvolvimento de<br />
um sistema educacional que permitisse refl exões sobre a complexidade de “ser” humano. É<br />
possível que muito desse legado de fragmentação advenha do afastamento do humano daquele<br />
estado indiferenciado com o planeta, o qual concebia a vida em sua totalidade, tendo o respeito<br />
ao ambiente como um dado regente natural de seu comportamento, conforme já comentado.<br />
Como herança de um processo pedagógico desfocado, que menospreza o ambiente e o humano<br />
como ser vivo nele integralmente inserido, enfrentamos atualmente diversos problemas, tais como<br />
injustiça social, degradação da fauna e da fl ora, fome, violência, falta de solidariedade e de ética.<br />
17 Esta é a segunda parte do texto, escrita pela segunda autora.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Felizmente nasce uma “contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania<br />
onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas e solidárias,<br />
fazendo retroceder o reino do lucro”, bem como outra “contracorrente, também tímida, que,<br />
em reação ao desencadeamento da violência, nutre éticas de pacifi cação das almas e das<br />
mentes” (MORIN, 2001, p. 73).<br />
Acredita-se que a busca desenfreada por lucro, a qual subestima a solidariedade, o<br />
respeito, a ética e a paz, esteja enraizada na desconsideração, durante o processo<br />
educacional, de questões integralmente humanas. Como conseqüência, a representação<br />
de “ser” humano perdeu sua importância na prática educacional diária e, por isso, não<br />
raramente nos deparamos em situações nas quais os ditos humanos se comportam como<br />
completamente dissociados da solidariedade, ética e respeito − habilidades que deveriam<br />
ter sido desenvolvidas no processo de educação do indivíduo, e que um dia fi zeram parte<br />
natural da convivência comunitária. Questões como quem somos? Onde estamos? De onde<br />
viemos? E, para onde vamos? (MORIN, 2001) são inseparáveis e devem, portanto, estar<br />
presentes no processo de desenvolvimento educacional.<br />
O que se pretende com este texto, portanto, é a sugestão do resgate da refl exão sobre o<br />
processo de “ser” humano, a saber: tornar a espiritualidade participante ativa do processo<br />
pedagógico, ou seja, como disciplina curricular.<br />
Sabemos que o conceito de “espiritualidade” é difuso no universo acadêmico, uma vez<br />
que não é de fácil defi nição. Por um outro lado, jamais deixou de se fazer presente na vida<br />
de qualquer cidadão, visto que é parte da natureza humana. Sendo assim, abandonaremos<br />
a conjectura retórica que insiste em defi nir as coisas em seus blocos paradigmáticos e<br />
aceitaremos o termo “espiritualidade” como o “contínuo desenvolvimento da identidade”<br />
(TISDELL e TOLLIVER, 2003, p. 374, tradução nossa). Esta será a defi nição norteadora deste<br />
texto. Entenderemos a espiritualidade como um processo contínuo de autoconhecimento, o que<br />
tem como conseqüência a interação com o meio em todos os aspectos: ambientais, culturais,<br />
étnicos, sociais, psicológicos, políticos. Contemporaneamente, “o holismo introduziu a idéia de<br />
espiritualidade não como religião ou crença em Deus, mas como busca permanente de sentido<br />
para a vida. A espiritualidade é algo pessoal, embora construída socialmente, que está presente<br />
no ser humano desde a infância” (GADOTTI, 2000, p.78). Portanto, a inclusão da refl exão sobre<br />
a espiritualidade no processo pedagógico requer fi rme consideração.<br />
A falta de refl exão sobre o autoconhecimento durante a prática educacional cotidiana pode<br />
resultar em problemas, os quais, normalmente, não são associados a tal ausência. Difi cilmente<br />
conseguimos, por exemplo, reconhecer a violência mostrada pelo aluno em sala de aula como<br />
sintoma de uma possível crise de identidade do mesmo. “Parece não se acreditar que o jovem<br />
tenha angústias e incertezas existenciais. Não se percebe que muito do que não se admite –<br />
e mesmo se reprime – do comportamento juvenil está vinculado a crises de espiritualidade”<br />
(D´AMBROSIO, 2001, p.150) .<br />
97
98<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Os principais referenciais teóricos pesquisados para este texto, felizmente, apontam para<br />
propostas pedagógicas fundamentadas no resgate do conhecimento do ser humano como<br />
um todo. Frente à miríade de conceitos que devem ser abordados no processo educacional,<br />
o que determina uma nova relação com o saber, propõe-se um abandono de paradigmas<br />
lineares, paralelos ou piramidais, os quais representam estruturas nivelares e hierárquicas,<br />
em substituição por um saber contínuo, em fl uxo, não linear, complexo (LEVY, 2000). O saber<br />
agora deve ser guiado por paradigmas tão fl exíveis e complexos, a saber, transdisciplinaridade,<br />
interdisciplinaridade, pluri/polidisciplinaridade, quanto a complexidade que enfrentamos no<br />
dia-a-dia. Esses referenciais teóricos apontam, acredita-se, para o resgate da espiritualidade:<br />
Para Edgar Morin:<br />
As crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições:<br />
possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser<br />
humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a<br />
afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade<br />
entre Homo faber, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento<br />
do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico,<br />
mítico, mágico ou poético (MORIN, 2001, p. 59).<br />
Educar para compreender matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa;<br />
educação para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente<br />
espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e<br />
garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade (MORIN, 2001, p. 93).<br />
Moacir Gadotti, por sua vez, afi rma que atualmente estamos nos conscientizando que “o sentido<br />
de nossas vidas não está separado do sentido do próprio planeta (GADOTTI, 2000, p. 77, grifo do<br />
autor)”, ou seja, educar para a compreensão do planeta implica em educar também para o sentido<br />
de nossas próprias vidas, o que, conseqüentemente, implica na refl exão sobre a espiritualidade.<br />
Faz-se necessário, entretanto, esclarecer que a sugestão pela refl exão sobre a “espiritualidade”<br />
no processo educacional não é o mesmo que sugerir “ensino religioso”, o que poderia, inclusive,<br />
resultar no desenvolvimento do temido fundamentalismo preconceituoso que considera o<br />
seu próprio ponto de vista como superior aos outros. Embora a inclusão da refl exão sobre a<br />
espiritualidade no processo educacional − o que provavelmente nos permitiria reaproximar<br />
do planeta − pareça algo utópico e inatingível, acreditamos válido insistir na consideração<br />
da problemática apresentada, uma vez que, inegavelmente, deparamo-nos diariamente com<br />
a violência, injustiça social, falta de solidariedade, problemas ambientais, que nos atingem<br />
direta ou indiretamente. Em outras palavras, não existe mais espaço para cruzar os braços<br />
e esperar que os problemas sejam resolvidos por outros. É hora de nos munirmos de nossos<br />
conhecimentos e boa vontade a fi m de trabalhar efetivamente pela mudança de paradigmas<br />
obsoletos, deixando de lado o temor à criatividade e abrindo corajosamente as portas para<br />
o novo. Alguns já se mostram altamente engajados com o processo de melhora e mudança
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
de nosso sistema pedagógico. Podemos mencionar as reformas curriculares na Espanha e no<br />
Brasil que reconhecem a importância de temas “transdisciplinares ou transversais como:<br />
ética, cidadania, diversidade cultural, meio ambiente, saúde, sexualidade, paz, não violência,<br />
trabalho e consumo” (GADOTTI, 2000, p. 93) no cotidiano escolar. O engajamento de algumas<br />
pessoas envolvidas com a educação já determina o primeiro passo para a mudança. Iniciativas<br />
como as do trabalho feito no Pontal do Paranapanema confi rmam a existência no Brasil da<br />
contracorrente comentada por Edgard Morin, que luta contra a injustiça, a degradação do<br />
ambiente, a desigualdade social, a violência, o preconceito, a fome, a tristeza, a crise espiritual<br />
que enfrentamos em nosso núcleo social.<br />
Os educadores devem, entretanto, estar cientes que essa proposta de renovação de<br />
paradigmas é um processo lento. De qualquer forma, embora alguns conceitos demorem anos<br />
para “brotar”, bem sabemos que, uma vez enraizados, perdurarão por muitos anos, como têm<br />
perdurado os velhos conceitos de educação linear, hierárquica, dual e fragmentada, do tipo “eu<br />
ensino, tu aprendes”, com a qual convivemos atualmente. Com a nossa refl exão certamente<br />
podemos nos incluir entre aqueles participantes do processo de mudança que pedem seu<br />
espaço na prática pedagógica vigente. Ainda que não vejamos com nossos olhos um país onde a<br />
injustiça, a violência e o desrespeito não mais imperem, podemos estar certos que participamos<br />
da mudança. Talvez estejamos plantando as sementes de uma educação que substituirá o “eu<br />
ensino, tu aprendes” pelo “compartilhamos criativa e mutuamente ensino e aprendizagem de<br />
forma respeitosa, solidária e ética”.<br />
Sugestão para reaproximar<br />
Embora a questão da educação tenha sido exaustivamente discutida nos últimos anos,<br />
acreditamos que toda a refl exão seja válida no sentido de representar, pelo menos, uma<br />
reavaliação da prática exercida. Apoiamos a efetividade de todas as críticas, porém acreditamos<br />
que mais efi cazes são aquelas que apresentam uma proposta concreta de alteração do que já não<br />
mais surte o efeito que esperamos, ao contrário daquelas discussões retóricas que belamente<br />
apresentam o problema, mas raramente incorrem no risco de sugerir, de maneira prática,<br />
propostas de mudança. Considerando, portanto, a refl exão ora exposta, apresentamos uma<br />
proposta pedagógica objetiva: a inclusão da Carta da Terra e, conseqüentemente, a contemplação<br />
de seus princípios, como parte integrante da grade curricular escolar que, em última instância,<br />
visa tornar a espiritualidade diálogo constante e permanente no cotidiano escolar.<br />
O que se propõe é, sobretudo, a prática da auto-refl exão e da busca pelo autoconhecimento, no<br />
cotidiano escolar, visto que “a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão<br />
de outro” (MORIN, 2001, p. 97), e resulta em violência, preconceito e intransigência. É evidente<br />
que a sugestão tampouco deve ser compreendida como mais uma mera obrigação disciplinar,<br />
aquela que nos amarra aos conceitos pré-estabelecidos de avaliação e limita a criatividade do<br />
educador. Pretende-se, sim, que os princípios da Carta da Terra sejam fi lhos do uso autônomo e<br />
criativo do processo educacional por intermédio da refl exão sobre a espiritualidade e que essa<br />
99
100<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
se transforme efetivamente em projetos voltados ao benefício da comunidade, o que pode ser<br />
usado, inclusive, como forma de avaliação da disciplina. O intuito é que futuramente o educando<br />
seja capaz de alcançar um nível de desenvolvimento que espelhe a solidariedade, o respeito,<br />
em seu mais abrangente alcance, e a ética como partes integrantes de seu cotidiano.<br />
As atividades conduzidas no Pontal do Paranapanema representam o início de uma refl exão<br />
que consideramos essencial no processo educacional vigente. Por isso, acreditamos que, da<br />
mesma maneira que os alunos têm em seu currículo escolar disciplinas como matemática,<br />
português, ciências, entre outros, também deveriam ter “aula de Carta da Terra”. Essa aula<br />
seria a oportunidade para a refl exão sobre os seguintes temas:<br />
• Ética<br />
• Diversidade<br />
• Multiculturalismo<br />
• Intraculturalidade<br />
• Transculturalidade<br />
• Respeito às diferenças físicas, étnicas, culturais e religiosas<br />
• Cidadania<br />
• Solidariedade<br />
• Cooperação<br />
• Conscientização ambiental<br />
• Trabalho em rede<br />
• Coletividade<br />
• Conceitos ligados à saúde<br />
• Troca de saberes<br />
• Resgate histórico<br />
• Cultura popular<br />
• Tradições folclóricas<br />
• Participação comunitária<br />
• Economia solidária<br />
• Consumo sustentável<br />
• Respeito às minorias<br />
• Preservação do patrimônio comum<br />
• Alteridade<br />
• Espiritualidade<br />
• Processos de sustentabilidade<br />
• Gênero<br />
•<br />
Desenvolvimento humano
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
A liberdade de criar, principalmente no tocante aos temas a serem trabalhados, deve<br />
ser preservada em sala de aula. As atividades conduzidas no Pontal do Paranapanema<br />
representam um ótimo exemplo de como se trabalhar com tais temas, visto que a criatividade,<br />
a espontaneidade e a construção compartilhada foram eixos condutores da apresentação de<br />
temas complexos às crianças.<br />
Acreditamos que tais atividades, entretanto, sempre serão melhores aproveitadas quando<br />
revertidas em projetos práticos voltados ao benefício ou à conscientização da comunidade,<br />
tal qual ocorre na atividade “Campanha do leite”, por exemplo. Sugerimos, portanto, que o<br />
parâmetro de avaliação da “disciplina Carta da Terra” seja construído por meio do resultado do<br />
envolvimento com a comunidade. Se possível, tornando os alunos responsáveis por suas próprias<br />
avaliações no desempenho de seus projetos, levando em conta o resultado que geraram de fato<br />
em termos de mudança e mobilização comunitária e/ou social ou por aquilo que tal projeto<br />
conseguiu trazer à tona enquanto iniciativa ou potencial, a despeito do resultado ter sido positivo<br />
ou não sob o ponto de vista prático, material ou concreto e, enfi m, promover a capacidade<br />
de percepção que vários aspectos são abordados quando se desenvolve uma atividade como<br />
esta. Ainda no caso da “Campanha do leite”, o educador poderia, por exemplo, trabalhar<br />
matemática ao contar as caixas de leite, geometria ao refl etir sobre o formato das caixas,<br />
noção de distância ao refl etir sobre o tempo gasto para se chegar ao local de distribuição, e<br />
assim por diante. Além disso, temas como solidariedade são claramente também trabalhados<br />
com tal atividade, por exemplo, princípios de participação e economia solidária. É evidente<br />
que tais refl exões devem ser adaptadas de acordo com a idade das crianças, utilizando-se de<br />
linguagem que favoreça a compreensão de que a convivência em comunidade é sinônimo de<br />
uma complexa rede de fatores que determinam seu funcionamento e, conseqüentemente, o<br />
mesmo ocorre com o aprendizado.<br />
Denise Lopes de Souza é educadora, psicóloga e mestre em Ciências da Religião pela<br />
Pontifícia Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> – PUC/SP<br />
Referências<br />
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.<br />
BELLAH, R. The broken covenant: American civil religion in time of trial. 2th ed. Chicago:<br />
The University of Chicago Press, 1994.<br />
BERGSON, H. A evolução criadora. São <strong>Paulo</strong>: Martins Fontes, 2006.<br />
BETTO, F., MENESES, A. B. e JENSEN, T. (Org.). Utopia urgente. São <strong>Paulo</strong>: Casa Amarela, 2002.<br />
BUZZI, A. R. Introdução ao Pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. 28. ed., Petrópolis:<br />
Vozes, 2001.<br />
101
102<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
D’AMBROSIO, U. Transdiciplinaridade. São <strong>Paulo</strong>: Palas Athena, 2001.<br />
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.<br />
GADOTTI, M. Pedagogia da Terra. 3. ed. São <strong>Paulo</strong>: Peirópolis, 2000.<br />
GAMBINI, R. Espelho do índio: a formação da alma brasileira. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Axis Mundi/<br />
Terceiro Nome, 2000.<br />
HUIZINGA, J. Homo ludens: O Jogo como elemento da Cultura. 5. ed. São <strong>Paulo</strong>: Perspectiva,<br />
2001.<br />
HOLANDA, S. B. de. Visão de Paraíso. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Cia. Editora Nacional, 1969.<br />
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1984. (Obras Completas de C. G. Jung,<br />
v. 8/2)<br />
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. (Obras Completas<br />
de C. G. Jung, v. 9/1)<br />
______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 6)<br />
JUNQUEIRA, M. A. Estados Unidos: a consolidação de uma nação. São <strong>Paulo</strong>: Contexto, 2001a.<br />
______. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista<br />
Brasileira de História, São <strong>Paulo</strong>, v. 21, n. 42, p. 323-342, 2001b.<br />
______. O discurso de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. Revista Margem:<br />
humanismo e barbárie, São <strong>Paulo</strong>, n. 17, p. 163-171, jun. 2003.<br />
LACAN, J. Escritos, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998<br />
LÉVY, P. Cibercultura. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Ed. 34, 2000.<br />
MORIN, E. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. 4. ed. São <strong>Paulo</strong>: Cortez/<br />
Unesco, 2001.<br />
NEUMANN, E. História da origem da consciência. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Cultrix, 1995.<br />
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre<br />
os homens. (Coleção Os Pensadores, v. 2) São <strong>Paulo</strong>: Nova Cultural, 1996.<br />
TISDELL, E. J.; TOLLIVER, D. E. Claiming a sacred face. in: Journal of Transformative Education,<br />
v.1, n. 4, 2003.<br />
TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Itatiaia, 1977.<br />
VALENTE, J.P. Resgatando sentidos. In: MELO, J.A.C. (Org.). Educação: razão e paixão. Rio de<br />
Janeiro: ENSP, 1993.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
A CARTA DA TERRA E O EDUCAR PARA A IDENTIDADE TERRENA: PRINCÍPIOS E RUMOS<br />
Sementes de Esperança em Experiências Educacionais do Ensino Fundamental<br />
no Pontal do Paranapanema<br />
José J. Queiroz<br />
A Carta da Terra, em seus 16 princípios, constitui um extraordinário avanço em termos de<br />
declaração dos direitos humanos ao incluir, no seu texto “os direitos da Terra”, estabelecendo a<br />
vinculação inseparável do humano ao biológico e à Terra como ser vivo a ser respeitado, protegido,<br />
preservado e amado. A Carta pretende também ser um guia para ações efi cazes no intuito de<br />
garantir que esse direito ampliado seja posto em prática. No dizer de Leonardo Boff, a Carta<br />
“é uma proposta de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se<br />
produziu até agora.” Mas o seu objetivo vai além, pois enuncia princípios que ela pretende sejam<br />
assumidos e realizados “nas instâncias de poder locais, nacionais e internacionais, nos sistemas<br />
educacionais e na aprendizagem que se faz ao longo da vida, integrando conhecimentos, valores<br />
e habilidades para um modo de vida sustentável” (Carta da Terra, Princípio 14).<br />
Em um texto elaborado sob os auspícios da Unesco e do seu projeto transdisciplinar “Educar<br />
para um futuro viável”, publicado sob o título Sete Saberes necessários para a Educação do Futuro,<br />
Edgar Morin (2000) elabora, no dizer de Jorge Werthein, representante da entidade no Brasil,<br />
“eixos e, ao mesmo tempo, caminhos que se abrem a todos os que pensam e fazem educação e<br />
estão preocupados com o futuro das crianças e dos adolescentes” (WETHEIN, 2000: 12).<br />
Em um dos eixos da obra, “Ensinar a identidade terrena”, Morin coloca a questão: “como os<br />
cidadãos do novo milênio poderiam refl etir sobre os seus próprios problemas e aqueles de seu<br />
tempo?”. Essa questão comporta, segundo Morin, a necessidade de se compreender não só “a<br />
condição humana no mundo” mas também “a condição do mundo humano” que, com o desenrolar<br />
da história moderna, tornou-se “condição da era planetária”, cujo início se deu a partir do século<br />
XVI e, na segunda metade do século XX, entra na fase de “mundialização” (MORIN, 2000: 65).<br />
Neste “turbilhão em movimento”, que é o nosso planeta, faz-se necessário um “pensamento<br />
policêntrico”, multi e transdisciplinar, capaz de captar o seu universalismo e a um tempo a<br />
unidade/diversidade da condição humana, que se nutre das culturas do mundo. A educação<br />
do futuro requer que se trabalhe nesta visão de complexidade para suscitar a identidade e a<br />
consciência terrenas na era planetária. (cf. Ibid. 64-65)<br />
Como quem usa um estereoscópio, pretendo, neste breve ensaio, rever os princípios da<br />
Carta da Terra e os indicativos do pensamento de Morin na obra citada e no Método 6, Ética<br />
(MORIN, 2005) para olhar as experiências educacionais do Pontal do Paranapanema no intuito<br />
de realçar os seus relevos e a sua profundidade.<br />
103
104<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Em um prelúdio histórico, Morin indica como chegamos à era planetária, desde as origens da Terra até<br />
o aparecimento das nações modernas da Europa, que se lançaram à conquistas do globo, destroçaram<br />
ou dominaram as antigas civilizações, levando progresso e ruínas, até chegarmos ao século XX, com<br />
os horrores das duas guerras mundiais, as crises econômicas, a generalização da economia liberal<br />
que sustenta a infraestrutura da assim dita “ação civilizatória” do Ocidente. Essa conjuntura gera a<br />
interdependência global: “cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o<br />
todo sofre as perturbações e imprevistos que afetam as partes. O planeta encolhe” (MORIN, 2000: 67). E<br />
o indivíduo também é afetado. Como um holograma em que cada parte contém a informação do todo,<br />
“cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo” (Idem, 67).<br />
Surge, então, o caráter complexo da mundialização: une e ao mesmo tempo divide, gera confl itos:<br />
Os antagonismos entre nações, religiões, entre laicização e religião, modernidade<br />
e tradição, democracia e ditadura, ricos e pobres, Oriente e Ocidente, Norte e Sul<br />
nutrem-se uns aos outros, e a eles mesclam-se interesses estratégicos e econômicos,<br />
antagonismos das grandes potências e das multinacionais voltadas para o lucro [...]<br />
Exasperam-se onde existem religiões e etnias misturadas, fronteiras arbitrárias entre<br />
Estados – exasperação de rivalidades e negações de toda ordem - como no Oriente<br />
Médio. [...] Dessa maneira, o século XX a um só tempo criou ou dividiu um tecido<br />
planetário único; seus fragmentos fi caram isolados, eriçados e intercombatentes. [...]<br />
O próprio desenvolvimento criou mais problemas do que soluções e conduziu à crise<br />
profunda de civilização que afeta as próprias sociedades do Ocidente (Ibid., 69).<br />
Neste ponto, o autor, assim como o fazem Leonardo Boff e Valéria Viana Labrea em seus<br />
escritos neste livro, critica a noção de desenvolvimento sustentável, apontando a necessidade<br />
de uma “noção mais rica e complexa”.<br />
Concebido unicamente de modo técnico-econômico, o desenvolvimento chega a um<br />
ponto insustentável, inclusive o chamado desenvolvimento sustentável. E´ necessária<br />
uma noção mais rica e complexa de desenvolvimento que seja não somente material,<br />
mas também intelectual, afetivo, moral...” (Ibid., 70).<br />
Nesta mesma linha de pensamento, a Carta da Terra, embora ainda mantendo a mesma<br />
terminologia, dá-lhe outro signifi cado mais amplo pois, em seus 16 princípios, o desenvolvimento<br />
é entendido muito além do técnico-econômico e inclui necessariamente o respeito e o cuidado<br />
da comunidade da vida, a integridade ecológica, a justiça social e econômica com todas as<br />
exigências decorrentes desses temas.<br />
O legado do século XX, diz Morin, é uma herança de morte, não só pela proliferação das armas<br />
nucleares e de outros veículos de extermínio em massa, mas também pela possibilidade que<br />
se avizinha da morte ecológica, pela crescente agonia da biosfera, pelo espalhar-se de vírus e<br />
bactérias mortíferas, pela investida da morte em nossas almas ocasionada pela consumo crescente<br />
e mundializado das drogas.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
À vista desse panorama, conclui o autor: “se a modernidade é defi nida como fé incondicional no<br />
progresso, na tecnologia e na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade<br />
está morta” (Ibid., 72).<br />
Entretanto, no âmago das tragédias e do espectro de um fi nal trágico, brotam esperanças.<br />
Surgem as contracorrentes regeneradoras, que podem reagir contra as correntes mortíferas<br />
dominantes, desenvolver-se e mudar o rumo dos acontecimentos.<br />
Chegado a este ponto, deixo o texto de Morin para retomá-lo mais adiante, porque é no<br />
âmbito dessas vias regeneradoras que focalizo as experiências educacionais do Pontal do<br />
Paranapanema.<br />
O Caderno de Atividades traz inúmeras experiências. Limito-me a algumas, escolhidas<br />
apenas a título de exemplifi cação, sem nenhum critério específi co, pois todas são relevantes.<br />
Realizadas em escolas do Ensino Fundamental em um contexto de periferia e de pobreza, têm<br />
o objetivo de aplicar, em sala de aula, de modo concreto, interdisciplinar e transversal, os<br />
princípios da Carta da Terra.<br />
Já os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, na apresentação dos<br />
temas transversais para o campo da Ética, coloca como um dos objetivos desse nível de ensino<br />
“perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identifi cando<br />
seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio<br />
ambiente” (Parâmetros, 2000 - Objetivos Gerais).<br />
Mais adiante, focalizando diretamente o meio ambiente, os Parâmetros apresentam a vida<br />
na Terra como uma “trama, uma grande rede de seres interligados, interdependentes. Essa rede<br />
envolve conjuntos de seres vivos e elementos físicos ... que interagem por meio de relações<br />
de troca de energia” (Idem, 33). Esse conjunto de elementos, seres e relações constitui o meio<br />
ambiente. Ele não se restringe aos aspectos físicos e biológicos, mas engloba o ser humano com<br />
suas relações sociais, econômicas e culturais. “Faz-se necessário tomar decisões adequadas<br />
na direção de metas desejadas por todos: o crescimento cultural, a qualidade de vida e o<br />
equilíbrio ambiental” (Ibid., 33).<br />
As experiências relatadas no Caderno vão além da educação ambiental, pois envolvem<br />
as preocupações mais amplas da Carta da Terra, que demandam uma educação para a<br />
sustentabilidade, nela incluindo o contexto das relações sociais, culturais, econômicas e<br />
políticas, que implicam não só o respeito à Terra e à vida em toda a sua diversidade, como<br />
também o cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor (Princípio<br />
2), construir sociedades democráticas, que sejam justas, participativas, sustentáveis e<br />
pacífi cas, erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental, afi rmar a<br />
igualdade e a equidade do gênero humano como pré-requisitos para o desenvolvimento<br />
sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência à saúde e às oportunidades<br />
econômicas (Princípio 11).<br />
105
106<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
As atividades descritas no Caderno se desenrolam com uma dinâmica envolvente,<br />
constituindo um todo harmonioso. O espelho é sempre a Carta da Terra. Nos seus princípios<br />
refl etem-se a realidade local e o cotidiano da escola e daí nasce o tema gerador de cada<br />
atividade. Vejamos alguns deles.<br />
Com o tema “Plantar uma semente” se pretende demonstrar a transformação social como<br />
resultado de um longo processo, cujo primeiro passo é o fundamento de toda e qualquer<br />
transformação. A atividade de plantar uma semente, dela cuidar, a expectativa e a alegria de<br />
vê-la germinar, acompanhá-la em seu crescer, simbolizam o ato educacional refl etindo o segundo<br />
principio da Carta: “cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor”.<br />
“Uma receita para o meio ambiente” focaliza as ameaças ao planeta, desde o aumento<br />
vertiginoso da fome no mundo até a extinção das espécies e a elevação da temperatura global.<br />
Após a confecção de cartazes retratando essas ameaças, os alunos são convidados a elaborar<br />
uma receita, como as da culinária, para salvar o planeta. O texto da atividade traz uma delas,<br />
que expõe, com muita criatividade, os ingredientes, o modo de preparo e o modo de servir o<br />
“bolo” que poderá afastar as ameaças à Mãe Terra. E assim a tarefa desperta o respeito pela<br />
nossa morada terrena e pela vida em toda a sua diversidade (Princípio 1), incentiva o cuidar da<br />
comunidade da vida (Princípio 2) e a necessidade de construir a sociedade democrática, justa,<br />
participativa, sustentável e pacífi ca (Princípio 3).<br />
“Identidade” relembra o “conhece-te a ti mesmo” socrático e convida à auto-refl exão, ao<br />
conhecimento de si, a pensar na vida, na existência e na história pessoal e no que estamos<br />
fazendo conosco. O auto-conhecimento é ensinado como um dos alicerces para o respeito<br />
ao ser humano e à vida em geral, sem o qual é impossível formar a identidade, pois requer<br />
o conhecimento da própria origem, da história de cada um, da sua tradição, dos seus valores<br />
familiares, para sentir-se alguém especial, importante, acolhido, amado, incluído na comunidade.<br />
Muito criativa é a atividade de construção de um livrinho, “O meu livrinho”, onde cada aluno<br />
registra a sua identidade, desde o seu auto-retrato desenhado até suas impressões digitais e o<br />
relato das coisas que mais gosta e que mais desgosta. O conhecimento de si e a construção da<br />
própria identidade é fundamental para o convívio comunitário e social. Sem essa identifi cação,<br />
frustra-se o terceiro principio da Carta, que aponta a necessidade de “proporcionar a cada um<br />
a oportunidade de realizar seu pleno potencial”. Nessa identifi cação, está presente também o<br />
plano da auto-ética, que será explicitado mais adiante, ao se retomar as refl exões de Morin.<br />
“Dengue” é um tema que focaliza essa epidemia que se alastra pelo país. Mas o intuito é<br />
também informar sobre as demais doenças infecciosas e despertar para a obrigação de todo<br />
cidadão em combatê-las. Desenvolvendo-se pelo manuseio de materiais, que contribuem para a<br />
proliferação da epidemia, a atividade quer ensinar ao aluno a maneira prática de reconhecer e<br />
eliminar os focos de incubação do mosquito causador da doença, repassando os conhecimentos<br />
aos familiares, vizinhos e amigos desinformados. Entre os vários princípios da Carta espelhados<br />
nessa atividade, destaco o de número 14: “integrar na educação formal e na aprendizagem<br />
ao longo da vida os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
sustentável. Oferecer a todos, especialmente crianças e jovens, oportunidades educativas que<br />
lhes permitam contribuir efetivamente para o desenvolvimento sustentável”. O conhecimento<br />
das epidemias, preveni-las e enfrentá-las é tarefa imprescindível na luta pela preservação do<br />
planeta e da vida.<br />
Em “A árvore do bem e do mal” os educandos, ao desenharem as duas árvores, exercem<br />
a capacidade de simbolizar valores éticos, sócio-culturais e religiosos, alguns deles julgados<br />
bons, outros maus, devido a uma formação pré-adquirida na família ou nas relações sociais.<br />
O intuito é de criar, no ambiente escolar, um espaço de convívio para aprender, assegurar,<br />
solidifi car e até mesmo questionar o que os alunos aprenderam até então. A formação da<br />
capacidade crítica sobre valores visa a superar aquela atitude que Morin, ao falar da auto-ética,<br />
qualifi ca de “moralina”, isto é, o julgamento com base em critérios exteriores e superfi ciais da<br />
moralidade (MORIN, 2005: 98). Ocorre superar os estigmas de bem e de mal, que contribuem<br />
para forjar o adulto intolerante, preconceituoso e não solidário, despertando o educando para<br />
pensar o que e para quem algo é bom e ruim. Muitas vezes, o que se pensa bom para si é nocivo<br />
para outrem e vice-versa.<br />
Na atividade, vejo espelhar-se, de maneira nítida, o Princípio 16 da Carta: “promover uma<br />
cultura de tolerância, não violência e paz. Estimular e promover o entendimento mútuo, a<br />
solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, dentro das e entre as nações”<br />
“É brincando que se aprende” encerra uma das mediações mais relevantes, e infelizmente<br />
pouco utilizada na aprendizagem, que é o lúdico, um aspecto fundamental para a saúde física<br />
e psíquica. Pelo lúdico, é possível adquirir a unidade entre a consciência corporal e os aspectos<br />
emocionais e intelectuais, o que possibilita um contato saudável com o outro, o diferente,<br />
com as volições ocultas ou explícitas. Brincar é um meio de recuperar valores culturais, de<br />
suscitar a noção de vínculo; no lúdico, estimula-se o corpo inteiro, questionam-se e promovemse<br />
oportunidades de atitudes e comportamentos saudáveis. Além de trabalhar com materiais<br />
recicláveis para a confecção de brinquedos, a atividade encerra-se com a elaboração de um<br />
livro, “Nossas brincadeiras preferidas”. Vejo, no relacionamento lúdico, uma ocasião ímpar de<br />
aprender a viver na alegria, na solidariedade, na cooperação mútua e na paz, que é o grande<br />
desejo expresso no Princípio 16 da Carta.<br />
Em “A campanha do leite”, questiona-se a sociedade de consumo, da ostentação e do<br />
desperdício, insufl ada pela mídia, o que leva amiúde à desqualifi cação do pobre frente aos mais<br />
aquinhoados e à competição para galgar o patamar dos privilegiados. “A campanha do leite”<br />
vai muito além de uma doação à Casa de Apoio a Pessoas com Câncer. Quer despertar para a<br />
necessidade de banir o preconceito e a diferença brutal e desumana da distribuição de renda<br />
no Brasil e estimular a solidariedade e a promoção de cidadãos íntegros, que busquem caminhos<br />
de ajudar os mais necessitados, contestando e evitando o mero assistencialismo. “A campanha<br />
do leite” ecoa o Princípio 9 da Carta: “erradicar a pobreza como um imperativo ético, social<br />
e ambiental. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem e<br />
permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações”.<br />
107
108<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A “Carta ao inquilino” tem como material principal uma carta anônima em que a Terra<br />
relembra aos seus “inquilinos” as graves infrações que vêm cometendo contra o “contrato<br />
de aluguel” que ela estipulou com os seus moradores. A carta não termina com a ameaça de<br />
despejo, mas com um amoroso convite: “Você pode mudar? Aguardo respostas e atitudes”.<br />
Além de centrar a discussão nessa carta e debater a degradação ambiental, o uso inadequado<br />
e descontrolado dos recursos naturais, a poluição, a fome e a extinção das espécies, os alunos<br />
são incentivados a responder à Terra com missivas contendo sugestões de novas atitudes e de<br />
soluções possíveis dos problemas identifi cados. A atividade sugere e incentiva experiências<br />
ambientais de culturas de subsistência, de plantio de hortas orgânicas, de ervas medicinais, de<br />
fl ores. Propicia o contato com as culturas de subsistência da região, almejando a valorização, o<br />
respeito e o resgate da cultura tradicional local, assim como o compartilhar saberes, promover<br />
a economia solidária, o respeito às minorias e à diversidade, o acesso a medicamentos de<br />
baixo custo e o melhoramento da qualidade de vida da população. São vários os princípios da<br />
Carta que podem ser relembrados nessa atividade. O Princípio 10 expressa a necessidade de<br />
“promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações”. O princípio 8<br />
quer que se “reconheça e se preserve os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em<br />
todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano”. Enfi m, as<br />
missivas de resposta à carta da Terra contêm a preocupação geral do Princípio 1 “respeitar a<br />
Terra e a vida em toda a sua diversidade”.<br />
São estes alguns exemplos colhidos do Caderno de Atividades. Importa agora apontar<br />
características comuns a todas, procurando olhar o alcance epistemológico, ético e educacional<br />
que elas encerram.<br />
O primeiro traço comum das atividades, além do espelhar-se na Carta da Terra, é a<br />
preocupação em superar o âmbito de uma disciplina e envolver a comunidade aprendente<br />
em um patamar de inter e transdisciplinaridade. Em um trabalho recém publicado, Educar<br />
para a solidariedade. Princípios e rumos (QUEIROZ, 2006) tive ocasião de apontar, na Ética<br />
de Morin, as vias abertas para a solidariedade, articulando-as com os Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais para e Ensino Fundamental, no que tange à Ética como tema transversal (Parâmetros,<br />
volume 8, 2000).Indiquei, então, que no pensamento de Morin a inter e a transdisciplinaridade<br />
contêm aspectos epistemológicos e também éticos, em especial, quando trata da “ética do<br />
pensamento” e distingue entre o “pensar mal” e o “pensar bem”. Essas refl exões corroboram a<br />
importância dada nas “Atividades” ao aspecto inter e transdisciplinar<br />
Na ética do pensamento, Morin (2005: 60-66) estabelece a correlação entre “pensar bem”<br />
e “pensar mal”, apontando a íntima articulação entre o epistemológico e o ético. O oposto da<br />
inter e da transdisciplinaridade é a fragmentação e a atomização dos saberes. O autor discorre,<br />
de início, sobre as conseqüências do “pensar mal”. Um saber fragmentado impossibilita imaginar<br />
um todo com “elementos solidários”; por isso, quem pensa mal vê atrofi ar o conhecimento e a<br />
consciência da solidariedade e da responsabilidade (MORIN, 2005: 61-62). Outra conseqüência do<br />
“pensar mal” é a corrosão da ética em suas fontes, que são a solidariedade e a responsabilidade
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
pela incapacidade de ver o todo, de religar-se a ele. Por oposto, o “pensar bem” religa e leva a<br />
imaginar a solidariedade entre os elementos de um todo, o que desperta a consciência do agir<br />
solidário (MORIN, 2005: 62-63).<br />
A ênfase em colocar a ética e o agir solidário no patamar da religação dos saberes, que é<br />
peculiar ao pensamento complexo, tem guarida nos Parâmetros... Eles sublinham que a realidade<br />
educacional, na qual o professor vai trabalhar os princípios e os rumos da ética em busca do<br />
agir solidário, há que ser vista sob o prisma da transversalidade e da interdisciplinaridade.<br />
Há, nessa indicação, uma clara opção por um pensar a educação que se aproxima e até inclui<br />
a epistemologia da complexidade. Assim, lemos: “Transversalidade e interdisciplinaridade se<br />
fundamentam na crítica de uma concepção de conhecimento que toma a realidade como um<br />
conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado” (Parâmetros,<br />
2000: 40). É a mesma crítica que Morin estabelece quando tem em mira o pensamento linear.<br />
Ao enveredarem pela transversalidade e interdisciplinaridade, os Parâmetros... mencionam<br />
explicitamente uma visão complexa da realidade, quando afi rmam que “ambas apontam a<br />
complexidade do real e a necessidade de se considerar teias de relações entre os seus diferentes<br />
e contraditórios aspectos” (Parâmetros, 2000: 40, grifos nossos). Embora não usem a palavra<br />
“transdisciplinaridade”, tema relevante na teoria da complexidade, possibilitam entender<br />
que ela está implícita no conceito de interdisciplinaridade, porquanto esta “questiona a<br />
segmentação entre os diferentes campos de conhecimento produzida por uma abordagem<br />
que não leva em conta a inter-relação e a confl uência e a infl uência entre eles – questiona a<br />
visão compartimentada (disciplinar) da realidade sobre a qual a escola, tal como é conhecida,<br />
historicamente se constituiu” (Parâmetros, 2000: 40).<br />
A transdisciplinaridade aparece de maneira visível também nos objetivos da transversalidade,<br />
quando afi rmam:<br />
a transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de<br />
conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito do conhecimento<br />
na sua produção, superando a dicotomia entre ambos. Por essa mesma via,<br />
a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extra-escolares,<br />
possibilitando a referência de sistemas de signifi cados construídos na realidade dos<br />
alunos (Parâmetros, 2000: 40).<br />
Como tema transversal – e transdisciplinar, diremos nós –, a ética também permeia<br />
“necessariamente toda a prática educativa, que abarca relações entre os alunos, entre<br />
professores e alunos e entre diferentes membros da realidade escolar” (Parâmetros, 2000: 39).<br />
O enfoque no aspecto complexo da realidade suscita uma exigência ética fundamental para<br />
a escola, a de “desenvolver um projeto de educação comprometida com o desenvolvimento<br />
de capacidades que permitam intervir na realidade para transformá-la”, cuja diretriz, entre<br />
outras, é a de “posicionar-se em relação às questões sociais e interpretar a tarefa educativa<br />
como uma intervenção na realidade no momento presente” (Parâmetros, 2000: 27).<br />
109
110<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Ao trabalhar o caminho que conduz do pensamento complexo à ética, o livro de Morin<br />
explicita princípios de notável relevância e complementa o que foi dito acima. Morin (2005: 64)<br />
afi rma que todo conhecimento pode ser posto a serviço da manipulação, “mas o pensamento<br />
complexo conduz a uma ética da solidariedade e da não-coerção”. Abrindo um panorama mais<br />
amplo, o autor afi rma que é possível imaginar uma ciência que possibilite o auto-conhecimento<br />
e abra caminhos para a “solidariedade cósmica” (MORIN, 2005: 64).<br />
A antropologia complexa também tem vínculos com a solidariedade, pois “reconhece o sujeito<br />
na sua dualidade egocêntrica/altruísta, o que lhe permite compreender a fonte original da<br />
solidariedade e da responsabilidade”. Além de ir à fonte, o pensamento antropológico complexo<br />
indica os rumos para uma ética da responsabilidade, que implica no reconhecimento do sujeito<br />
relativamente autônomo, como também abre caminhos para uma ética da solidariedade, porquanto<br />
é um pensamento que religa. Mostra também que, quanto maior for a complexidade social e as<br />
liberdades, mais necessária é a liberdade para garantir o vinculo social (MORIN, 2005: 64-65).<br />
Uma visão histórica, sociológica e antropológica da ética é desejo também dos Parâmetros<br />
Curriculares Nacionais:<br />
A moralidade humana deve ser enfocada no contexto histórico e social. Por conseqüência, um<br />
currículo escolar sobre a ética pede uma refl exão sobre a sociedade contemporânea na qual<br />
está inserida a escola. Tal refl exão poderia ser feita de maneira antropológica e sociológica:<br />
conhecer a diversidade de valores presentes na sociedade brasileira (Parâmetros, 2000: 70).<br />
Olhando as atividades, outra consideração é o aspecto da auto-ética que perpassa todas elas,<br />
embora apareça de modo mais explícito em “Identidades” e na “Árvore do bem e do mal”.<br />
A auto-ética ou a ética individualizada comporta, segundo Morin, quatro instâncias: 1. a<br />
ética de si para si (auto-análise, autocrítica, honra, tolerância, prática da recursão ética, que<br />
signifi ca avaliar as nossas avaliações, luta contra a moralina, que é o julgamento com base em<br />
critérios exteriores ou superfi ciais da moralidade, resistência à lei do talião e ao sacrifício do<br />
outro e prática da responsabilidade); 2. a ética da compreensão (a consciência da complexidade<br />
e dos desvios humanos; a abertura à magnanimidade e ao perdão); 3. a ética da cordialidade<br />
(cortesia, civilidade); 4. a ética da amizade.<br />
Morin (2005: 102) afi rma que “solidariedade, responsabilidade e auto-ética são termos, hoje,<br />
quase inseparáveis”. Voltando a enfatizar a ética da religação, diz ele que a ética altruísta religa<br />
e exige que se mantenha a abertura para o outro, salvaguardando o sentimento de identidade<br />
comum, consolidando e fortalecendo a compreensão do outro. Referindo-se ao “imperativo<br />
da religação”, o autor percebe que o excesso de separação entre os seres humanos é perverso<br />
quando não compensado pela união, solidariedade, amizade e amor.<br />
Um tratamento especial é dedicado ao tema da “ética da compreensão”, no qual o autor<br />
destaca a necessidade de compreender a incompreensão (MORIN, 2005: 116-117) e diz que o
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
pensamento complexo comporta um metaponto de vista sobre as estruturas do conhecimento<br />
que possibilita compreender o paradigma da disjunção/redução dominante nos modos de<br />
conhecimento comum. Isso é muito importante, pois o princípio de redução, que limita o todo<br />
complexo a um dos seus componentes e elimina o contexto em que se dá o agir ético, produz<br />
incompreensão de tudo o que é global e fundamental. O princípio de disjunção, por sua vez, aliase<br />
ao de redução para impedir a concepção dos vínculos e da solidariedade entre os elementos<br />
de uma realidade complexa, tornando inviável o que é global e fundamental.<br />
Pode-se resumir a auto-ética em dois imperativos: disciplinar o egocentrismo; desenvolver<br />
o altruísmo.<br />
A auto-ética é a mais individual possível, engajando a responsabilidade pessoal; ao<br />
mesmo tempo, é um ato transcendental, que nos liga às forças vivas da solidariedade,<br />
anterior às nossas individualidades, originarias da nossa condição social, biológica,<br />
física e cósmica. Une-nos ao outro e à nossa comunidade, mais amplamente ao<br />
Universo e, como tal, é ato de religação (MORIN, 2005: 142).<br />
Vários tópicos da auto-ética são tocados nos Parâmetros..., tendo em vista o cotidiano escolar.<br />
Eles notam, “por vezes, no cotidiano, comportamentos incoerentes, contraditórios, distanciados<br />
das atitudes e valores que se acreditam corretos. Isso signifi ca que a coerência absoluta não<br />
existe, e na formação de atitudes vive-se um processo não linear.” (Parâmetros, 2000: 45)<br />
A compreensão é um desafi o para o agir humano em geral e para a prática escolar. Para<br />
Morin (2005: 122), “a compreensão complexa comporta uma difi culdade terrível”. Isso acontece<br />
porque ela “enfrenta incessantemente o paradoxo da irresponsabilidade/responsabilidade<br />
humana”. Essa contradição é inevitável. “Pode-se somente tentar superá-la (superar signifi ca<br />
conservar aquilo que se supera) pela magnanimidade, pelo perdão” (MORIN, 2005: 122).<br />
Desse paradoxo nasce um grande desafi o, que é notado e realçado nos Parâmetros...: “Nas<br />
relações interpessoais, não só entre professor e aluno, mas também entre os próprios alunos,<br />
o grande desafi o é conseguir se colocar no local do outro, compreender seu ponto de vista<br />
e suas motivações no interpretar suas ações. Isso desenvolve a atitude de solidariedade e a<br />
capacidade de lidar e conviver com as diferenças.” (Parâmetros, 2000: 45)<br />
Por essa razão, o diálogo aparece entre os conteúdos a serem trabalhados como instrumento<br />
para esclarecer confl itos e implica escutar o outro e compreender o sentido preciso da sua ação e<br />
do que ele quer dizer (Idem, 2000: 109-111). Atitudes como generosidade, compaixão, ajuda aos<br />
necessitados, confi ança, respeito mútuo, convívio são enfatizadas em vários tópicos do documento.<br />
Mais um ponto forte a ser destacado é a presença explícita, nas atividades, do corpo e da<br />
corporeidade. O manuseio de objetos corporais, os subsídios áudio-visuais, o fazer em conjunto<br />
com o refl etir indicam o envolvimento de todos os sentidos, de tal forma que não se trata<br />
apenas de um educar para compreender e conscientizar, na esfera do entendimento, mas um<br />
“educar de corpo inteiro”, que constitui algo fundamental embora muito pouco praticado na<br />
111
112<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
relação pedagógica. Não há “pedagogia da Terra” sem uma “pedagogia do corpo”, que supere<br />
o dualismo razão/corpo e abra para a corporeidade o lugar que lhe cabe em todos os espaços<br />
educacionais (Cf QUEIROZ: 2001). Nessa linha relembro o pensamento enfático de Assman (1995:<br />
113) “o corpo é, do ponto de vista científi co, a instância fundamental para articular conceitos<br />
centrais para a teoria pedagógica. Em outras palavras, somente uma teoria da corporeidade<br />
pode fornecer as bases para uma teoria pedagógica”.<br />
As amostras de atividades que comentamos indicam o nascedouro de uma grande<br />
contracorrente de esperança, que pode obstar e mudar os rumos da trágica situação e das<br />
sombrias perspectivas para o planeta e para a humanidade. Aliadas aos macro-movimentos<br />
em âmbito local, nacional e internacional, as pequenas experiências no cotidiano escolar, em<br />
especial no Ensino Fundamental, no qual se lançam as sementes do futuro cidadão, carregam<br />
um grande potencial “de emancipação com relação à tirania onipresente do dinheiro, que se<br />
busca contrabalançar por relações humanas solidárias fazendo retroceder o reino do lucro”<br />
(MORIN, 2000: 73). Promissora é essa contracorrente que reage ao desencadeamento da<br />
violência, que germina da injustiça e da desigualdade e nutre “éticas de pacifi cação das almas<br />
e das mentes” (Idem, 73).<br />
As atividades patenteiam um mundo pequeno e ao mesmo tempo imenso, porque apontam<br />
caminhos para aprender a “estar aqui” no planeta, que signifi ca aprender a viver, dividir,<br />
comunicar, comungar e transformar, como humanos da terra, inscrevendo em nós a consciência<br />
antropológica, ecológica, cívica terrena, social transformadora e espiritual.<br />
Despertar a consciência de nossa unidade e responsabilidade planetária é a exigência racional<br />
mínima de um mundo encolhido e interdependente. Pequenas experiências educacionais que,<br />
ao contagiarem o cotidiano escolar, vão solidifi cando o comportamento planetário na luta pela<br />
vida, universal e singular, debelando as ameaças de morte. “Civilizar e solidarizar a Terra,<br />
transformar a espécie humana em verdadeira humanidade, torna-se o objeto fundamental e<br />
global de toda educação que aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade”<br />
(MORIN, 2000:78).<br />
Pequenas experiências lançadas no Pontal do Paranapanema, sementes de um futuro<br />
promissor. Oxalá cresçam e contagiem todo o nosso sistema educacional.<br />
Peço licença, agora, para dizer o que eu sinto. Na singeleza e simplicidade que as caracterizam,<br />
vejo a beleza e o aroma de um “poema pedagógico” de amor à Mãe Terra e a seus fi lhos,<br />
construído e ainda em construção pela dedicação, amor e carinho de todos os envolvidos nessa<br />
na empreitada.<br />
Finalizo dando voz ao poeta da esperança que, no exílio chileno, em tempos obscuros da<br />
repressão militar, cantava a madrugada e a aurora de um novo mundo.
Madrugada camponesa<br />
Madrugada camponesa,<br />
faz escuro ainda no chão<br />
mas é preciso plantar.<br />
A noite já foi mais noite,<br />
a manhã vai chegar.<br />
Não vale mais a canção<br />
feita de medo e arremedo<br />
para enganar a solidão.<br />
Agora vale a verdade<br />
cantada simples e sempre,<br />
agora vale a alegria<br />
que se constrói dia-a-dia<br />
feita de canto e pão.<br />
Breve há de ser (sinto no ar)<br />
tempo de trigo maduro.<br />
Vai ser tempo de ceifar.<br />
Já se levantam prodígios,<br />
chuva azul no milharal,<br />
estala em fl or o feijão,<br />
num leite novo minando<br />
no meu longe seringal.<br />
Já é quase tempo de amor.<br />
Colho um sol que arde no chão,<br />
lavro a luz dentro da cana,<br />
minha alma no seu pendão.<br />
Madrugada camponesa.<br />
Faz escuro (já nem tanto),<br />
vale a pena trabalhar.<br />
Faz escuro mas eu canto<br />
porque a manhã vai chegar.<br />
(THIAGO DE MELLO, 1980: 34)<br />
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
113
114<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
José J. Queiroz é graduado em Filosofi a, Teologia e Direito e mestre em Filosofi a e Teologia.<br />
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Internacional Santo Tomás de Aquino de Roma,<br />
professor titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC/SP.<br />
professor-doutor do Mestrado em Educação do Centro Universitário Nove de Julho – Uninove.<br />
Coordenador do Grupo Interinstitucional de Estudos e Pesquisas Pós-religare – Pós-modernidade<br />
e religião da PUC/SP, e pesquisador do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Complexidade.<br />
Referências<br />
ASSMAN, Hugo. Paradigmas Educacionais e Corporeidade. 3ª. Ed. Piracicaba: UNIMEP, 1995<br />
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais. Volume 8. Apresentação<br />
dos Temas Transversais. Ética. 2ª. Ed. Brasília: 2000.<br />
MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.<br />
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São <strong>Paulo</strong>: Cortez/Unesco, 2000.<br />
_____, O Método 6. Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.<br />
QUEIROZ, José J. Educar para a Solidariedade. Princípios e Rumos. In ALMEIDA, Cleide e<br />
PETRAGLIA, Izabel (Org.). Estudos de Complexidade. São <strong>Paulo</strong>: Xamã, 2006.<br />
_____, Redescobrir a Corporeidade. Parte IV. Revés do Avesso. São <strong>Paulo</strong>: Centro Ecumênico de<br />
Publicações e Estudos – CEPE. X (6):49-53, junho 2001.<br />
WERTHEIN, Jorge. Apresentação. In MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do<br />
Futuro. São <strong>Paulo</strong>: Cortez/Unesco, 2000.
CUIDADO NA ERA DO DESCUIDO: O PROBLEMA DA LINGUAGEM<br />
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
<strong>Paulo</strong> Roberto Monteiro de Araujo<br />
Já é lugar comum falarmos da nossa Era como horizonte de práticas desumanizadoras, no<br />
entanto cabe insistir mais uma vez na mesma pergunta: como superar tais práticas?<br />
Inicialmente, coube à Pedagogia, principalmente a partir do Iluminismo, que tinha como<br />
núcleo principal o conceito de autonomia racional dos indivíduos, a formação sistematizada do<br />
processo de aprendizado das novas gerações. As práticas que vimos ao longo dos últimos dois<br />
séculos (XIX e XX) em relação à formação educacional das crianças e jovens nos mostraram que<br />
o foco pedagógico quase sempre esteve calcado em uma forma de racionalidade procedimental,<br />
isto é, em uma racionalidade que se bastava a si mesma, separada das dinâmicas sociais, bem<br />
como das diversas formas de viver dos grupos humanos.<br />
A linguagem educacional iluminista, apesar dos seus bons intentos em buscar a realização da<br />
autonomia nos indivíduos, esqueceu que a linguagem, como diria o fi lósofo canadense Charles<br />
Taylor, não possui um centro gravitacional em que podemos dar conta do que é o homem.<br />
Taylor, ao falar da não existência de um centro de gravidade da linguagem, procura mostrar<br />
que o homem é um animal que a todo instante está auto-interpretando a si mesmo. Por isso, a<br />
linguagem a cada momento se modifi ca, criando novos signifi cados para as práticas humanas.<br />
Cabe a quem está envolvido com atividades sociais, sejam elas pedagógicas ou não, ter o<br />
cuidado de desenvolver ações e atividades que não se tornem puras mecanizações lingüísticas<br />
que procuram dar conta dos objetivos sócio-pedagógicos por meio de fórmulas universais.<br />
É evidente que para se desenvolver qualquer ação ou atividade é preciso que haja regras.<br />
Entretanto, elas não podem aparecer como simples fórmula que, ao ser usada, vá garantir<br />
o sucesso de aprendizado daquele que realiza a atividade proposta. Daí não basta somente<br />
propor atividades como meio ambiente, saúde, coleta de lixo, identidade pessoal, entre outros<br />
temas, se não houver um cuidado com a linguagem. O problema que surge, então, relaciona-se<br />
com os dois tipos de linguagem que se desenvolveram no Ocidente Moderno e Contemporâneo:<br />
a linguagem designativa e a linguagem expressivista. A primeira se refere a uma forma de<br />
defi nir as coisas de modo instrumental. Deste modo, a linguagem designativa se limita a servir<br />
aos propósitos de quem a utiliza para distinguir as idéias por meio de termos designados<br />
antecipadamente. Por isso, quem trabalha com atividades educacionais precisa ter o cuidado<br />
para não ver o outro como alguém que é defi nido como ignorante ou utilizar termos préestabelecidos<br />
pelo status quo sem considerar as particularidades culturais do grupo com o qual<br />
irá desenvolver uma determinada atividade. Já para segunda, a linguagem não é um simples<br />
envelope exterior do pensamento, nem um instrumento que poderíamos a princípio dominar e<br />
apreender integralmente. A preocupação da linguagem expressivista é possibilitar que o homem<br />
expresse a si mesmo, isto é, o seu modo de ser.<br />
115
116<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Ao trabalharmos com a linguagem expressivista deixamos de querer controlar as coisas,<br />
os homens e o ambiente em que estamos, pois o que interessa é permitir que as pessoas e os<br />
grupos com os quais trabalhamos educacionalmente compreendam e expressem o que elas são<br />
em suas identidades culturais. É na e pela linguagem, sem o seu caráter instrumental, que o<br />
homem ganha a capacidade de expressar a si mesmo, isto é, a sua identidade como aquilo que<br />
lhe é mais próprio. A linguagem é o elemento estratégico para se compreender a construção<br />
das articulações signifi cativas que constituem a tomada de decisão de um agente humano<br />
diante das questões ético-políticas que ocorrem no espaço público. Deste modo, as atividades<br />
educacionais desenvolvidas no âmbito da interdisciplinaridade precisam estar ajustadas com a<br />
fi nalidade de formar cidadãos que aprendam a expressar os seus posicionamentos políticos a<br />
partir das suas identidades sócio-lingüístico-culturais.<br />
A questão do cuidado com a linguagem é de suma importância, pois ela está relacionada<br />
diretamente com o poder de expressão humana na esfera das ações no espaço público. A<br />
linguagem leva ao problema da ação. Esclarecer as determinações da linguagem torna-se crucial<br />
para se entender a ligação entre expressão e ação.<br />
As teorias cientifi cistas não se preocupam com o problema da linguagem no que se refere<br />
diretamente à expressão e à ação. A questão da linguagem não é posta por elas. Para Charles<br />
Taylor, ao não se explicitar o problema da linguagem, na verdade, não se está abrindo a<br />
discussão para a questão da natureza humana. Desenvolvendo uma antropologia fi losófi ca como<br />
introdução ao seu pensamento político, Taylor tenta esclarecer os fundamentos da natureza<br />
humana. Eis o motivo do seu interesse pela linguagem. Para ele, o homem, ao ser um animal<br />
expressivo, tem como determinação a linguagem. É na e pela linguagem que o homem pode<br />
expressar a sua presença no mundo, bem como dar sentido a este. Neste aspecto o pensamento<br />
de Taylor se aproxima do de fi lósofos como Ernst Cassirer, no sentido de que ambos têm a<br />
preocupação com as formas lógicas das diversas construções simbólicas elaboradas pelo homem.<br />
Especifi camente, Cassirer se volta para o problema do formato lógico-expressivo das diversas<br />
elaborações simbólicas feitas pelo homem por meio do seu desenvolvimento cultural (o mito, a<br />
religião, a arte, a ciência como formas simbólicas).<br />
Já Taylor analisa a expressividade da linguagem naquilo que o homem procura analisar a si<br />
mesmo como possibilidade de construir a sua identidade com o propósito de confi gurá-la no mundo.<br />
Para que ocorra essa confi guração da sua expressão, o homem precisa entrar na perspectiva<br />
lingüística. É com Herder que Taylor consegue apreender as condições essenciais da linguagem:<br />
Uma criatura opera na dimensão lingüística quando pode usar signos – e a eles responder<br />
– em termos de sua verdade, ou justeza descritiva, do poder de evocar algum estado<br />
de espírito, recriar uma cena, exprimir alguma emoção, veicular alguma nuança de<br />
sentimento ou ser de algum modo le mot juste. Ser uma criatura lingüística é ser sensível<br />
a questões irredutíveis de justeza18 .<br />
18 Charles Taylor. A Importância de Herder. In: Argumentos Filosófi cos. Tradução brasileira. Ed. Loyola, p. 98.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
O problema da justeza entre aquilo que se quer dizer e aquilo que é expresso, traz em si um<br />
problema da compreensão subjetiva. A justeza da linguagem é o modo pelo qual o indivíduo<br />
procura confi gurar a si mesmo no espaço público com o intuito de expressar signifi cativamente<br />
a sua identidade ou aquilo que ele percebe ao seu redor. Deste modo, por mais ‘inconsciente’<br />
que esteja aquilo que o indivíduo expressa, a sua atitude deve refl etir o que ele quer dizer<br />
publicamente. O que Taylor capta de Herder é a sua noção de Besonnenheit (refl exão) 19 . É a<br />
refl exão que possibilita o indivíduo ser capaz de expressar aquilo que ele sente signifi cativamente,<br />
bem como elaborar distinções dos objetos percebidos. Assim, a justeza lingüística desenvolvida<br />
pelo homem por meio da refl exão serve para que este construa signos individuais, cuja função<br />
é permitir que as expressões sejam reconhecidas e distinguidas no espaço público sem terem<br />
um caráter reifi cado. A linguagem é remodelada a todo instante pelos diversos modos de ser<br />
do homem no mundo. Ela nunca pode ser dominada, pois o seu centro de gravidade 20 jamais é<br />
alcançado. “No que se refere à linguagem, somos tanto construtores como construídos” 21 .<br />
Ao tirar de Herder a idéia que o homem é ao mesmo tempo construtor e construído pela<br />
linguagem, Taylor consegue relacionar sentimento e linguagem.<br />
A idéia revolucionária implícita em Herder foi a de que o desenvolvimento de novas modalidades<br />
de expressão nos capacita a ter novos sentimentos, mais potentes ou mais aprimorados, e por<br />
certo mais autoconscientes. Ao serem capazes de exprimir nossos sentimentos, damos-lhes<br />
uma dimensão refl exiva que os transforma. O animal lingüístico pode sentir não só raiva como<br />
indignação, não só amor como admiração 22 .<br />
É essa capacidade de expressão que faz com que o homem possa viver as suas emoções<br />
exprimindo-as, sem a necessidade de descrevê-las em si. A linguagem permite ao homem criar<br />
formas lingüísticas que realizam a justeza daquilo que ele quer expressar sentimentalmente.<br />
Expressando isso que ele sente o homem remodela a língua, criando as suas próprias formas, no<br />
sentido de se fazer presente no mundo. Eis por que Herder diz que se cria assim um novo idioma.<br />
Num dado indivíduo há uma palavra que se esvazia, mas que permanece. Uma que se afasta<br />
do seu sentido principal por causa de pontos de vista secundários, outra em que o espírito do<br />
sentido principal se modifi ca com a própria seqüência temporal. E assim surgiram, em termos<br />
pessoais, fl exões, derivações, modifi cações, prefi xos e sufi xos, deslocamentos e supressões de<br />
parte do sentido ou da totalidade do sentido das palavras: um novo idioma! E tudo isto tão<br />
naturalmente quanto é natural no homem o fato de a língua constituir o sentido da sua alma 23 .<br />
Para Herder, a língua, ao estar em constante transformação, faz surgir sempre uma nova língua<br />
em cada novo mundo, língua nacional em cada nação. Sendo assim, “a linguagem é um Proteu sobre<br />
19 Id. A Importância de Herder, 102.<br />
20 O tradutor de A Importância de Herder usa a expressão pano de fundo para centro de gravidade.<br />
21 Idem, 111.<br />
22 Idem, 112.<br />
23 Herder. Ensaio sobre a origem da linguagem. Tradução José M. Justo. Ed. Antígona (1987), 148.<br />
117
118<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
a superfície curva do planeta” 24 . Taylor analisa essa estrutura auto-transformadora da língua, que<br />
faz brotar de si mesma novas formas de linguagem, com o propósito de desenvolver uma Política<br />
do Reconhecimento, em que as diferentes formas de expressão humana possam ser compreendidas<br />
em sua reivindicações sócio-político-culturais. A teoria herderiana da linguagem possibilita abrir<br />
os horizontes teóricos no que se refere à origem das expressões humanas como manifestação<br />
signifi cativa das suas identidades. Eis o motivo de o educador, ao estar desenvolvendo as suas<br />
práticas pedagógicas, considerar lingüisticamente às manifestações signifi cativas das identidades<br />
de seus alunos. É a partir das expressões dos alunos que o educador pode ajudá-los em relação à<br />
justeza daquilo que eles querem expressar para terceiros no espaço da convivência.<br />
É a linguagem que constitui as articulações emocionais e é por isso que as ações realizadas<br />
pelo aluno por meio da sua auto-referência emocional se apresentam como boas ou más. O Bem<br />
e o Mal estão na esfera da linguagem, daí ela ser a base sobre a qual as nossas atitudes se mostram<br />
imbuídas de signifi cações. Interpretarmo-nos signifi ca justamente avaliar as nossas articulações<br />
emocionais no plano da linguagem. A linguagem e a emoção estão entrelaçadas de modo que<br />
não é possível se referir a uma sem considerar a outra. Além disto, a linguagem possibilita<br />
a própria forma das nossas emoções. Não é à toa que um novo vocabulário pode modifi car<br />
a forma anterior de articulação das nossas emoções 25 . O que tinha um determinado sentido<br />
emocionalmente ganha um outro formato no processo temporal interpretativo lingüístico 26 .<br />
Assim, o que era considerado anteriormente vergonhoso para uma pessoa passa não ter mais<br />
sentido ou ganha uma outra reformulação signifi cativa.<br />
A mudança do vocabulário signifi ca tanto o aprofundamento como a transformação da nossa<br />
interioridade emocional ou eu-emocional. A interpretação do eu-emocional passa por constantes<br />
trans-avaliações do vocabulário que, a cada mudança, reestrutura o modo de sentir e de vida<br />
do indivíduo, principalmente quando esse está no processo de ensino/aprendizagem. Os novos<br />
vocabulários são incorporados às referencias do eu-emocional do indivíduo, que modifi cam<br />
toda a maneira de o eu se situar tanto emocionalmente como cognitivamente. A linguagem, ao<br />
concretizar-se por meio das diversas formas de vocabulário, articula discernimentos (insights)<br />
ou os torna possíveis no plano emocional-cognitivo do indivíduo. Deste modo:<br />
Dizer que a linguagem é constituída pela emoção é dizer que experimentar uma<br />
emoção implica essencialmente em verifi car se certas descrições ajustam-se; ou que<br />
uma dada emoção implica algum (grau de) discernimento27 .<br />
Os discernimentos (insights) que ocorrem em nossa articulação emocional signifi cativa tornam<br />
possível a compreensão dos sentimentos no que se refere às suas avaliações. Neste aspecto,<br />
as avaliações são a própria refl exão interpretativa do eu. Ocupando-se daquilo que o sujeito<br />
24 Idem, 150.<br />
25 Podemos nos referir ao processo psicanalítico que possibilita ao analisado rever as signifi cações das suas articulações emocionais<br />
criando, assim, condições para transformá-las.<br />
26 Taylor dá um exemplo sociocultural destas modifi cações com a expressão – black is beautiful. Self-interpreting animals, 69.<br />
27 Charles Taylor. Self-interpreting animals, 71.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
sente, a avaliação busca, por meio dos insights, esclarecer as estruturas signifi cativas com a<br />
intenção de possibilitar ao eu situar-se no seu processo de experimentação dos sentimentos.<br />
Experimentar os sentimentos é avaliá-los dentro de um quadro signifi cativo que, em última<br />
instância, faz com que o sujeito esclareça para si o que ele está sentindo, superando, assim, as<br />
confusas articulações signifi cativas.<br />
Superar as confusas articulações signifi cativas representa experimentar de um modo adequado<br />
aquilo que, no processo de avaliação, o eu antes sentia desordenadamente. Sentindo as coisas de<br />
uma forma adequada, o modo de avaliar do sujeito também muda. Desta maneira, a linguagem<br />
assume um papel fundamental para a redefi nição signifi cativa das articulações emocionais e<br />
cognitivas do eu; ela articula os nossos sentimentos, tornando-os mais claros e mais defi nidos. O<br />
motivo pelo qual reconhecemos as expressões ‘Eu a amo’ ou ‘Eu estou ciumento’ altera a emoção<br />
que se mostra nessas articulações do eu, possibilitando, assim, o esclarecimento signifi cativo do<br />
tipo de amor e de ciúme que estamos sentindo 28 . O reconhecimento é fundamental para tornar<br />
clara a constituição signifi cativa dos nossos sentimentos. Reconhecer os motivos que levam o eu<br />
a articular estruturas de linguagem para expressar os sentimentos é esclarecer o que signifi ca os<br />
termos empregados pelo indivíduo. A frase ‘Eu a amo’ pode ter signifi cados diferentes entre os<br />
sujeitos que a empregam nas suas falas. Como salienta Taylor, nós não experimentamos as mesmas<br />
coisas, nós não temos os mesmos sentimentos 29 . Por isso, quando estamos desenvolvendo alguma<br />
atividade sobre meio ambiente, artes, coleta de lixo, política etc., o que cada aluno sente não<br />
é igual ao outro. O educador deve estar atento ao eu-emocional de cada aluno para ajudá-lo<br />
a articular signifi cativamente o que ele sente em relação à atividade proposta. É a partir da<br />
estruturação signifi cativa do que o aluno sente que o mesmo pode formular o seu vocabulário de<br />
valor em relação aos temas que lhe são propostos nas atividades educacionais.<br />
A partir do reconhecimento das signifi cações construídas internamente pelas articulações<br />
emocionais, os indivíduos passam a compreender as diversas formas lingüísticas que são<br />
elaboradas pelo eu. Reconhecer as possíveis formas elaboradas no espaço íntimo-existencial<br />
dos indivíduos é reconhecer não só a identidade do eu, mas também as diversas identidades que<br />
diferenciam os homens entre si. Na sua identidade própria, cada um articula as emoções em um<br />
plano vocabular que faz o indivíduo, por exemplo, ter um tipo de amor ou ciúme de acordo com<br />
a sua articulação. Este caráter articulador da vida emocional dos seres humanos propiciou que<br />
as diferentes culturas trouxessem à baila vários tipos de vocabulários signifi cativos. Além disto,<br />
mesmo no bojo de uma cultura as pessoas elaboram diferentes vocabulários que as fazem ter<br />
diferentes experiências. Sendo assim:<br />
Considerem-se duas pessoas, uma com uma única dicotomia amor/luxúria para os tipos possíveis<br />
de sentimento sexual; a outra com um vocabulário muito diversifi cado de diferentes espécies<br />
de relações sexuais. Será diferente a experiência das emoções dessas duas pessoas30 .<br />
28 Quando eu reconheço o motivo, isto é, a articulação signifi cativa, que altera a minha emoção na frase Eu a amo, logo o signifi cado<br />
de amor é alterado emocionalmente em mim.<br />
29 Op. cit., 71.<br />
30 Op. cit., 71.<br />
119
120<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Os indivíduos sempre experimentam de forma diferente os objetos ou os assuntos que<br />
aparentemente possuem signifi cados iguais. Seguindo esta linha raciocínio, Taylor argumenta<br />
que isto acontece por causa da nossa capacidade de trans-avaliar (transvaluation) aquilo que<br />
nos é colocado lingüisticamente. Nós transpomos outras avaliações de acordo com as nossas<br />
articulações emocionais, no sentido de expressar o que tem importância signifi cativa para a<br />
nossa identidade.<br />
O processo de transpor outras avaliações no interior das sensações do eu traz à tona a<br />
possibilidade de o indivíduo reordenar, isto é, reinterpretar a si mesmo por meio do universo<br />
lingüístico. A linguagem permite ao indivíduo reordenar toda a sua sensação após avaliar aquilo<br />
que ele sente em sua experimentação. Deste modo, os termos do vocabulário empregados<br />
anteriormente à experiência do agente se modifi cam, expressando outra articulação signifi cativa<br />
das suas sensações. O eu está em constante transformação de si mesmo como possibilidade de<br />
se auto-esclarecer e de adquirir outras formas de expressão de si mesmo.<br />
Nós podemos dizer que o eu está sempre em um movimento de reestruturação tanto emocional<br />
como cognitivamente na sua atividade experimental. O eu é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto<br />
de si mesmo, situação esta que o leva a todo instante a se interpretar por meio das suas transavaliações.<br />
Estando no fl uxo das trans-avaliações, o sujeito, ao adquirir uma nova forma de<br />
auto-entendimento (self-understanding), passa a ter também outro modo de experimentar<br />
as suas emoções. Ao nos articularmos lingüisticamente, articulamos as nossas emoções, no<br />
sentido de dar-lhes novos signifi cados. Daí a nossa preocupação com a linguagem, ou melhor<br />
ainda, de como o educador, que desenvolve atividades interdisciplinares, precisa compreender<br />
a linguagem não como simples instrumento, mas como expressão signifi cativa dos seus alunos.<br />
<strong>Paulo</strong> Roberto Monteiro de Araujo é professor do Programa de Mestrado em Educação,<br />
Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.<br />
Referências<br />
TAYLOR, Charles. Sources of The Self – The Making of the Modern Identiy. Cambrigde: Harvard<br />
University Press, 1996 (oitava edição).<br />
______. As Fontes do Self – A construção da identidade moderna. (trad. Adail U. Sobral e<br />
Dinah de Azevedo de Abreu). São <strong>Paulo</strong>: Edições Loyola, 1997.<br />
______. Philosophical Arguments. Cambrigde: Harvard University Press, 1995 (Segunda<br />
edição).<br />
______. Argumentos Filosófi cos. (trad. Adail U. Sobral). São <strong>Paulo</strong>. Edições Loyola, 2000.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
______. Human Agency and Language – Philosophical Papers 1 Cambrigde: Cambridge<br />
University Press, 1996.<br />
______. Philosophy and The Human Sciences – Philosophical Papers 2. Cambrigde: Cambridge<br />
University Press, 1995.<br />
______. Multiculturalism. New Jersey: Princeton University Press, 1994.<br />
ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Princeton: Princeton University Press, 2000.<br />
ARAUJO, <strong>Paulo</strong> R. M. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São <strong>Paulo</strong>: Ed.<br />
Loyola, 2004.<br />
______. Identidades Contemporâneas – criação, educação e política. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2006.<br />
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São <strong>Paulo</strong>: Ed. Martins Fontes, 1994.<br />
______. A Filosofi a das Formas Simbólicas. I – A linguagem. São <strong>Paulo</strong>: Ed. Martins Fontes, 2001.<br />
FOUCAULT, Michel. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de<br />
Janeiro: Forense Universitária, 1999.<br />
______. As Palavras e as Coisas. São <strong>Paulo</strong>: Ed. Martins Fontes, 2002.<br />
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêutica<br />
fi losófi ca. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.<br />
HERDER, Johann G. Ensaio sobre a origem da Linguagem. Lisboa: Edições Antígona, 1987.<br />
121
122<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: DIÁLOGO DE SABERES E TRANSFORMAÇÃO<br />
DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS – UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIAS DE APRENDER E ENSINAR<br />
Nosso Planeta requer mudanças<br />
Pedro Roberto Jacobi<br />
O século XXI inicia-se em meio de uma emergência socioambiental que promete agravar-se,<br />
caso sejam mantidas as tendências atuais de degradação; um problema enraizado na cultura,<br />
nos estilos de pensamento, nos valores, nos pressupostos epistemológicos e no conhecimento<br />
que confi gura, o sistema político, econômico e social em que vivemos. Uma emergência<br />
que, mais que ecológica, é uma crise do estilo de pensamento, dos imaginários sociais e do<br />
conhecimento que sustentaram a modernidade, dominando a natureza e multiplicando a lógica<br />
de mercantilização e consumo planetários.<br />
Vive-se um crise do ser no mundo, que se manifesta em toda sua plenitude nos espaços<br />
internos do sujeito, nas condutas sociais auto destrutivas; e nos espaços externos, na<br />
degradação da natureza e da qualidade de vida das pessoas (Beck, 1992).<br />
A humanidade chegou a uma encruzilhada que exige examinar-se para tentar achar novos<br />
rumos, refl etindo sobre a cultura, as crenças, valores e conhecimentos em que se baseia o<br />
comportamento cotidiano, assim como sobre o paradigma antropológico-social que persiste em<br />
nossas ações, no qual a educação tem um enorme peso.<br />
Atualmente, o avanço rumo a uma sociedade sustentável é permeado de obstáculos, na<br />
medida em que existe uma restrita consciência na sociedade a respeito das implicações do<br />
modelo de desenvolvimento em curso. A multiplicação dos riscos, em especial os ambientais e<br />
tecnológicos de graves conseqüências, é elemento chave para entender as características, os<br />
limites e as transformações da nossa modernidade. É cada vez mais notória a complexidade<br />
desse processo de transformação de uma sociedade crescentemente não só ameaçada, mas<br />
diretamente afetada por riscos e agravos sócio-ambientais.<br />
Nesse sentido, o conjunto de experiências aqui apresentadas, que têm como referência a Carta<br />
da Terra, como movimento e proposta que nos mobiliza para um agir em direção a uma concepção<br />
de sustentabilidade e diálogo com a natureza, abre um estimulante campo de refl exão e atuação<br />
em direção ao fortalecimento do que o Leonardo Boff defi ne como comunidade de vida.<br />
As possibilidades que a Carta da Terra e tantos outros documentos e propostas visam promover e<br />
avançar rumo a Sociedades Sustentáveis têm como premissa a democratização do conhecimento, do
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
acesso e a multiplicação de todo tipo de práticas articuladoras e colaborativas visando sensibilizar,<br />
integrar, divulgar, compreender e fortalecer a necessidade de um outro olhar e agir.<br />
O conjunto de histórias de aprender-e-ensinar elaborados por educadores engajados em um projeto<br />
de educação para a sustentabilidade, em comunidades pobres da região do Pontal do Paranapanema,<br />
é um forte estímulo à refl exão sobre as estimulantes e criativas possibilidades de avançar rumo a<br />
uma sociedade mais comprometida com a proteção dos recursos naturais, numa perspectiva que<br />
sensibiliza para um olhar e agir ético, integrador e abrangente. Os textos nos trazem ao contato com<br />
práticas socioambientais e educativas que procuram integrar e reforçar a importância de compreender<br />
as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça social, confl itos étnicos, paz,<br />
democracia, ética e crise espiritual. As onze experiências, com vibrante e provocativa criatividade,<br />
desenvolvem movimentos que buscam articular idéias, práticas e referenciais de conhecimento e<br />
imagéticos para promover refl exões e ações em torno das ameaças que pesam sobre a biosfera, a<br />
multiplicação dos problemas ambientais do presente e a sua diminuição no futuro.<br />
A ênfase em práticas que estimulam a interdisciplinaridade e a transversalidade revela o<br />
fantástico potencial que existe para sair do lugar comum e o trabalho com temáticas que<br />
estimulam mudanças no comportamento tais como reciclagem, a relação lixo e meio ambiente,<br />
responsabilidade social e ética ambiental, possibilita um outro olhar. Trata-se da importância<br />
de compreender a complexidade envolvida nos processos e o desafi o de ter uma atitude mais<br />
refl exiva e atuante e, por conseguinte, tornar-se mais responsáveis, cuidadosos e engajados em<br />
processos colaborativos com o meio ambiente.<br />
Práticas Educativas para o Desenvolvimento Sustentável<br />
O caminho para uma sociedade sustentável se fortalece na medida em que se desenvolvam<br />
práticas educativas que, pautadas pelo paradigma da complexidade, aportem para a escola<br />
e os ambientes pedagógicos, uma atitude refl exiva em torno da problemática ambiental e os<br />
efeitos gerados por uma sociedade cada vez mais pragmática e utilitarista, visando traduzir o<br />
conceito de ambiente e o pensamento da complexidade na formação de novas mentalidades,<br />
conhecimentos e comportamentos (LEFF, 2001). Isto implica na necessidade de se multiplicarem<br />
as práticas sociais baseadas no fortalecimento do direito ao acesso à informação e à educação<br />
em uma perspectiva integradora.<br />
Trata-se de promover o crescimento da consciência ambiental, expandindo a possibilidade<br />
da população participar em um nível mais alto no processo decisório, como uma forma de<br />
fortalecer sua co-responsabilidade na fi scalização e no controle dos agentes de degradação<br />
ambiental (JACOBI, 2003).<br />
Nessa direção, a problemática ambiental constitui um tema muito propício para aprofundar a<br />
refl exão e a prática em torno do restrito impacto das práticas de resistência e de expressão das<br />
demandas da população das áreas mais afetadas pelos constantes e crescentes agravos ambientais.<br />
123
124<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
As práticas educativas devem apontar para propostas pedagógicas centradas na conscientização,<br />
mudança de comportamento e atitudes, desenvolvimento de competências, capacidade de<br />
avaliação e participação dos educandos. Isto desafi a a sociedade a elaborar novas epistemologias<br />
que possibilitem o que Morin (2003) denomina de “uma reforma do pensamento” (FLORIANI,<br />
2003:116). No novo contexto do conhecimento do qual emergem as novas epistemologias sócioambientais,<br />
plurais e diferenciadas, Capra representa a busca da unifi cação do conhecimento com<br />
a natureza e a sociedade, Morin pensa a complexidade como referencial principal para explicar<br />
os novos sentidos do mundo, e Leff, uma nova racionalidade ambiental, capaz de subverter a<br />
ordem imperante entre as lógicas de vida e o destino das sociedades (FLORIANI e KNECHTEL,<br />
2003: 16). Assim, o conceito de ambiente situa-se numa categoria não apenas biológica, mas que<br />
constitui “uma racionalidade social, confi gurada por comportamentos, valores e saberes, como<br />
também por novos potenciais produtivos” (LEFF, 2001: 224)<br />
Uma mudança paradigmática implica numa mudança de percepção e de valores, e isto deve<br />
orientar de forma decisiva para formar as gerações atuais não somente para aceitar a incerteza e<br />
o futuro, mas para gerar um pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à<br />
diversidade, à possibilidade de construir e reconstruir num processo contínuo de novas leituras e<br />
interpretações, confi gurando novas possibilidades de ação (MORIN, 2001; CAPRA, 2003; LEFF, 2003).<br />
Os principais referenciais teóricos apontam para matrizes alternativas de integração do conhecimento<br />
que superem o paradigma dualista e enfatizam a complexidade e a interdisciplinaridade<br />
como elemento constitutivo de um novo pensar sobre as relações sociedade-natureza.<br />
A premissa que norteia o paradigma proposto é o diálogo de saberes e uma orientação para<br />
formar as gerações atuais, não somente para aceitar a incerteza e o futuro, mas para gerar um<br />
pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à diversidade, à possibilidade<br />
de construir e reconstruir em um processo contínuo de novas leituras e interpretações,<br />
confi gurando possibilidades de ação para a emancipação.<br />
Meio Ambiente e diálogo de saberes – atores e práticas<br />
As práticas educativas articuladas com a problemática ambiental não devem ser vistas<br />
como um adjetivo, mas como parte componente de um processo educativo que reforce um<br />
pensar da educação e dos educadores orientados para a sustentabilidade. Isto nos permite<br />
enfatizar que este processo educativo deve ser capaz de formar um pensamento crítico,<br />
criativo e sintonizado com a necessidade de propor respostas para o futuro, capaz de analisar<br />
as complexas relações entre os processos naturais e sociais e de atuar no ambiente em uma<br />
perspectiva global, respeitando as diversidades socioculturais. O objetivo é o de propiciar novas<br />
atitudes e comportamentos face ao consumo na nossa sociedade e de estimular a mudança de<br />
valores individuais e coletivos (JACOBI, 2005). Assim a educação ambiental precisa construir um<br />
instrumental que promova uma atitude crítica, uma compreensão complexa e a politização da<br />
problemática ambiental, a participação dos sujeitos, o que explicita uma ênfase em práticas<br />
sociais menos rígidas, centradas na cooperação entre os atores.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
Na ótica da modernização refl exiva, a educação ambiental tem de enfrentar a fragmentação<br />
do conhecimento e desenvolver uma abordagem crítica e política, mas refl exiva.<br />
Portanto, a dimensão ambiental representa a possibilidade de lidar com conexões entre diferentes<br />
dimensões humanas, possibilitando entrelaçamentos e múltiplos trânsitos entre múltiplos saberes.<br />
Atualmente o desafi o de fortalecer uma educação para a cidadania ambiental convergente e<br />
multirreferencial se coloca como prioridade para viabilizar uma prática educativa que articule de<br />
forma incisiva a necessidade de se enfrentar concomitantemente a crise ambiental e os problemas<br />
sociais. Assim, o entendimento sobre os problemas ambientais se dá através da visão do meio<br />
ambiente como um campo de conhecimento e signifi cados socialmente construído, que é perpassado<br />
pela diversidade cultural e ideológica e pelos confl itos de interesse (JACOBI, 2005).<br />
Os educadores(as) devem estar cada vez mais preparados para re-elaborar as informações<br />
que recebem, e dentre elas as ambientais, para poder transmitir e decodifi car para os alunos<br />
a expressão dos signifi cados em torno do meio ambiente e da ecologia nas suas múltiplas<br />
determinações e intersecções. A ênfase deve ser a capacitação para perceber as relações entre<br />
as áreas e como um todo enfatizando uma formação local/global, buscando marcar a necessidade<br />
de enfrentar a lógica da exclusão e das desigualdades. Nesse contexto, a administração dos<br />
riscos sócio-ambientais coloca cada vez mais a necessidade de ampliar o envolvimento público<br />
através de iniciativas que possibilitem um aumento do nível de consciência ambiental dos<br />
educadores garantindo a informação e a consolidação institucional de canais abertos para a<br />
participação numa perspectiva pluralista.<br />
Considera-se, portanto, como parte ativa de um processo intelectual, enquanto aprendizado<br />
social, baseado no diálogo e interação em constante processo de recriação e re-interpretação<br />
de informações, conceitos e signifi cados, que se originam do aprendizado em sala de aula ou da<br />
experiência pessoal do aluno. A abordagem do meio ambiente na escola passa a ter um papel<br />
articulador dos conhecimentos nas diversas disciplinas, no contexto onde os conteúdos são resignifi<br />
cados. Ao interferir no processo de aprendizagem e nas percepções e representações sobre<br />
a relação indivíduos - ambiente nas condutas cotidianas que afetam a qualidade de vida, a<br />
educação ambiental promove os instrumentos para a construção de uma sociedade sustentável.<br />
A ótica inovadora refere-se à forma como se apreende o objeto de pesquisa e à dinâmica que<br />
se estabelece com os atores sociais que propõem uma nova forma de integração e articulação do<br />
conhecimento ambiental. Esta abordagem busca superar o reducionismo e estimula um pensar<br />
e fazer sobre o meio ambiente diretamente vinculado ao diálogo entre saberes, à participação,<br />
aos valores éticos como valores fundamentais para fortalecer a complexa interação entre<br />
sociedade e natureza. Nesse sentido, o papel dos professores é essencial para impulsionar<br />
as transformações de uma educação que assume um compromisso com o desenvolvimento<br />
sustentável e também com as futuras gerações.<br />
Isto nos leva à refl exão sobre a necessidade da formação do profi ssional refl exivo para desenvolver<br />
práticas que articulem a educação e o meio ambiente numa perspectiva de sustentabilidade.<br />
125
126<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
A inserção da educação para a cidadania ambiental numa perspectiva crítica ocorre na medida<br />
em que o professor assume uma postura refl exiva. Entende-se a educação ambiental, sob a ótica<br />
de uma “educação para a cidadania ambiental”, como uma prática político-pedagógica. Assim<br />
sendo, representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas<br />
formas de participação em potenciais fatores de dinamização da sociedade e de ampliação da<br />
responsabilidade socioambiental. Trata-se de criar as condições para a ruptura com a cultura<br />
política dominante e para a construção de uma nova proposta de sociabilidade, baseada na<br />
educação para a participação. Esta se concretizará principalmente pela presença crescente<br />
de uma pluralidade de atores que, através da ativação do seu potencial de participação, terão<br />
cada vez mais condições de intervir consistentemente e sem tutela nos processos decisórios<br />
de interesse público, legitimando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do<br />
acesso à informação e na consolidação de canais abertos para a participação (JACOBI, 2005).<br />
As experiências interdisciplinares são recentes e incipientes inclusive em nível de pós-<br />
graduação. Existem, segundo Tristão (2002:173-181), quatro desafi os da educação ambiental<br />
que, entrelaçados, estão associados ao papel do educador na contemporaneidade. O primeiro<br />
desafi o é o de “enfrentar a multiplicidade de visões”, e isto implica na preparação do educador<br />
para fazer as conexões (CAPRA, 2003:94-99) e articular os processos cognitivos com os contextos<br />
da vida. Assim, entender a complexidade ambiental, não como “moda” ou “reifi cação” ou<br />
“utilização indiscriminada”, mas como construção de sentidos fundamental para identifi car<br />
interpretações e generalizações feitas em nome do meio ambiente e da ecologia. O segundo<br />
desafi o é o de “superar a visão do especialista”, e para tanto o caminho é ruptura com as práticas<br />
disciplinares. O terceiro desafi o é “superar a pedagogia das certezas”, e isto converge com as<br />
premissas que norteiam a formação do “professor refl exivo”, o que implica em compreender a<br />
modernidade e os “riscos produzidos” e seu potencial de reprodução e desenvolver, no espaço<br />
pedagógico uma sensibilização em torno da complexidade da sociedade contemporânea e das<br />
suas múltiplas causalidades. O quarto desafi o, de superar a lógica da exclusão, soma ao desafi o<br />
da sustentabilidade a necessidade da superação das desigualdades sociais.<br />
O momento atual é o de consolidar práticas pedagógicas que estimulem a interdisciplinaridade<br />
na sua diversidade.<br />
O desafi o da interdisciplinariedade é enfrentado como um processo de conhecimento que<br />
busca estabelecer cortes transversais na compreensão e explicação do contexto de ensino<br />
e pesquisa, buscando a interação entre as disciplinas e superando a compartimentalização<br />
científi ca provocada pela excessiva especialização.<br />
Enquanto combinação de várias áreas de conhecimento, a interdisciplinariedade pressupõe<br />
o desenvolvimento de metodologias interativas, confi gurando a abrangência de enfoque,<br />
contemplando uma nova articulação das conexões entre as ciências naturais, sociais e exatas.<br />
A preocupação em consolidar uma dinâmica de ensino e pesquisa a partir de uma perspectiva<br />
interdisciplinar enfatiza a importância dos processos sociais que determinam as formas de
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
apropriação da natureza e suas transformações através da participação social na gestão dos<br />
recursos ambientais, levando em conta a dimensão evolutiva no sentido mais amplo, incluindo<br />
as conexões entre as diversidades biológica e cultural, assim como as práticas dos diversos<br />
atores sociais, bem como o impacto da sua relação com o meio ambiente.<br />
Assim, a ênfase na interdisciplinariedade na análise das questões ambientais deve-se à<br />
constatação de que os problemas que afetam e mantêm a vida no nosso planeta são de natureza<br />
global e que suas causas não podem restringir-se apenas aos fatores estritamente biológicos,<br />
revelando dimensões políticas, econômicas, institucionais, sociais e culturais.<br />
Para isso não é sufi ciente reunir diferentes disciplinas para o exercício interdisciplinar, mas deve<br />
apoiar-se em trocas sistemáticas e no confronto de saberes disciplinares que incluam não apenas<br />
uma problemática nas interfaces entre as diversas ciências naturais e sociais. Isto só se concretizará<br />
a partir de uma ação orgânica das diversas disciplinas, superando a visão multidisciplinar.<br />
Posto que os problemas ambientais transcendem as diferentes disciplinas, tanto o<br />
aprofundamento disciplinar quanto a ampliação do conhecimento entre as disciplinas são<br />
elementos fundamentais, porém de grande complexidade quanto à sua implementação.<br />
A complexidade da questão ambiental abre um espaço para, não só estimular a interdisciplinariedade,<br />
mas criar condições para promover um efetivo diálogo de saberes que possibilita,<br />
não apenas a união de diferentes disciplinas para abordar um problema comum, mas que tem<br />
como objetivo mais desafi ador contribuir como um processo produtor de novos conhecimentos.<br />
O desafi o de ampliar um novo olhar e agir<br />
A necessidade de uma crescente internalização da questão ambiental, um saber ainda<br />
em construção, demanda um esforço de fortalecer visões integradoras que, centradas no<br />
desenvolvimento, estimulam uma refl exão em torno da diversidade e da construção de sentidos<br />
nas relações indivíduos-natureza, dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambientedesenvolvimento.<br />
Nestes onde a informação assume um papel cada vez mais relevante (ciberespaço, multimídia,<br />
internet) a educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas<br />
para transformar as diversas formas de participação na defesa da qualidade de vida.<br />
Assim, a problemática ambiental urbana constitui um tema muito propício para aprofundar<br />
a refl exão e a prática em torno do restrito impacto das práticas de resistência e de expressão<br />
das demandas da população das áreas mais afetadas pelos constantes e crescentes agravos<br />
ambientais. Mas representa também a possibilidade de abertura de estimulantes espaços para<br />
implementar alternativas diversifi cadas de democracia participativa, notadamente a garantia<br />
do acesso à informação e a consolidação de canais abertos para uma participação plural.<br />
127
128<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Os impactos negativos do conjunto de problemas ambientais resultam principalmente da<br />
precariedade dos serviços e da omissão do poder público na prevenção das condições de vida da<br />
população. Porém, são também refl exo do descuido e da omissão dos próprios moradores, inclusive<br />
nos bairros mais carentes de infra-estrutura, colocando em xeque aspectos de interesse coletivo.<br />
Isso traz à tona a contraposição do signifi cado dos problemas ambientais urbanos e as práticas<br />
de resistência dos que “têm” e dos que “não têm”, representados sempre pela defesa de<br />
interesses particularizados que interferem signifi cativamente na qualidade de vida da cidade<br />
como um todo.<br />
A postura de dependência e de desresponsabilização da população decorre principalmente<br />
da desinformação, da falta de consciência ambiental e de um défi cit de práticas comunitárias<br />
baseadas na participação e no envolvimento dos cidadãos, que proponham uma nova cultura de<br />
direitos baseada na motivação e na co-participação da gestão ambiental das cidades.<br />
A relação entre meio ambiente e educação para a cidadania assume um papel cada vez mais<br />
desafi ador, demandando a emergência de novos saberes para apreender processos sociais que<br />
se complexifi cam e riscos ambientais que se intensifi cam.<br />
Quando nos referimos à educação ambiental, a situamos num contexto mais amplo, o da educação<br />
para a cidadania, confi gurando-se como elemento determinante para a consolidação de sujeitos<br />
cidadãos. O desafi o do fortalecimento da cidadania para a população como um todo, e não para um<br />
grupo restrito, concretiza-se a partir da possibilidade de cada pessoa ser portadora de direitos e<br />
deveres, e se converter, portanto, em ator co-responsável na defesa da qualidade de vida.<br />
O principal eixo de atuação da educação ambiental deve buscar, acima de tudo, a solidariedade,<br />
a igualdade e o respeito à diferença, através de formas democráticas de atuação baseadas em<br />
práticas interativas e dialógicas. Isto se consubstancia no objetivo de criar novas atitudes e<br />
comportamentos face ao consumo na nossa sociedade e de estimular a mudança de valores<br />
individuais e coletivos.<br />
E como se relaciona educação ambiental com a cidadania? Cidadania tem a ver com o<br />
pertencimento e identidade numa coletividade. A educação ambiental, como formação de<br />
cidadania e como exercício de cidadania, tem a ver com uma nova forma de encarar a relação<br />
do homem com a natureza, baseada numa nova ética, que pressupõe outros valores morais e<br />
uma forma diferente de ver o mundo e os homens.<br />
A educação ambiental deve ser vista como um processo de permanente aprendizagem, que<br />
valoriza as diversas formas de conhecimento, e forma cidadãos com consciência local e planetária.<br />
As práticas inovadoras aqui apresentadas refl etem, na sua diversidade, uma convergência em<br />
conceitos, eixos transversais e enfoques interdisciplinares centrados numa preocupação de<br />
incrementar a co-responsabilidade das pessoas em todas as faixas etárias e grupos sociais quanto<br />
à importância de formar cidadãos cada vez mais comprometidos com a defesa da vida.
Parte 4 – Caderno de Atividades<br />
A educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para<br />
transformar as diversas formas de participação em potenciais caminhos de dinamização da sociedade<br />
e de concretização de uma proposta de sociabilidade baseada na educação para a participação.<br />
O complexo processo de construção da cidadania no Brasil, num contexto de agudização das<br />
desigualdades, é perpassado por um conjunto de questões que necessariamente implicam na superação<br />
das bases constitutivas das formas de dominação e de uma cultura política baseada na tutela.<br />
O desafi o da construção de uma cidadania ativa se confi gura como elemento determinante<br />
para constituição e fortalecimento de sujeitos cidadãos que, portadores de direitos e deveres,<br />
assumam a importância da abertura de novos espaços de participação.<br />
O desafi o é fortalecer a importância de garantir padrões ambientais adequados e estimular uma<br />
crescente consciência ambiental, centrada no exercício da cidadania e na reformulação de valores éticos<br />
e morais, individuais e coletivos, numa perspectiva orientada para o desenvolvimento sustentável.<br />
Nesse sentido, a dimensão cotidiana da educação ambiental leva a pensá-la enquanto somatória de<br />
práticas e, conseqüentemente, entendê-la na dimensão de sua potencialidade de generalização para<br />
o conjunto da sociedade. Entende-se que esta generalização de práticas ambientais só será possível se<br />
estiver inserida no contexto de valores sociais, mesmo que se refi ra a mudanças de hábitos cotidianos.<br />
A problemática socioambiental, ao questionar ideologias teóricas e práticas, propõe a questão<br />
da participação democrática da sociedade na gestão dos seus recursos atuais e potenciais, assim<br />
como no processo de tomada de decisões para a escolha de novos estilos de vida e a construção<br />
de futuros possíveis sob a ótica da sustentabilidade ecológica e a equidade social.<br />
Para tanto, é muito importante que se consolidem novos paradigmas educativos centrados na<br />
formulação de novos objetos de referência conceituais e principalmente a transformação de atitudes.<br />
A complexidade da questão ambiental abre um espaço para não só estimular a interdisciplinariedade,<br />
mas de criar condições para promover um efetivo diálogo de saberes que possibilita, não apenas<br />
a união de diferentes disciplinas para abordar um problema comum, mas que tem como objetivo<br />
mais desafi ador contribuir como um processo produtor de novos conhecimentos.<br />
A necessidade de uma crescente internalização da questão ambiental, um saber ainda em<br />
construção, demanda um esforço de fortalecer visões integradoras que centradas no desenvolvimento,<br />
estimulam uma refl exão em torno da diversidade e da construção de sentidos nas relações indivíduonatureza,<br />
dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambiente-desenvolvimento.<br />
Pedro Roberto Jacobi é professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de<br />
Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São <strong>Paulo</strong>.<br />
129
130<br />
Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />
Referências<br />
BECK, Ulrich. Risk Society. London: Sage Publications, 1992<br />
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />
BOFF, Leonardo. Um ethos para salvar a Terra. In: CAMARGO, Aspásia et al. Meio ambiente<br />
Brasil: abanicos e obstáculos pós Rio-92. São <strong>Paulo</strong>: Estação Liberdade/ISA, 2002. p. 49-56.<br />
CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas. São <strong>Paulo</strong>: Cultrix, 2003.<br />
FLORIANI, Dimas. Conhecimento, Meio Ambiente e Globalização. Curitiba: Juruá Editora, 2003.<br />
FLORIANI, Dimas e KNECHTEL, Maria do Rosário. Educação Ambiental, Epistemologia e<br />
metodologias. Curitiba: Vicentinas, 2003.<br />
GADOTTI, Pedagogia da Terra. São <strong>Paulo</strong>: Peirópolis, 2000.<br />
GIDDENS, Anthony. Conseqüências da Modernidade. São <strong>Paulo</strong>: Editora da Unesp, 1991.<br />
JACOBI, Pedro Roberto. Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. In: Cadernos de<br />
Pesquisa. São <strong>Paulo</strong>: Autores Associados, 2003, nº. 118: 189-205.<br />
JACOBI, Pedro Roberto. Educação ambiental: o desafi o da construção de um pensamento crítico,<br />
complexo e refl exivo. In: Educação e Pesquisa, vol.31/2, maio/agosto 2005. São <strong>Paulo</strong>: FEUSP,<br />
p. 233-250.<br />
LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. São <strong>Paulo</strong>: Cortez Editora, 2001<br />
LEFF, Enrique. Pensar a complexidade Ambiental. In: LEFF, Enrique (Org.). A Complexidade<br />
Ambiental. São <strong>Paulo</strong>: Cortez Editora, 2003.<br />
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil,2002.<br />
MORIN, Edgar et al. Educar na era planetária. São <strong>Paulo</strong>: Cortez Editora, 2003.<br />
TRISTÃO, Martha. As dimensões e os desafi os da educação ambiental na sociedade do conhecimento. In:<br />
RUSHEINSKY, Aloísio (Org.). Educação Ambiental- Abordagens Múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.