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Miolo Bioma _CS3.indd - Instituto Paulo Freire

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Histórias de<br />

aprender-e-ensinar<br />

para mudar o mundo


Organizadores:<br />

Kleber Maia Marinho<br />

Valéria Viana Labrea<br />

Histórias de<br />

aprender-e-ensinar<br />

para mudar o mundo<br />

Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN<br />

<strong>Instituto</strong> BioMA<br />

Paulínia, SP<br />

2007


Copyright © <strong>Instituto</strong> <strong>Bioma</strong> 2007<br />

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia autorização, por escrito, da instituição<br />

resonsável.<br />

Tiragem: 8.000 exemplares<br />

Ilustração da capa<br />

Lucas Félix<br />

Projeto Gráfico/ Editoração eletrônica<br />

Projects Brasil Multimidia Ltda.<br />

Impressão e acabamento<br />

Gráfica Brasil<br />

Direitos reservados à<br />

<strong>Instituto</strong> <strong>Bioma</strong> - Associação de Preservação do Meio Ambiente Natural e Melhoria da Qualidade de<br />

Vida<br />

Avenida 9 de Julho, nº. 400<br />

Bairro: Nova Paulínia<br />

Paulínia - SP<br />

CEP 13140-000<br />

Tel.: (19) 3844 - 8774<br />

Endereço eletrônico: http://institutobioma.org.br<br />

Correio eletrônico: bioma@institutobioma.org.br<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP<br />

Bibliotecária responsável: Thaís Moraes CRB-1/1922<br />

Histórias de aprender-e-ensinar para mudar o mundo. Projeto Jovem<br />

Cidadão Amigo da Natureza - PJCAN / Organizadores: Kleber Maia<br />

Marinho,<br />

Valéria Viana Labrea. – Paulínia, SP: <strong>Instituto</strong> <strong>Bioma</strong>, 2007.<br />

200 p. : il. color.; 21 x 28 cm.<br />

Inclui bibliografia.<br />

ISBN<br />

1. Meio-ambiente. 2. Cidadania. 3. Recurso natural. 4. Qualidade de<br />

vida. I. Título.<br />

CDD – 333.7


Não é possível refazer este país, democratizá-lo,<br />

humanizá-lo, torná-lo sério,<br />

com adolescentes<br />

brincando de matar gente, ofendendo a vida,<br />

destruindo o sonho, inviabilizando o amor.<br />

Se a educação sozinha não transformar a sociedade,<br />

sem ela tampouco a sociedade muda.<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong><br />

Não é deslocando a<br />

direção do nosso olhar<br />

iludido que conseguimos<br />

torná-lo lúcido e calmo.<br />

É criando em nós um novo<br />

modo de olhar e de sentir.<br />

Fernando Pessoa


“Um projeto dessa magnitude envolve muitos braços dedicados no seu fazer.<br />

Assim, preferimos deixar aqui expresso nosso imenso agradecimento a todas<br />

as pessoas que estiveram e ainda estão envolvidas neste projeto”.


Apresentação<br />

Sumário<br />

PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA: UM PROJETO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO .....9<br />

Aiêska Marinho Lacerda Silva e Luiz Carlos Palomar Fernandez<br />

Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN<br />

PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA ............................................................. 13<br />

Luiz Carlos Palomar Fernandez<br />

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

PARA ENTENDER O PROCESSO .................................................................................... 19<br />

Valéria Viana Labrea<br />

DIAGNÓSTICO VIVO ................................................................................................. 21<br />

Rita Mendonça<br />

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA ............ 24<br />

Maria Marcia Sigrist Malavasi<br />

SUSTENTABILIDADE, EDUCAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA ........................................................... 31<br />

Dagoberto Lorenzetti<br />

AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, TRANSDISCIPLINARIDADE E<br />

ORGANIZAÇÃO EM REDES SOCIAIS OU UMA OUTRA ESCOLA É POSSÍVEL .................................. 41<br />

Valéria Viana Labrea<br />

HISTÓRIA ORAL – UMA ESTRATÉGIA A SER UTILIZADA NO DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS<br />

EDUCACIONAIS. ...................................................................................................... 46<br />

Meire Terezinha Muller<br />

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

UM ETHOS PARA SALVAR A TERRA ................................................................................ 55<br />

Leonardo Boff<br />

A ECOPEDAGOGIA COMO PEDAGOGIA APROPRIADA AO PROCESSO DA CARTA DA TERRA ............... 66<br />

Moacir Gadotti<br />

A CARTA DA TERRA COMO INSTRUMENTO EDUCATIVO E INSPIRADOR NA CONSTRUÇÃO DE SOCIEDADES<br />

SUSTENTÁVEIS ....................................................................................................... 77<br />

Mirian Vilela


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 83<br />

Aiêska Marinho Lacerda Silva<br />

EDUCAR PARA REAPROXIMAR DA TERRA ........................................................................ 89<br />

Kleber Maia Marinho<br />

REAPROXIMAR PELA ESPIRITUALIDADE .......................................................................... 96<br />

Denise Lopes de Souza<br />

A CARTA DA TERRA E O EDUCAR PARA A IDENTIDADE TERRENA: PRINCÍPIOS E RUMOS<br />

Sementes de Esperança em Experiências Educacionais do Ensino Fundamental no Pontal do<br />

Paranapanema .....................................................................................................103<br />

José J. Queiroz<br />

CUIDADO NA ERA DO DESCUIDO: O PROBLEMA DA LINGUAGEM............................................115<br />

<strong>Paulo</strong> Roberto Monteiro de Araujo<br />

MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: DIÁLOGO DE SABERES E TRANSFORMAÇÃO DAS PRÁTICAS<br />

EDUCATIVAS – UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIAS DE APRENDER E ENSINAR ............................122<br />

Pedro Roberto Jacobi<br />

Atividades<br />

Titulo: Árvore do bem e do mal .................................................................................133<br />

Título: É brincando que se aprende ............................................................................139<br />

Titulo: Campanha do leite ........................................................................................147<br />

Título: Carta ao inquilino .........................................................................................153<br />

Título: Dengue .....................................................................................................161<br />

Título: Identidade ..................................................................................................167<br />

Titulo: Lugar de lixo é no lixo ...................................................................................173<br />

Título: Diagnóstico Vivo – um pouquinho da nossa história ...............................................177<br />

Título: Uma receita para o ambiente ..........................................................................185<br />

Título: Reconstrução ..............................................................................................191<br />

Título: Plante uma semente .....................................................................................197


PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA:<br />

UM PROJETO EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO<br />

Apresentação<br />

Mestre não é aquele que sempre ensina, mas aquele que de repente aprende.<br />

Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas<br />

É muito difícil se fazer uma síntese ou comentar em poucas palavras o signifi cado deste livro.<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo não é uma obra de fi cção; muito pelo<br />

contrário, é o resumo da implantação de um projeto inovador de construção de conhecimento,<br />

desenvolvido por meio do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN, criado pelo<br />

<strong>Instituto</strong> BioMa 1 e fi nanciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, do Ministério<br />

da Educação – FNDE/MEC, visando promover ações relacionadas ao meio-ambiente e cidadania.<br />

Desenvolvido junto a escolas de ensino fundamental em 14 municípios do estado de São <strong>Paulo</strong>,<br />

o projeto envolveu mais de 16 mil alunos e 600 profi ssionais de educação.<br />

O objetivo principal do projeto era implementar ações complementares de educação,<br />

envolvendo as escolas e a comunidade, assegurando que os princípios da inclusão, da humanização<br />

e da “cidadania ativa” fossem efetivamente praticados e disseminados.<br />

Para tanto, o PJCAN estabeleceu uma estratégia de eleição das escolas como centro gerador,<br />

acumulador, propagador do conhecimento e catalizador das ações desenvolvidas na comunidade,<br />

promovendo um trabalho de capacitação de professores, alunos e comunidade na busca da cidadania,<br />

do desenvolvimento de espírito participativo e, em última instância, da qualidade de vida humana.<br />

Era necessário garantir a continuidade do processo de construção do conhecimento, assim<br />

como a disposição para resolver problemas e, a partir deles, criar novos modelos e técnicas a<br />

serem aplicadas continuamente, dando andamento ininterrupto às ações iniciadas.<br />

Desta forma, trabalhando com os princípios da Carta da Terra, o PJCAN buscou a construção<br />

do conhecimento dentro da comunidade, refl etindo o conceito de visão global e atuação local.<br />

Acreditando que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente<br />

de sua utilidade para os seres humanos, os participantes do projeto passaram a adotar uma<br />

visão mais sistêmica e integrada de Comunidade Planetária, buscando a administração e uso dos<br />

1 <strong>Instituto</strong> BioMA é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – Oscip, fundada em 2002, voltada para o desenvolvimento<br />

Humano e Melhoria de Qualidade de Vida. Para saber mais, consulte o site www.bioma.org.br.


Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

recursos sem causar danos ao meio ambiente. Preservando a liberdade de ação de cada geração,<br />

mas condicionando esta liberdade ao direito das gerações futuras ao atendimento de suas<br />

necessidades, espera-se obter a construção de sociedades democráticas justas, participativas,<br />

sustentáveis e pacífi cas.<br />

Mais do que garantir a qualidade de vida prevenindo o dano ao ambiente, o projeto procurou<br />

despertar nos participantes o desejo de adotar padrões de produção, consumo e reprodução<br />

que protejam as capacidades regenerativas da Terra (Reduzir, Reutilizar e Reciclar), os direitos<br />

humanos e o bem-estar comunitário, erradicando a pobreza e garantindo o acesso à água<br />

potável, ao ar puro e à segurança alimentar, entre outros.<br />

Muito além de meramente um discurso, o projeto buscou oferecer meios de educação<br />

que garantam oportunidades para assegurar uma subsistência sustentável, reconhecendo os<br />

conhecimentos tradicionais em todas as culturas, trabalhando pela construção de uma fi losofi a<br />

de democracia, não-violência e paz.<br />

Buscou, ainda, a defesa dos valores fundamentais do ser humano, o fortalecimento das<br />

comunidades locais, capacitando-as a cuidar dos seus próprios ambientes, por meio da construção<br />

do conhecimento coletivo com base na educação formal e não formal, não só preservando os<br />

ecossistemas onde interagem, como também estimulando e apoiando o entendimento mútuo,<br />

a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, implementando estratégias amplas para<br />

prevenir confl itos e usar a colaboração na resolução de problemas.<br />

Por intermédio das ofi cinas de capacitação onde se abordaram temas como Carta da Terra,<br />

Agenda 21 Escolar, Elaboração de Projetos, Trabalho em Rede, Diagnóstico Vivo (cartografi a<br />

social), Convivência Social, os profi ssionais de educação e o grupo de monitores (estagiários)<br />

adquiriram as ferramentas necessárias à execução do projeto e as propagaram nas comunidades<br />

com a participação ativa dos alunos de cada escola.<br />

A construção do conhecimento nas escolas se deu através de uma abordagem transdisciplinar,<br />

que propõe a integração teórica e prática, numa perspectiva da totalidade, existindo cooperação e<br />

troca de informações na sala de aula, além de aberta ao diálogo e ao planejamento. As disciplinas<br />

interagem entre si em distintas conexões e estão ligadas à realidade concreta, histórica e cultural<br />

tendo como ponto de convergência as ações pré-estabelecidas por cada um dos projetos.<br />

Este enfoque transdisciplinar, baseado na Carta da Terra, buscou conceitos originais, métodos<br />

e estruturas teóricas por meio da aglutinação dos conceitos, de metodologias e conteúdos das<br />

diferentes disciplinas e do conhecimento universal, ou seja, uma transmissão de conhecimentos<br />

não dividida em vários campos; aprende-se a toda hora, não apenas na sala de aula.<br />

Parte-se do conceito que a relação com a aquisição do saber deve ser direta, participativa,<br />

pessoal e particular. O conhecimento é uma totalidade e o todo é formado pelas partes, mas não<br />

é apenas a sua soma; é maior e diferente das partes que o constitui. Aprendemos quando nos


Apresentação<br />

envolvemos emocional e racionalmente no processo de reprodução e criação do conhecimento,<br />

na certeza de que aprendemos todos os dias ao longo da vida, em todos os lugares, com todos<br />

os indivíduos e transmitindo, também, a cada um, nossa própria vivência e experiência.<br />

Este modelo de construção de conhecimento é uma forma de transformação orientada para<br />

o autoconhecimento e para a criação de uma nova forma de viver em sociedade. Seu objetivo<br />

é a compreensão do mundo presente, onde se busca a unidade do conhecimento, sem qualquer<br />

limite rígido entre as disciplinas e a construção de uma relação interpessoal, reciprocidade,<br />

eqüidade, cooperação e participação comunitária cujo fi m último é a solidariedade, o respeito<br />

à diversidade, a sustentabilidade e a justiça social.<br />

O ponto de culminância de todo o trabalho desenvolvido pelo PJCAN foi a construção e<br />

execução, por parte da comunidade, de um projeto, escolhido entre muitos que surgiram<br />

durante a realização do diagnóstico vivo. Alguns deles estão ligados à competência local de<br />

agricultura, mais especifi camente a hortas orgânicas, ervas medicinais e pomares. Outros<br />

focaram problemas que envolvem a qualidade de vida, a convivência em sociedade e o respeito<br />

à diversidade, além daqueles que se voltaram a questões do meio ambiente. As comunidades<br />

desenvolveram parcerias com as prefeituras, universidades, comércio local e outras instituições<br />

para implementar os projetos escolhidos, sem depender de recursos públicos e contando com a<br />

participação dos pais, alunos e professores da localidade o que, em última instância, desenvolveu<br />

o sentimento de pertencimento e participação ativa na vida social e comunitária.<br />

O grande mérito do PJCAN foi ter sido aceito e posto em prática como uma construção coletiva,<br />

em comunidades que difi cilmente têm a oportunidade de se fazerem representar, de participar, de<br />

criar e desenvolver ações em conjunto com seus fi lhos.<br />

Desta forma, o que ora se apresenta neste livro é a síntese desse trabalho de quase dois<br />

anos, dividido em duas partes: A construção do conhecimento e as práticas desenvolvidas com<br />

os alunos em sua aplicação.<br />

Acreditamos que mais que um simples relato, este livro serve para um momento de refl exão<br />

sobre os modelos de acúmulo, disseminação e prática do conhecimento humano. Uma nova<br />

forma de transformar a qualidade de vida através da educação, garantindo a construção de um<br />

planeta mais justo e sustentável para esta e para as gerações que estão por vir.<br />

Aiêska Marinho Lacerda Silva<br />

Luiz Carlos Palomar Fernandez


Conh


1 – Conhecendo o BioMA<br />

e o PJCAN<br />

PROJETO JOVEM CIDADÃO AMIGO DA NATUREZA<br />

Luiz Carlos Palomar Fernandez<br />

Não se passa uma semana sem que eu tenha que explicar a alguém, conhecido ou recém-apresentado,<br />

o que é o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN. Quando conto o que estamos fazendo,<br />

através do <strong>Instituto</strong> BioMA, todos fi cam muito interessados pelo assunto, alguns até gostariam de<br />

participar e outros se dispõem a ajudar, desde, é claro, que não tenham que ir aonde vamos.<br />

Acho que é por isso que esse projeto nasceu.<br />

Quando falamos em baixo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, a primeira coisa que<br />

vem à cabeça de nosso interlocutor é o Nordeste. Sem sombra de dúvida, essa é uma realidade,<br />

porém, o estado de São <strong>Paulo</strong> também tem problemas, que não são poucos, mas, como somos<br />

conhecidos como a locomotiva que puxa o trem chamado Brasil, ninguém acredita que haja<br />

pobreza, ou pelo menos aquela “pobreza miserável”, que estamos acostumados a ver nos<br />

documentários da televisão.<br />

Como membro do <strong>Instituto</strong> BioMA, transitamos pelo Pontal do Paranapanema desde 2002 ConhParte<br />

e sabemos muito bem o que signifi ca estar no “interiorzão” de São <strong>Paulo</strong>. Primeiro porque,<br />

infelizmente, as cidades do eixo da Raposo Tavares aparecem na mídia sempre que acontece uma<br />

rebelião, fi cando conhecidas pelos seus presídios e seus “moradores” famosos, mas difi cilmente<br />

são divulgadas suas competências.<br />

Desde que fomos para o Pontal para trabalhar no Programa de Desenvolvimento Local<br />

Integrado e Sustentável, parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas<br />

– Sebrae, encontramos várias pessoas que sonhavam, sonhavam, mas não colocavam seus planos<br />

em prática. A crença coletiva é que “foi assim, é assim, e será assim”.<br />

Já naquela primeira oportunidade, conhecemos pessoas fantásticas, que descobriram que são<br />

donas de seu destino, seres capazes de transformar suas vidas e as comunidades onde vivem.


14<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Logo em seguida, ainda através do BioMA, fi zemos um novo projeto, também em parceria com<br />

o Sebrae, chamado Empreendedorismo Ambiental, voltado para ações de geração de trabalho e<br />

renda, cujo objetivo era a melhoria de qualidade de vida e preservação ambiental. Novamente,<br />

pessoas maravilhosas, que deixaram para trás o sonho vazio e passaram a trabalhar para a<br />

mudança do seu próprio futuro e, principalmente, de sua comunidade. Para muitos, o grande<br />

sonho era garantir uma boa educação para os fi lhos, de modo a dar-lhes oportunidades de<br />

trabalho, para que pudessem permanecer em seu canto e ser felizes, sem ter que abandonar a<br />

família buscando trabalho na Capital.<br />

Depois de um ano de encerramento dos projetos, voltamos ao Pontal para ver o que tinha<br />

germinado de todo aquele trabalho. Não posso dizer que fi camos totalmente desanimados mas,<br />

sinceramente, não foi um resultado para nos deixar totalmente satisfeitos. Em que tínhamos<br />

errado? Por que quase tudo o que germinou morreu ou anda à velocidade de tartaruga? Por<br />

que as coisas não funcionaram tão bem quanto esperávamos? O que faltou para mudanças<br />

efetivamente acontecerem?<br />

Foi então que nos demos conta de que estávamos cometendo os mesmos erros que ocorrem<br />

em tantos outros projetos: não tínhamos gerado a massa crítica para que andassem sozinhos.<br />

Quando nos afastávamos, a comunidade perdia a coesão e os projetos começavam a degringolar.<br />

Um ou outro membro dos grupos conseguia ir adiante, mas as difi culdades eram enormes e a<br />

chance de sucesso era pequena.<br />

Precisávamos construir um outro modelo de participação. Precisávamos garantir a continuidade<br />

do processo de construção do conhecimento, assim como a disposição para resolver problemas<br />

e, a partir deles, criar novos modelos, novas técnicas a serem aplicadas continuamente, dando<br />

andamento ininterrupto às ações iniciadas. Mas quem seria o receptor desse processo? Quem<br />

seria o fi el depositário do conhecimento construído? Quem seria o parceiro para nos ajudar<br />

nessa empreitada?<br />

Uma luz surgiu no fi nal do túnel quando percebemos que estivemos sempre ao lado da<br />

solução e não tínhamos percebido: as escolas. A comunidade escolar. Os formadores das futuras<br />

gerações. Era isso. Essa era a solução.<br />

Assim, quando nos deparamos com o edital do FNDE que oferecia recursos para o<br />

desenvolvimento de ações complementares ao ensino fundamental, percebemos que poderíamos<br />

tentar acertar novamente. Mas, o que fazer com isso? Como o BioMa poderia participar? Qual<br />

poderia ser nossa contribuição? Tínhamos em mente o que não queríamos: colocar crianças<br />

desenhando micos-da-cara-preta, baleias e tartarugas. Não era isso que estávamos procurando,<br />

era algo maior, que desse uma nova dimensão ao tema transversal “meio ambiente” e que se<br />

confi gurasse como uma ação contínua e interiorizada por todos os participantes.<br />

O projeto começou a ser concebido em março de 2005 em suas grande linhas e foi “costurado”<br />

e entregue ao FNDE em 29 de julho de 2006.


Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN<br />

Nossa inserção no Pontal do Paranapanema nos dirigia pra lá, mas o desejo de realizar o<br />

projeto também perto de nossa sede nos levou a consultar várias cidades da região de Campinas,<br />

sendo que apenas Sumaré se interessou em participar.<br />

Assim, o projeto nasceu com 14 cidades participantes, formando um mosaico muito estranho,<br />

pois estávamos na região de Campinas, na Alta Paulista e no Pontal do Paranapanema. Apenas<br />

a título de localização, a distância representa 500 km de deslocamento só para chegarmos de<br />

Campinas ao Pontal e outros 100 km entre uma cidade e outra, em pontos extremos da região.<br />

Uma loucura total, mas de uma insanidade construtiva.<br />

Enquanto esperávamos a resposta se havíamos ou não sido escolhidos para aplicação do<br />

projeto, estávamos trabalhando na sua estruturação. Por nossa conta e risco, contratamos<br />

doutores e mestres nas áreas de Pedagogia e Meio Ambiente para nos ajudar a formatar o<br />

projeto e a proposta pedagógica. Tivemos que fazer correções em nossa proposta inicial e<br />

fi camos aguardando o posicionamento do FNDE/MEC.<br />

Por fi m, nos últimos dias de dezembro recebemos a informação: o projeto havia sido aprovado.<br />

Com cortes.<br />

Terminado 2005, meados de janeiro de 2006, reunidos vários secretários e dirigentes de<br />

educação de municípios do Pontal do Paranapanema e Alta Paulista no auditório do Serviço<br />

Social da Indústria – Sesi, de Presidente Prudente, lá estávamos nós explicando o projeto, o<br />

que seria, qual o fruto esperado desse trabalho, qual seria a responsabilidade de cada um no<br />

transcorrer das atividades. Uma ansiedade enorme, um desejo de que acabasse logo e que todos<br />

aderissem ao projeto de corpo e alma. Mas não foi assim tão fácil. Era o nosso sonho, mas não<br />

era o sonho de todos. Tivemos desistências logo na primeira reunião; muitos que ali estavam<br />

não tinham certeza se o projeto chegaria a um fi m e muitos não tinham o poder de decisão para<br />

aderir defi nitivamente a ele. O grande consolo era que a maioria tinha gostado da proposta e o<br />

diretor do Sesi local estava nos apoiando, o que signifi cava um grande e poderoso aliado.<br />

Inicialmente aderiram 12 municípios, sendo que Dracena, que originalmente não participaria<br />

do projeto, foi incorporado ao mesmo. Contando com a cidade de Sumaré, na região de<br />

Campinas, chegamos aos 14 municípios envolvidos: Sumaré, Platina, Dracena, Salmourão,<br />

Presidente Bernardes, Presidente Venceslau, Caiuá, Sandovalina, Alvares Machado, Mirante do<br />

Paranapanema, Regente Feijó, Presidente Epitácio, Pirapozinho e Martinópolis.<br />

Começamos o trabalho pela seleção de estagiários, que seriam nosso ponto de apoio, atuando<br />

diretamente nas escolas com os professores e com os alunos. Era absolutamente necessário<br />

criar canais de comunicação, portanto os estagiários deveriam dominar ferramentas básicas de<br />

informática e ter acesso a computadores. Embora pareça simples, tudo foi muito complicado.<br />

Os estagiários tinham que aprender a usar ferramentas que nem sempre dominavam, as escolas<br />

tinham acesso limitado à internet e o acesso era por linha discada. Isso quando a escola tinha<br />

internet. O que fazer? Trabalhar com o possível. Deixar o impossível para depois.<br />

15


16<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Nós tínhamos uma idéia do que poderia ser feito, mas cada escola tinha características<br />

diferentes e conseqüentemente demandas diferentes. Conseguimos concentrar todas as<br />

capacitações no Sesi de Presidente Prudente, o que nos permitiu racionalização do trabalho.<br />

Os estagiários trabalharam como loucos para obter todas as informações necessárias para<br />

início das atividades. Os professores, diretoras e coordenadores ajudavam como podiam. Alguns<br />

digitavam os dados na escola, levavam para a faculdade e passavam os arquivos de lá para nossa<br />

sede. Outros entregavam em disquetes para nossa supervisora.<br />

As capacitações começaram com uma sensibilização, passaram por uma avaliação da situação<br />

ambiental e qualidade de vida no mundo, avaliação e construção dos projetos político-pedagógicos<br />

e integração dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN com a metodologia do PJCAN.<br />

Tudo o que era percebido como demanda para o andamento do projeto era providenciado:<br />

Ofi cinas sobre a Carta da Terra, Agenda 21 Escolar, Elaboração de Projetos, Trabalho em Rede,<br />

Diagnóstico Vivo (cartografi a social), Convivência Social, entre outros.<br />

Tivemos a felicidade de poder contar com excelentes profi ssionais que nos ajudaram nesse<br />

processo de capacitação, com a participação de mais de 100 educadores de cada vez.<br />

Nessa nossa jornada, encontramos pessoas fantásticas, que entenderam o espírito do projeto<br />

e nos ajudaram a desenvolver cada etapa do processo com muito trabalho e dedicação.<br />

Às vezes não é fácil explicar para as pessoas que não estávamos trazendo um projeto<br />

pronto. Nosso objetivo era capacitar os professores e a comunidade local para que elas<br />

lidassem com sua problemática e encontrassem as suas soluções. Cada escola desenvolveria<br />

seus projetos e as crianças seriam o elemento de ligação entre a escola e as famílias, além<br />

de agentes da transformação.<br />

Em alguns lugares, a proposta só começou a fazer sentido quando, após o diagnóstico vivo<br />

e a discussão dos princípios da Carta da Terra, com ampla participação da comunidade, os<br />

projetos começaram a tomar forma e as pessoas começaram a se sentir capazes de transformar<br />

a sua realidade.<br />

Alguns projetos estão ligados à competência local de agricultura, mais especifi camente a<br />

hortas orgânicas, ervas medicinais e pomares. Outros projetos focaram problemas que envolvem<br />

a qualidade de vida, a convivência em sociedade e respeito à diversidade, além daqueles<br />

que se voltaram às questões do meio ambiente. Algumas escolas conseguiram parcerias com<br />

as prefeituras, universidades, órgãos públicos e já começaram a implementar os projetos<br />

escolhidos, sem depender de recursos públicos e contando com a participação dos pais, alunos<br />

e professores da localidade. Em maio de 2006, o projeto começou a ser implementado na cidade<br />

paulista de Sumaré e, com a experiência adquirida no Pontal, as difi culdades foram menores,<br />

porém, apareceram outras decorrentes de suas peculiaridades.


Parte 1 – Conhecendo o BioMA e o PJCAN<br />

Ao todo o PJCAN envolve quase 16 mil alunos, 600 profi ssionais de educação e 32 estagiários.<br />

Quando olho para trás, não acredito em tudo o que passamos, mas quando olho para a frente<br />

vejo o muito que ainda tem que ser feito.<br />

Acredito que criamos um novo referencial na forma de gerir e construir projetos e tenho a<br />

esperança de que, nas comunidades onde tivemos a honra de poder participar, as coisas nunca<br />

mais serão as mesmas e os sonhos serão, cada vez mais, projetos da realidade, mais justa e<br />

digna para todos.<br />

Luiz Carlos Palomar Fernandez é engenheiro industrial, especialista em Gestão e Estratégia<br />

de empresas e engenheiro de Segurança do Trabalho, pela Universidade Estadual de Campinas<br />

– Unicamp, gerente do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza junto ao FNDE, consultor do<br />

Sebrae, professor da Universidade São Marcos – Campus Paulínia, capacitador em Programas<br />

de Desenvolvimento Humano e Programas Educacionais por meio do <strong>Instituto</strong> BioMA e membrofundador<br />

do <strong>Instituto</strong> BioMA.<br />

17


Histó


2 – Histórias de aprender: as<br />

ofi cinas de formação de professores<br />

PARA ENTENDER O PROCESSO<br />

Valéria Viana Labrea<br />

Nada é impossível de mudar<br />

Desconfi ai do mais trivial, na aparência singelo.<br />

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.<br />

Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,<br />

pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,<br />

de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,<br />

nada deve parecer natural<br />

nada deve parecer impossível de mudar.<br />

Bertold Brecht<br />

As ofi cinas de formação realizadas pelo <strong>Instituto</strong> BioMA ocorreram ao longo de 2006 e 2007<br />

e tiveram a participação de cerca de 600 professores dos 14 municípios onde ocorreu o Projeto<br />

Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN. O leitor observará que as diferentes capacitações<br />

adicionadas foram escolhidas para atender as especifi cidades do projeto e abordaram desde<br />

questões metodológicas e práticas – organização dos Projetos Políticos Pedagógicos – PPP, plano<br />

HistóParte<br />

diretor da escola e o PJCAN – a questões mais abrangentes – organização em redes, educação e<br />

sustentabilidade, oralidade, Carta da Terra, Agenda 21.<br />

Dessa aparente miscelânea é que nasce um diálogo entre saberes que vai dar sustentação<br />

aos futuros projetos de cada escola. O intuito era evitar as limitações da abordagem disciplinar,<br />

especializada mas fragmentada, que não dá conta dos diferentes níveis de realidade. Foi adotado<br />

nesse sentido um enfoque transdisciplinar, buscando criar uma visão coerente do problema a<br />

partir de modelos explicativos compartilhados e baseados em conceitos e teorias que integram<br />

várias disciplinas.


20<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Além disso, considerou-se em todo o processo as experiências da comunidade escolar, mantendo<br />

uma escuta atenta aos desejos e aos saberes que carregam consigo. Todos os diferentes<br />

grupos foram ouvidos. As conversas com os professores, estagiários, merendeiras, coordenação<br />

e diretoria, alunos, pais e mães dos alunos, vizinhança, e com o poder público, enfi m com todos<br />

os diferentes componentes da comunidade escolar e local fez emergir um novo conhecimento<br />

integrador, resultado da fusão dos conhecimentos formais e saberes populares.<br />

A busca como menciona Guattari (1990) é articular esses conhecimentos para contribuir na<br />

realização de um projeto societário ambientalista autônomo e libertário em três níveis: no<br />

plano mental (a relação do indivíduo consigo mesmo), no plano social (a relação com o outro,<br />

com a família e os sujeitos coletivos) e no plano ambiental (a relação indivíduo-natureza e<br />

sociedade-natureza).<br />

O determinante para o sucesso dessa fase do projeto foi o desejo de aprender desses<br />

professores comprometidos com o PJCAN mas principalmente, comprometidos com seus<br />

alunos e uma visão de futuro onde, a partir de sua escola, um outro modelo de educação e<br />

gestão é possível.


DIAGNÓSTICO VIVO<br />

Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

Rita Mendonça<br />

O Diagnóstico Vivo tem como objetivo despertar o olhar do educador em relação ao seu<br />

entorno, enriquecendo-o com elementos refl exivos e de imagem, para que ele possa ver além<br />

do costumeiro, transcender seus próprios condicionamentos, conhecer as relações e entrar<br />

em contato com a realidade viva que tem à sua volta. Esse trabalho começa com a percepção<br />

do próprio corpo, ele próprio formado por camadas de história, sentimentos, experiências e<br />

ações. Partimos da idéia de que a partir das condições iniciais de nascimento somos nós que<br />

moldamos nosso próprio corpo e somos responsáveis por ele. E que, ao tomarmos consciência e<br />

nos apropriarmos de nossa própria história, podemos compreender os mecanismos que podem<br />

nos levar a ser também os atores transformadores do mundo em que vivemos.<br />

A percepção do vivo não é coisa fácil. Educados que somos no sistema mental linear, nos<br />

satisfazemos em descrever e classifi car as manifestações da vida, sem nos aproximar daquilo<br />

que põe os seres vivos em sintonia, ou seja, o pulsar da vida. Perceber o mais óbvio do óbvio é<br />

o primeiro passo para o transcendermos.<br />

Certa vez fi z um passeio de balão. Além de ser uma experiência extraordinária, do silêncio<br />

e da visão do mundo de lá de cima, mas não de tão alto e fechado como a visão de dentro dos<br />

aviões, fi z uma descoberta de algo bem conhecido e evidente: o balão se desloca pelo vento; e<br />

quando estamos no vento, não o sentimos, ou seja, temos a impressão de que estamos parados.<br />

Podemos estar a mais de 100 km/hora e temos a sensação de estar parados. Esse passeio me<br />

trouxe a refl exão sobre a vida que desejo transmitir nos cursos do Diagnóstico Vivo: estamos<br />

vivos e por isso achamos isso óbvio! Não percebemos, não sentimos o pulsar da vida. Somente<br />

quando estamos doentes é que vislumbramos algo, ou quando acompanhamos e nos despedimos<br />

de quem está nos deixando nesta vida. No entanto, perceber a vida é essencial e, quando isso<br />

ocorre, a visão de mundo muda, as prioridades, as formas de organização cotidiana, as relações<br />

de trabalho, tudo muda. Perceber a vida é, desculpem o humor, vital!<br />

O processo para chegar a essa percepção é essencialmente vivencial. São exercícios, sons e<br />

imagens que buscam conduzir os participantes no caminho do desenvolvimento da sensibilidade,<br />

até que possam perceber a unidade que existe entre suas próprias vidas e a vida do planeta,<br />

a vida de hoje, do passado e do futuro. Apenas após a experiência é que consolidamos a<br />

compreensão com fatos e dados para serem discutidos. O que cada um percebe e sente é<br />

sempre mais importante do que as informações prontas que eu possa preparar para eles.<br />

O processo educativo vivencial considera os indivíduos de forma integral, incluindo e<br />

priorizando o aprendizado através do corpo, dos sentidos e da percepção mais sutil de si mesmos,<br />

dos outros, do mundo, da natureza, e dos processos vitais que dão origem e sustentam a vida,<br />

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22<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

cuidando para que as informações científi cas não se interponham na interação de aprendizagem<br />

e mascarem ou inibam os processos de natureza mais delicada. O corpo é considerado um<br />

elemento muito importante para a aprendizagem. Isso pode parecer óbvio uma vez que a sede<br />

de nosso cérebro está no corpo e é nele que nossas memórias fi cam armazenadas.<br />

Apesar dessa evidência, nosso cérebro é tão complexo que nos permite abstrair a realidade<br />

de forma que podemos percorrer enormes distâncias no tempo e no espaço sem nos deslocarmos<br />

fi sicamente. Podemos aprender na abstração, sem perceber a participação ativa e decisiva do<br />

corpo. “Usamos o cérebro para tornar nosso próprio corpo um objeto. Originalmente, esse<br />

processo de criação de imagens destinava-se a organizar a experiência. Agora, ele tomou o<br />

lugar da experiência corporal” (KELEMAN, 1999). Ou seja, temos tendência a não perceber a<br />

base física (das percepções, dos sentidos, das emoções que formam registros corporais) das<br />

experiências que temos e a viver baseados nas imagens que fazemos das coisas e não nas<br />

relações diretas que temos com elas.<br />

Nossa educação tradicional é baseada nessa possibilidade que temos de conhecer sem vivenciar<br />

as informações e sem inseri-las num contexto, ou seja, sem se comprometer com o conhecimento<br />

e sem transformá-lo num saber. Podemos – e é o que mais fazemos - apreender conhecimentos<br />

revelados pela experiência de outras pessoas, mesmo que esse conhecimento não nos faça sentido.<br />

Assim, criamos um sistema educacional formal muito complexo e extenso em conteúdo. Na escola,<br />

alguns conhecimentos são verifi cados em aulas de laboratório; em outras situações são realizados<br />

estudos do meio, mas essas estratégias de ensino consideram o sujeito que aprende separado<br />

daquilo que é aprendido, que o conhecimento pode existir em separado daquele que aprende. Essa<br />

é a diferença fundamental entre o ensino convencional e o vivencial.<br />

No aprendizado vivencial, é o corpo inteiro que aprende, não só o cérebro, e ele aprende porque<br />

interage com o que deve ser aprendido. As vivências permitem que a pessoa se aproxime de si<br />

mesma, fazendo com que o aprendizado se torne autêntico, pois é seu próprio corpo que vai produzir<br />

o conhecimento. Para realizar as vivências é preciso estar presente, sensível aos sinais de seu corpo,<br />

perceptivo ao que está acontecendo nos ambientes externo e interno, dando menos espaço às<br />

idéias e aos pensamentos e emoções difusos e esparsos que normalmente costumamos ter. Estando<br />

plenos no aqui e agora, saímos do mundo exclusivo das idéias e observamos as diferentes formas que<br />

um estímulo repercute em nosso corpo. Via de regra, essa repercussão no corpo é bem diferente<br />

da imagem que faríamos se estivéssemos imaginando apenas aquela situação. Como exemplo, a<br />

sensação térmica, tátil, olfativa e sonora ao realizar um exercício no meio de uma fl oresta tropical<br />

é fundamentalmente diferente da sensação que advém da imaginação da mesma situação. Os<br />

registros corporais são diferentes. O aprendizado sobre o fl uxo de energia e de matéria, sobre as<br />

relações ecossistêmicas, sobre a presença humana na natureza, sobre os contextos planetário e<br />

cósmico será diferente se tudo isso for “ensinado” na sala de aula.<br />

Nesse caminho, depois do corpo vivo, a percepção da paisagem. Ao descortinar as diferentes<br />

possibilidades de interpretação da paisagem, o educador pode começar a sentir e visualizar<br />

as diversas camadas de história, as diversas infl uências sócio-econômicas contemporâneas e


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

vislumbrar algo sobre as possibilidades futuras do seu lugar. Estimular seu vínculo com seu<br />

próprio lugar, o lugar onde vive e trabalha, onde se relaciona e sonha, é essencial. Ele é<br />

estimulado a pesquisar sobre a água e seu caminho, como é que ela “passa” por seu lugar,<br />

sobre o solo, sobre os ventos, as sementes, as fl ores, os animais. As pessoas e suas capacidades<br />

de transformação da paisagem. As relações ecológicas que existem em todos os lugares. A<br />

movimentação da Terra em relação ao Sol e ao céu. As sombras, a percepção de nossa relação<br />

do que está além de nosso planeta. A observação de que o mundo de cada um é construído por<br />

cada um e que as coisas só passam a existir para nós à medida que as percebemos.<br />

Por exemplo, somente percebemos os sons à nossa volta se paramos para ouvi-los. E quanto<br />

mais aquietamos nossa mente, mais conseguimos ouvir. Deixamos de ouvir nossos próprios ruídos<br />

para ouvir os do mundo, conectando-nos com eles. Os educadores, através dos exercícios, vão<br />

aprendendo a observar as próprias relações sistêmicas, tanto as físicas como as que ocorrem em<br />

suas mentes. Algumas vezes conseguem perceber que fazem parte da mesma dinâmica.<br />

Essa formação destaca também as diferentes formas de conhecer: conhecer pelas informações<br />

(forma a que estamos mais acostumados) e conhecer pela experiência (forma mais rara e ainda<br />

menos valorizada). Como o próprio educador passa pela experiência, “conhece” a diferença e está<br />

apto a apropriar-se dela em seu trabalho na sala de aula. O aprendizado pela experiência pode não<br />

dar conta de toda a grade curricular a que o professor deve atender, mas promove uma compreensão<br />

que fi ca internalizada e vai infl uenciar nas suas formas de aprendizagem e relacionamentos futuros.<br />

Dessa forma, desestabiliza as estruturas convencionais de chegar ao conhecimento, abrindo espaço<br />

para outras formas de pensar e perceber o mundo em que vivemos.<br />

Estimula também a consciência de que são formadores de opinião, pretendendo ajudá-los de<br />

alguma forma a superar eventuais mecanismos de apatia e acomodação face à difícil realidade<br />

a que têm que fazer face no cotidiano.<br />

É uma grata satisfação poder compartilhar neste texto a concepção do Diagnóstico Vivo, uma<br />

vez que temos sabido de transformações importantes ocorridas nas atuações dos professores<br />

nas regiões em que pudemos trabalhar. Esperamos com isso despertar o interesse de um público<br />

crescente, dando-nos assim a oportunidade de participar da construção de um mundo mais<br />

participativo, mais estimulante, mais consciente e solidário.<br />

Rita Mendonça é bióloga, socióloga e coordenadora no Brasil da Sharing Nature Foundation e<br />

diretora geral do <strong>Instituto</strong> Romã de Vivências na Natureza. Coordena as Caminhadas Ecológicas<br />

e Filosófi cas da Associação Palas Athena e o Grupo de Diálogo Filosofi as da Natureza.<br />

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24<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA<br />

Maria Marcia Sigrist Malavasi<br />

Refl etir sobre a importância e o papel do Projeto Político Pedagógico – PPP nas instituições<br />

de ensino de todos os níveis (desde a educação infantil até o ensino superior) continua sendo<br />

uma tarefa ao mesmo tempo importante e difícil. Importante porque esse é um instrumento<br />

que possibilita transformações no interior dos espaços educativos que buscam a melhoria de<br />

seu papel no âmbito do ensino e da sociedade. Difícil porque, analisando inúmeros PPPs 3 ,<br />

encontramos visões bastante discrepantes acerca de sua defi nição e mesmo de sua função nas<br />

instituições de ensino.<br />

Especialmente no âmbito escolar, o PPP tem sido mais utilizado como um documento solitário,<br />

produzido para gavetas e arquivos, esporadicamente apresentado a alguém que represente<br />

ofi cialmente órgãos educacionais. A escrita desse “documento”, na maioria das vezes, é feita<br />

por um gestor da escola (coordenadora pedagógica, orientadora educacional, supervisora de<br />

ensino, diretora) e ele não é facilmente disponibilizado para a comunidade ou qualquer outra<br />

pessoa que o requisite. Esses princípios se contrapõem frontalmente ao objetivo e à função de<br />

um verdadeiro PPP.<br />

Mais do que um documento obrigatório e atualmente exigido em todos os espaços educacionais,<br />

o PPP é um documento de identidade da escola e deve apresentar a instituição escolar para<br />

toda a sociedade no que ela – escola - tem como função, objetivos, missão, concepções e<br />

decisões coletivas. Sua construção deve ser necessariamente coletiva para que possa garantir<br />

a participação de todos, inclusive representando a diversidade existente na realidade escolar.<br />

Deve ser um instrumento de melhoria da qualidade das instituições (escolas) entendida como<br />

um pressuposto a ser partilhado por todos, uma vez que:<br />

A qualidade não é um produto, não é um dado. A qualidade constrói-se. Fazer<br />

qualidade é um trabalho que se desendera com o tempo, que não se pode dizer<br />

nunca que esteja concluído, que cresce em si mesmo com um movimento em espiral<br />

(BONDIOLLI, 2004, p.16).<br />

Movimento esse que aponta soluções gestadas pela refl exão apresentada pelo PPP para os<br />

problemas enfrentados pela escola. Mas pode apontar também os problemas existentes que<br />

ainda não foram solucionados pela comunidade escolar. Elencá-los pode ser o “primeiro passo”<br />

para resolvê-los coletivamente. Nesse processo é esperado que o PPP sirva para provocar<br />

transformações no espaço escolar. Caso contrário, ele não terá signifi cado. Dessa forma, tomar<br />

a escola como lugar onde ocorre a construção coletiva de um importante instrumento como<br />

o PPP é um caminho de transformação. Mas se o PPP se confi gurar como um instrumento de<br />

imposição dos gestores da escola sobre os demais segmentos dela, certamente não produzirá


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

mudanças. Além disso, o PPP que não leva a mudanças também não é levado a sério pela<br />

comunidade. Pais, professores, funcionários, estudantes e gestores devem se constituir como<br />

um grupo que pensa a escola de maneira ampla, tendo sensibilidade para perceber quais são os<br />

problemas e onde residem as soluções para aquela comunidade escolar.<br />

Sendo assim, alguns indicadores são importantes se desejamos investigar os processos de<br />

construção do PPP. Indagar sobre a forma escolhida pela escola nesse processo é um dos mais<br />

esclarecedores, pois esse caminho desnuda o tipo e o estilo de gestão implantada em seu<br />

interior. Outro importante indicador reside no grau de envolvimento e de defesa dos integrantes<br />

da escola acerca dela mesma construir seu próprio PPP e através dele gerar outros projetos<br />

importantes como o da avaliação institucional, enveredando pelas dimensões internas e externas<br />

a partir de indicadores de qualidade de ensino coletivamente propostos.<br />

A gestão da escola também é um importante indicador a ser observado, pois dela dependem<br />

os rumos e processos decisórios que irão ser postos, possibilitando o avanço ou impondo o<br />

retrocesso no desenvolvimento do PPP.<br />

O PPP indicando o perfi l do gestor<br />

Muitos argumentos tentam desmobilizar as possibilidades da construção de um PPP e, vencida<br />

a primeira etapa - sua construção –, outros tantos argumentos apontam a impossibilidade dele<br />

possuir força de ação na comunidade. Dentre os argumentos destacam-se os de ser o PPP apenas<br />

um documento ofi cial que não guarda nenhum valor; não ser um instrumento respeitado pela<br />

comunidade escolar; não ter sido produzido coletivamente; não ter alcance signifi cativo; prestarse<br />

apenas como documento formal e burocrático quando requisitado; não ser representativo<br />

de toda comunidade escolar, dentre outros. Esses mesmos argumentos podem ser utilizados,<br />

em sentido oposto, para fortalecer o grupo construtor de um projeto no interior da escola.<br />

Argumentos motivadores de mudanças operacionais que podem tornar esse instrumento um<br />

balizador e indicador da autonomia da escola, pois essa:<br />

mais uma vez se apresenta como elemento indispensável na organização do trabalho<br />

pedagógico escolar e na participação efetiva das pessoas como resposta às imposições<br />

dos planejamentos tradicionais (MALAVAZI, 2003).<br />

Além de indicador da autonomia escolar, o PPP pode operar como facilitador da organização<br />

de um currículo mais includente, transformando-o em um instrumento de ação forte, legítimo<br />

e motivador para os integrantes da instituição, contrapondo-se a todos os demais instrumentos<br />

legais e formais impostos externa e internamente.<br />

As relações sociais existentes no interior da escola não podem ser entendidas como ingênuas e<br />

desprovidas de intencionalidade. Elas são, sobretudo, relações de poder, dominação e submissão<br />

que produzem decisões e podem se materializar no modelo de PPP construído pela escola. Se<br />

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26<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

acreditarmos na possibilidade do PPP apontar sempre para essa direção, nos tornaremos reféns<br />

dessa possibilidade o que inviabilizaria a decisão de construí-lo. Segundo FREITAS (2003, p. 35):<br />

...a “forma escola” constitui-se uma maneira de organizar o trabalho pedagógico a mando<br />

de funções sociais que são atribuídas à instituição escolar. Contrariar essa lógica é, no<br />

âmbito de nossa sociedade atual, um processo possível apenas como resistência. Isso não<br />

diminui sua importância como possibilidade, mas alerta para seus limites.<br />

Muito mais apropriado acreditar nas potencialidades democráticas, participativas e coletivizadas<br />

desse instrumento e tentar construí-lo sobre essas bases.<br />

A administração e a burocracia<br />

Ao longo dos anos foram percebidas diferentes funções para a estrutura administrativa e<br />

burocrática da escola. Segundo TRATEMBERG (1982 p. 40):<br />

...a conduta burocrática implica uma exagerada dependência dos regulamentos e padrões<br />

quantitativos, impessoalidade exagerada nas relações intra e extragrupo, resistência<br />

à mudança, confi gurando os padrões de comportamento na escola encarada como<br />

organização complexa. Em suma, o administrativo tem precedência sobre o pedagógico.<br />

Nesse contexto é que se pensavam os planejamentos escolares, que representavam instrumentos<br />

técnicos sinalizadores da forma como a escola tratava e entendia sua própria função, ou seja, como<br />

controle e domínio. Em seguida, a burocracia e a administração foram vistas como ferramentas de<br />

apoio da estrutura escolar em toda sua complexidade. Entretanto, nos tempos modernos, quando<br />

a escola é instrumento de formação de mão de obra necessária ao mercado de trabalho, a lógica<br />

da burocracia e da administração também repete esse movimento e assume a função de impor,<br />

discriminar e alienar. A estrutura escolar não tem como base princípios formativos e humanitários.<br />

Assim, o PPP da escola tanto pode ser um importante instrumento construído coletivamente,<br />

quanto pode ser um elemento de imposição escrito individualmente. Estudar os processos<br />

de construção do PPP das escolas e os estilos de gestão que a representam pode fornecer<br />

alguns indicadores que, categorizados, auxiliariam na construção de uma gestão democrática e<br />

autônoma para a escola.<br />

O gestor tem, dentre outras funções, a de mediar e conduzir o processo de construção do PPP.<br />

Independentemente do seu perfi l, ele é um agente determinante no processo. Assim sendo, ele<br />

tanto pode assumir o papel de um gestor impositivo e autoritário, conduzindo o PPP nesse caminho,<br />

resultando em um instrumento de coerção utilizado para controlar os grupos no interior da escola;<br />

como pode assumir o papel de gestor democrático e participativo. Conduzindo o processo de<br />

construção do PPP por essa via, certamente contribuirá para que o mesmo seja representativo de<br />

toda a comunidade escolar. Ainda que possamos questionar a possibilidade de um só elemento (no


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

caso o diretor) possuir tanta força, sabemos que a estrutura hierarquizada que comanda as escolas<br />

básicas no país permite que um só elemento da escola, munido de força decisória e permissionária<br />

de instâncias superiores, possa manipular e controlar os demais grupos. Nesse sentido é possível que<br />

o resultado objetivado em um PPP não seja representativo do grupo totalitário da escola e assim as<br />

pessoas não se reconheçam nela. A marca de um projeto pode mostrar ou não a identidade de seus<br />

integrantes.<br />

Gestão do PPP e o PPP como gestão: quem comanda o quê?<br />

O PPP pode ser entendido como um “grande acordo coletivo que se faz no interior da escola”<br />

(MALAVAZI, 1995). Assim como a escola é uma instituição com uma dimensão política (é possível<br />

existir objetividade, mas não há neutralidade em educação), o PPP também possui uma dimensão<br />

política que, muitas vezes, precisa ser posicionada em função de seus objetivos. Daí a escola se<br />

organizar não sem confl itos e disputas inclusive na forma de orientar e reorientar seu PPP, pois<br />

“A escola não é, nem nunca foi, uma ilha isolada dos interesses políticos, sociais e econômicos<br />

na sociedade em que se insere, (SORDI, MALAVAZI, 2004).<br />

Pensamos que o PPP deva ser um instrumento facilitador e aglutinador, propiciando uma refl exão<br />

permanente entre seus membros. Se o que chamamos de PPP propicia a refl exão e a escola é<br />

refl exiva, então estamos caminhando na direção de nossa crença premissa, ou seja, o PPP como<br />

instrumento de construção de uma escola democrática. Caso contrário, ou seja, se a escola não<br />

é facilitadora da refl exão e cada um de seus membros atua individualmente, mesmo anunciando<br />

seu desejo de construção de uma nova sociedade, será mais o alcance desse objetivo, uma vez<br />

que ele não atende à premissa básica de um PPP: ser coletivo e propiciador da refl exão. Assim, é<br />

preciso buscar objetivos afi nados com o projeto que se quer/pretende realmente implantar.<br />

É importante lembrar que as formas utilizadas para a construção do PPP são importantes, mas,<br />

mais importante ainda, é a observação atenta da posição política dos atores que o constróem,<br />

pois os mesmos podem auxiliar a efetivação e consolidação de um PPP que representa os anseios<br />

de uma cultura dominante e podem organizar o currículo da escola com base nessa parcela da<br />

população, não levando em conta a realidade da comunidade em que a escola se insere. As<br />

decisões sobre o PPP devem ser de competência da própria escola e da comunidade na qual ela se<br />

insere. Sendo democrática e autônoma, não tem como base parâmetros externos de avaliação. As<br />

experiências realizadas não devem ser tomadas como modelos aplicáveis a todas as realidades. A<br />

autonomia da escola deve ter como pressuposto o atendimento ao grupo no qual ela se insere e seu<br />

PPP deve ser um instrumento coletivo norteador do trabalho docente, provisório e inacabado.<br />

Evidentemente os atores internos à escola possuem visões diferenciadas do signifi cado de<br />

uma gestão e essas diferentes visões estarão expressas no PPP.<br />

O PPP é também um instrumento catalizador das orientações externas “ofi ciais” e estas, via<br />

de regra, se cumprem de forma hierárquica. Mas o que diferencia uma instituição escolar de<br />

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28<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

outra é, também, o grau de autonomia que ela constrói em relação aos órgãos externos ligados<br />

a ela. Quanto menor a autonomia da escola, mais se expressam no PPP as orientações recebidas<br />

hierarquicamente, como indicadores de modelos administrativos, de formação e de instrução a<br />

serem cumpridos por ela. Por outro lado, em direção oposta, quanto maior o grau de autonomia<br />

da escola em relação aos órgãos externos, expresso no modelo e no processo de construção<br />

do seu PPP, maior será sua independência para a tomada de decisões. Evidentemente, mesmo<br />

com esse grau de autonomia altamente demarcado, a escola sempre estará ligada às instâncias<br />

superiores que a regem, ainda que administrativamente falando.<br />

Algumas questões importantes<br />

Para efeito de análise e observação, algumas questões podem nortear nosso olhar indicando<br />

o grau de autonomia da escola e do PPP. São questionamentos aparentemente simples, mas<br />

que, ao serem efetivados, podem dar início a um novo movimento de transformação no interior<br />

da escola. Questões tais como:<br />

•<br />

•<br />

•<br />

•<br />

•<br />

•<br />

Quais elementos indicam que o PPP foi construído pela comunidade?<br />

Quais elementos indicam que o PPP não é artifi cial para a comunidade escolar que ele<br />

representa?<br />

Quais elementos indicam que o PPP representa a posição da instituição como um todo<br />

e não a visão particular ou parcial de poucos?<br />

Quais elementos indicam que o PPP expressa o conjunto dos sujeitos envolvidos no<br />

ambiente escolar?<br />

Como o PPP expressa a avaliação institucional da escola (entendendo-a como Instituição)?<br />

Sabendo que as relações de poder tem repercussões importantes no cotidiano da<br />

escola, como elas ocorrem no processo de construção do PPP?<br />

Essas questões, iniciais, podem ganhar atributos importantes de acordo com a comunidade<br />

em que ele – PPP- esteja inserido. Além disso, são questões facilitadoras objetivando gerar<br />

novos questionamentos e permitir que a comunidade esteja permanentemente construindo e<br />

reconstruindo seu PPP a partir das suas necessidades locais.<br />

Possibilidade de superação via PPP<br />

Políticas educacionais apropriadas, nova administração do tempo e espaço escolares, melhor<br />

estrutura organizativa, avaliação do processo de aprendizagem progressivo e seqüencial,


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

organização do ensino em etapas de acordo com cada grupo costumam ser sinalizados após um<br />

processo maduro e responsável de construção do PPP. São questões mais abrangentes que têm<br />

repercussões diretas em todos os espaços escolares. Pela mesma via, acabam sendo contemplados<br />

e inseridos como objetivos a serem vislumbrados a longo prazo na construção de um PPP, pois, de<br />

forma geral, o ensino brasileiro atravessa uma grave crise de qualidade uma vez que:<br />

Quanto mais parece que o direito de possuir é dado a todos, mais se ensina o dever<br />

de consumir e de aprender a consumir/desejar a partir do lugar social que ocupa.<br />

Assim, o direito à educação (inclusão em todos os níveis de ensino) contrapõe-se o<br />

dever de aceitar uma determinada concepção de qualidade de ensino, que oculta<br />

seus benefi ciários e que fabrica trilhas diferenciadas e meritocráticas de sucesso e de<br />

fracasso (exclusão por dentro) (FREITAS, L., SORDI, FREITAS, H., MALAVAZI 2004).<br />

Importante registrar que, embora alguns setores ou grupos insista em anunciar o oposto, respaldados<br />

pelo número de estudantes matriculados nas escolas nos vários níveis de ensino, esta é uma realidade<br />

que deve preocupar a todos. Não se trata apenas de colocar todos na escola, como querem os liberais,<br />

mas de garantir uma escola de qualidade para todos. Buscar soluções rápidas, decretadas, mágicas<br />

e externas à instituição já mostrou ser um caminho de insucesso garantido. É preciso, então, que as<br />

propostas de transformação e qualidade de ensino partam do interior das escolas e tenham respaldo<br />

dos setores aos quais elas pertencem. Algumas experiências positivas já foram historicamente<br />

registradas e, caso não tivessem sido abortadas em seu processo de construção, poderiam servir como<br />

exemplo. De qualquer maneira os PPP podem sinalizar possibilidades de superação, uma vez que<br />

partem do diagnóstico de sua própria realidade e levam em conta as potencialidades da comunidade<br />

local. Não deve somente contemplar a instrução ou informação necessária ao estudante, mas deve<br />

levar em conta a formação que pretende e deve oferecer. Por isso, costumamos dizer que um projeto<br />

pedagógico deve tomar decisões coletivas que não são apenas técnicas ou acadêmicas, mas são<br />

também políticas. Por isso, não causa estranheza que, em todos os níveis de ensino, essa via de<br />

construção coletiva e democrática obtenha resistência; afi nal, ela rejeita internamente processos<br />

decisórios individuais e autoritários e, externamente, rejeita todos os mecanismos de imposição por<br />

decretos e leis que não a retratem. E esses processos não estão isentos de identidades. São pessoas,<br />

grupos, entidades, categorias que, por trás deles, procuram criar mecanismos para que a própria<br />

comunidade acadêmica desacredite dos processos decisórios internos, coletivos e educativos. Essa<br />

resistência tem sido percebida em muitas ocasiões, inclusive nos absurdos acordos e decisões que em<br />

nada auxiliam o verdadeiro ensino de qualidade do país. Mesmo conhecendo-os, é preciso continuar<br />

resistindo a eles, pois essa é a única forma de não permitir um avanço ainda mais irresponsável na<br />

área educacional e, ao mesmo tempo, é a forma de anunciar a crença na possibilidade de superação<br />

e avanço, na busca de melhores condições para a educação no Brasil.<br />

Maria Marcia Sigrist Malavasi é professora e coordenadora associada do Curso de Pedagogia da<br />

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.<br />

29


30<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Referências<br />

BONDIOLI, A. O Projeto Político Pedagógico da creche e sua avaliação. Campinas/SP: Autores<br />

Associados, 2004.<br />

FREITAS, L.C., SORDI, M.R.L.; FREITAS, H.C.L.; MALAVAZI, M.M.S. Dialética da Inclusão e da<br />

Exclusão: por uma qualidade negociada e emancipadora nas escolas. In: Geraldi, C.M.; RIOLFI,<br />

C.R.; GARCIA, M.F. (orgs). ESCOLA VIVA: elementos para a construção de uma educação de<br />

qualidade social. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.<br />

FREITAS, L.C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto entre duas lógicas. São <strong>Paulo</strong>: Moderna,<br />

2003 (Coleção cotidiano escolar).<br />

MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: uma construção possível. In:<br />

EVANGELISTA, Francisco, GOMES, <strong>Paulo</strong> de Tarso (Organizadores) EDUCAÇÃO PARA O PENSAR.<br />

Campinas: Átomo Alínea, 2003.<br />

MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist. A construção de um projeto político pedagógico: registro e<br />

análise de uma experiência. Dissertação de mestrado-Departamento de Metodologia de Ensino,<br />

UNICAMP, maio de 1995.<br />

SORDI, Mara Regina Lemes, MALAVAZI, Maria Marcia Sigrist,. Avaliação do ensino e da<br />

aprendizagem: concepções e mitos. Série Acadêmica. Revista da Pontifícia Universidade<br />

Católica de Campinas, nº 18, janeiro, 2004.<br />

TRATEMBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São <strong>Paulo</strong>: Autores Associados:<br />

Cortez, 1982. Cap. 1: A escola como organização complexa, p. 35 a 54.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

SUSTENTABILIDADE, EDUCAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA<br />

Dagoberto Lorenzetti<br />

“Aquilo que não tem solução, está resolvido”<br />

ditado popular<br />

Vivemos hoje uma situação única na história da vida neste planeta. Não se trata apenas de<br />

mais um episódio de alteração climática e ambiental e uma conseqüente extinção em massa. A<br />

situação, conforme revela a maioria esmagadora da produção científi ca séria das últimas três<br />

décadas, tem pelo menos dois aspectos novos: sua velocidade e a participação ativa de nossa<br />

espécie como causa-raiz do problema.<br />

A deterioração está se processando de maneira particularmente assustadora em países<br />

de desenvolvimento recente e nas regiões mais pobres do planeta. A região do Pontal do<br />

Paranapanema, assim como outras que tive a fortuna de conhecer ainda nos anos 50 do século<br />

passado, vem sendo modifi cada e depauperada em sua exuberância e diversidade. Grilagem,<br />

destruição, violência ambiental e social. Os problemas são muitos e a busca de soluções de<br />

desenvolvimento sustentável é um imperativo para a região.<br />

Obviamente todos sabemos que a crise de sustentabilidade não se circunscreve ao Pontal.<br />

Ela é planetária. Na prática, desconhece fronteiras.<br />

Esta crise demanda ação educacional célere, imediata e efetiva. Crise, na escrita<br />

ideográfi ca chinesa, é grafada com dois caracteres: um representa risco e outro, oportunidade.<br />

A educação, entendida como um processo de formação e informação através do qual as<br />

pessoas adquirem novos conhecimentos, desenvolvem novas habilidades e adotam novas<br />

atitudes, é instrumental adequado para o enfrentamento dos riscos e ao aproveitamento das<br />

oportunidades que se nos apresentam. Dirigentes e trabalhadores de todas as lides, adultos,<br />

jovens e crianças, todos, inclusive os professores, precisam aprender como enfrentar e como<br />

prosperar nestes novos tempos.<br />

O momento presente demanda comprometimento de todos. Não há solução trivial. Não há<br />

solução individual. Há consenso que a crise é problema de todos. Sem um amadurecimento<br />

profundo, uma metanóia em escala planetária, que redunde na auto-regulação de ações<br />

individuais e coletivas, difi cilmente superaremos a crise.<br />

Os cientistas e os mestres, de profi ssão e vocação, têm papel fundamental. Eles têm que<br />

mostrar o caminho. Eles têm que divulgar os diagnósticos. Eles têm que responder ou procurar<br />

respostas às perguntas.<br />

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32<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Vale aqui elencar pelo menos três. Onde estamos? Quem somos? Para onde vamos? No<br />

arrazoado que segue vou procurar respondê-las, discorrendo também sobre os caminhos que<br />

se abrem com desenvolvimentos recentes de princípios, abordagens e tecnologias que se<br />

pretendem sustentáveis.<br />

Há centenas de bilhões de galáxias no Universo e há centenas de bilhões de estrelas na Via<br />

Láctea. O Sol é apenas uma delas. Em torno desta estrela, a uma distância de 150 milhões<br />

de km, gira nosso planeta, a terceira órbita, depois de Mercúrio e Vênus. Como a luz viaja,<br />

no vácuo, a 300 mil km por segundo, são necessários cerca de 500 minutos para a luz do Sol<br />

chegar à Terra. Assim, se o Sol “apagasse” agora, só saberíamos do ocorrido daqui a 8 minutos<br />

e 20 segundos! Se houvesse uma “estrada” para o Sol, levar-se-ia 176 anos para lá chegar,<br />

dirigindo a 80 km por hora.<br />

A Terra, com seus 13 mil km de diâmetro tem, hoje, cerca de 70% de sua superfície coberta<br />

por água. A confi guração exata dos continentes, a proporção exata entre terras secas e água, há<br />

cerca de 3 bilhões e meio de anos, não é conhecida. Há evidências, entretanto, que foi nessa<br />

época que a vida se instaurou nos mares. Com o passar do tempo, ela se diversifi cou, gerou uma<br />

atmosfera protetora e povoou a terra, compondo a biosfera.<br />

A biosfera é uma região especialíssima do Universo. É nela que estamos. É sensível e diminuta,<br />

em termos relativos. Para se ter uma idéia de seus limites, se num modelo em escala a Terra<br />

fosse representada por uma esfera com 1,3 m, equivalente aos seus 13 mil km de diâmetro, o<br />

Sol seria um edifício de 140 m de altura, a cerca de 18 km de distância.<br />

A biosfera seria um verniz sobre aquela esfera de 1,3 m, com espessura pouco superior a<br />

1 mm.<br />

É aí que nós e a vida estamos.<br />

A vida é uma ocorrência misteriosa e muito especial. Depois que o estudo do DNA revelou<br />

que todos os seres vivos são muito semelhantes e que os cogumelos estão mais próximos de<br />

nós do que da alface, é importante compreender o que somos. Nós somos a biosfera, nós e<br />

todas as demais espécies vivas com as quais coabitamos. Não existe uma biosfera “lá fora”.<br />

Nós somos a vida.<br />

A Terra tem 4,5 bilhões de anos. Se este tempo fosse um ano calendário, a vida teria<br />

surgido em março e o homem teria aparecido nos últimos instantes do dia 31 de dezembro.<br />

Nossa espécie acabou de chegar para a festa da vida, tem “somente” cerca 1 milhão de anos<br />

de existência.<br />

É um paradoxo, mas a história da vida sobre na Terra tem sido contada mais pelos mortos do<br />

que pelos vivos. A partir de estudos de fósseis e de rastros de atividades de espécies extintas,<br />

estima-se que 99,99% das espécies que já existiram sobre a Terra já desapareceram. A duração


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

típica de uma espécie está entre 2 milhões e 10 milhões de anos. Algumas espécies duram mais.<br />

Outras duram menos. Em média, são “apenas” cerca de 4 milhões de anos. Por cinco vezes,<br />

nos últimos 500 milhões de anos, processos de extinção em massa, devidos a causas variadas,<br />

praticamente varreram da face da Terra a maioria dos seres vivos.<br />

A preocupação do homem com sua sobrevivência e bem-estar é, certamente, anterior ao<br />

surgimento das civilizações humanas. Os humanóides que nos antecederam aprenderam, através<br />

de processos que duraram gerações, a identifi car quais ervas ingerir quando uma refeição<br />

mais pesada, muitas vezes um ser de sua própria espécie, lhes causava desconforto. Ao longo<br />

dos milênios, muitas formas e fórmulas para cuidar da saúde apareceram. Em determinado<br />

momento, religião, medicina e magia se misturavam. Muitos vigários e vigaristas seguramente<br />

prosperaram. Marco importante foi o aparato conceitual, fi losófi co e razoavelmente formalizado<br />

que surgiu na ilha de Kós, na Grécia de Hipócrates, a quase cinco séculos antes de Cristo.<br />

A percepção da essencialidade de condições “sanitárias” para se garantir a saúde pública<br />

também é antiga. A capacidade olfativa é um trunfo importante para a sobrevivência de muitas<br />

espécies, inclusive o homem. E a atmosfera, o recurso natural “ar”, é o componente da biosfera<br />

mais sensível a alterações. Além de ser extremamente tênue, a camada de ar que cobre a Terra<br />

é, em certo sentido, o elemento mais importante para nossa existência. Podemos sobreviver<br />

semanas sem comer, dias sem beber água, mas apenas quatro minutos sem ar.<br />

Movimentos migratórios ocorreram por força do desconforto e da percepção de agravos<br />

à saúde devidos à degradação do meio circundante ao longo da Histórica e da Pré-História.<br />

Movimentos migratórios aqui mesmo em nossa Terra Brasilis podem ser atribuídos a secas,<br />

exaurimento de recursos locais, eras glaciais e ao mau cheiro gerado pelo acúmulo de lixo nas<br />

cercanias dos assentamentos primevos.<br />

Na Babilônia de Hamurabi, já se faziam registrar a ocorrência de odores desagradáveis dezoito<br />

séculos antes de Cristo. Quase um milênio depois, o rei Tukulti, em visita a Hit, localizada<br />

a oeste de Babilônia, relatava o desconforto causado pelas emanações de rochas ricas em<br />

dióxido de enxofre e sulfeto de hidrogênio. Em 500 a.C, a Cloaca Maxima (a grande fossa) foi<br />

construída em Roma pelos etruscos e, imagina-se hoje, quão grande não terá sido o desconforto<br />

dos que residiam a barlavento. Platão (427-347 a.C) comparou os montes e montanhas gregos,<br />

depauperados por anos de extração, queima e destruição, aos ossos de um corpo aviltado e<br />

putrefeito. Sêneca, no ano 61 da Era Cristã, registrava sua alegria e melhora de saúde quando<br />

saía de Roma, contaminada pela fumaça e pelos odores fétidos. Os curtumes, não só em Roma,<br />

mas em outras cidades da Antiguidade, só eram permitidos em locais afastados.<br />

Legislação promulgada pelo Rei Edward I, em 1272, proibiu a queima de carvão mineral<br />

marinho (sea coal), devido aos inconvenientes de sua fumaça. John Evelyn (1620-1706) publicou<br />

o Fumifugium – or The Inconvenience of the aer and smoak of London dissipated together with<br />

some remedies humbly proposed” (Fumifugium ou a inconveniência do ar e da fumaça dissipada<br />

de Londres junto a alguns remédio humildemente propostos).<br />

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34<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Foi bem mais tarde, no século XVII, que Bernardino Ramazini, na Itália, focalizou a doença<br />

e a saúde ocupacional. Um texto de 1844, editado em Paris 144 anos depois do De Morbis<br />

Artifi cum Diatriba (Doenças do Trabalho), intitulado “Du Climat et des Maladies du Brésil” 2 ,<br />

descreve moléstias de índios, de negros e de mineiros, entre outras. A doença ocupacional,<br />

entre outras mazelas causadas pelo descaso com que se tratam as pessoas e o ambiente, ainda<br />

é um problema sério de saúde pública no Brasil de hoje.<br />

O especialista em História Natural e professor de Biologia, Dr. Manuel Pereira de Godoi, de<br />

Pirassununga, já estudava o Rio Mogi-Guaçú e o corimba, nos anos 50. Recolhendo diligente e<br />

atentamente amostras de água contaminada pela lixívia lançada pelas indústrias e realizando<br />

experimentos para avaliar as conseqüências na população de corimbas e em outras espécies de<br />

peixes, tornou-se conhecido no mundo todo como importante ictiologista. Na cidade onde morava<br />

era reconhecido por seus alunos e pessoas de bem como uma sumidade ambiental engajada,<br />

ainda que esta expressão inexistisse à época. Por parte da parcela reacionária da população, era<br />

taxado de “comunista”, acusação grave e muito perigosa naqueles anos de chumbo.<br />

Muitos outros pesquisadores, professores e cidadãos que se indignaram com a destruição e a<br />

pilhagem de nosso patrimônio comum, nossos recursos naturais, nestes anos de industrialização<br />

desavisada, fi zeram o que foi possível para denunciar problemas e encontrar respostas. Mas,<br />

a exemplo da garota surda em Húmulus, peça de Bertold Brecht, a sociedade demora muito a<br />

ouvir. Pode até escutar, mas a compreensão é por vezes tardia.<br />

A grave crise ambiental e seus desdobramentos que ora enfrentamos está sendo causada, em<br />

sua maior parte, pela ação antrópica. O Homo sapiens medrou e proliferou. Os mais de 6 bilhões<br />

e 500 milhões de representantes de nossa espécie presentes hoje na biosfera, junto aos seus<br />

quase 800 milhões de veículos, aos mais de 90 milhões de barris de petróleo queimados por dia<br />

e outros dispositivos e atividade destruidoras, estão impondo às cerca de 30 milhões de outras<br />

espécies, que conosco formam a “teia da vida” na biosfera, uma taxa de desaparecimento 100<br />

vezes superior ao que poderia ser chamado de “taxa natural”.<br />

Para onde estamos indo?<br />

Desmatamento e exploração mineral desmedidos, agricultura que empobrece e destrói matas<br />

e solos, exploração à extinção completa de espécies de valor comercial, introdução diuturna de<br />

grandes quantidades de antigas e de novas espécies químicas sintetizadas na ecosfera, além de<br />

outras ações predatórias compõem um quadro óbvio de destruição crescente e sistemática. Em<br />

nosso país esta destruição se faz mais cruel, dadas as condições desiguais que prevalecem ao<br />

longo dos séculos em uma economia que parece perseguir um ciclo de extração após outro. Até<br />

iniciativas que apresentam uma lógica ambiental e politicamente correta, como por exemplo<br />

o biodiesel e outras culturas focadas no seqüestro de carbono, tem alta probabilidade de criar<br />

miséria e destruição ambiental.<br />

2 Ou “Do Clima e das Doenças do Brasil”. O texto encontra-se na Biblioteca do Museu da Faculdade de Medicina de São <strong>Paulo</strong>.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

Em anos recentes certas discussões sobre temas ligados ao meio ambiente e à saúde pública têm fugido<br />

aos limites dos círculos de especialistas e chegado à grande mídia. Todos já ouviram falar da depleção<br />

da camada de ozônio, das epidemias virais e bacterianas fora de controle, das alterações climáticas e do<br />

efeito estufa. Ouve-se muitas vezes dizer que as opiniões divergem. E de fato isso ocorre e há uma razão.<br />

O ex-vice-presidente americano Al Gore publicou o seu Inconvenient Truth (Verdade inconveniente)<br />

e atuou no fi lme homônimo, recém lançado também em vídeo. Gore relata a resistência que tem<br />

encontrado ao longo da vida para ver apreciados temas ambientais e outras questões de importância<br />

global pelo “establishment” autista em seu país. Esta postura é encontrada em praticamente todos os<br />

países industrializados ou de industrialização recente. É como se a revolução industrial, a ciência, a<br />

tecnologia e as organizações humanas tivessem colocado nas mãos de determinadas pessoas um poder<br />

muito superior à sua capacidade crítica e de gerenciamento. Além disso, Gore mostra que as “dúvidas” a<br />

respeito de temas como os malefícios do tabaco e o efeito estufa têm sido, em grande parte, “plantadas”<br />

em órgãos de imprensa por grupos interessados em fazer as denúncias caírem em descrédito. Tal atitude,<br />

além de criminosa, é imoral. Revela um grau muito alto de egoísmo e ignorância.<br />

É sempre importante lembrar e divulgar que a biosfera é, na prática, um sistema fechado. Os<br />

ecossistemas insulares confi guram uma boa aproximação do que seja um sistema fechado. Paul<br />

Hawken relata, em seu The Ecology of Commerce (A ecologia do comércio) o caso da Ilha de São<br />

Mateus, no Mar de Bering. Em 1944 foram importados 29 veados e zootecnistas calcularam que as<br />

características fi siográfi cas da ilha permitiriam acomodar entre 5 e 7 veados por km 2 ou, seja, dada a<br />

área disponível, entre 1.600 e 2.300 animais. Em 1963 a população chegou a incríveis 6.000 cabeças,<br />

dada a inexistência de predadores. Não se pode abusar de um sistema fechado por tanto tempo,<br />

impunemente. O excesso de população levou a uma brutal destruição do habitat e a fome e a doença<br />

reduziram a população de veados para apenas 42 indivíduos em 1966. Voltando aos problemas que<br />

afl igem a humanidade e a renitência dos conservadores. “Deixar como está para ver como é que fi ca”<br />

é a pior das decisões. Ao fi nal, ninguém está a salvo das conseqüências. O sistema é fechado.<br />

A saúde da nossa própria espécie, a exemplo de tantas outras e dos próprios veados da Ilha<br />

de São Mateus, está deteriorando. O Dr. Samuel Epstein, autoridade mundial em etiologia e<br />

prevenção de câncer, afi rma que um em cada dois homens e uma em cada três mulheres que<br />

vivem nos dias de hoje já tem um encontro marcado com a doença neoplásica. Mais do que<br />

isso, afi rma que esta verdadeira “epidemia de câncer” é devida, em larga medida, à ação<br />

irresponsável de grandes corporações transnacionais de capital aberto, gigantescas, verdadeiros<br />

leviatãs, que detêm a maior parcela de poder de fato no mundo moderno.<br />

Joel Bakan publicou, em 2004, o livro The Corporation: the pathological pursuit of profi t<br />

and power (A Corporação: a busca patológica pelo lucro e pelo poder) e produziu, junto com<br />

Mark Achbar e Jennifer Abbott, o fi lme homônimo. Através de entrevistas e depoimentos de<br />

personalidades de expressão, de um amplo espectro ideológico, o autor mostra o passado,<br />

discute o presente e especula a respeito do futuro destas que são as instituições humanas mais<br />

poderosas sobre a Terra. Através das palavras e opiniões de baluartes da ortodoxia econômicofi<br />

nanceira mundial, como o Nobel de Economia Milton Friedman, recentemente falecido,<br />

e expoentes intelectuais engajados no combate aos efeitos daninhos da globalização e das<br />

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36<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

organizações transnacionais, como Noam Chomski e Vandana Shiva, é possível delinear um<br />

quadro bastante claro do papel que as organizações em geral e as grandes corporações de capital<br />

aberto em particular podem desempenhar em todos os quadrantes da vida contemporânea.<br />

Uma constatação grave é que bem ou mal conduzidas essas organizações são máquinas<br />

externalizadoras. São desenhadas para maximizar receitas e minimizar custos, deixando, sempre<br />

que possível, custos ambientais e sociais de suas operações para serem pagos por terceiros. Por<br />

terceiros entenda-se a população em geral e sua parcela mais pobre em particular.<br />

Assim, da mesma forma que um tubarão foi desenhado e está de certa forma “otimizado”<br />

para predar no mar, as corporações transnacionais de capital aberto foram desenhadas para<br />

externalizar e maximizar a riqueza dos acionistas, predando no ambiente dos negócios.<br />

Problemas de saúde e segurança ocupacional, problemas ambientais têm sido provocados por<br />

estas externalizações. E tem sido tratado de forma independente. Dividir para reinar.<br />

O conceito de sustentabilidade teve o condão de aglutinar estas preocupações. O conceito<br />

decorreu de um processo evolutivo, parte do qual é comentado a seguir.<br />

A primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente foi realizada na cidade<br />

de Estocolmo em junho de 1972. Reuniu 1.200 representantes de 112 países e produziu um<br />

Plano de Ação para o Meio Ambiente. Constituiu-se em verdadeiro divisor de águas em assuntos<br />

ligados ao sistema global de produção e das relações do homem com o meio ambiente. Ali se<br />

argumentava que, para eliminar a ameaça prescrita, não bastaria limitar o crescimento das<br />

nações ora subdesenvolvidas. Era primordial que os países mais ricos se comprometessem em<br />

reduzir seu consumo de recursos e geração de poluição.<br />

Como mencionado, as organizações humanas, em especial as voltadas para a consecução do lucro,<br />

em especial as grandes organizações de ação transnacional, são uma presença onipresente no planeta,<br />

pelo menos desde a virada do século XIX para o século XX. Têm grande dose de responsabilidade e<br />

um importante papel a desempenhar no contexto da sustentabilidade e da sobrevivência de nossa<br />

espécie e da vida no planeta, pelo menos da maneira como as conhecemos.<br />

Ainda que seja possível identifi car alguns pioneiros anteriores à conferência de Estocolmo,<br />

a partir dela um número crescente de organizações, a maior parte organizações de vanguarda,<br />

em diferentes setores de atividade produtiva, começaram a incluir a variável ambiental em suas<br />

considerações, planejamento e políticas. Por outro lado, indivíduos e profi ssionais – religiosos,<br />

políticos, fi lósofos, economistas e a comunidade científi ca mundial – também manifestavam<br />

ciência a respeito da necessidade premente de um novo paradigma para o desenvolvimento.<br />

A consciência em relação à gravidade dos problemas ambientais veio aumentando e a<br />

Comissão Brundtland acabou por defi nir, em 1987, desenvolvimento sustentável como “o uso de<br />

recursos para o atendimento de necessidades de hoje sem impedir que gerações futuras possam<br />

ter acesso a estes recursos para atender suas necessidades”.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

Karl-Henrik Robèrt que, a exemplo da primeira-ministra sueca que emprestou seu nome à<br />

Comissão, dra. Grö Harlem Brundtland, é médico oncologista e, impressionado com a escalada<br />

do câncer, acabou por desenvolver um conjunto de princípios denominados The Natural Step<br />

(O Passo Natural).<br />

Para Robèrt, o problema com o modelo de realidade vigente, no qual a organização é<br />

considerada uma “máquina”, é que há graves pontos cegos sociais, ambientais e pessoais. Há<br />

dois processos centrais, na abordagem do TNS.<br />

O primeiro processo, de percepção da natureza insustentável da atual direção que a sociedade<br />

e os negócios estão tomando e da lógica da busca da sustentabilidade, e outro de compreensão<br />

das quatro condições sistêmicas para a sustentabilidade:<br />

1) não submeter a natureza ao aumento sistemático das concentrações de substâncias<br />

extraídas da crosta terrestre;<br />

2) não submeter a natureza ao aumento sistemático das concentrações de substâncias<br />

produzidas pela sociedade;<br />

3) não submeter a natureza à degradação por meios físicos; e<br />

4) nesta sociedade as necessidades das pessoas são atendidas em todos os lugares da Terra.<br />

Propõe também um método denominado back casting (retro-concepção), através do qual indivíduos<br />

e organizações podem planejar a mudança. Assim que a demanda da sociedade aumenta por aumento<br />

populacional e sofi sticação de hábitos de consumo, a disponibilidade de recursos recrudesce. O<br />

processo pode ser associado à visão em corte de um funil. À medida que o tempo passa, a margem<br />

de ação vai fi cando mais estreita e pode chegar a um ponto em que os recursos serão insufi cientes.<br />

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Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A idéia do back casting é planejar a partir de um determinado ponto no futuro e introduzir as<br />

mudanças necessárias de maneira a evitar um “choque” com a parede do funil em algum ponto<br />

de um futuro próximo.<br />

No início da década de 90, acontecimentos relevantes para o desenvolvimento da gestão<br />

ambiental no âmbito empresarial tiveram lugar. Alguns fl agrantemente reativos. Ocorreu a 2ª<br />

Conferência Mundial da Indústria sobre Gerenciamento Ambiental, em Roterdam, no ano de 1991.<br />

Resultou uma “Carta” com 15 princípios fundamentais para a gestão ambiental nas indústrias.<br />

Em 1992, vinte anos após a Conferência de Estocolmo, na cidade do Rio de Janeiro, teve<br />

lugar a segunda conferência da Organização das Nações Unidas - ONU sobre meio ambiente, a<br />

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.<br />

Nela emergiu um conceito mais sólido de desenvolvimento sustentável, incluindo a dimensão<br />

social de forma explícita na defi nição. Surgiu também um plano de sustentabilidade para o<br />

século XXI, formalizado no documento ofi cial desta conferência, conhecido como Agenda 21.<br />

Foram ali registradas explicitamente três dimensões sine qua non para o desenvolvimento<br />

sustentável: a econômica, a ambiental e a social.<br />

Este tripé, conhecido pela sua denominação em língua inglesa como o triple bottom line, tem<br />

norteado as ações de organizações em todo o mundo. Encontra-se parafraseado, por exemplo,<br />

no relatório de sustentabilidade da empresa petrolífera anglo-holandesa Shell como os 3 Ps -<br />

people, planet, profi t (pessoas, planeta, lucro).<br />

O pilar econômico representa a geração de riqueza pela sociedade através da exploração<br />

comedida e inteligente de meios de produção e de consumo duráveis. O ecológico é pertinente<br />

à conservação e ao adequado manejo dos recursos naturais. O social compete à eqüidade e à<br />

participação de todos os grupos sociais na construção e manutenção do equilíbrio do sistema,<br />

compartilhando direitos e responsabilidades.<br />

É essencial buscar o equilíbrio entre estas três dimensões. E, importante enfatizar, o homem<br />

moderno é um “animal econômico”, como diriam Mark London e Brian Kelly.<br />

Na prática, a dimensão ambiental está condicionada a considerações sociais . Em 1972, por<br />

exemplo, a declaração da primeira-ministra indiana, Indira Ghandi, reiterada pelo nosso ministro<br />

do Interior à época, general Costa Cavalcanti, de que a “pior forma de poluição é a da pobreza”,<br />

mostrou claramente que a visão predominante era a de que preocupações ambientais seriam um<br />

luxo que apenas os países avançados poderiam ter.<br />

Também na prática os interesses, a distribuição desigual de poder e infl uência e os<br />

paradigmas cristalizados fazem com que a dimensão econômico-fi nanceira se imponha como a<br />

mais “coerente” e importante.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

Da Rio-92 esperava-se que emergisse uma nova declaração de princípios e direitos sobre proteção<br />

ambiental e desenvolvimento sustentável, já recomendada pela Comissão Brundtland em 1987,<br />

que servisse de guia para todas as pessoas e nações. Esta Carta da Terra não se materializou por<br />

divergências relativas a seu conteúdo e, em seu lugar, foi aprovado um documento de certa forma<br />

menos assertivo, com 27 princípios, denominado Declaração de Princípios do Rio ou Declaração do<br />

Rio de Janeiro. Três anos depois, reuniram-se em Haia, em um seminário internacional, proponentes<br />

de uma Carta da Terra, onde se estabeleceram as necessidades, os elementos principais e a forma<br />

de elaboração da referida Carta. A versão atual do documento, com 16 princípios agrupados em<br />

quatro categorias (respeito e cuidado com a comunidade da vida, integridade ecológica, justiça<br />

social e econômica e democracia, não violência e paz) enfatiza a essencialidade de uma visão<br />

compartilhada e a adoção destes princípios como guia e referencial de avaliação da conduta de<br />

indivíduos, organizações, empresas, governos e instituições transnacionais.<br />

O documento exorta a humanidade a reunir esforços para a “proteção da vitalidade, diversidade e<br />

beleza da Terra”, nosso lar, como um dever sagrado. Tece considerações a respeito da situação global,<br />

que pode ser revertida, cujos padrões atuais de produção e consumo são injustos e desavisados,<br />

estão levando à devastação generalizada da biosfera e a um agravamento do fosso existente entre<br />

ricos e pobres. Os desafi os ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais que se apresentam<br />

formam um conjunto conexo e carece conceber e implementar soluções includentes.<br />

As resistências à Carta da Terra, bem como a outras iniciativas sustentáveis, podem ser aquilatadas<br />

pelos mais de dez anos necessários para se chegar a um texto-base passível de aprovação. Muitas outras<br />

iniciativas, podendo-se imaginar até que, dentre elas, algumas destinadas a tirar o vigor e diminuir a<br />

importância dos 16 princípios, tiveram lugar desde então. Vale mencionar algumas muito positivas. As<br />

8 Metas do Milênio, o Protocolo de Cartagena sobre a Biodiversidade, a Convenção Contra a Corrupção.<br />

O difícil avanço na última convenção sobre biodiversidade, marchas e contra-marchas na discussão e<br />

implementação da Agenda 21 Local, e a corrupção generalizada que se pode observar aqui e no mundo<br />

são provas cabais de que muito esforço ainda terá que ser empregado para a obtenção de resultados.<br />

Há uma postura discutível, que é a do “se se deseja resultados e não se pode enfrentá-los,<br />

que tal juntar-se a eles?” O capitalismo ortodoxo é renitente e só ouve aquilo que lhe chega<br />

aos ouvidos em seu próprio jargão. Ativistas como Paul Hawken, Amory Lovin e L. Hunter Lovins<br />

escreveram o texto Natural Capitalism (traduzido como Capitalismo natural pela Cultrix) 3 ,<br />

onde apresentam o que denominam quatro estratégias centrais do capitalismo natural. Estas<br />

estratégias têm tido aplicação prática em empresas de todo o mundo. Claro está que “uma<br />

andorinha não faz verão”, mas trata-se de um processo em curso. As estratégias são:<br />

1) Resource Productivity (Produtividade dos Recursos): buscar a produtividade máxima no<br />

uso dos recursos escassos do planeta, não desperdiçar;<br />

3 Além das quatro estratégias do “capitalismo natural”, apresentam o conceito de “capital natural” propriamente dito. Este seria o<br />

valor de todos os organismos e sistemas vivos que nos prestam serviços de despoluição atmosférica, limpeza da água, recuperação<br />

de solos e outros. Estes serviços, estima-se, valem, a cada ano, o equivalente a um “PIB Mundial”, algo na casa dos 40 trilhões de<br />

dólares, hoje. Se 40 milhões são o “juro” anual, o capital natural seria o “principal”, equivalente a, digamos, mais de dez vezes<br />

este valor, algo na casa de meio quatrilhão de dólares. Toda vez que se derruba mata nativa na Amazônia para plantar soja, está-se<br />

fazendo um saque no principal, não se está utilizando apenas o “juro”.<br />

39


40<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

2) Biomimicry (Biomimetismo): buscar inspiração nos organismos vivos e nos processos naturais;<br />

3) Service and Flow (economia de serviços e fl uxo): onde empresas deixam de vender<br />

produtos que logo se deterioram e passam a fabricar para si próprias e alugar para<br />

usuários fi nais. Se a empresa produzir um produto, por exemplo, uma geladeira, que<br />

quebre facilmente, estará “dando um tiro no próprio pé”. A empresa não poderia<br />

vender a geladeira, somente alugá-la;<br />

4) Investing in natural capital (Investir em capital natural): adotar uma abordagem que<br />

transcende a mera sustentabilidade e tenta ser restauradora.<br />

Há métodos antigos que podem ser úteis, como a prática de certifi cação de conformidade com<br />

normas de gestão ambiental e tecnologias promissoras sendo desenvolvidas ou aperfeiçoadas nas<br />

mais variadas indústrias, em especial na de geração de energia e no setor de transporte. Trens<br />

magnéticos, veículos híbridos que funcionam a combustível fóssil e eletricidade consomem menos e<br />

se enquadram na estratégia 1. Biocombustível-elétricos, veículos à célula de combustível (pilha de<br />

hidrogênio), geração eólica, fotovoltaicas etc., são iniciativas sustentáveis ou quase sustentáveis.<br />

Novos materiais e soluções biomiméticas trazem grandes oportunidades e esperanças, mesmo que<br />

o uso intensivo de tecnologia contradiga, em certo sentido, o pensamento de Einstein, que afi rmava<br />

ser impossível resolver um problema usando-se o mesmo sistema de referências que o criou.<br />

Se, por um lado, é verdade que a consciência a respeito dos graves problemas ambientais e<br />

sociais que vivemos cresce a cada dia, por outro a distância entre o que deve ser feito e o que<br />

efetivamente tem sido feito tem aumentado muito.<br />

Há muito ainda por fazer. Carece especular. Carece educar. Dada a premência dos fatos,<br />

talvez, em especial, talvez, talvez careça educar primeiro nossa classe política, nossa classe<br />

empresarial e nossos dirigentes.<br />

Ao refl etir sobre o tema da sustentabilidade me ocorre que talvez já tenhamos passado do “ponto<br />

de não-retorno”. Ratos, baratas e seres humanos são espécies bastante adaptáveis e, talvez, a nossa<br />

também possa escapar da extinção. De qualquer forma, o que não tem solução, resolvido está.<br />

Dagoberto Lorenzetti é doutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração<br />

e Contabilidade da Universidade de São <strong>Paulo</strong> – FEA/USP, mestre pela The Johns Hopkins<br />

University, pós-graduado em Engenharia Nuclear pelo convênio da Escola Politécnica da USP –<br />

<strong>Instituto</strong> de Estudos Avançados – EPUSP-IEA, pós-graduado em Análise de Sistemas pela Fundação<br />

Armando Álvares Penteado – FAAP e engenheiro pelo <strong>Instituto</strong> Tecnológico de Aeronáutica – ITA.<br />

É professor do POI (departamento de produção, operações em serviços e logística) da Escola de<br />

Administração de Empresas de São <strong>Paulo</strong>/Fundação Getúlio Vargas – EAESP/FGV.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

AS RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE, TRANSDISCIPLINA-<br />

RIDADE E ORGANIZAÇÃO EM REDES SOCIAIS OU UMA OUTRA ESCOLA É POSSÍVEL<br />

Valéria Viana Labrea<br />

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer<br />

o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que<br />

experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e<br />

da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.<br />

Leonardo Boff<br />

A educação para a sustentabilidade contempla não somente aspectos relativos ao meio<br />

ambiente, como também aqueles produzidos pelo nosso modelo civilizatório: pobreza, habitação,<br />

saúde, segurança alimentar, geração e distribuição de renda, matriz energética, passando pelos<br />

debates da sociedade, como democracia, questões de gênero, direitos humanos e paz, resultando<br />

em um imperativo moral e ético, no qual o conhecimento tradicional e as diferentes culturas<br />

devem ser respeitados. Essa postura supõe a crítica aos atuais modelos de produção e consumo e<br />

às relações sociais e suas construções simbólicas, imaginárias e materiais.<br />

Educar para a sustentabilidade implica em formar e preparar cidadãos para a refl exão<br />

crítica e para uma ação social emancipatória e transformadora da sociedade e do sistema, de<br />

forma a tornar viável o desenvolvimento integral dos seres humanos, reconstruindo desejos e<br />

necessidades, estimulando a vida comunitária, processos autogestionários e descentralizados<br />

implicando integração de esforços e coordenação de setores fundamentais, rápidas e radicais<br />

mudanças de conduta e estilo de vida, bem como nos padrões de produção e consumo, impondo<br />

uma nova dinâmica nessa relação, pautada por uma nova consciência ecológica.<br />

A partir da Carta da Terra e seus princípios, entende-se sustentabilidade considerando seus<br />

diferentes aspectos, um tema portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar<br />

e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade,<br />

para todos (GADOTTI: 2003). Na perspectiva de educação, pensa-se hoje numa Pedagogia<br />

da Terra, uma pedagogia que inclui a necessária preocupação em inter-relacionar educação e<br />

sustentabilidade, a interdependência entre os seres, os valores para modifi carmos o sistema. A<br />

Carta da Ecopedagogia (1999) indica que a sustentabilidade deve ser transdisciplinar e a educação,<br />

o planejamento escolar, o projeto político-pedagógico devem ser reorganizados a partir desse novo<br />

paradigma e o trabalho da escola refl etir a preocupação com a formação de ecocidadãos.<br />

As escola precisa conhecer a realidade da comunidade onde está inserida, deve ser um<br />

espaço de diálogo, de abertura. O desenvolvimento de um processo educativo implica que se<br />

realize logo de início um reconhecimento, por parte do educador, da realidade em que vive<br />

41


42<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

o educando: seus desejos, interesses, sonhos e aspirações, porque a partir do momento que<br />

ele o conhece pode estabelecer os objetivos educacionais a serem alcançados, relacionando os<br />

conhecimentos formais às suas outras necessidades. Uma educação transformadora envolve não só<br />

uma visão ampla de mundo, como também a clareza da fi nalidade do ato educativo, uma posição<br />

política - uma determinada concepção de homem e de mundo - e uma competência técnica para<br />

implementar projetos a partir do aporte teórico formador do profi ssional competente.<br />

Educar para tornar possível mudanças desse porte requer uma nova abordagem, de caráter<br />

interdisciplinar, sustentada pelas informações e saberes acumulados, dispersos pelas diversas<br />

especialidades. Para que a educação para a sustentabilidade se efetive é necessário que<br />

conhecimentos e habilidades sejam incorporados e que atitudes sejam formadas a partir<br />

de valores éticos e de justiça social, pois são essas as atitudes que predispõe à ação. Cabe<br />

lembrar que consciência sem ação transformadora ajuda a manter a sociedade tal qual ela<br />

se encontra.<br />

Ao tentar incorporar no trabalho e na vida valores e saberes, estes são ressignifi cados e<br />

adquirem uma dimensão que torna possível transcender o senso comum e perceber o homem,<br />

no dizer de Leonardo Boff (2000), como um projeto infi nito. Um ser histórico, que se faz<br />

a cada minuto, superando interditos, aberto, em processo, incompleto, sempre à procura,<br />

nunca pronto. Nossa educação nunca acaba, estamos sempre aprendendo e ensinando e esse<br />

olhar criativo, desafi ador, que não se deixa enquadrar ou limitar é, sem dúvida, nossa melhor<br />

qualidade. Vamos, assim, alimentando nosso horizonte utópico, sonhando e realizando.<br />

Transdisciplinaridade<br />

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...<br />

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer<br />

Porque eu sou do tamanho do que vejo<br />

E não, do tamanho da minha altura...<br />

Alberto Caeiro<br />

A transdisciplinaridade é um esforço em articular saberes dispersos, diversos e adversos e<br />

ir além do enfoque estritamente disciplinar sem dispensar a contribuição específi ca de cada<br />

disciplina para o conhecimento. Tal superação requer uma postura essencialmente dialógica,<br />

tolerante, participativa e com pleno envolvimento, inserida no paradigma da complexidade<br />

porque simultaneamente separa e associa os conhecimentos, permitindo uma compreensão<br />

de outros níveis da realidade, sem os reduzir ou encapsular. Essa compreensão demanda a<br />

valorização da diversidade cultural, social e biológica, indicando para uma forma emergente de<br />

aprendizado, fundada na curiosidade do pensar, do experimentar, do criar e do ousar e para a<br />

humildade na aceitação das próprias defi ciências, a qual permite apreender e aprender com o<br />

olhar do outro, como nos ensina <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

E. Morin (2000) afi rma que a escola precisa se reorganizar e que essa reorganização não<br />

se refere simplesmente ao ato de ensinar, mas passa pelos defeitos que o sistema incorpora<br />

e passa a reproduzir. Um exemplo é o ensino de disciplinas separadas e sem comunicação<br />

entre si, o que acaba por produzir uma fragmentação e uma dispersão que nos impede de ver<br />

globalmente coisas que são importantes no mundo. Existem problemas centrais e fundamentais<br />

que permanecem completamente ignorados ou esquecidos e que são importantes para qualquer<br />

sociedade e qualquer cultura.<br />

Educar no caminho da cidadania planetária exige novas estratégias de fortalecimento<br />

da consciência crítica. Essa refl exão crítica deve gerar a práxis, isto é, ação-refl exão-ação;<br />

para preparar homens e mulheres para exigir direitos e cumprir deveres. <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, em<br />

Pedagogia do Oprimido (1992), complementa: o conhecimento mais crítico da realidade, que<br />

adquirimos através do seu desvelamento, não opera por si só a mudança da realidade... Ao<br />

desvelá-la, contudo, dá-se um passo para superá-la, desde que se engajem na luta política pela<br />

transformação das condições concretas em que se dá a opressão.<br />

A escola, ao se reorganizar, tem na transdisciplinaridade uma abordagem que permite<br />

fazer a conexão entre os saberes das disciplinas e os saberes que cada sujeito carrega<br />

consigo, contextualizando e mostrando, nas palavras de Morin (1997), que temos em nós<br />

mesmo tudo aquilo que a escola quer separar e que o papel de cada indivíduo só se explica<br />

em relação ao outro.<br />

Rede<br />

Cada ser humano recebe a anunciação e,<br />

grávido de alma, leva a mão à garganta, em susto e angústia.<br />

Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida,<br />

a anunciação de que há uma missão a cumprir.<br />

A missão não é leve:<br />

cada homem é responsável pelo mundo inteiro.<br />

Clarice Lispector<br />

A organização em rede é baseada em princípios democráticos, inclusivos, emancipadores e<br />

que buscam a sustentabilidade. Trabalhamos com um conceito de rede que seja fundamentado<br />

em práticas e princípios democráticos, emancipatórios do ponto de vista político, inclusivos do<br />

ponto de vista social, sustentáveis do ponto de vista ambiental, abertos e polissêmicos do ponto<br />

de vista cultural. Criando conexões abre-se à nossa frente um enorme horizonte de possibilidades.<br />

Podem ser parcerias, trocas, amizades, afetos, novos valores e formas de convivência, criação<br />

de conhecimentos, aprendizados, apoios, diálogos, participação, mobilização, força política,<br />

conquistas e muito mais. A rede se apresenta como um projeto deliberado de organização da<br />

ação humana.<br />

43


44<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A primeira e mais óbvia propriedade de qualquer rede é a sua não-linearidade – ela se estendem<br />

em todas as direções, são sistemas descentrados por defi nição, com capacidade de autoorganização<br />

e de operar sem hierarquia. Uma pré-condição da rede é a participação voluntária<br />

(MARTINHO: 2003). Aqui reside uma das razões mais simples da capacidade da rede de trabalhar<br />

sem hierarquia: pessoas participam da rede quando querem e porque assim o desejam. Elas não<br />

são obrigadas a fazê-lo; decidem compartilhar do projeto coletivo da rede porque acreditam<br />

e investem nele. O trabalho em rede depende, a todo momento, da ação autônoma de cada<br />

um. Em suma, depende de participação ativa, sem a qual nenhuma iniciativa vai adiante. A<br />

preservação da autonomia orienta o funcionamento e os relacionamentos no âmbito da rede.<br />

Como decorrência, na medida em que os integrantes da rede são diferentes entre si, outro<br />

fundamento básico do modo horizontal de operação é o respeito à diferença. Ser autônomo quer<br />

dizer ser diferente, ter modos diferenciados de agir, pensar e existir. Autonomia e diferença são<br />

as duas faces de uma mesma concepção.<br />

Uma rede surge no momento em que um grupo identifi ca entre si uma “capacidade de projeto<br />

comum”. Foi assim no projeto: uma descoberta espontânea no âmbito de dinâmicas coletivas<br />

de participação. Um desdobramento lógico da construção do projeto da rede é também uma<br />

pactuação sobre os princípios e valores orientadores da ação. Tais princípios e valores devem<br />

incorporar aqueles que fundamentam a prática das redes, tais como a cooperação, a democracia,<br />

a ausência de hierarquia, a isonomia, a desconcentração de poder, a multiliderança, o respeito<br />

à autonomia, o respeito à diferença.<br />

Tecendo as relações<br />

Por que, para que e, a mais importante, para quem,<br />

são as três perguntas fundamentais que deveríamos fazer<br />

ao primeiro-ministro, ao professor, ao pai, ao fi lho,<br />

quase a propósito de tudo o que ocorre.<br />

O problema é que isso dá um pouco de trabalho.<br />

José Saramago<br />

A idéia principal ao articular a ecopedagogia, a transdisciplinaridade e a organização em redes<br />

é propor uma mudança na fi sionomia da escola. Vale dizer, entender a sustentabilidade como<br />

o novo padrão civilizacional e a partir dessa compreensão fundar um outro espaço educativo<br />

onde se realize a autogestão, as responsabilidades sejam compartilhadas, os saberes sejam<br />

construídos a partir de um diálogo entre a academia a os saberes populares, onde são considerados<br />

os desejos da comunidade escolar, enfatizando as interconexões e interdependências como<br />

processos sistêmicos, mantendo a historicidade e as contradições e confl itos que permeiam os<br />

acontecimentos A escola, nessa perspectiva, passa a ser um pólo irradiador de conhecimento<br />

para toda a comunidade que ali se vê refl etida e fortalecida. A organização em redes, aliada ao<br />

pensamento complexo, permite que as pessoas se agreguem em função de desejos e aptidões.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

Entendo que não exista uma fórmula a ser seguida, que a tendência a homogeneizar uma<br />

prática é nociva e impede o pensamento crítico. Somente exercitando uma prática diferente do<br />

formato atual, onde essas dimensões sejam contempladas, que cada escola pode desenvolver<br />

o seu projeto, único, ideal para sua comunidade, é que a escola vai encontrar o seu caminho.<br />

O importante é haver essa refl exão e uma abertura ao desconhecido, a curiosidade, tentar<br />

estabelecer relações, selecionar o que interessa do que nem tanto, hierarquizar e priorizar áreas<br />

e ações, articulando o que está dissociado e distinguido e de distinguir o que está indissociado.<br />

Uma outra escola é possível, urgente e necessária. Essa utopia crítica, articulada e comprometida<br />

com um outro modelo civilizatório, é transformadora e a base da nova cidadania planetária.<br />

Valéria Viana Labrea é educadora, coordenadora do Núcleo de Amigos da Infância e Adolecência<br />

– NAIA, entidade fi liada à Carta da Terra Internacional, no qual foi responsável pelo FórumZINHO<br />

Social Mundial, Encontro Vivemos Juntos – Conhecer e Viver a Carta da Terra. Desenvolve ofi cinas<br />

e projetos socioambientais, tendo como marco pedagógico a Carta da Terra e a ecopedagogia.<br />

Organizou a Carta da Terra para Crianças, disponível no site www.forumzinho.org.br e www.<br />

cartadaterra.com.br<br />

Referências<br />

ALVES, Rubem in: BRANDÃO, Carlos R. (org.). O educador: vida e morte – escritos sobre uma<br />

espécie em perigo. São <strong>Paulo</strong>: Brasiliense, 1982.<br />

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São <strong>Paulo</strong>: Martins Fontes, 2003.<br />

FREIRE, <strong>Paulo</strong>. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.<br />

FREIRE, <strong>Paulo</strong>. Pedagogia da autonomia. São <strong>Paulo</strong>: Paz e Terra, 1996.<br />

GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido. Novo Hamburgo:<br />

Feevale, 2003.<br />

MARTINHO, Cássio. Redes, uma introdução às dinâmicas da conectividade e da autoorganização.<br />

Brasília: WWF, 2003.<br />

MORIN, Edgar. Entrevista à revista Thot, da Associação Palas Athena, nº. 66, São <strong>Paulo</strong>, agosto<br />

de 1997.<br />

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São <strong>Paulo</strong>: Cortez; Brasília:<br />

Unesco, 2000.<br />

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46<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

HISTÓRIA ORAL – UMA ESTRATÉGIA A SER UTILIZADA NO DESENVOLVIMENTO DE<br />

PROJETOS EDUCACIONAIS<br />

Meire Terezinha Muller<br />

Até os anos fi nais do século XIX, o estudo da História tinha um enfoque eminentemente político,<br />

sendo considerados “históricos” apenas os documentos concretos – escritos e imagéticos 4 . Os<br />

historiadores pertenciam às elites, às classes que governavam e que voltavam, evidentemente,<br />

seu interesse para o registro relativo às lutas pelo poder. Não mereciam atenção os problemas<br />

e a vida das pessoas comuns, dos trabalhadores, das mulheres, a não ser em tempos de crise ou<br />

quando algum evento especialmente inoportuno os envolvesse.<br />

Mesmo que alguém quisesse escrever sobre esses anônimos das classes populares, teria<br />

encontrado muita difi culdade, pois os documentos não eram preservados ou, caso fossem,<br />

tinham acesso restrito, perdidos ou guardados em gavetas e arquivos mal conservados, quase<br />

sempre sem catalogação. Os registros de nascimento, casamento, históricos escolares, jornais,<br />

atas de reuniões, diários de bordo, de viagens e conquistas, dentre outros, eram produzidos<br />

pelos indivíduos letrados e representavam exclusivamente as classes dominantes. Quanto mais<br />

um documento fosse pessoal, menor o interesse nele despertado, menor a possibilidade de que<br />

continuasse a existir. Por outro lado, os papéis tidos como “ofi ciais” permaneceram, fazendo<br />

com que, nas palavras de Thompson (1992), a estrutura de poder funcionasse “como um grande<br />

gravador, que modelava o passado à sua própria imagem”.<br />

Nesse universo, seria impensável o aproveitamento, como fonte de saber acadêmico, de<br />

dados colhidos através da oralidade, de entrevistas e de conversas com pessoas comuns sobre<br />

sua experiência de vida. As poucas biografi as até então existentes, na maioria sobre a vida<br />

dos reis ou dos santos, interessavam aos leitores apenas do ponto de vista literário e fi ccional,<br />

sem lhes ser atribuído valor histórico algum. Mas como separar ou ignorar a ligação, os elos<br />

indissolúveis entre memória e história?<br />

Para alguns estudiosos, a memória não pode ser assim desprezada, já que a oralidade antecede<br />

a escrita, sendo uma forma de preservação da história muito mais antiga que esta. Desde tempos<br />

imemoriais, e ainda em nossos dias, existem povos sem um sistema de linguagem escrita, porém<br />

com uma grande riqueza cultural, transmitida oralmente de geração a geração, através do<br />

tempo, constituindo o que há de mais autêntico dentro daquele determinado grupo social: sua<br />

4 Entendendo-se, aí, as fotografi as, fi lmes, iconografi a, cartografi a e outras formas de preservação física da memória e de fatos.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

memória e sua história. Mesmo na pré-história, acredita-se que pinturas rupestres tenham sido<br />

feitas a partir de relatos de caçadas e de situações vivenciadas por membros do grupo.<br />

Quando o homem das cavernas deixou nas paredes desta fi guras que se supõe formarem<br />

um sentido, estava transmitindo um conhecimento que possuía e que talvez já tivesse<br />

recebido um nome, estando já designado por palavra. O fruto de suas descobertas estava<br />

assim concretizado e passava aos demais, inclusive aos pósteros (QUEIROZ, 1998).<br />

Assim, nos parece que a História Oral pode contribuir para o desenvolvimento de projetos no<br />

Ensino Fundamental, sejam eles de que área forem, levando-se em consideração a estratégia de<br />

ouvir, recuperar, analisar e compilar dados que, por motivos vários, não existem em outro suporte.<br />

No desenvolvimento do Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN, essa metodologia<br />

foi aplicada às atividades do Diagnóstico Vivo para o “levantamento da situação socioambiental<br />

local segundo percepção da coletividade e o percurso histórico que contribuiu para confi gurar a<br />

situação atual” (PJCAN – Metodologia).<br />

Na Grécia Antiga, acreditava-se que a memória fosse pré-condição para o pensamento<br />

humano. No mundo mitológico grego, Mnemósine, a deusa da memória universal, teria gerado<br />

nove musas encarregadas de preservar os poderes criadores da mente: Clio (História), Euterpe<br />

(Música), Tália (Comédia), Melpômene (Tragédia), Terpsícore (Dança), Hérato (poesia lírica e<br />

erótica), Polimnia (Oratória), Urânia (Astronomia e Ciências Exatas) e Calíope (Poesia Heróica<br />

ou Épica). Para os gregos, Mnemósine era a única deusa que poderia contestar Cronos (o Tempo),<br />

ao preservar a matéria sobre a qual reina: a memória. Para o homem grego, só os mortais<br />

tinham necessidade de recorrer a Mnemósine, já que os deuses, por serem imortais, viviam num<br />

continuum que abrangia em si o passado, o presente e o futuro, realizados indefi nidamente num<br />

só tempo. Como forma de se apropriarem dessa circularidade imortal, os homens buscavam<br />

recuperar continuamente o passado para que este se perpetuasse no presente e se estendesse<br />

ao futuro, aproximando-os da imortalidade e afastando a idéia do fi m – da morte.<br />

Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo,<br />

localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega, ela era vidência e êxtase. O<br />

passado revelado desse modo não é o antecedente do presente: é a sua fonte (BOSI, 1995).<br />

Para estabelecer uma relação entre memória e história, voltamo-nos novamente para a<br />

Grécia, já que é aí que encontramos o primeiro esforço considerado consciente de se proceder<br />

à história como exercício reconstitutivo, por meio do registro de narrativas épicas.<br />

Muito antes do surgimento da escrita, o relato oral constituiu-se na maior fonte<br />

humana de conservação do saber, sendo que a educação, através dos séculos, baseouse<br />

principalmente na narrativa. Grandes obras hoje apresentadas em suporte escrito,<br />

como a Odisséia e a Ilíada (de Homero) e Eneida (Virgílio), foram transmitidas oralmente<br />

através das gerações até serem escritas muito tempo depois (QUEIROZ, 1998).<br />

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48<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Nos povos ágrafos, a memória é transmitida através de suas lendas, poemas, mitos e<br />

rituais, servindo para manter a própria estrutura grupal e preservar sua cultura, que depende<br />

exclusivamente do quanto conseguem transmitir às gerações vindouras para sobreviver como<br />

grupo social. Como não dispõem de registros “físicos” – escritos – para cristalizar os feitos<br />

transmitidos às futuras gerações, os indivíduos dessas sociedades não se preocupam em<br />

“conferir” ou “buscar provas” de veracidade dos fatos narrados. O que atesta a legitimidade<br />

e credibilidade das narrativas é a permanência do saber nela contido. Ao transmitir suas<br />

informações, o indivíduo seleciona ou omite dados, e essa seletividade ou omissão tem o seu<br />

signifi cado. A cada nova geração, a transmissão vai sendo enriquecida com a versão do então<br />

narrador, infl uenciado pelos fatos ocorridos no seu próprio tempo de vida, com sua visão subjetiva<br />

sobre os acontecimentos. A narrativa passa a ser uma composição social, representativa da<br />

coletividade que a mantém ao longo dos anos.<br />

Entre o ouvinte e o narrador nasce uma relação baseada no interesse comum em<br />

conservar o narrado que deve poder ser reproduzido. A memória é faculdade épica<br />

por excelência. Não se pode perder, nos desertos do tempo, uma só gota da água<br />

irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. A história<br />

deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fi os se cruzem,<br />

prolongando o original, puxados por outros dedos (BOSI, 1995).<br />

Em sociedades sem escrita, evidentemente o poder fi ca associado ao saber e à capacidade<br />

de lembrar. Normalmente os mais idosos são os guardiães dos saberes da comunidade, uma vez<br />

que, tendo vivido muito, podem apropriar-se dos conhecimento de várias gerações. Isso não<br />

signifi ca que a função cabe apenas a eles pois, sendo idosos, por outro lado, resta-lhes pouco<br />

tempo de vida para transmitir aos demais. Assim, toda a comunidade é responsável por ouvir,<br />

saber, lembrar para, depois, transmitir.<br />

O surgimento da escrita 5 constituiu-se num avanço tecnológico sem precedentes. A partir<br />

dela, houve a possibilidade de se concretizar o saber, guardá-lo e dele se valer, legando-o aos<br />

descendentes. A escrita possibilita a materialização do presente, para ser consultado no futuro,<br />

oferecendo às novas gerações os dados e informações relativos ao grupo do qual se faz parte.<br />

Esses dados, guardados de forma concreta pelos documentos escritos, vão atestar e comprovar<br />

a existência do passado. Porém, até o advento da imprensa, era restrita a alguns poucos eleitos:<br />

a elite, que passou a registrar a sua história, a sua vida e a sua verdade.<br />

Na Idade Média, a utilização da escrita restringia-se principalmente ao clero, havendo os “copistas”<br />

que transcreviam os textos sagrados para serem lidos apenas por outros clérigos, uma vez que o<br />

povo, na grande maioria, continuava ou iletrado ou sem acesso ao material escrito. Para gravar de<br />

maneira concreta os ensinamentos religiosos ao povo, a Igreja valia-se de elementos pictóricos, de<br />

modo a fi xar as narrativas bíblicas através de vitrais, afrescos, iluminuras, esculturas etc.<br />

5 Segundo a Enciclopédia da Folha, a escrita alfabética é atribuída aos fenícios e teria aparecido em 1700 a.C. Entre os sumérios,<br />

havia já em 3400 a.C. um sistema de escrita a partir de pictogramas.


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

A arte da memória, tal como foi praticada no mundo antigo, era uma arte pictórica,<br />

enfocando imagens de preferência a palavras. Ela tratava a visão como primária.<br />

Punha o visual em primeiro plano. Sinais externos eram necessários se as memórias<br />

deviam ser retidas e recuperadas. A primazia do visual foi ainda mais evidente na Idade<br />

Média, quando as imagens eram sistematicamente mobilizadas (SAMUEL, 1997).<br />

Nesse período, a oralidade ainda era extremamente útil na transmissão de conhecimentos.<br />

Trovadores e jograis percorriam os castelos e povoados medievais apresentando suas “cantigas”-<br />

poesias cantadas exaustivamente, com a fi nalidade de levar os ouvintes a decorarem as letras,<br />

divulgando-as. Há registros escritos das cantigas, mas muito posteriores à sua composição.<br />

No Renascimento, o advento da imprensa, criada por Gutemberg por volta de 1442, deu<br />

início à “memória do papel” 6 , em que os fatos, para serem considerados verdadeiros e críveis<br />

têm que constar, por escrito, em algum documento. Estes passaram a ser vistos como objetos<br />

de culto, sendo-lhes imputada a capacidade de preservar a verdade, agora acessível a grande<br />

número de pessoas. Com a escrita, a memória que passa a ter importância é aquela anotada.<br />

Antes de seu surgimento (imprensa), os registros escritos eram produzidos artesanal e<br />

artisticamente e, naturalmente, em pequeno número. Com a imprensa, a elaboração de<br />

manuscritos enquanto produção artística diminui sensivelmente, passando a restringirse<br />

a pequenos círculos de erudição. A multiplicação do número de documentos escritos<br />

faz com que seja humanamente impossível a sua apreensão constante e imediata. O<br />

homem, a partir desse momento, não consegue mais fazer de sua mente o repositório<br />

de seu passado, tanto individual quanto coletivo (BRITO, 1989).<br />

Diante da impossibilidade de assimilação de tamanho número de novas informações, a arte da<br />

memória declina inexoravelmente e tudo o que não for escrito vai cair no descrédito enquanto<br />

fonte de preservação da memória. Os iletrados começaram a ser discriminados e excluídos, como<br />

se suas lembranças não fossem reais nem historicamente importantes, por não constarem de<br />

documentos escritos. Os relatos orais foram então relegados à categoria de folclore ou lendas.<br />

Para Raphael Samuel, em seu Theatres of Memory (1997), a memória é muito mais que<br />

simples receptáculo de lembranças do passado armazenadas; é, ao contrário, uma força<br />

ativa, dinâmica, que se altera ao longo do tempo, infl uenciada pelos acontecimentos pelos<br />

quais se desloca.<br />

Ela porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido.<br />

Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória<br />

é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece<br />

permanecer igual (SAMUEL, 1997).<br />

6 Cf. Leibniz, fi lósofo e matemático alemão do século XVIII.<br />

49


50<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Marc Bloch e Lucien Febvre revolucionaram o conceito sobre os documentos históricos, no<br />

fi nal do século XIX, ao afi rmar que estes, tidos como “verdadeiros” e “reais” foram produzidos<br />

a partir da subjetividade e parcialidade de seu gerador 7 . O que eles defendiam é que esses<br />

documentos “relatam” a verdade, em especial, de um indivíduo, refl etindo seu lugar na<br />

sociedade à qual pertence e, por isso, devem ser lidos sob nova ótica, percebendo os objetivos<br />

do gerador, sua subjetividade, o implícito. A historiografi a passou, então, a valorizar não apenas<br />

documentos escritos, mas toda manifestação humana, incluindo, aí, a memória, que havia<br />

carregado por anos o rótulo de forma pouco segura e confi ável de preservação da história<br />

e dos conhecimentos adquiridos. Sob este novo olhar, à falta de documentos escritos sobre<br />

determinados assuntos, há como criá-los, buscando relatos da experiência pessoal, da vida de<br />

pessoas comuns, utilizando-se daquilo que se convencionou chamar de “história oral”.<br />

A partir da década de 60, surgiram muitas instituições e pesquisadores preocupados em<br />

resgatar a importância dos relatos orais, revalorizando a memória como forma legítima de se<br />

entender a história, dando voz e vez aos esquecidos (idosos, iletrados e moradores da periferia<br />

das grandes cidades, por exemplo). Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1998).<br />

História Oral é termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de<br />

fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer<br />

completar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiência<br />

de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade. Neste<br />

último caso, busca-se uma convergência de relatos sobre o mesmo acontecimento<br />

ou sobre um período de tempo. A história oral pode captar a experiência efetiva<br />

dos narradores, mas também recolhe destes tradições e mitos, narrativas de fi cção,<br />

crenças existentes no grupo, assim como relatos que contadores de história, poetas,<br />

cantadores inventam num momento dado. Na verdade tudo quanto se narra oralmente<br />

é história, seja história de alguém, seja história de um grupo, seja história real, seja<br />

ela mítica (QUEIROZ, 1998).<br />

Portanto, atividades com história oral, quando desenvolvidas em escolas, são extremamente<br />

interessantes e, se bem preparadas e com objetivos vem defi nidos, podem surpreender pelos<br />

resultados 8 .<br />

A técnica, relativamente simples, requer o levantamento dos critérios para escolha dos<br />

entrevistados. Normalmente orientam-se as crianças para optar por pessoas que possam contribuir<br />

com o trabalho que se pretende realizar, ou por terem participado de eventos considerados<br />

relevantes ao processo ou, mesmo, pela idade (acima de uma faixa etária estabelecida pelo<br />

grupo). Preferencialmente é interessante que disponham de um gravador, através do qual<br />

7 Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram, em 1929, a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, que deu origem ao que se<br />

convencionou chamar de Escola dos Annales.<br />

8 THOMPSON, Paul dedica todo seu livro A Voz do Passado: História Oral a analisar e sugerir atividades com História Oral para<br />

crianças de Ensino Fundamental


Parte 2 – Histórias de aprender: as ofi cinas de formação de professores<br />

possam gravar toda a conversa. As perguntas não precisam ser duramente seguidas, como num<br />

processo investigatório, devendo apenas servir como um roteiro para uma conversa tranqüila,<br />

descontraída e o mais informal possível, que possa levar às respostas. Ao fi nal da entrevista,<br />

pode-se perguntar se o depoente tem fotos ou documentos relativos ao assunto em questão,<br />

que enriquecerão e complementarão o depoimento e o resultado do trabalho. Toda entrevista<br />

deve ser transcrita, literalmente, para posterior análise e tratamento de dados.<br />

Importante frisar que toda atividade com história oral pressupõe uma devolutiva aos<br />

envolvidos, ou seja, os depoentes devem assinar um termo concordando que sua entrevista<br />

seja utilizada e, mais importante, devem ser convidados para ver o resultado fi nal em que<br />

sua participação foi aproveitada. Essa devolutiva pode ser feita através da participação dos<br />

envolvidos no resultado do trabalho que ajudaram a construir, e que pode se expressar através<br />

de uma exposição, de um livro, de uma peça de teatro, um sarau, uma apresentação de canto,<br />

um fi lme ou qualquer outra forma que a professora defi na previamente com os alunos.<br />

Do ponto de vista pedagógico, a história oral propicia o desenvolvimento de uma série de<br />

habilidades. Os envolvidos são levados, por exemplo, a desenvolver interesse por pesquisas.<br />

Na maioria das vezes, assim que defi nem o tema e começam a entrevistar os depoentes, as<br />

crianças sentem uma tendência natural a conhecer melhor o assunto pesquisado, buscando mais<br />

informações nas bibliotecas ou diferentes fontes. Outro aspecto incrementado em atividades<br />

de história oral são as habilidades lingüísticas, tanto em relação à fala quanto à escrita. Para<br />

conversar e, depois, transcrever, os entrevistadores interagem num processo de comunicação<br />

muito rico, uma vez que o vocabulário, as expressões, as gírias e o próprio registro lingüísticos<br />

são bastante diversos, pela própria diferença de idade e de vivência entre os interlocutores.<br />

Há também o desenvolvimento de habilidades técnicas no manejo dos instrumentos necessários<br />

à coleta de dados, como o gravador, atualmente substituído por pequeníssimos aparelhos de<br />

MP3, e o computador para a transcrição, todos eles desejáveis mas não imprescindíveis.<br />

Porém, o principal incremento nas habilidades adquiridas pelos envolvidos se dá no âmbito<br />

das relações humanas, sociais e no desenvolvimento da auto-estima: o entrevistador aprenderá<br />

a ter paciência ao ouvir, dando importância ao narrador, valorizando sua história de vida e<br />

respeitando o indivíduo idoso e seu conhecimento pessoal. Além disso, como o sucesso do<br />

trabalho dependerá da cooperação entre os colegas do grupo, a capacidade de trabalhar em<br />

equipe será também propiciada.<br />

Meire Terezinha Muller é doutoranda em História da Educação – FE Unicamp e diretora do<br />

Campus Paulínia da Universidade São Marcos. Foi secretária municipal de Educação de Paulínia<br />

no período 1997–2000.<br />

51


52<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Referências<br />

AVANZI, Maria Rita, GODOI, Elisandra G. e COSTA-PINTO, Alessandra B. Projeto Jovem Cidadão<br />

Amigo da Natureza: Proposta metodológica. <strong>Instituto</strong> BioMA, 2005.<br />

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São <strong>Paulo</strong>: Editora Companhia das<br />

Letras, 7ª edição, 1995.<br />

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Volume I, Petrópolis: Ed. Vozes, 1997<br />

BRIOSCHI, Lucila Reis e TRIGO, Maria Helena Bueno. Família, representações e cotidiano:<br />

refl exão sobre um trabalho de campo. São <strong>Paulo</strong>: CERU, 1989.<br />

BRITO, Marilza Elizardo. Memória e Cultura. Rio de Janeiro: Centro de Memória da Eletricidade<br />

no Brasil, 1989.<br />

FERNANDES, Florestan e GATTAS, Ramzia. A história de vida na investigação sociológica: a seleção<br />

dos sujeitos e suas implicações.<br />

KENSKI, Vani Moreira. Memória e prática docente. Coleção SEMINÁRIOS.<br />

LANG, Alice B.S. Gordo e CAMPOS, Maria C.S. Souza, DEMARTINI, Zeila de B. Fabri. História Oral<br />

e Pesquisa Sociológica: a experiência do Ceru. São <strong>Paulo</strong>: Humanitas Publicações.<br />

MENESES, Adélia Bezerra de. Memória, Matéria de Mimese – Caderno “Seminários”.<br />

PARK, Margareth Brandini. Memória, educação e cidadania: tecendo o cotidiano de creches<br />

e pré-escolas em Itupeva. Campinas: CMU/UNICAMP, 1996.<br />

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: do indizível ao dizível, in SIMSON, Olga R. de<br />

Moraes Von (Org). Experimentos com Histórias de vida: Itália-Brasil. São <strong>Paulo</strong>: Vértice, 1988.<br />

ROCHA, Ana Luiza Carvalho da Rocha e ECKERT, Cornélia. O desterro das lembranças: memória,<br />

narrativa e as histórias do mundo. XXIII Encontro Anual da ANPOCS.<br />

SAMUEL, Raphael. Teatros de Memória. Trad. RIBEIRO, Maria Therezinha Janini e MALUF, Vera<br />

Helena Prado. São <strong>Paulo</strong>: PUC-SÃO PAULO, 1997.<br />

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.


Histó


Histó<br />

Parte 3 – Histórias de ensinar:<br />

a Carta da Terra<br />

UM ETHOS PARA SALVAR A TERRA<br />

Leonardo Boff<br />

Entre os muitos ensaios sobre ética mundial, ressalta por sua abrangência, alcance e beleza<br />

aquele proposto pela Carta da Terra. Esta representa a cristalização bem sucedida da nova<br />

consciência ecológica e planetária, fundadora de um novo n paradigma civilizatório.<br />

A Carta da Terra, cujo surgimento e signifi cado relataremos logo a seguir, parte de uma visão ética<br />

integradora e holística. Considera as interdependências entre pobreza, degradação ambiental,<br />

injustiça social, confl itos étnicos, paz, democracia, ética e crise espiritual. Ela representa um<br />

grito de urgência face às ameaças que pesam sobre a biosfera e o projeto planetário humano e<br />

também um libelo em favor da esperança e de um futuro comum da Terra e da Humanidade.<br />

Seus formuladores dizem-no claramente:<br />

A Carta da Terra está concebida como uma declaração de princípios éticos fundamentais<br />

e como um roteiro prático de signifi cado duradouro, amplamente compartido por<br />

todos os povos. De forma similar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das<br />

Nações Unidas, a Carta da Terra será utilizada como um código universal de conduta<br />

para guiar os povos e as nações na direção de um futuro sustentável (La Carta de la<br />

Tierra. Valores y principios para un futuro sostenible, Secretaria Internacional del<br />

Proyecto Carta de la Tierra, San José, Costa Rica, 1999, 12).<br />

O processo de elaboração da Carta da Terra<br />

O texto da Carta da Terra madurou durante muitos anos a partir de uma ampla discussão em<br />

nível mundial.<br />

Um nicho de pensamento se encontra no seio da ONU. Criada em l945, se propunha como tarefa<br />

fundamental a segurança mundial sustentada por três pólos principais: os direitos humanos, a paz


56<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

e o desenvolvimento sócio-econômico. Não se fazia ainda nenhuma menção à questão ecológica.<br />

Esta irrompeu estrepitosamente em l972 com o Clube de Roma, o primeiro grande balanço sobre<br />

a situação da Terra, que denunciava a forma destrutiva dos meios de produção e propunha como<br />

terapia limites ao crescimento. Nesse mesmo ano a ONU organizou o primeiro grande encontro<br />

mundial sobre o meio-ambiente em Estocolmo, na Suécia. Aí surgiu a consciência de que o meioambiente<br />

deve constituir a preocupação central da humanidade e o contexto concreto de todos<br />

os problemas. Inarredavelmente o futuro da Terra e da humanidade depende das condições<br />

ambientais e ecológicas propícias à vida. Impõe-se desenvolver valores e propor princípios que<br />

garantam um equilíbrio ecológico, capaz de manter e fazer desenvolver a vida.<br />

Em 1982, na seqüência desta preocupação ecológica, publicou-se a Carta Mundial para a<br />

Natureza. Em 1987, a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Comissão<br />

Brundtland) propunha o motto que continua fazendo fortuna até os dias de hoje, o “desenvolvimento<br />

sustentável”. Sugeria, outrossim, uma Carta da Terra que regulasse as relações entre<br />

esses dois campos, o meio ambiente e o desenvolvimento.<br />

Em 1992 por ocasião da Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, foi proposta uma Carta da<br />

Terra que havia sido discutida em nível mundial por organizações não governamentais, por grupos<br />

comprometidos e científi cos, bem como por governos nacionais. Ela deveria funcionar como o<br />

cimento ético a conferir coerência e unidade a todos os projetos dessa importante reunião. Mas<br />

não houve consenso entre os governos, seja porque o próprio texto não estava sufi cientemente<br />

maduro, seja porque faltava o sufi ciente estado de consciência por parte dos participantes da<br />

Cúpula da Terra que permitisse acolher uma Carta da Terra. Em seu lugar adotou-se a Declaração<br />

do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Tal rejeição provocou grande frustração nos<br />

meios mais conscientes e comprometidos com o futuro ecológico da Terra e da Humanidade.<br />

Surgiu, então, o segundo e decisivo nicho de pensamento e criação: duas organizações<br />

internacionais não governamentais, a saber, a Cruz Verde Internacional e o Conselho da Terra,<br />

com o apoio do governo holandês. Estas duas entidades assumiram o desafi o de buscar formas<br />

para se chegar a uma Carta da Terra.<br />

Em 1995 co-patrocinaram um encontro em Haia, na Holanda, onde 60 representantes das<br />

mais diversas áreas, junto com outros interessados, criaram a Comissão da Carta da Terra, com<br />

o propósito de organizar uma consulta mundial durante dois anos, ao fi m dos quais dever-se-ia<br />

chegar a um esboço de Carta da Terra.<br />

Ao mesmo tempo, foram recopilados os princípios e os instrumentos existentes de direito<br />

internacional, identifi cáveis na vasta documentação ofi cial sobre questões ecológicas. O<br />

resultado foi a confecção de um informe com o título Princípios de Conservação Ambiental e<br />

Desenvolvimento Sustentado: Resumo e Reconhecimento.<br />

Em 1997, criou-se a Comissão da Carta da Terra, composta por 23 personalidades mundiais,<br />

oriundas de todos os continentes, para acompanhar o processo de consulta e redigir um primeiro


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

esboço do documento, sob a coordenação de Maurice Strong (do Canadá e coordenador geral da<br />

Cúpula da Terra, Rio-92) e Mikhail Gorbachev (da Rússia, presidente da Cruz Verde Internacional).<br />

Em março de 1997, durante o Fórum Rio+5, a Comissão apresentou um primeiro esboço da Carta<br />

da Terra. Os anos de 1998 e 1999 foram de ampla discussão em todos os continentes e em todos<br />

os níveis (desde escolas primárias, comunidades de base até centros de pesquisa e ministérios de<br />

Educação) sobre a Carta da Terra. Cerca de 46 países e mais de 100 mil pessoas foram envolvidas.<br />

Muitos projetos de Carta da Terra foram propostos. Até que, em abril de 1999, sob a orientação de<br />

Steven Rockfeller, budista e professor de fi losofi a da religião e de ética, escreveu-se um segundo<br />

esboço de Carta da Terra, reunindo as principais ressonâncias e convergências mundiais. De 12 a<br />

14 de março de 2000, na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –<br />

Unesco, em Paris, incorporaram-se as últimas contribuições e se ratifi cou a Carta da Terra.<br />

A partir de agora temos a ver com um texto ofi cial, aberto a discussões e a novas incorporações<br />

até que seja proposto ao endosso da ONU, após ampla discussão. Aprovou-se uma campanha<br />

mundial de apoio à Carta da Terra com o propósito de conquistar mais e mais pessoas, instituições<br />

e governos a essa nova visão ética e ecológica, capaz de fundar um princípio civilizatório<br />

benfazejo para o futuro da Terra e da humanidade. Depois de apresentada e discutida pela<br />

Assembléia da ONU – esse é o propósito -, terá o mesmo valor que a Carta dos Direitos Humanos,<br />

inicialmente, com lei branda, depois como lei de referência mundial, em nome da qual os<br />

violadores da dignidade da Terra poderão ser levados à barra dos tribunais.<br />

Princípios e valores éticos da Carta da Terra<br />

O mérito principal da Carta é colocar como eixo articulador a categoria da inter-retro-relação de<br />

tudo com tudo. Isso lhe permite sustentar o destino comum da Terra e da humanidade e reafi rmar a<br />

convicção de que formamos uma grande comunidade terrenal e cósmica. As perspectivas desenvolvidas<br />

pelas ciências da Terra, pela nova cosmologia, pela física quântica, pela biologia contemporânea e os<br />

pontos mais seguros do paradigma holístico da ecologia subjazem ao texto da Carta.<br />

Ela se divide em quatro partes: um preâmbulo, princípios fundamentais, princípios de apoio<br />

e uma conclusão.<br />

O preâmbulo afi rma enfaticamente que a Terra está viva e, com a humanidade, forma parte<br />

de um vasto Universo em evolução. Nessa afi rmação cuidadosamente formulada ressoa não só a<br />

teoria da Gaia proposta por James Lovelock e outros, mas também a crença ancestral dos povos<br />

segundo a qual a Terra é a Grande Mãe, geradora de toda a vida. Hoje esse superorganismo<br />

vivo está ameaçado em seu equilíbrio dinâmico devido às formas exploradoras e predatórias do<br />

modo de produção dos bens, modo esse mundialmente integrado.<br />

Face a esta situação global, temos o dever sagrado de assegurar a vitalidade, a diversidade, a<br />

integridade e a beleza de nossa Casa Comum. Para isso, precisamos refazer uma nova aliança com<br />

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58<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

a Terra e refundar um novo pacto social de responsabilidade entre todos os humanos, radicado<br />

numa dimensão espiritual de reverência face ao mistério da existência, de gratidão pelo presente<br />

da vida, e de humildade diante do lugar que o ser humano ocupa no conjunto dos seres.<br />

Melhor do que resumir os conteúdos éticos, faríamos bem transcrever os 16 princípios<br />

fundantes do novo ethos mundial:<br />

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA<br />

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.<br />

a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor,<br />

independentemente de sua utilidade para os seres humanos.<br />

b. Afi rmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial<br />

intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.<br />

2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.<br />

a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever<br />

de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os direitos das pessoas.<br />

b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica<br />

responsabilidade na promoção do bem comum.<br />

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e<br />

pacífi cas.<br />

a. Assegurar que as comunidades em todos níveis garantam os direitos humanos e as<br />

liberdades fundamentais e proporcionem a cada um a oportunidade de realizar seu<br />

pleno potencial.<br />

b. Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de uma<br />

subsistência signifi cativa e segura, que seja ecologicamente responsável.<br />

4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.<br />

a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas<br />

necessidades das gerações futuras.<br />

b. Transmitir às futuras gerações valores, tradições e instituições que apóiem, em<br />

longo prazo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológicas da Terra.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

Para poder cumprir estes quatro amplos compromissos, é necessário:<br />

II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA<br />

5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial<br />

preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam<br />

a vida.<br />

a. Adotar planos e regulamentações de desenvolvimento sustentável em todos os níveis<br />

que façam com que a conservação ambiental e a reabilitação sejam parte integral<br />

de todas as iniciativas de desenvolvimento.<br />

b. Estabelecer e proteger as reservas com uma natureza viável e da biosfera, incluindo<br />

terras selvagens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de sustento à vida da<br />

Terra, manter a biodiversidade e preservar nossa herança natural.<br />

c. Promover a recuperação de espécies e ecossistemas ameaçadas.<br />

d. Controlar e erradicar organismos não-nativos ou modifi cados geneticamente que<br />

causem dano às espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a introdução desses<br />

organismos daninhos.<br />

e. Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos fl orestais e vida<br />

marinha de forma que não excedam as taxas de regeneração e que protejam a<br />

sanidade dos ecossistemas.<br />

f. Manejar a extração e o uso de recursos não-renováveis, como minerais e combustíveis<br />

fósseis, de forma que diminuam a exaustão e não causem dano ambiental grave.<br />

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e,<br />

quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.<br />

a. Orientar ações para evitar a possibilidade de sérios ou irreversíveis danos ambientais<br />

mesmo quando a informação científi ca for incompleta ou não conclusiva.<br />

b. Impor o ônus da prova àqueles que afi rmarem que a atividade proposta não causará<br />

dano signifi cativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados pelo dano<br />

ambiental.<br />

c. Garantir que a decisão a ser tomada se oriente pelas conseqüências humanas globais,<br />

cumulativas, de longo prazo, indiretas e de longo alcance.<br />

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60<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

d. Impedir a poluição de qualquer parte do meio ambiente e não permitir o aumento<br />

de substâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias perigosas.<br />

e. Evitar que atividades militares causem dano ao meio ambiente.<br />

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades<br />

regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário.<br />

a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e consumo<br />

e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos.<br />

b. Atuar com restrição e efi ciência no uso de energia e recorrer cada vez mais aos<br />

recursos energéticos renováveis, como a energia solar e do vento.<br />

c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência eqüitativa de tecnologias<br />

ambientais saudáveis.<br />

d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de<br />

venda e habilitar os consumidores a identifi car produtos que satisfaçam as mais<br />

altas normas sociais e ambientais.<br />

e. Garantir acesso universal à assistência de saúde que fomente a saúde reprodutiva<br />

e a reprodução responsável.<br />

f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e subsistência material<br />

num mundo fi nito.<br />

8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a ampla<br />

aplicação do conhecimento adquirido.<br />

a. Apoiar a cooperação científi ca e técnica internacional relacionada à sustentabilidade,<br />

com especial atenção às necessidades das nações em desenvolvimento.<br />

b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual<br />

em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar<br />

humano.<br />

c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a<br />

proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao<br />

domínio público.


III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA<br />

Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.<br />

a. Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à segurança alimentar, aos solos nãocontaminados,<br />

ao abrigo e saneamento seguros, distribuindo os recursos nacionais<br />

e internacionais requeridos.<br />

b. Prover cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma subsistência<br />

sustentável, e proporcionar seguro social e segurança coletiva a todos aqueles que<br />

não são capazes de manter-se por conta própria.<br />

c. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem e<br />

permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações.<br />

10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam<br />

o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.<br />

a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações.<br />

b. Incrementar os recursos intelectuais, fi nanceiros, técnicos e sociais das nações em<br />

desenvolvimento e isentá-las de dívidas internacionais onerosas.<br />

c. Garantir que todas as transações comerciais apóiem o uso de recursos sustentáveis,<br />

a proteção ambiental e normas trabalhistas progressistas.<br />

d. Exigir que corporações multinacionais e organizações fi nanceiras internacionais<br />

atuem com transparência em benefício do bem comum e responsabilizá-las pelas<br />

conseqüências de suas atividades.<br />

11. Afi rmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento<br />

sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde<br />

e às oportunidades econômicas.<br />

a. Assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com toda<br />

violência contra elas.<br />

b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida econômica,<br />

política, civil, social e cultural como parceiras plenas e paritárias, tomadoras de<br />

decisão, líderes e benefi ciárias.<br />

c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a educação amorosa de todos os<br />

membros da família.<br />

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62<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente<br />

natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e<br />

o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos<br />

indígenas e minorias.<br />

a. Eliminar a discriminação em todas suas formas, como as baseadas em raça, cor,<br />

gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.<br />

b. Afi rmar o direito dos povos indígenas à sua espiritualidade, conhecimentos, terras e<br />

recursos, assim como às suas práticas relacionadas a formas sustentáveis de vida.<br />

c. Honrar e apoiar os jovens das nossas comunidades, habilitando-os a cumprir seu<br />

papel essencial na criação de sociedades sustentáveis.<br />

d. Proteger e restaurar lugares notáveis pelo signifi cado cultural e espiritual.<br />

IV. DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ<br />

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes<br />

transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na<br />

tomada de decisões e acesso à justiça.<br />

a. Defender o direito de todas as pessoas no sentido de receber informação clara<br />

e oportuna sobre assuntos ambientais e todos os planos de desenvolvimento e<br />

atividades que poderiam afetá-las ou nos quais tenham interesse.<br />

b. Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação<br />

signifi cativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.<br />

c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de assembléia pacífi ca,<br />

de associação e de oposição.<br />

d. Instituir o acesso efetivo e efi ciente a procedimentos administrativos e judiciais<br />

independentes, incluindo retifi cação e compensação por danos ambientais e pela<br />

ameaça de tais danos.<br />

e. Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas.<br />

f. Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as a cuidar dos seus próprios<br />

ambientes, e atribuir responsabilidades ambientais aos níveis governamentais onde<br />

possam ser cumpridas mais efetivamente.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos,<br />

valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.<br />

a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e jovens, oportunidades educativas que<br />

lhes permitam contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável.<br />

b. Promover a contribuição das artes e humanidades, assim como das ciências, na<br />

educação para sustentabilidade.<br />

c. Intensifi car o papel dos meios de comunicação de massa no sentido de aumentar a<br />

sensibilização para os desafi os ecológicos e sociais.<br />

d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência sustentável.<br />

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.<br />

a. Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de<br />

sofrimentos.<br />

b. Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem<br />

sofrimento extremo, prolongado ou evitável.<br />

c. Evitar ou eliminar ao máximo possível a captura ou destruição de espécies não visadas.<br />

16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.<br />

a. Estimular e apoiar o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre<br />

todas as pessoas, dentro das e entre as nações.<br />

b. Implementar estratégias amplas para prevenir confl itos violentos e usar a colaboração na<br />

resolução de problemas para manejar e resolver confl itos ambientais e outras disputas.<br />

c. Desmilitarizar os sistemas de segurança nacional até chegar ao nível de uma<br />

postura não-provocativa da defesa e converter os recursos militares em propósitos<br />

pacífi cos, incluindo restauração ecológica.<br />

d. Eliminar armas nucleares, biológicas e tóxicas e outras armas de destruição em massa.<br />

e. Assegurar que o uso do espaço orbital e cósmico mantenha a proteção ambiental e a paz.<br />

f. Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo,<br />

com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade<br />

maior da qual somos parte.<br />

63


64<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A Carta expressa, como efeito fi nal, a confi ança na capacidade regenerativa da Terra e<br />

na responsabilidade compartida dos seres humanos de aprenderem a amar e a cuidar do Lar<br />

Comum. Só assim garantiremos um futuro comum e alcançaremos a paz tão ansiada, entendida<br />

como “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras<br />

culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte”. Concluindo,<br />

podemos dizer: tudo o que precisamos para o atual estado da Terra, encontramos nesta proposta<br />

de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se produziu até<br />

agora. Se esta Carta da Terra for universalmente assumida, mudará o estado de consciência<br />

da humanidade. A Terra ganhará, fi nalmente, centralidade junto com todos os fi lhos e fi lhas da<br />

Terra que se responsabilizam pelo futuro comum.<br />

Nela não haverá mais lugar para o empobrecido, o excluído e o agressor da própria Grande<br />

Mãe. Mais e mais os seres humanos se entenderão como a própria Terra, que em seu lento e<br />

progressivo evoluir alcançou o estágio do sentimento, do pensamento, do amor, do cuidado, da<br />

compaixão e da veneração.<br />

Três pontos relevantes na Carta da Terra<br />

A Carta da Terra contém uma riqueza de conteúdo inestimável, cobrindo, praticamente,<br />

todas as áreas de interesse para uma vida harmônica na nave-espacial Terra. Três pontos,<br />

entretanto, cabe ressaltar.<br />

O primeiro deles é a aura benfazeja que cerca todo o documento. Há a consciência da<br />

gravidade do estado da Terra e da Humanidade. Mas nem por isso prevalece o abatimento e a<br />

resignação. Antes, há lugar para a esperança, há confi ança na responsabilidade humana e há a<br />

certeza de um novo concerto cinegético e amoroso entre Terra e Humanidade. Deixa-se para<br />

trás a visão meramente positivista e mecanicista da natureza. Em seu lugar entra a concepção<br />

contemporânea que resgata a perspectiva ancestral que capta o caráter de mistério do Universo<br />

e da vida. Os valores da solidariedade, da inclusão e da reverência pervadem todo o texto.<br />

O segundo ponto é a superação do conceito fechado de desenvolvimento sustentável. Esta<br />

categoria é ofi cial em todos os documentos internacionais. Foi a fórmula pela qual o sistema mundial<br />

imperante conseguiu incorporar as exigências do discurso ecológico. Mas ele é profundamente<br />

contraditório em seus próprios termos. Pois o termo desenvolvimento vem do campo da economia;<br />

não de qualquer economia, mas do tipo imperante, que visa a acumulação de bens e serviços de<br />

forma crescente e linear mesmo à custa de iniqüidade social e depredação ecológica. Esse modelo<br />

é gerador de desigualdades e desequilíbrios, inegáveis em todos os campos onde ele é dominante.<br />

A sustentabilidade provém do campo da ecologia e da biologia. Ela afi rma a inclusão de<br />

todos no processo de inter-retro-relação que caracteriza todos os seres em ecossistemas.<br />

A sustentabilidade afi rma o equilíbrio dinâmico que permite todos participarem e se verem<br />

incluídos no processo global.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

Entendidos assim os termos, vê-se que a expressão “desenvolvimento sustentável” se torna,<br />

na prática, inexeqüível. Os termos se contrapõem e não revelam uma forma nova e alternativa<br />

de relação entre produção de bens necessários à vida e à comodidade humana e natureza com<br />

seus recursos limitados.<br />

A Carta da Terra, em suas redações iniciais, havia incorporado o termo “desenvolvimento<br />

sustentável” como seu eixo estruturador. Graças às acaloradas e minuciosas discussões internas,<br />

superou-se esta terminologia. Manteve-se a categoria sustentabilidade, como fundamental para<br />

o sistema-vida e o sistema-Terra. Mais que buscar um desenvolvimento sustentável, importa<br />

construir uma vida sustentável, uma sociedade sustentável e uma Terra sustentável. Garantida<br />

essa sustentabilidade básica, pode-se falar com propriedade de desenvolvimento sustentável.<br />

É dentro desta compreensão que na Carta da Terra se usa, às vezes, o termo, mas libertado de<br />

sua compreensão ofi cial.<br />

O terceiro ponto reside na ética do cuidado. Já em 1991 a União Internacional para a Conservação<br />

da Natureza (UICN), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Fundo<br />

Mundial para a Natureza (WWF) publicaram conjuntamente um dos textos mais articulados e<br />

práticos que levava como título programático “Cuidando do Planeta Terra. Uma estratégia para<br />

o Futuro da Vida (Caring for the Earth. A Strategy for Sustainable Living). O cuidado era a<br />

categoria que unia todas as práticas de preservação, regeneração e trato para com a natureza.<br />

O cuidado era apresentando como o valor principal de uma ética ecológico-social-espiritual.<br />

Com isso se resgatava o cuidado em seu sentido antropológico e ético como uma relação<br />

amorosa para com a realidade, para além dos interesses de uso. O cuidado está ligado aos<br />

processos da vida, seja em sua manutenção e reprodução, seja em sua construção social. Pelo<br />

cuidado o ser humano pessoal e coletivo supera as desconfi anças, os medos e estabelece os<br />

fundamentos para uma paz duradoura.<br />

Estas visões perpassam o texto da Carta da Terra e fazem dela uma das expressões éticas e<br />

espirituais mais acabadas dos últimos tempos.<br />

Belamente conclui a Carta: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova<br />

reverência face à vida, por um compromisso fi rme de alcançar a sustentabilidade, pela rápida<br />

luta pela justiça e pela paz, e pela alegre celebração da vida”.<br />

Leonardo Boff é teólogo, representante brasileiro no Conselho da Terra, escreveu mais de<br />

60 livros nas áreas de Teologia, Filosofi a, Espiritualidade, Antropologia e Mística e recebeu,<br />

em 2001, o Prêmio Nobel da Paz Alternativo em Estocolmo. Este texto está disponível em<br />

http://www.leonardoboff.com<br />

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66<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A ECOPEDAGOGIA COMO PEDAGOGIA APROPRIADA AO PROCESSO DA CARTA DA TERRA<br />

Moacir Gadotti<br />

Três décadas de debates sobre “nosso futuro comum” deixaram algumas pegadas ecológicas,<br />

tanto no campo da economia, quanto no campo da ética, da política e da educação que podem<br />

nos indicar um caminho diante dos desafi os do século XXI. A sustentabilidade tornou-se um tema<br />

gerador preponderante neste início de milênio para pensar não só o planeta, um tema portador<br />

de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz<br />

de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade, para todos.<br />

O cenário não é otimista: podemos destruir toda a vida no planeta neste milênio que se inicia.<br />

Uma ação conjunta global é necessária, um movimento como grande obra civilizatória de todos<br />

é indispensável para realizarmos essa outra globalização, essa planetarização, fundamentada<br />

em outros princípios éticos que não os baseados na exploração econômica, na dominação política<br />

e na exclusão social. O modo pelo qual vamos produzir nossa existência neste pequeno planeta<br />

decidirá sobre a sua vida ou a sua morte e a de todos os seus fi lhos e fi lhas. A Terra deixou de<br />

ser um fenômeno puramente geográfi co para se tornar um fenômeno histórico.<br />

Os paradigmas clássicos, fundados numa visão industrialista predatória, antropocêntrica e<br />

desenvolvimentista, estão se esgotando, não dando conta de explicar o momento presente e de<br />

responder às necessidades futuras. Necessitamos de um outro paradigma, fundado numa visão<br />

sustentável do planeta Terra. O globalismo é essencialmente insustentável. Ele atende primeiro<br />

às necessidades do capital e depois às necessidades humanas. E muitas das necessidades<br />

humanas a que ele atende tornaram-se”humanas” apenas porque foram produzidas como tais<br />

para servirem ao capital.<br />

1- Pedagogia da Terra e educação sustentável<br />

A sensação de pertencimento à Terra não se inicia na idade adulta e nem por um ato de razão.<br />

Desde a infância, sentimo-nos ligados com algo que é muito maior do que nós. Desde criança<br />

nos sentimos profundamente ligados ao Universo e nos colocamos diante dele num misto de<br />

espanto e de respeito. E, durante toda vida, buscamos respostas ao que somos, de onde viemos,<br />

para onde vamos, enfi m, qual o sentido da nossa existência. É uma busca incessante e que<br />

jamais termina. A educação pode ter um papel nesse processo se colocar questões fi losófi cas<br />

fundamentais, mas também se souber trabalhar ao lado do conhecimento essa nossa capacidade<br />

de nos encantar com o Universo.<br />

Hoje, tomamos consciência de que o sentido das nossas vidas não está separado do sentido<br />

do próprio planeta. Diante da degradação das nossas vidas no planeta, chegamos a uma


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

verdadeira encruzilhada entre um caminho Tecnozóico, que coloca toda a fé na capacidade<br />

da tecnologia de nos tirar da crise sem mudar nosso estilo poluidor e consumista de vida, e<br />

um caminho Ecozóico, fundado numa nova relação saudável com o planeta, reconhecendo que<br />

somos parte do mundo natural, vivendo em harmonia com o Universo, caracterizado pelas<br />

atuais preocupações ecológicas. Temos que fazer escolhas. Elas defi nirão o futuro que teremos.<br />

Não me parece realmente que sejam caminhos totalmente opostos. Tecnologia e humanismo<br />

não se contrapõem. Mas, é claro, houve excessos no nosso estilo poluidor e consumista de vida e<br />

que não é fruto da técnica, mas do modelo econômico. Este é que tem que ser posto em causa.<br />

E esse é um dos papéis da educação sustentável ou ecológica.<br />

O desenvolvimento sustentável, visto de forma crítica, tem um componente educativo<br />

formidável: a preservação do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a<br />

formação da consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a Pedagogia da Terra,<br />

a ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do “sentido das<br />

coisas a partir da vida cotidiana”, como dizem Francisco Gutiérrez e Cruz Prado em seu livro<br />

Ecopedagogia e cidadania planetária (São <strong>Paulo</strong>, IPF/Cortez, 1998). Encontramos o sentido ao<br />

caminhar, vivenciando o contexto e o processo de abrir novos caminhos; não apenas observando<br />

o caminho. É, por isso, uma pedagogia democrática e solidária. A pesquisa de Francisco<br />

Gutiérrez e Cruz Prado sobre a ecopedagogia se originou na preocupação com o sentido da<br />

vida cotidiana. A formação está ligada ao espaço/tempo no qual se realizam concretamente as<br />

relações entre o ser humano e o meio ambiente. Elas se dão sobretudo no nível da sensibilidade,<br />

muito mais do que no nível da consciência. Elas se dão, portanto, muito mais no nível da subconsciência:<br />

não as percebemos e, muitas vezes, não sabemos como elas acontecem. É preciso<br />

uma ecoformação para torná-las conscientes. E a ecoformação necessita de uma ecopedagogia.<br />

Como destaca Gaston Pineau em seu livro De l’air: essai sur l‘écoformation (Paris, Païdeia,<br />

1992), uma série de referenciais se associam para isso: a inspiração bachelardiana, os estudos do<br />

imaginário, a abordagem da transversalidade, da transdisciplinaridade e da interculturalidade,<br />

o construtivismo e a pedagogia da alternância.<br />

Precisamos de uma ecopedagogia e uma ecoformação hoje, precisamos de uma Pedagogia<br />

da Terra, justamente porque sem essa pedagogia para a re-educação do homem/mulher,<br />

principalmente do homem ocidental, prisioneiro de uma cultura cristã predatória, não<br />

poderemos mais falar da Terra como um lar, como uma toca, para o “bicho-homem”, como fala<br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>. Sem uma educação sustentável, a Terra continuará apenas sendo considerada<br />

como espaço de nosso sustento e de domínio técnico-tecnológico, objeto de nossas pesquisas,<br />

ensaios e, algumas vezes, de nossa contemplação. Mas não será o espaço de vida, o espaço do<br />

aconchego, de “cuidado” (BOFF, Leonardo, Saber cuidar, Petrópolis, Vozes, 1999).<br />

Não aprendemos a amar a Terra lendo livros sobre isso, nem livros de ecologia integral. A<br />

experiência própria é o que conta. Plantar e seguir o crescimento de uma árvore ou de uma<br />

plantinha, caminhando pelas ruas da cidade ou aventurando-se numa fl oresta, sentindo o cantar<br />

dos pássaros nas manhãs ensolaradas ou não, observando como o vento move as plantas, sentindo<br />

a areia quente de nossas praias, olhando para as estrelas numa noite escura. Há muitas formas<br />

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68<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

de encantamento e de emoção frente às maravilhas que a natureza nos reserva. É claro, existe<br />

a poluição, a degradação ambiental para nos lembrar de que podemos destruir essa maravilha e<br />

para formar nossa consciência ecológica e nos mover à ação. Acariciar uma planta, contemplar<br />

com ternura um pôr de sol, cheirar o perfume de uma folha de pitanga, de goiaba, de laranjeira<br />

ou de um cipreste, de um eucalipto... são múltiplas formas de viver em relação permanente<br />

com esse planeta generoso e compartilhar a vida com todos os que o habitam ou o compõem. A<br />

vida tem sentido, mas ele só existe em relação. Como diz o poeta brasileiro Carlos Drummond de<br />

Andrade: “Sou um homem dissolvido na natureza. Estou fl orescendo em todos os ipês”.<br />

Isso Drummond só poderia dizer aqui na Terra. Se estivesse em outro planeta do sistema<br />

solar ele não diria o mesmo. Só a Terra é amigável com o ser humano. Os outros planetas são<br />

francamente hostis a ele, embora tenham sido originados na mesma poeira cósmica. Existirão<br />

outros planetas fora do sistema solar que abriguem a vida, talvez a vida inteligente? Se levarmos<br />

em conta que a matéria da qual se originou o Universo é a mesma, é muito provável. Mas, por<br />

ora, só temos um que é francamente nosso amigo. Temos que aprender a amá-lo.<br />

Como se traduz na educação o princípio da sustentabilidade? Ele se traduz por perguntas<br />

como: até que ponto há sentido no que fazemos? Até que ponto nossas ações contribuem<br />

para a qualidade de vida dos povos e para a sua felicidade? A sustentabilidade é um princípio<br />

reorientador da educação e principalmente dos currículos, objetivos e métodos.<br />

É no contexto da evolução da própria ecologia que surge e ainda engatinha o que chamamos<br />

de “ecopedagogia”, inicialmente chamada de “pedagogia do desenvolvimento sustentável”<br />

e que hoje ultrapassou esse sentido. A ecopedagogia está se desenvolvendo seja como um<br />

movimento pedagógico, seja como abordagem curricular.<br />

Como a ecologia, a ecopedagogia também pode ser entendida como um movimento social e<br />

político. Como todo movimento novo, em processo, em evolução, ele é complexo e pode tomar<br />

diferentes direções, até contraditórias. Ele pode ser entendido diferentemente como o são as<br />

expressões “desenvolvimento sustentável” e “meio ambiente”. Existe uma visão capitalista<br />

do desenvolvimento sustentável e do meio ambiente que, por ser anti-ecológica, deve ser<br />

considerada como uma “armadilha”, como vem sustentando Leonardo Boff.<br />

A ecopedagogia também implica uma reorientação dos currículos para que incorporem certos<br />

princípios defendidos por ela. Estes princípios deveriam, por exemplo, orientar a concepção dos<br />

conteúdos e a elaboração dos livros didáticos. Jean Piaget nos ensinou que os currículos devem<br />

contemplar o que é signifi cativo para o aluno. Sabemos que isso é correto, mas incompleto. Os<br />

conteúdos curriculares têm que ser signifi cativos para o aluno, e só serão signifi cativos para ele se<br />

esses conteúdos forem signifi cativos também para a saúde do planeta, para o contexto mais amplo.<br />

Colocada neste sentido, a ecopedagogia não é uma pedagogia a mais, ao lado de outras<br />

pedagogias. Ela só tem sentido como projeto alternativo global, no qual a preocupação não<br />

está apenas na preservação da natureza (Ecologia Natural) ou no impacto das sociedades


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

humanas sobre os ambientes naturais (Ecologia Social), mas num novo modelo de civilização<br />

sustentável do ponto de vista ecológico (Ecologia Integral), que implica uma mudança nas<br />

estruturas econômicas, sociais e culturais. Ela está ligada, portanto, a um projeto utópico:<br />

mudar as relações humanas, sociais e ambientais que temos hoje. Aqui está o sentido profundo<br />

da ecopedagogia, ou de uma Pedagogia da Terra, como a chamamos.<br />

A ecopedagogia não se opõe à educação ambiental. Ao contrário, para a ecopedagogia<br />

a educação ambiental é um pressuposto. A ecopedagogia incorpora-a e oferece estratégias,<br />

propostas e meios para a sua realização concreta. Foi justamente durante a realização do Fórum<br />

Global 92, no qual se discutiu muito a educação ambiental, que se percebeu a importância<br />

de uma pedagogia do desenvolvimento sustentável ou de uma ecopedagogia. Hoje, porém,<br />

a ecopedagogia tornou-se um movimento e uma perspectiva da educação maior do que uma<br />

pedagogia do desenvolvimento sustentável. Ela está mais para a educação sustentável, para<br />

uma ecoeducação, que é mais ampla do que a educação ambiental. A educação sustentável não<br />

se preocupa apenas com uma relação saudável com o meio ambiente, mas com o sentido mais<br />

profundo do que fazemos com a nossa existência, a partir da vida cotidiana.<br />

2 – Consciência planetária, cidadania planetária, civilização planetária<br />

A globalização, impulsionada sobretudo pela tecnologia, parece determinar cada vez mais<br />

nossas vidas. As decisões sobre o que nos acontece no dia-a-dia parecem nos escapar, por serem<br />

tomadas muito distante de nós, comprometendo nosso papel do sujeitos da história. Mas não é<br />

bem assim. Como fenômeno e como processo, a globalização tornou-se irreversível, mas não esse<br />

tipo de globalização – o globalismo – ao qual estamos submetidos hoje: a globalização capitalista.<br />

Seus efeitos mais imediatos são o desemprego, o aprofundamento das diferenças entre os poucos<br />

que têm muito e os muitos que têm pouco, a perda de poder e autonomia de muita Estados e<br />

Nações. Há pois que distinguir os países que hoje comandam a globalização – os globalizadores<br />

(países ricos) – dos países que sofrem a globalização, os países globalizados (pobres).<br />

Dentro deste complexo fenômeno podemos distinguir também a globalização econômica,<br />

realizada pelas transnacionais, da globalização da cidadania. Ambas se utilizam da mesma base<br />

tecnológica, mas com lógicas opostas. A primeira, submetendo Estados e Nações, é comandada<br />

pelo interesse capitalista; a segunda globalização é a realizada através da organização da<br />

Sociedade Civil. A Sociedade Civil globalizada é a resposta que a Sociedade Civil como um<br />

todo e as ONGs estão dando hoje à globalização capitalista. Neste sentido, o Fórum Global 92<br />

se constituiu num evento dos mais signifi cativos do fi nal de século XX: deu grande impulso à<br />

globalização da cidadania. Hoje, o debate em torno da Carta da Terra está se constituindo num<br />

fator importante de construção desta cidadania planetária. Qualquer pedagogia, pensada fora<br />

da globalização e do movimento ecológico, tem hoje sérios problemas de contextualização.<br />

“Estrangeiro eu não vou ser. Cidadão do mundo eu sou”, diz uma das letras de música<br />

cantada pelo cantor brasileiro Milton Nascimento. Se as crianças de nossas escolas entendessem<br />

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70<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

em profundidade o signifi cado das palavras desta canção, estariam iniciando uma verdadeira<br />

revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território se<br />

pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos, na Terra. Se sou<br />

cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográfi cas,<br />

raciais e outras enfraquecem diante do meu sentimento de pertencimento à Humanidade.<br />

A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unifi cadora do planeta e<br />

de uma sociedade mundial. Ela se manifesta em diferentes expressões: “nossa humanidade<br />

comum”, “unidade na diversidade”, “nosso futuro comum”, “nossa pátria comum”, “cidadania<br />

planetária”. Cidadania Planetária é uma expressão adotada para indicar um conjunto de<br />

princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da Terra<br />

como uma única comunidade. Freqüentemente associada ao “desenvolvimento sustentável”,<br />

ela é muito mais ampla do que essa relação com a economia. Trata-se de um ponto de referência<br />

ético indissociável da civilização planetária e da ecologia. A Terra é “Gaia”, um super-organismo<br />

vivo e em evolução, o que for feito a ela repercutirá em todos os seus fi lhos.<br />

Cultura da sustentabilidade supõe uma pedagogia da sustentabilidade que dê conta da<br />

grande tarefa de formar para a cidadania planetária. Esse é um processo já em marcha. A<br />

educação para a cidadania planetária está começando através de numerosas experiências<br />

que, embora muitas sejam locais, nos apontam para uma educação para nos sentir membros<br />

para além da Terra, para viver uma cidadania cósmica. Os desafi os são enormes tanto para<br />

os educadores quanto para os responsáveis pelos sistemas educacionais. Mas já existem<br />

certos sinais, na própria sociedade, que apontam para uma crescente busca não só por<br />

temas espiritualistas e de auto-ajuda, mas por um conhecimento científi co mais profundo<br />

do Universo.<br />

Educar para a cidadania planetária implica muito mais do que uma fi losofi a educacional, do<br />

que o enunciado de seus princípios. A educação para a cidadania planetária implica uma revisão<br />

dos nossos currículos, uma reorientação de nossa visão de mundo da educação como espaço de<br />

inserção do indivíduo, não numa comunidade local, mas numa comunidade que é local e global<br />

ao mesmo tempo. Educar, então, não seria, como dizia Émile Durheim, a transmissão da cultura<br />

“de uma geração para outra”, mas a grande viagem de cada indivíduo no seu universo interior<br />

e no Universo que o cerca.<br />

O tipo de globalização de hoje está muito mais ligado ao fenômeno da mundialização do<br />

mercado, que é um tipo de mundialização. E mesmo esta mundialização, fundada no mercado,<br />

pode ser vista como uma globalização cooperativa ou como uma globalização competitiva sem<br />

solidariedade. Entre o estatismo absolutista e a mão invisível do mercado pode existir (e existe)<br />

uma nova economia de mercado (há mercados e mercados!) onde predomina a cooperação<br />

e a solidariedade e não a competitividade selvagem; uma economia solidária, a verdadeira<br />

economia da sustentabilidade. Por tudo isso, precisamos construir uma “outra globalização”<br />

(SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.<br />

São <strong>Paulo</strong>: Record, 2000), uma globalização fundada no princípio da solidariedade.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço sem<br />

precedentes na história da humanidade. O que é problemático é a globalização competitiva,<br />

onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde os interesses dos<br />

povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas transnacionais. Assim,<br />

podemos distinguir uma globalização competitiva de uma possível globalização cooperativa e<br />

solidária que, em outros momentos, chamamos de processo de “planetarização”. A primeira<br />

está subordinada apenas às leis do mercado e a segunda se subordina aos valores éticos e<br />

à espiritualidade humana. Para essa segunda globalização é que a Carta da Terra, como um<br />

código de ética universal, deveria dar uma contribuição importante, não apenas através da<br />

proclamação que os Estados podem fazer, mas, sobretudo, pelo impacto que seus princípios<br />

poderão ter na vida cotidiana do cidadão planetário.<br />

3 – Movimento pela ecopedagogia<br />

Essa travessia de milênio caracteriza-se por um enorme avanço tecnológico e também por uma<br />

enorme imaturidade política: enquanto a internet nos coloca no centro da Era da Informação, o<br />

governo do humano continua muito pobre, gerando misérias e deterioração. Podemos destruir toda<br />

a vida do planeta. Quinhentas empresas transnacionais controlam 25% da atividade econômica<br />

mundial e 80% das inovações tecnológicas. A globalização econômica capitalista enfraqueceu os<br />

Estados Nacionais, impondo limites para a sua autonomia, subordinando-os à lógica econômica<br />

das transnacionais. Gigantescas dívidas externas governam países e impedem a implantação de<br />

políticas sociais eqüalizadoras. As empresas transnacionais trabalham para 10% da população<br />

mundial que se situam nos países mais ricos, gerando uma tremenda exclusão. Esse é o cenário<br />

da travessia, um cenário ainda mais problemático pela falta de alternativas.<br />

Os paradigmas clássicos estão esgotando suas possibilidades de responder adequadamente a<br />

esse novo contexto. Não conseguem explicar essa travessia, muito menos passar por ela. Há uma<br />

crise de inteligibilidade diante da qual muitos falsos profetas e charlatães oferecem soluções<br />

mágicas. Uma nova espiritualidade surge muito bem aproveitada pelas mercorreligiões. A resposta<br />

dada pelo estatismo burocrático e autoritário é tão inefi ciente quanto o neoliberalismo do deus<br />

mercado. O neoliberalismo propõe mais poder para as transnacionais e os estatistas propõem mais<br />

poder para o Estado, reforçando as suas estruturas. No meio de tudo isso está o cidadão comum,<br />

que não é nem empresário, nem Estado. A resposta parece estar além destes dois modelos clássicos,<br />

mas certamente não numa suposta “terceira via” que deseja apenas dar sobrevida ao capitalismo,<br />

sofi sticando a dominação política, a exploração econômica e provocando enorme exclusão social.<br />

A resposta parece vir hoje do fortalecimento do controle cidadão frente ao Estado e ao mercado,<br />

a Sociedade Civil fortalecendo sua capacidade de governar-se e controlar o desenvolvimento. Aqui<br />

entra o papel importante da educação, da formação para a cidadania ativa.<br />

Podemos dizer que há uma comunidade sustentável que vive em harmonia com o seu meio<br />

ambiente, não causando danos a outras comunidades, nem para a comunidade de hoje e nem<br />

para a de amanhã. E isso não pode constituir-se apenas num compromisso ecológico, mas ético-<br />

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72<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

político, alimentado por uma pedagogia, isto é, por uma ciência da educação e uma prática<br />

social defi nidas. Neste sentido, a ecopedagogia, inserida nesse movimento sócio-histórico,<br />

formando cidadãos capazes de escolherem os indicadores de qualidade do seu futuro, constituise<br />

numa pedagogia inteiramente nova e intensamente democrática.<br />

O Movimento pela Ecopedagogia ganhou impulso sobretudo a partir do Primeiro Encontro<br />

Internacional da Carta da Terra na Perspectiva da Educação, organizado pelo <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong><br />

<strong>Freire</strong>, com o apoio do Conselho da Terra e da Unesco, de 23 a 26 de agosto de 1999, em São<br />

<strong>Paulo</strong>, e do I Fórum Internacional sobre Ecopedagogia, realizado na Faculdade de Psicologia<br />

e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal, de 24 a 26 de março de 2000.<br />

Desses encontros surgiram os princípios orientadores desse movimento, contidos numa “Carta<br />

da Ecopedagogia”. Eis alguns deles:<br />

1. O planeta como uma única comunidade.<br />

2. A Terra como mãe, organismo vivo e em evolução.<br />

3. Uma nova consciência que sabe o que é sustentável, apropriado e faz sentido para a<br />

nossa existência.<br />

4. A ternura para com essa casa. Nosso endereço é a Terra.<br />

5. A justiça sócio-cósmica: a Terra é um grande pobre, o maior de todos os pobres.<br />

6. Uma pedagogia biófi la (que promove a vida): envolver-se, comunicar-se, compartilhar,<br />

problematizar, relacionar-se, entusiasmar-se.<br />

7. Uma concepção do conhecimento que admite só ser integral quando compartilhado.<br />

8. O caminhar com sentido (vida cotidiana).<br />

9. Uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não instrumental.<br />

10. Novas atitudes: reeducar o olhar, o coração.<br />

11. Cultura da sustentabilidade: ecoformação. Ampliar nosso ponto de vista.<br />

As pedagogias clássicas eram antropocêntricas. A ecopedagogia parte de uma consciência<br />

planetária (gêneros, espécies, reinos, educação formal, informal e não-formal...). Ampliamos<br />

o nosso ponto de vista. Do homem para o planeta, acima de gêneros, espécies e reinos. De<br />

uma visão antropocêntrica para uma consciência planetária, para uma prática de cidadania<br />

planetária e para uma nova referência ética e social: a civilização planetária.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

Não se pode dizer que a ecopedagogia representa já uma tendência concreta e notável na<br />

prática da educação contemporânea. Se ela já tivesse suas categorias defi nidas e elaboradas,<br />

ela estaria totalmente equivocada, pois uma perspectiva pedagógica não pode nascer de um<br />

discurso elaborado por especialistas. Ao contrário, o discurso pedagógico elaborado é que nasce<br />

de uma prática concreta, testada e comprovada. A ecopedagogia está ainda em formação e<br />

formulação como teoria da educação. Ela está se manifestando em muitas práticas educativas<br />

que o Movimento pela Ecopedagogia, liderado pelo <strong>Instituto</strong> <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, tenta congregar.<br />

O Movimento pela Ecopedagogia, surgido no seio da iniciativa da Carta da Terra, está dando<br />

apoio ao processo de discussão dessa Carta, indicando justamente uma metodologia apropriada<br />

que não seja a metodologia da simples “proclamação” governamental, de uma declaração<br />

formal, mas a tradução de um processo vivido e da participação crítica da “demanda”, como<br />

diz Francisco Gutiérrez.<br />

A Carta da Terra deve ser entendida sobretudo como um movimento ético global para se<br />

chegar a um código de ética planetário, sustentando um núcleo de princípios e valores que<br />

faz frente à injustiça social e à falta de eqüidade reinante no planeta. Cinco pilares sustentam<br />

esse núcleo: a) direitos humanos; b) democracia e participação; c) eqüidade; d) proteção da<br />

minoria; e) resolução pacífi ca dos confl itos. Esses pilares são cimentados por uma visão de<br />

mundo solidária e respeitosa da diferença (consciência planetária).<br />

O intercâmbio planetário que ocorre hoje em função da expansão das oportunidades de<br />

acesso à comunicação, notadamente através da internet, deverá facilitar o diálogo inter e<br />

transcultural e o desenvolvimento desta nova ética planetária. A campanha da Carta da Terra<br />

agrega um novo valor e oferece um novo impulso a esse movimento pela ética na política, na<br />

economia, na educação etc. Ela se tornará realmente forte e, talvez, decisiva, no momento<br />

em que representar um projeto de futuro, um contraprojeto global e local ao projeto políticopedagógico,<br />

social e econômico neoliberal, que não só é intrinsecamente insustentável, como<br />

também essencialmente injusto e desumano.<br />

4 – A ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da Carta da Terra<br />

Precisamos de uma Pedagogia da Terra, uma pedagogia apropriada para esse momento de<br />

reconstrução paradigmática, apropriada à cultura da sustentabilidade e da paz, por isso,<br />

apropriada ao processo da Carta Terra. Ela vem se constituindo gradativamente, benefi ciandose<br />

de muitas refl exões que ocorreram nas últimas décadas, principalmente no interior do<br />

movimento ecológico. Ela se fundamenta num paradigma fi losófi co (<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, Leonardo<br />

Boff, Sebastião Salgado, Boaventura de Sousa Santos, Milton Santos) emergente na educação,<br />

que propõe um conjunto de saberes/valores interdependentes. Entre eles podemos destacar:<br />

1) Educar para pensar globalmente. Na era da informação, diante da velocidade com que<br />

o conhecimento é produzido e envelhece, não adianta acumular informações. É preciso saber<br />

73


74<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

pensar. E pensar a realidade. Não pensar pensamentos já pensados. Daí a necessidade de<br />

recolocarmos o tema do conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias,<br />

da organização do trabalho na escola.<br />

2) Educar os sentimentos. O ser humano é o único ser vivente que se pergunta sobre o<br />

sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com<br />

sentido em cada instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos e não apenas porque<br />

pensamos. Somos parte de um todo em construção.<br />

3) Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial. Nosso destino comum<br />

no planeta, compartilhar com todos sua vida no planeta. Nossa identidade é ao mesmo tempo<br />

individual e cósmica. Educar para conquistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorála,<br />

mas para amá-la.<br />

4) Formar para a consciência planetária. Compreender que somos interdependentes. A<br />

Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não precisaríamos de passaportes.<br />

Em nenhum lugar na Terra deveríamos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro<br />

mundo signifi ca dividir o mundo para governá-lo a partir dos mais poderosos; essa é a divisão<br />

globalista entre globalizadores e globalizados, o contrário do processo de planetarização.<br />

5) Formar para a compreensão. Formar para a ética do gênero humano, não para a ética<br />

instrumental e utilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não comunicar para explorar,<br />

para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor. A Pedagogia da Terra funda-se nesse<br />

novo paradigma ético e numa nova inteligência do mundo. Inteligente não é aquele que sabe<br />

resolver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida solidário.<br />

Porque a solidariedade não é hoje apenas um valor. É condição de sobrevivência de todos.<br />

6) Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas precisam ser guiadas por<br />

novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver juntos,<br />

compartir, descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo mais responsável<br />

frente à cultura dominante que é uma cultura de guerra, de competitividade sem solidariedade,<br />

e passar de uma responsabilidade diluída à uma ação concreta, praticando a sustentabilidade<br />

na vida diária, na família, no trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se confunde com a<br />

simploriedade e a quietude não se confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade tem que<br />

ser voluntária como a mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A<br />

quietude é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto.<br />

É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe que todas e todos tenham acesso à qualidade<br />

de vida. Seria cínico falar de redução de demandas de consumo, atacar o consumismo, falar de<br />

consumismo aos que ainda não tiveram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem justiça.<br />

Diante do possível extermínio do planeta, surgem alternativas numa cultura da paz e uma<br />

cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenas com a biologia, a economia


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

e a ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que mantemos conosco mesmos, com<br />

os outros e com a natureza. A pedagogia deveria começar por ensinar sobretudo a ler o mundo,<br />

como nos diz <strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong>, o mundo que é o próprio Universo, por que é ele nosso primeiro<br />

educador. Essa primeira educação é uma educação emocional que nos coloca diante do mistério<br />

do Universo, na intimidade com ele, produzindo a emoção de nos sentirmos parte desse sagrado<br />

ser vivo e em evolução permanente.<br />

Não entendemos o Universo como partes ou entidades separadas, mas como um todo<br />

sagrado, misterioso, que nos desafi a a cada momento de nossas vidas, em evolução, em<br />

expansão, em interação. Razão, emoção e intuição são partes desse processo, onde o próprio<br />

observador está implicado. O Paradigma-Terra é um paradigma civilizatório. E como a cultura<br />

da sustentabilidade oferece uma nova percepção da Terra, considerando-a como uma única<br />

comunidade de humanos, ela se torna básica para uma cultura de paz.<br />

O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Está muito próximo de nós. Um pequeno<br />

jardim, uma horta, um pedaço de terra, é um microcosmos de todo o mundo natural. Nele<br />

encontramos formas de vida, recursos de vida, processos de vida. A partir dele podemos<br />

reconceitualizar nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo podemos aprender<br />

muitas coisas. As crianças o encaram como fonte de tantos mistérios! Ele nos ensina os valores<br />

da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivência, os valores da paciência,<br />

da perseverança, da criatividade, da adaptação, da transformação, da renovação... Todas as<br />

nossas escolas podem transformar-se em jardins e professores-alunos, educadores-educandos,<br />

em jardineiros. O jardim nos ensina ideais democráticos: conexão, escolha, responsabilidade,<br />

decisão, iniciativa, igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade e gênero.<br />

“Carta” signifi ca “mapa”, um mapa para nos guiar nessa travessia conturbada. A Carta da<br />

Terra, nesse sentido, precisa ser considerada como um código de ética planetária a nos guiar<br />

hoje para um mundo onde predominem os valores da solidariedade e da sustentabilidade,<br />

um projeto, um movimento, um processo que pode transformar o risco de extermínio em<br />

oportunidade histórica, transformar o temor em esperança. Adotar e promover a prática de<br />

seus valores não pode ser apenas o compromisso de Estados e Nações, mas de cada ser humano<br />

individual, pessoal, como sujeito da história, como vem promovendo o Manifesto 2000 da<br />

Unesco. Precisamos de uma cultura de paz com justiça social para enfrentar a barbárie. Se<br />

aceitamos a barbárie, acostumamo-nos a um cotidiano de violência e de insustentabilidade.<br />

No nosso livro Pedagogia da Terra defendemos a necessidade de uma Carta da Terra associada<br />

a um processo de paz, a uma cultura de paz. E como a Carta da Terra é um documento ético,<br />

precisa da educação para tornar-se cada vez mais conhecido. Mas precisamos não só de mudança<br />

na consciência das pessoas. Precisamos de mudanças estruturais no campo econômico, como<br />

as propostas pela Agenda 21. A Carta da Terra precisa estar associada também à Agenda<br />

21 e ter um grande suporte na sociedade civil. Os governos podem assinar tratados, podem<br />

adotar a Carta da Terra, mas não cumprirão suas promessas se a Sociedade Civil não estiver<br />

vigilante e não pressionar os governantes para que eles cumpram o que assumem. O que foi<br />

75


76<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

socialmente construído pode ser socialmente transformado. Um outro mundo é possível. Uma<br />

outra globalização é possível. Precisamos chegar lá juntos e, sobretudo, a tempo.<br />

Moacir Gadotti é professor titular da Universidade de São <strong>Paulo</strong>, diretor do <strong>Instituto</strong><br />

<strong>Paulo</strong> <strong>Freire</strong> e autor de várias obras, entre elas: História das idéias pedagógicas (Ática,<br />

1993), Pedagogia da práxis (Cortez, 1994), Perspectivas atuais da educação (Artes Médicas,<br />

2000), Pedagogia da Terra (Peirópolis, 2000) e Os Mestres de Rousseau (Cortez, 2004). O<br />

autor participou na Rio-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento),<br />

que elaborou e aprovou a Agenda 21, como representante de ONG (ICEA -<br />

Internacional Community Education Association). No Fórum Global-92, na mesma época,<br />

participou na coordenação da Jornada Internacional de Educação Ambiental, que elaborou<br />

o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global.<br />

www.paulofreire.org


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

A CARTA DA TERRA COMO INSTRUMENTO EDUCATIVO E INSPIRADOR NA<br />

CONSTRUÇÃO DE SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS<br />

Mirian Vilela<br />

O fato de que uma pessoa tenha recebido formação na escola ou universidade não<br />

necessariamente a transforma num cidadão comprometido em ajudar na resolução dos<br />

problemas da nossa sociedade. Muitas vezes são essas pessoas, que contam com um bom nível<br />

de instrução, as responsáveis por grandes injustiças, atrocidades, devastações e corrupções que<br />

afetam a todos, não somente a geração atual, mas também as futuras gerações.<br />

Em parte, a causa disto é a ausência de uma educação baseada em valores que assegurem o<br />

bem comum e promovam a responsabilidade individual e coletiva. Refi ro-me a uma educação<br />

que aborde a ética do cuidado, a ética que nos faz refl etir sobre as conseqüências e o impacto<br />

dos nossos atos e decisões sobre o nosso entorno.<br />

Uma educação que coloque a ética como um eixo central é de suma importância no processo de<br />

qualifi cação da cidadania. Falta, nos processos educativos, o desenvolvimento da sensibilidade<br />

e consciência ética em cada pessoa. Carecemos de uma educação que, no lugar de promover<br />

tanta competição e individualismo, invista na cooperação e sentido coletivos, assim como a<br />

interconexão entre diferentes saberes.<br />

Precisamos repensar como reorientar os programas educativos para que promovam melhores<br />

sociedades. Isto deve ocorrer para que os interesses coletivos e do bem comum prevaleçam sobre<br />

os interesses individuais, da mesma forma que o respeito e cuidado à vida estejam refl etidos no<br />

estilo de vida de todos. Devemos lembrar que a meta da educação não é simplesmente preparar<br />

os estudantes para ter carreiras produtivas de sucesso profi ssional e fi nanceiro, mas também,<br />

e sobretudo, para que sejam capazes de contribuir para o melhoramento do bem-estar da<br />

humanidade e do bem comum.<br />

O professor John Fien, da Austrália, levanta a seguinte pergunta: “Como levar esta mensagem<br />

aos estudantes que estão crescendo em um mundo orientado pelo consumismo e o materialismo,<br />

onde sua própria identidade esta defi nida não pelo que você é, mas pelo que você veste, pelo<br />

tipo de casa que você vive, pelo carro que você anda e pelo tipo de férias que você desfruta? O<br />

que está por detrás destes valores destorcidos?”<br />

Nessa procura de uma base ética e princípios para construir uma melhor sociedade podemos<br />

encontrar na Carta da Terra um instrumento útil. No preâmbulo desta Carta encontramos a<br />

seguinte refl exão: “Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem atingidas, o<br />

desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais, e não a ter mais”.<br />

77


78<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A Carta da Terra é uma declaração ou marco de valores e princípios que nos orientam a um<br />

mundo mais justo, sustentável e pacífi co. E é também uma iniciativa internacional que envolve<br />

indivíduos e instituições, que a utilizam de diferentes formas e a incorporam em seus trabalhos<br />

e atividades.<br />

Para melhor ilustrar isto, imaginemos a Iniciativa da Carta da Terra como uma moeda: em um<br />

lado encontramos a teoria ou a base fi losófi ca que nos orienta, ou melhor, que nos dá a direção<br />

para onde ir. Do outro lado, temos a prática, as ações do cotidiano. Um lado não pode existir<br />

sem o outro, já que a teoria sem a prática é vazia e não tem sentido, da mesma maneira que a<br />

prática sem teoria não tem direção.<br />

A legitimidade da Carta da Terra deriva do seu conteúdo (diverso, inclusivo e que, ao mesmo<br />

tempo, capta pontos chaves de documentos e declarações internacionais elaborados na década de<br />

90), de seu processo de redação amplo e participativo; e do crescente movimento de indivíduos e<br />

organizações que a adotam como marco referencial e a aplicam em suas áreas de ação. A Iniciativa<br />

da Carta da Terra oferece um bom exemplo de movimento da sociedade civil que envolve indivíduos<br />

e organizações de todas a regiões do mundo e de várias áreas de especialidade (ciência, direito<br />

internacional, ética e teologia) que utilizam a Carta da Terra de várias formas criativas.<br />

A Carta da Terra tem 16 princípios organizados em quatro partes, sendo estas: respeito e<br />

cuidado à comunidade de vida, integridade ecológica, justiça econômica e social e democracia,<br />

não violência e paz. Como documento, aborda temas chaves como: a necessidade de planejar a<br />

longo prazo; responsabilidade compartilhada; visão integral ou pensamento sistêmico.<br />

Por isso a Carta da Terra pode ser percebida como um marco prático que integra os temas de justiça<br />

social, direitos humanos, proteção ambiental como partes de um todo, ou seja, com a visão sistêmica<br />

do desenvolvimento sustentável. Ela pode ser considerada como um mapa que nos orienta em direção<br />

à sustentabilidade, que nos indica onde estamos e qual o caminho que devemos tomar. É um marco<br />

que integra a agenda de paz e sustentabilidade, com a proteção ambiental, os direitos humanos e a<br />

justiça social, os quais muitas vezes são vistos de forma fragmentada ou desarticulada.<br />

Entretanto, é importante reconhecer que existe uma certa confusão sobre o signifi cado do<br />

desenvolvimento sustentável. Todo o contexto do surgimento deste termo foi justamente gerado<br />

pela compreensão de que os recursos naturais são limitados (e não ilimitados como se achava),<br />

assim também como pela necessidade de ver as conseqüências de determinados problemas,<br />

como, por exemplo, do crescimento da pobreza no ambiente ou da degradação ambiental<br />

gerando confl itos. Quando se fala em desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade, é<br />

importante entender o sentido de “desenvolvimento” não simplesmente como crescimento<br />

econômico, mas sim no sentido real de desenvolvimento, o qual busca, tendo em vista o futuro,<br />

assegurar a qualidade de vida, restaurar o sentido de cuidado e respeito a todos os seres<br />

vivos, assim também como incentivar o sentido de responsabilidade no uso racional de recursos<br />

naturais. É preciso recuperar o sentido completo de desenvolvimento como um processo social,<br />

econômico, político, cultural e ambientalmente integrado.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

Especialmente o desenvolvimento sustentável requer a passagem de uma visão fragmentada,<br />

tradicional e limitada de cada questão para uma abordagem sistêmica ou integral, onde se<br />

permite ver a interdependência dos temas e problemas.<br />

O tema da sustentabilidade envolve: a) qualidade de vida; b) processos participativos; c) interconexões<br />

entre o bem-estar social, a economia e o meio ambiente; d) responsabilidade compartilhada.<br />

Por isso, para poder compreender melhor o que é desenvolvimento sustentável é preciso:<br />

•<br />

•<br />

•<br />

Distinguir entre desenvolvimento e crescimento econômico.<br />

Compreender as conseqüências a longo prazo de uma ação tomada hoje, ou seja, o<br />

sentido de responsabilidade compartilhada com as gerações futuras.<br />

Familiarizar-se com o conceito geral de “sistemas” (a relação entre diferentes partes,<br />

temas e questões).<br />

É justamente devido à necessidade de acelerar o processo de compreensão e implementação<br />

do desenvolvimento sustentável que se lançou a Década das Nações Unidas de Educação para<br />

o Desenvolvimento Sustentável (2005 – 2014). Esta década busca envolver a todos interessados<br />

para alcançar o objetivo geral de integrar os princípios, valores e práticas do desenvolvimento<br />

sustentável em todas as facetas da educação e aprendizagem. Um dos objetivos específi cos deste<br />

esforço é proporcionar oportunidades para afi nar e promover a perspectiva do desenvolvimento<br />

sustentável e a transição para o mesmo mediante todas as formas de educação. Além disto, a<br />

Unesco adotou, durante sua Conferência Geral em outubro de 2003, a decisão de “reconhecer<br />

a Carta da Terra como um instrumento educativo, especialmente no contexto da Década de<br />

Educação para Desenvolvimento Sustentável”.<br />

Seria interessante notar que o México, a Costa Rica e a Argentina lançaram uma estratégia<br />

ou compromisso nacional para implementar esta Década de Educação para o Desenvolvimento<br />

Sustentável. No caso do México, diferentes instituições do governo federal, especialmente<br />

da Secretaria de Educação e Secretaria do Meio Ambiente, lançaram o Compromisso Nacional<br />

pela Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Este Compromisso procura<br />

tornar realidade o desenvolvimento sustentável no México; permitir aos cidadãos participar<br />

criticamente nas tomadas de decisões para defi nir a direção em que o desenvolvimento nacional<br />

deve seguir e gerar atitudes e as habilidades necessárias para confi gurar uma ação social bem<br />

informada, que incida na prevenção e solução dos problemas de cada grupo social.<br />

No caso da Costa Rica o Compromisso Nacional pela Década da Educação para o Desenvolvimento<br />

Sustentável foi assinado por todos os ministros do governo atual e pelo presidente da<br />

República como um compromisso que deve envolver os diferentes setores do governo. Neste<br />

documento se menciona, entre outros, os seguintes compromissos da Costa Rica: a) abordar<br />

de forma integral a Educação para o Desenvolvimento Sustentável, utilizando os princípios da<br />

79


80<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Carta da Terra como marco de referência; b) promover o enfoque transdisciplinar e holístico da<br />

Educação para o Desenvolvimento Sustentável em todos os programas educativos, desde o nível<br />

pré-escolar até a educação superior; c) estabelecer projetos de educação formal, não formal e<br />

informal, sobre os temas relacionados com a Educação para o Desenvolvimento Sustentável.<br />

É importante destacar estes compromissos, pois é essencial poder contar com políticas<br />

públicas que os assumam e os incorporem em atividades concretas guiadas por uma visão<br />

nacional, o que estimula a criação de projetos e ações.<br />

Mas o que é Educação para o Desenvolvimento Sustentável? Entendemos que a Educação para<br />

o Desenvolvimento Sustentável deve promover mudanças de comportamento fundamentais e<br />

contar com várias perspectivas de todos os campos do desenvolvimento humano. Ela deve ser:<br />

•<br />

•<br />

•<br />

Participativa e inclusiva<br />

Interdisciplinária e contextual<br />

Transformadora<br />

Provavelmente, isso implica em uma necessidade de desenvolver uma abordagem pedagógica<br />

completamente nova. A proposta de incorporar o conceito de desenvolvimento sustentável<br />

de forma interdisciplinar nos processos educativos implica superar a abordagem tradicional,<br />

fragmentada da educação, mediante ação e refl exão que conduza a uma visão integral.<br />

A Carta da Terra pode contribuir com o esforço da Educação para o Desenvolvimento Sustentável,<br />

já que esta oferece uma visão integral e aclara o signifi cado do que é desenvolvimento sustentável.<br />

Como resultado de um fórum de discussão sobre o papel da Carta da Terra na educação<br />

identifi cou-se que ela pode ser utilizada para alcançar os seguintes objetivos educativos:<br />

Conscientização – o primeiro desafi o da educação é motivar as pessoas a atuar de forma mais<br />

social e ambientalmente responsável. Para isto, é necessário um processo de sensibilização<br />

para a relação existente entre a problemática ambiental, social e econômica.<br />

Conhecimento – oferece informação básica aos estudantes, o que permite formar<br />

critérios para maior compreensão dos conceitos relacionados à problemática atual e<br />

que, ao mesmo tempo, possam atuar como agentes de mudança.<br />

Aplicação de valores e princípios – a parte principal da Carta da Terra está orientada<br />

à ação e pode funcionar como um guia para estilos de vida mais sustentáveis.<br />

Um chamado à ação<br />

– a Carta da Terra conclui com um chamado à ação através de<br />

alianças entre governos, sociedade civil e o setor privado.


Parte 3 – Histórias de ensinar: a Carta da Terra<br />

É preciso que os processos atuais de formação promovam valores, estilos de vida e comportamento<br />

ético necessários para um futuro melhor para todos. Devemos nos atrever e tomar este<br />

desafi o de reinventar nossos processos educativos e abordagens pedagógicas para assegurar a<br />

construção de sociedades mais justas e sustentáveis.<br />

Referências<br />

Levando a Sustentabilidade às Classes de Aula: Um Guia da Carta da Terra para Educadores<br />

Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável: documento<br />

fi nal; Plano Internacional de Implementação 2005<br />

http://www.unesco.org.br/publicacoes/livros/decadaeducacao/mostra_documento<br />

Mirian Vilela é diretora do Centro Carta da Terra de Educação para o Desenvolvimento<br />

Sustentável, na Costa Rica.<br />

81


Histó


Histó<br />

INTRODUÇÃO<br />

Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Aiêska Marinho Lacerda Silva<br />

A idéia de colocar neste livro um caderno que comentasse as atividades realizadas durante<br />

o Projeto Jovem Cidadão Amigo da Natureza – PJCAN foi para que outros educadores pudessem<br />

refl etir sobre suas práticas pedagógicas diárias, em meio aos problemas de todo ambiente (e<br />

não meio ambiente) vividos no planeta Terra neste inicio de século XXI. Compartilhar.<br />

Quando começamos a construir o PJCAN, estávamos diante de um grande desafi o: fazer com<br />

que os participantes entendessem que ele não era um projeto “pronto”, acabado, mas sim<br />

algo a ser feito por muitas mãos: adultas e muitas vezes experientes, dispostas a ajudar, outras<br />

adolescentes, ávidas por realizar, e muitas mãos infantis que queriam e podem construir um<br />

novo futuro.<br />

Por isso o caderno de atividades agora no fi nal do livro, e não no início do projeto como uma<br />

linha diretriz. Ele é um dos resultados obtido ao longo de muitos exercícios, de muitas refl exões<br />

e práticas diárias, vividas nas escolas envolvidas no projeto.<br />

A intenção fi losófi ca e pedagógica do PJCAN ao capacitar os professores, as comunidades bem<br />

como os estagiários − nossos “braços a campo”, que estiveram durante todo o tempo com os<br />

alunos dentro de cada escola participante − era e é que todos pudessem experimentar e mudar<br />

sua ótica na prática de ensinar, que não replicassem fórmulas, mas, sim, construíssem saberes;<br />

que ao ensinar, discutir, e vivenciar os princípios da Carta da Terra conseguissem fazer refl exões<br />

e análises locais, as quais tivessem real signifi cado para cada comunidade, levando-se em conta<br />

todas as relações que nela acontecem, e que, a partir dessa prática se promovesse o impulso<br />

necessário para que cada cidadão tome para si o rumo do seu destino e do seu processo de<br />

construção de aprendizado a partir do lugar onde vive.<br />

Era enfrentar o desafi o de aprender e ensinar de forma global, planetária, e alfabetizar<br />

para a vida.


84<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

O resultado dessas atividades é fruto da construção dos estagiários e de todos os educadores (aqui<br />

incluídos absolutamente todos que fazem parte do quadro de funcionários e voluntários) das escolas<br />

envolvidas no PJCAN, as da região do Pontal do Paranapanema e as da cidade de Sumaré.<br />

As atividades são parte do resultado do PJCAN, outras partes sabemos que serão agregadas<br />

pela concretização do projeto escrito e implantado por cada uma das escolas envolvidas, como<br />

“lição de casa, comprometimento e engajamento na ação”.<br />

O processo de construção dessas atividades é legítimo e merece ser comentado para que se<br />

possa ter uma idéia do modo que foi percorrido.<br />

Precisa e deve ser melhorado, recriado, acrescido e multiplicado, assim é viver a Carta da<br />

Terra – um mais um nunca é igual a dois, é sempre igual a muitos, principalmente quando se<br />

pensa em crianças e jovens que ainda não podem caminhar sozinhos e que dependem das nossas<br />

atitudes e ações para lhes indicar a direção, tornar o trajeto menos duro, e construir pontes,<br />

para que se possa fazer travessias e escolhas ao longo da vida.<br />

Era preciso repensar a escola, pô-la em causa. A que existia não funcionava - os professores<br />

precisavam mais de interrogações do que de certezas. Concluímos que só pode haver um<br />

projecto quando todos se conhecem entre si e se reconhecem em objectivos comuns.<br />

Apercebemo-nos que um dos maiores óbices ao desenvolvimento de projectos educativos<br />

consistia na prática de uma monodocência redutora que remetia os professores para o<br />

isolamento de espaços e tempos justapostos, entregues a si próprios e à crença numa<br />

especialização generalista. Percebemos que se há alunos com difi culdades de aprendizagem,<br />

também os professores têm difi culdades de ensino. Obrigar cada um a ser um outro-igual-a<br />

todos é negar a possibilidade de existir como pessoa livre e consciente [...] 9<br />

O processo de construção e integração das atividades à rotina das escolas<br />

No meio do caminho tinha uma pedra<br />

tinha uma pedra no meio do caminho<br />

tinha uma pedra<br />

no meio do caminho tinha uma pedra.<br />

Carlos Drummond de Andrade<br />

Uma das primeiras “pedras” a ser vencida foi fazer entender a professores e coordenadores<br />

que trabalhar por projetos não é “arrumar mais serviço para eles” – e, para assegurar nosso<br />

propósito, a cada escola disponibilizamos um estagiário. 10<br />

9 Escola da Ponte. Disponível em: http://www.eb1-ponte-n1.rcts.pt/html2/portug/historia/historia.htm. Acesso em: 15/06/07.<br />

10 Estimou-se uma demanda de um estagiário para cada 300 crianças.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Outra foi mostrar que, ao se trabalhar por projetos, o professor exerce o papel de mediador,<br />

de intercessor das interações. Sua função maior é ser facilitador, o “despertador”, “o provocador<br />

da coceira da curiosidade” que resulta em querer pesquisar; o professor deve ser “ajudante”<br />

no resgate da cultura local, “aliciador” ao unir saberes, e “cúmplice” em viver a educação de<br />

forma humana e planetária.<br />

Unir a prática do PJCAN, nos currículos e cronogramas das escolas num ano letivo já iniciado (2006)<br />

e mostrar que os princípios da Carta da Terra não são modismos temporais, mas sim uma ferramenta<br />

pedagógica, foi outra pedra a ser transposta. As escolas não conheciam a Carta da Terra.<br />

Para começarmos as ações e aproximações, tomamos por base no início dos trabalhos fazer análises<br />

refl exivas e caracterizações das escolas, questionários sobre infra-estrutura e dinâmica das escolas,<br />

questionários para professores, e as análises dos PCNs realizadas pelos estagiários em cada escola.<br />

Sabíamos que os conteúdos das disciplinas deveriam ser trabalhados de forma conceitual,<br />

atitudinal e procedimental. Partimos do pressuposto que a grande maioria dos professores<br />

dominava a forma de ministrar seus conteúdos conceitualmente.<br />

Por que não se constatavam mudanças e busca por soluções diante das situações nas localidades<br />

que se agravava a cada dia? “Repetência, violência, desânimo, descrédito, abandono, falta de<br />

respeito mútuo, desinteresse, e desequilíbrio. O que era preciso ser repensado? Refl etido e<br />

colocado em prática?”. Uma pedreira inteira: afi nal como se ensina a mudar? Basta querer<br />

ensinar? Como é possível colocar as idéias a funcionarem, como é possível romper paradigmas<br />

de prática da educação formal tão arraigados decorrentes das formações que cada um de nós<br />

professores temos nas universidades? Qual é o Projeto Político Pedagógico – PPP dessa escola?<br />

Tem a “cara da escola?” Como construí-lo, reconstruí-lo de forma legitima? Como inserir o<br />

PJCAN no PPP da escola?<br />

Pegamos todas a pedras do caminho e fi zemos um caminho. Construir.<br />

A aplicação das atividades nas escolas e comunidades<br />

A cada encontro mensal, discutiam-se de um a dois princípios da Carta da Terra para Crianças,<br />

adaptação feita pelo <strong>Instituto</strong> Naia para o público infantil, ferramenta utilizada como geradora<br />

para se começar a discutir as relações e práticas da construção do aprendizado nas escolas.<br />

Vale lembrar que todos os princípios da Carta da Terra, seja ela a para “adultos” (original)<br />

ou para crianças (adaptada), estão interligados, não é mandatório ater-se à “ordem que são<br />

apresentados” (seqüência numérica). Pode-se trabalhar alternadamente, de acordo com a<br />

situação vivida no momento é possível trabalhar em conjunto com outro princípio, aliar e<br />

otimizar o conteúdo de toda e qualquer disciplina, de qualquer tema ou eixo transversal, basta<br />

para isso ter visão sistêmica, integrativa e criativa na sua utilização.<br />

85


86<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Todas as observações feitas nas visitas às escolas durante a supervisão a campo, e<br />

as informações trazidas pelos estagiários de inúmeras situações acontecidas durante o<br />

processo de ensino nas escolas foram os subsídios para a construção das atividades.<br />

Algumas das situações encontradas, debatidas e trabalhadas, que geraram as<br />

atividades aplicadas<br />

Por que a merenda servida é desperdiçada? Por que há excesso de pombos em algumas<br />

das escolas? 11 Por que há escassez de água em algumas escolas? Qual o caminho que<br />

essa água percorre para chegar à escola? E até as residências? Qual a situação dos rios<br />

locais? Por que o córrego que passa atrás da escola virou esgoto? Se a escola estava feia,<br />

maltratada, discutia-se quem é o responsável por isso. Como tornar o ambiente mais<br />

agradável, fisicamente e emocionalmente para todos?<br />

Por que a erosão está levando o pátio da escola barranco abaixo? Por que não temos<br />

muitas árvores nas escolas? O que é o cuidado da coisa coletiva, da coisa pública, das<br />

nossas coisas? Quanto e quando a comunidade participa das coisas da escola?<br />

Por que alunos pequenos são agressivos com professores? Por que as crianças não<br />

podem comer com talheres (garfo e faca) e com pratos de vidro? Por que todos têm de<br />

estar em absoluto silêncio e são instados a “calarem as vozes” quando o professor expõe<br />

o tema da aula? Quando e como se participa da vida em comunidade? Como meu bairro<br />

surgiu? Por que hoje ele está assim? Como é a história da minha escola? Por que ela tem<br />

esse nome? Onde ela começou?<br />

Onde estamos localizados, como funciona a escola, o comercio, a prefeitura? O que<br />

eles têm a ver com a escola, como são as relações entre o entorno da escola e a escola?<br />

Afinal, que local é esse? Que país é esse? O que isso tem a ver comigo? Conosco? Com o<br />

planeta? O que é mais importante agora e que podemos fazer juntos?<br />

Com isso, violência, exclusão, miséria, maus-tratos, ética, desestruturação familiar,<br />

degradação do ambiente, poluição, merenda de má qualidade, atitudes, valores e princípios,<br />

foram discutidos, debatidos, entendidos, revistos e praticados.<br />

Acordos e “combinados” foram colocados em prática e levados a termo por todos.<br />

Problemas e soluções buscados, discutidos e esmiuçados; pais, mães, tios, avós, diretoras,<br />

professoras e todo o corpo docente das escolas; moradores e vizinhos chamados a<br />

participar, a dar depoimentos, ensinar, compartilhar de suas experiências.<br />

11 Descobrimos que os pombos ali estavam pelos restos de merenda desperdiçada e jogada pelo pátio da escola.


Recursos<br />

12 Títulos de atividades, encontradas adiante.<br />

Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Cada atividade foi construída de acordo com os recursos disponíveis na localidade, nas<br />

escolas, e com os ativos que muitas vezes, muito embora disponíveis, eram difíceis de ser<br />

enxergados: reuso de materiais, reciclagem de outros, redução do uso de bens naturais como a<br />

água. Uso parcimonioso e compartilhado de outros recursos.<br />

Idéias eram trazidas pelos estagiários. É para aprender brincando, fantasiam-se de palhaços<br />

e se ensina brincando. É para tratar de desperdício, vamos fazer um fi lme que fale disso. É para<br />

abordar a situação do bairro, vamos trazer os moradores mais antigos para que nos contem a<br />

história de como esse bairro começou e como chegou até aqui. A questão era atitude, sujeira na<br />

escola, falta de cidadania, falta de lazer para todos do bairro, constroem-se parques ecológicos.<br />

É para reaproveitar, vamos utilizar jornal e confeccionar caixas e mesas, e que possam servir de<br />

fonte de renda para muitos pais. A cada problema levantado, estudo e apresentação de idéias<br />

criativas: ervas medicinais, pomares, núcleos de reestruturação familiar, hortas.<br />

Toda situação em que se enxergava a possibilidade de aprendizagem e vivência, cada um dos<br />

alunos e seus professores tiveram a oportunidade de refl etir e repensar valores e atitudes, fazer<br />

refl exões e praticar novas ações.<br />

Foi assim que começamos a falar de tudo, a falar da relação de cada um com o espaço onde<br />

morava, com a escola onde estudava, com os professores e coordenadores, com o mundo,<br />

Foi o início da apropriação e do sentimento de pertencimento, de fazer parte do lugar onde<br />

se vive, de entender os porquês, e de começar a se discutir o que queríamos e poderia ser<br />

transformado, juntos. Foi reatar a capacidade e o direito de sonhar; a possibilidade de colocar em<br />

prática alguns dos sonhos de experimentar que somos capazes de realizar, através da Árvore dos<br />

Sonhos, e também de desabafar cada um dos descontentamentos no Muro das Lamentações 12 .<br />

A cada um dos princípios da Carta da Terra abordado e a cada atividade realizada eram descortinados<br />

um mundo de outras novas possibilidades, de trabalhos e de novas atividades sobre todos os conteúdos,<br />

sempre um desafi o novo de mostrar que trabalhar assim era possível. Inter, multi e transdisciplinaridade.<br />

Era como se jogar pedras num lago: círculos e mais círculos se abrindo sem fi m.<br />

A cada dia as descobertas vêm acompanhadas de um leque de novos questionamentos; podese<br />

discutir o todo e o tudo que acontece diariamente nas nossas vidas e no lugar onde vivemos<br />

e com as pessoas que nos cercam.<br />

Isso acontece tão naturalmente que muitas vezes não é preciso papel e lápis, giz e saliva,<br />

fi lmes e livros complexos ou outros recursos tecnológicos sofi sticados; é preciso ouvir e observar<br />

e estar pronto a participar e a agir.<br />

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88<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Muitas vezes, de tão simples no modo de fazer, as atividades eram consideradas muito complexas<br />

de se entender. E como suscitavam mudanças, mais complexas ainda de se colocar em prática.<br />

Segundo Celso Antunes, trabalhar e implantar projetos é buscar a qualidade e a essência é<br />

buscar caminhos.<br />

A criança, o adolescente que aprende a trabalhar em projetos, não aprende apenas coisas, ele<br />

aprende a aprender. É possível afi rmar que uma pessoa bem sucedida é uma pessoa que tem projetos. E<br />

que, portanto, quando aquela escola onde cresce trabalha com projetos, ele aprende uma metodologia<br />

de ação que acaba ajudando-o a ser uma criatura mais completa, a desenvolver um trabalho com<br />

mais efi ciência. Enquanto escolas que trabalham saberes podem sentir a perenidade destes saberes,<br />

trabalhar por projeto não, porque o projeto envolve mais a compreensão do aluno em uma metodologia<br />

de ação diante do desafi o do que o acúmulo de conhecimentos; isto envolve este tipo de perenidade.<br />

Asseguramos que todos os participantes foram provocados e instigados a pensar incessantemente<br />

e de formas diversas, a construir a partir dos princípios da Carta da Terra as atividades e outras<br />

tantas e diversas formas de abordagem e novas práticas de ensinar e aprender. Façamos uso delas.<br />

As atividades apresentadas validam as experiências e fatos do dia a dia da maioria das<br />

escolas do Brasil. Em conjunto, todos os envolvidos trataram das questões universais e locais,<br />

abordados principalmente sob a ótica dos quatro grandes eixos da Carta da Terra: integridade<br />

ecológica, justiça econômica, justiça social e democracia, não violência e paz.<br />

Desejamos que durante a leitura das atividades 13 cada participante do PJCAN possa encontrar<br />

um pouco de si, um pouco da enorme contribuição que nos deu, amorosa e esforçadamente para<br />

que se chegasse até aqui.<br />

Aos demais, esperamos que no dia a dia da sua prática educacional e de ser humano na<br />

essência, todas as experiências e conhecimentos aqui relatados possam ser úteis, que sejam<br />

enriquecidas com o acréscimo do saber de cada um, e que solidariamente possamos ajudar a<br />

construir um caminho melhor para todos que vivem nesse planeta chamado Terra.<br />

Aiêska Marinho Lacerda Silva é pedagoga da Pontifícia Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> –<br />

PUC/SP, especialista em Gestão Ambiental pela Universidade de Santo Amaro – Unisa, em<br />

Administração de Organizações do 3º Setor – USP, e em Programas de Desenvolvimento Local e<br />

Humano pela Organização Internacional do Trabalho/Programa de Desenvolvimento das Nações<br />

Unidas – OIT/Pnud. Consultora de desenvolvimento local e territorial e para a área de estratégias<br />

da cultura da cooperação pelo Sebrae/São <strong>Paulo</strong>, é supervisora pedagógica e capacitadora de<br />

programas de desenvolvimento humano e programas educacionais por meio do <strong>Instituto</strong> BioMA.<br />

13 Não pudemos colocar todas, por isso elegemos as de maior impacto de mudança e signifi cação, dentro dos contextos de cada<br />

escola e a cada período em que foram realizadas.


EDUCAR PARA REAPROXIMAR DA TERRA 14<br />

Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Kleber Maia Marinho<br />

A princípio, a proposta parece clara e simples, mas, paradoxalmente, não deixa de ser<br />

complexa e laboriosa.<br />

O uso do prefi xo “re” ligado ao verbo − “aproximar” − indica que em outro momento a<br />

Terra nos era próxima, ou seja, que já fomos íntimos. A escolha do verbo e não do substantivo<br />

− “reaproximação” − é proposital, pois à medida que este fecha, nomeia e, portanto conclui,<br />

aquele abre, atua variavelmente, fl exiona-se tal qual um camaleão que se adapta ao meio<br />

conforme a exigência plural de cada situação vivida.<br />

Para entender o que ocorre com a Terra hoje, há de se retornar ao passado e refl etir sobre<br />

como se deu o desenvolvimento da consciência ao longo da história da humanidade. Impossível<br />

discriminar um do outro; aliás, nem haveria de ser diferente, pois foi justamente o processo de<br />

aquisição da consciência que nos tornou Homo sapiens sapiens, que, por sua vez, ironicamente,<br />

isso sim constitui um fato que nos discrimina do resto dos seres vivos.<br />

Ao analisar desenhos, mitos de criação e todo registro histórico do humano primitivo,<br />

verifi ca-se a projeção de Deus sobre a fi gura de animais (lobo, urso e outros), bem como sobre<br />

elementos da natureza tal qual o Sol e a Lua. Ora seria, por exemplo, uma loba divina, que ao<br />

salvar os irmãos Rômulo e Remo origina o povo romano, ora um Deus Sol, que ao passear pelo<br />

céu em uma carruagem puxada por cavalos traz luz e vida para a Terra.<br />

Portanto, nessa fase, o ser humano vivia em um estado de imersão, por assim dizer, com a<br />

Terra. Sendo assim, natureza e ser humano faziam parte de uma totalidade, na qual o último<br />

estava de fato incluído no primeiro e vice-versa. Não havia a separação comumente encontrada<br />

nos dias vigentes, possível de ser constatada ao indagar crianças e até adultos: “o que é<br />

natureza?” E, obter como resposta: plantas, bichos árvores, matas e, quase nunca: homem,<br />

mulher, ser humano, eu ou você. Entretanto, na época primitiva a natureza apresentava-se de<br />

forma anímica, fazendo-se próxima do humano em um convívio de totalidade, isto é, era parte<br />

infl uente e integrante do dia-a-dia do humano, fosse para caçar, celebrar, prantear, rezar, entre<br />

outras tantas atividades cotidianas.<br />

Nesse sentido, é possível delinear um paralelo quanto ao desenvolvimento da consciência da<br />

criança em relação ao seu mundo circundante. No início da vida, não há uma autopercepção<br />

propriamente constituída por parte do bebê no tocante ao entorno universal. Para o recém-<br />

nascido, a mãe é sua principal fonte de referência e reconhecimento. Nesse estágio, a criança<br />

14 Esta é a primeira parte de um texto escrito em duas partes - que virá a seguir -, por dois diferentes autores, cuja proposta fi nal une<br />

as idéias de ambos.<br />

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90<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

está unida à mãe em um processo que a psicologia chama de simbiose, ou seja, seria como se<br />

a mãe, sua voz, seu rosto e tudo mais fosse uma extensão do bebê. Lacan (1998), usando o<br />

espelho como metáfora, explica que, nos primeiros meses de vida, a criança olha-se no espelho<br />

e percebe sua imagem como se fosse um outro corpo real, do qual tenta aproximação e até se<br />

apoderar. Nesse momento, ela não possui uma imagem da totalidade de seu corpo, o qual se<br />

confi gura despedaçado (corps morcelé). Aos poucos, percebe que o refl exo no espelho não é um<br />

ser real, mas uma imagem e, por isso, pára de procurá-lo atrás do espelho. E, fi nalmente, em<br />

uma última fase, reconhece que a imagem é o refl exo de si; ocasião em que se nota um grande<br />

interesse pelo movimento do corpo, pela ação e por brincar.<br />

Resulta que somente após um processo lento e gradual a criança começa se aperceber no<br />

mundo como um ser autônomo, sendo que dependerá sobretudo da qualidade e do suporte do<br />

vínculo parental estabelecido para que ocorra o salutar desenvolvimento da autonomia com<br />

confi ança, equilíbrio e plenitude.<br />

Poderíamos então notar que em ambos os casos mencionados, tanto o homem primitivo quanto<br />

o bebê pertenceram a um estágio de mergulho no inconsciente, isto é, estiveram imersos em<br />

um todo indiferenciado cuja discriminação inexiste. Não há constituição do ego/eu. Portanto,<br />

resguardadas as diferenças, podemos traçar uma analogia entre a passagem ao estágio de Homo<br />

sapiens sapiens 15 , pelo menos no que tange o desenvolvimento da consciência, como equivalente<br />

ao que ocorre com uma criança entre o nascer e os primeiros meses de vida.<br />

Dessa forma, análogo à criança, o ser humano foi experimentando a vida e formando seu<br />

ego. Inevitavelmente, chamamos isso de “evolução”, o que, de certo modo, signifi ca dizer que<br />

atribuímos à evolução tudo que pertence à consciência, os aspectos formais, racionais e todos<br />

os códigos normativos, jamais aspectos do inconsciente como, por exemplo, a criatividade, o<br />

sentimento, a sensação ou a intuição.<br />

Entender esse processo, ajuda-nos a compreender o caminho da história humana até chegar<br />

ao panorama atual.<br />

Saímos de um estágio de vida planetária primitiva, indiferenciado e predominado pelo estado<br />

inconsciente, regido pelos instintos de sobrevivência cujo centro da vida era identifi cado na<br />

coletividade, sem discriminação ou noção de autonomia. Deu-se, por essa via, o processo histórico de<br />

mundo que hoje conhecemos. O ser humano então começa a ter consciência, experimentar o mundo,<br />

conhecer instrumentos, mecanismos e, fi nalmente, adquire conhecimento. Em seguida, inicia-se<br />

o processo de trabalho e o Homo sapiens é fragmentado, torna-se quase somente Homo faber,<br />

15 Homo sapiens (homem sábio): nome da espécie homem na nomenclatura de Lineu, cunhado pela primeira vez na obra Sistema da<br />

Natureza, em 1735. Mais adiante a expressão foi retomada por Henri Bergson (2006) para indicar o homem, único animal inteligente<br />

em face aos demais.<br />

Homo faber (homem artífi ce): locução também empregada por Henri Bergson (2006) para designar o homem primitivo ante a necessidade<br />

de forjar ele próprio os utensílios indispensáveis à manutenção da vida. ARENDT (1991), ao retomar tal conceito, produz um<br />

bom apanhado crítico sobre o histórico do Homo faber.<br />

Homo ludens (homem lúdico): refere-se à importância do lúdico, inerente ao homem, nas realizações humanas, especialmente nas<br />

de caráter intelectual. O historiador holandês Huizinga (2001) foi um dos primeiros a enfatizar o termo, que deu origem a um movimento<br />

contracultural que se opõe ao Homo faber, isto é, aquele que faz.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

deixando o Homo ludens à míngua. Partindo do Renascimento, passa-se pela Revolução Industrial e,<br />

enfi m, chega-se até a Revolução Francesa para defi nitivamente saudar a razão com luzes, êxtase e<br />

vibração. A partir de então, após esse longo caminho, o mundo não seria mais o mesmo. A construção<br />

epistemológica não teria outra chance, a não ser seguir a mesma trilha empirista, que nega a fé dos<br />

tempos teocêntricos com outra fé tão equivalente quanto aquela, cujo Deus trocava apenas seu<br />

nome para Razão, a qual, desta vez, aplicava toda Sua força à ciência monolítica.<br />

Sobre esse ponto, faz-se interessante notar que a psique age por função compensatória, ou seja,<br />

busca o equilíbrio (homeostase) por meio de um princípio autônomo de auto-regulação (JUNG,<br />

1984, 1991, 2000). Portanto, o fenômeno de fusão com o inconsciente que existia originalmente<br />

entre ser humano e mundo, verifi cado também entre indivíduo e grupo (NEUMANN, 1995),<br />

dirigiu-se ao seu oposto, que signifi ca a saída do ego de um núcleo, digamos, grupal, coletivo e<br />

inconsciente rumo ao nascimento da consciência, à conquista da individualidade. Assim, o ser<br />

humano que antes era parte integrante da psique coletiva do seu grupo, enveredou pelo caminho<br />

da unicidade constitutiva do indivíduo, que pode ser compreendida como uma busca psíquica<br />

compensatória natural. A questão crucial é o grau da medida, visto que não é possível residir em<br />

apenas uma das polaridades, pelo menos, sem que haja sérios agravos e danos.<br />

Erro foi, nesse percurso, acreditar que o pensamento pré-logico constituía incapacidade<br />

de pensar logicamente. Contrário ao que a corrente racional tentou promover por ignorância<br />

ou preconceito, o ser primitivo − assim como, por exemplo, o índio − sempre foi capaz de tal<br />

atributo, mas, obviamente, inserido em uma cosmovisão orientada por uma logicidade diferente<br />

do ser humano secularizado, pois a orientação, antes imbuída pelo inconsciente, guiava-se por<br />

funções psicológicas esquecidas como o sentimento, a intuição, a sensação, e não meramente<br />

regida pela única e exclusiva lógica da consciência e do pensamento que sobrepuja qualquer<br />

outra forma de interação com o mundo (NEUMANN, 1995).<br />

Desse modo, o ser humano foi fragmentado e se tornou um ser monolítico, surdo e insensível<br />

aos seus próprios recursos humanos, que continua a insistir em agir como se fosse possível<br />

compartimentar sentimento, sensação, intuição e pensamento e, ainda, como se não bastasse,<br />

consegue outra subdivisão de si em corpo e mente.<br />

A visão compartimentada, cientifi cista, linear, cartesiana, estruturalista, piagetiana,<br />

vigostkiana, entre inúmeras modalidades construtivistas arraigadas nos discursos de métodos,<br />

louvados especialmente no século XVII, conseguiu fundar o ser humano disciplinar, socialmente<br />

enquadrado e regrado, que para dizer o mínimo, tornou-se monocular, senão defi ciente visual<br />

(D’AMBROSIO, 2001).<br />

As fi chas foram apostadas no modelo binômico taylorista/fordista cuja estrutura de trabalho<br />

valorou o potencial humano como um produto fi nal da razão encontrada entre a relação:<br />

efi ciência e efi cácia, que, mais uma vez, fez-nos cindir, mesurando o humano em tempo<br />

produtivo e agente de ação técnico-linear; era o nascedouro do especialista.<br />

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92<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Nesse cenário, não fi ca tão difícil compreender qual rumo a concepção de propriedade tomou<br />

em nossa história. O ser humano antes coletivo não conseguia se diferenciar da coletividade, do<br />

seu meio, o qual o incorporava para si. Então, parte para o pólo oposto, individualiza cada vez<br />

mais sua ação e fragmenta seu ser em busca da amplitude do conhecimento, de novos valores<br />

e, por conseguinte, reconhecimento social. Ocorre, portanto, a inversão de uma ordem que<br />

outrora se estruturava em uma instância macro, para o universo micro.<br />

A intenção é “reduzir”, não como se começa a apregoar na atualidade, em termos de<br />

estabelecer uma redução que pretende frear o consumo excessivo, economizar a fi m de evitar<br />

o esgotamento, para preservar, não!<br />

A idéia é outra, a redução havia de ocorrer porque a construção epistemológica pautava-se<br />

exclusivamente no método cartesiano, que se não teve êxito em bem conduzir a própria razão e<br />

encontrar a Verdade nas ciências 16 , com certeza levou o humano à fragmentação que, por meio do<br />

processo de frenesi pela divisão do método científi co, conduziu sim o próprio pensamento ao seu<br />

menor grau de escala, ao direcionar o pensar sob a tutela da valoração do que se pretende conseguir<br />

a partir do secionamento, até chegar ao tamanho mínimo, e muito melhor se o resultado for obtido<br />

em tempo mínimo, adaptável ao menor espaço, com custo mínimo, tal qual se aprecia nos celulares,<br />

palmtops e afi ns. A isso, denominamos tecnologia. A tentativa é reduzir, por exemplo, os objetos<br />

para que caibam em qualquer lugar que estejamos, pois tudo deve se adequar à utilidade, ao nosso<br />

serviço e desejo − ao encontro do legado cartesiano. Na mesma vertente, há de se reduzir também o<br />

tempo de tudo, que por curiosa contradição, quando atingido, serve para que se obtenha mais tempo<br />

para fazer mais, nunca menos; uma lógica temporal inatingível. Vale aqui ressaltar que não se trata<br />

de consubstanciar uma crítica alicerçada em um pensamento nostálgico, purista ou ingênuo, que<br />

rema na contramão do progresso ou da tecnologia, a qual, diga-se de passagem, é extremamente<br />

útil e bem-vinda, mas a pretensão é refl etir sobre o ônus que nos acarretou esse mergulho da busca<br />

do conhecimento/consciência, pois ao que parece essa imersão, talvez, chegue − se já não estiver<br />

− em fundo equivalente àquele dos nossos antepassados, porém pelo lado inverso.<br />

Submerso nessa condição, a visão de mundo do ser humano acabou também reduzindo seu<br />

olhar somente ao local setorial, voltado ao micro, sem fazer a ponte com o macro, pois em tal<br />

estado de fragmentação impossível seria sopesar o fi el da balança, o qual inevitavelmente pendeu<br />

apenas para um único lado. Longe da proposta de Pascal − que antecipava a transdisciplinaridade<br />

− de que “o todo está na parte e a parte está no todo” (PASCAL apud MORIN, 2000, p. 81). Não<br />

havia chance ao olhar holístico inserido em movimento espiral, mas somente o de estrutura<br />

piramidal que corria em lado único e exclusivamente vertical.<br />

A “descoberta” colonizadora − melhor colocada sobre o termo “invasão” (GAMBINI, 2000) − soube<br />

instaurar os ensinamentos adquiridos desde os códigos romanos de propriedade, caracterizados<br />

pelo direito absoluto e pleno que davam garantias de poder de uso, gozo e disposição perpétua<br />

16 Referência ao subtítulo da notória obra de Descartes Discurso [sobre o] do Método, conforme segue: “Para Bem Conduzir a<br />

Própria Razão e Procurar e Verdade nas Ciências” (DESCARTES, 1996, p. 61).


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

e exclusiva, a qual fazia o ser humano aderir ao espaço, tornando-o posse, inclusive dando-lhe<br />

o direito de reaver a propriedade ao detentor por diversas maneiras (D’AMBROSIO, 2001). Na<br />

idéia de “descoberta” − palavra cujo fascínio semântico tanto ludibriou −, imprime-se a posse<br />

do outro, a qual anula, despreza a origem e, ainda, consegue fazer incutir no “descoberto”<br />

a mesma crença. A isso, em outras palavras, Gambini (2000) coloca que a formação de nossa<br />

identidade já parte de uma história fantástica, a qual, à diferença de outros povos, surge como<br />

conseqüência de um feito extraordinário. Tal idéia:<br />

[...] implica que tudo que estava ali apenas à espera de ser achado, como um tronco<br />

fl utuante que o mar traz até a praia, como se a vastidão toda fosse terra de ninguém.<br />

Quando um sujeito se apossa de um objeto não identifi cado, imediatamente surge a<br />

noção de que os habitantes dessa terra sem nome, sem dono e sem passado estavam<br />

ali como peças de cenário, desprovidos de qualquer direito, até mesmo o de poderem<br />

continuar sendo o que sempre haviam sido (GAMBINI, 2000, p. 21).<br />

O tema da conseqüência da idéia de Paraíso que habitava a mente dos colonizadores<br />

europeus já foi exaustivamente discutido por autores como Bellah (1994), Gambini (2000),<br />

Holanda (1969), Junqueira (2001a, 2001b, 2003) e até, de certo modo, Tocqueville (1977).<br />

Prevaleceu, nesse confl ito, a concepção do colonizador, do estrangeiro, do outro que fez<br />

com que a Terra e todos os recursos naturais, outrora bem comuns, fossem transformados e<br />

submetidos ao pensamento “lógico”, isto é, ao sistema cultural, sociopolítico e econômico da<br />

metrópole. Usurpou-se a identidade alheia e tudo nela envolvido, fazendo-nos um mal pior,<br />

crer que nossa era a identidade e desejo do outro. Construímos e incorporamos a identidade<br />

daquele que estabelecia uma relação apenas de uso para fi ns próprios de acúmulo de riqueza<br />

em forma de bens, sem que houvesse qualquer comprometimento com a Terra, pois não havia<br />

sentimento de pertença, ou identifi cação. As terras exploradas não pertenciam a ninguém, mas<br />

sim a quem as “descobrissem”; o outro que ali vivia era selvagem, fértil forma humana a serviço<br />

de projeções européias que ora o identifi cava como mal, ora como bon sauvage, tal qual Rousseau<br />

veio a propor mais tarde; porém, o que ninguém enxerga era o que ali factualmente estava. O<br />

sentimento de bem comum, preocupação ambiental ou respeito ao lugar do outro, as diferenças<br />

e valores semelhantes são invenções contemporâneas deveras incipientes, que só vieram à tona<br />

por questões emergenciais, falta de saída, medo e outros quesitos ainda impulsionados pela<br />

lógica individualista de uma política neoliberal que quer preservar para salvar o próprio pescoço<br />

ou, quando muito elaborado, de gerações ‘suas’ futuras...o outro? Quem é o outro?<br />

Contudo, as atividades educacionais propostas que seguem neste livro com certeza não<br />

resolverão grandes questões ambientais ou salvarão o mundo, mas lançaram nas mãos de quem<br />

as fez, de quem participou delas e lançarão nas de quem agora nos lê sementes; um fi o de<br />

refl exão que poderá multiplicar uma idéia.<br />

Já passa da hora de trabalhar, em escolas, a transdisciplinaridade, fundamentada em um<br />

pensamento que vê, quer e enxerga a vida de modo fl uido, sistêmico, interligado e relacionado<br />

93


94<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

por trocas. Não há mais como imaginar um campo disciplinar do saber e do conhecimento. O<br />

centro do saber e do conhecimento está em toda parte e com todos. Já é mais do que sabido<br />

que a construção científi ca não é puramente empírica e que a própria construção do saber e<br />

do conhecimento é axiomática, pois não há uma relação de inferência igual à outra no mundo,<br />

mesmo que seja observada sob conceito formal idêntico.<br />

As proposições colocadas nos eixos transversais das atividades podem ser visíveis em qualquer<br />

ação cotidiana do indivíduo; por isso, uma vez refl etida na escola é possível que seja levada<br />

para a família, para a comunidade local e, com muita esperança e fé, chegue a mudar o<br />

pensamento futuro.<br />

Impossível pensar a escola, a vida e o futuro do planeta sem considerar questões postas nos<br />

princípios e compromissos da Carta da Terra, já tão debatidos neste livro e ampliados nas escolas<br />

com as crianças por meio das atividades “inter-trans-pluri-disciplinares” que trabalharam<br />

temas urgentes como ética, diversidade, multiculturalismo, intraculturalidade, transculturalidade,<br />

respeito às diferenças e às minorias, troca de saberes, resgate histórico, tradições,<br />

cultura popular, participação comunitária, cooperação, trabalho em rede, coletividade, cidadania,<br />

conscientização ambiental, economia solidária, sustentabilidade, preservação do patrimônio<br />

comum e do trabalho alheio, alteridade, identidade, saúde, gênero, desenvolvimento<br />

humano...e, se não esquecemos algum, com a vida.<br />

Para terminar esta primeira parte, fi ca uma mensagem de Heidegger (1973, apud BUZZI,<br />

2001, p. 197) sobre ensinar:<br />

É bem sabido que ensinar é ainda mais difícil que aprender. Mas raramente se pensa<br />

nisso. Por que ensinar é mais difícil que aprender?<br />

Não porque o mestre deva possuir um maior acervo de conhecimentos e os ter sempre<br />

à disposição.<br />

Ensinar é mais difícil do que aprender porque ensinar quer dizer deixar aprender.<br />

Aquele que verdadeiramente ensina não faz aprender nenhuma outra coisa que não<br />

seja o aprender. É por isso que o seu fazer causa muitas vezes a impressão que junto<br />

dele nada se aprende. Isso acontece porque inconsideradamente entendemos por<br />

aprender a só aquisição de conhecimentos utilizáveis.<br />

O mestre que ensina ultrapassa os alunos que aprendem somente nisto: que ele deve<br />

aprender ainda muito mais do que eles, porque deve aprender a deixar aprender.<br />

O mestre deve poder ser mais ensinável [sic] que os alunos.<br />

O mestre é muito menos seguro do seu ofício que os alunos do seu. Por isso, no<br />

relacionamento do mestre que ensina e dos alunos que aprendem, quando o<br />

relacionamento for verdadeiro, jamais entram em jogo a autoridade de quem sabe<br />

muito nem a infl uência autoritária do representante magisterial.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Por causa disso é ainda uma grandeza ser mestre – que é bem outra coisa que ser<br />

professor célebre. Se hoje – onde tudo é medido sobre o que é baixo e conforme ao<br />

que é baixo, por exemplo, sobre o lucro – ninguém mais deseja ser mestre, isso é<br />

devido sem dúvida ao que esta grande coisa implica e a grandeza de si própria.<br />

Kleber Maia Marinho é educador, coordenador pedagógico, autor de livros didáticos para o<br />

ensino médio, tradutor-intérprete, psicólogo e mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia<br />

Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> – PUC/SP.<br />

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96<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

REAPROXIMAR PELA ESPIRITUALIDADE 17<br />

Denise Lopes de Souza<br />

A leitura do pensamento de Heidegger exposto no texto anterior permite interpretá-lo como<br />

uma representação da complexidade e da riqueza do que é ensinar. Felizmente já sabemos que<br />

a educação ultrapassa os limites técnicos e está sedenta por reaproximar-se não só do planeta,<br />

mas também do próprio fato de ser humano. A vida escolar não pode mais ser considerada<br />

como somente o ensino de disciplinas como matemática, português ou ciências, mas sim como<br />

a refl exão sobre o que somos na totalidade e do que precisamos para viver em harmonia.<br />

Ao pesquisar o sentido etimológico da palavra “educar”, encontra-se a origem latina “educare”<br />

que signifi ca literalmente “conduzir para fora” (VALENTE, 1993), ou seja, desenvolver algo<br />

já latente. Assim, a educação deve assumir como objetivo a promoção do desenvolvimento<br />

prático das habilidades inatas no ser humano entre as quais está, naturalmente, a interação<br />

dos indivíduos com o meio em que vivem. A convivência comunitária das pessoas pode ser<br />

representada por uma complexa rede de inter-relações que abrange diversos aspectos: culturais,<br />

individuais, ambientais, sociais, étnicos, religiosos, psicológicos e espirituais. Em outras<br />

palavras, a educação deve tomar para si a preocupação em “conduzir para fora” aptidões inatas<br />

nos indivíduos que os permitam interagir harmoniosamente com os aspectos acima citados.<br />

No entanto, o que temos visto em nosso processo educacional é tanto a fragmentação disciplinar<br />

que impossibilita o entendimento das coisas em sua complexidade e interação com o meio, quanto<br />

o foco da educação voltado para o pragmatismo. Conforme já abordado, a Revolução Industrial<br />

exerceu marcante infl uência na construção do pensamento moderno e, conseqüentemente, no<br />

processo educacional, o qual se desenvolveu direcionado exclusivamente para o mercado. Somos<br />

herdeiros de uma colonização que não passou de uma empreitada comercial, o que resultou<br />

na comercialização até de seres humanos. Tendo em vista este ambiente colonizador, “não<br />

teria sido possível um tipo de relações humanas que pudesse criar disposições mentais fl exíveis<br />

capazes de levar o homem a formas de solidariedade que não fossem as exclusivamente privadas”<br />

(FREIRE, 1967, p. 73). Conseqüentemente, tampouco teria sido possível o desenvolvimento de<br />

um sistema educacional que permitisse refl exões sobre a complexidade de “ser” humano. É<br />

possível que muito desse legado de fragmentação advenha do afastamento do humano daquele<br />

estado indiferenciado com o planeta, o qual concebia a vida em sua totalidade, tendo o respeito<br />

ao ambiente como um dado regente natural de seu comportamento, conforme já comentado.<br />

Como herança de um processo pedagógico desfocado, que menospreza o ambiente e o humano<br />

como ser vivo nele integralmente inserido, enfrentamos atualmente diversos problemas, tais como<br />

injustiça social, degradação da fauna e da fl ora, fome, violência, falta de solidariedade e de ética.<br />

17 Esta é a segunda parte do texto, escrita pela segunda autora.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Felizmente nasce uma “contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania<br />

onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações humanas e solidárias,<br />

fazendo retroceder o reino do lucro”, bem como outra “contracorrente, também tímida, que,<br />

em reação ao desencadeamento da violência, nutre éticas de pacifi cação das almas e das<br />

mentes” (MORIN, 2001, p. 73).<br />

Acredita-se que a busca desenfreada por lucro, a qual subestima a solidariedade, o<br />

respeito, a ética e a paz, esteja enraizada na desconsideração, durante o processo<br />

educacional, de questões integralmente humanas. Como conseqüência, a representação<br />

de “ser” humano perdeu sua importância na prática educacional diária e, por isso, não<br />

raramente nos deparamos em situações nas quais os ditos humanos se comportam como<br />

completamente dissociados da solidariedade, ética e respeito − habilidades que deveriam<br />

ter sido desenvolvidas no processo de educação do indivíduo, e que um dia fi zeram parte<br />

natural da convivência comunitária. Questões como quem somos? Onde estamos? De onde<br />

viemos? E, para onde vamos? (MORIN, 2001) são inseparáveis e devem, portanto, estar<br />

presentes no processo de desenvolvimento educacional.<br />

O que se pretende com este texto, portanto, é a sugestão do resgate da refl exão sobre o<br />

processo de “ser” humano, a saber: tornar a espiritualidade participante ativa do processo<br />

pedagógico, ou seja, como disciplina curricular.<br />

Sabemos que o conceito de “espiritualidade” é difuso no universo acadêmico, uma vez<br />

que não é de fácil defi nição. Por um outro lado, jamais deixou de se fazer presente na vida<br />

de qualquer cidadão, visto que é parte da natureza humana. Sendo assim, abandonaremos<br />

a conjectura retórica que insiste em defi nir as coisas em seus blocos paradigmáticos e<br />

aceitaremos o termo “espiritualidade” como o “contínuo desenvolvimento da identidade”<br />

(TISDELL e TOLLIVER, 2003, p. 374, tradução nossa). Esta será a defi nição norteadora deste<br />

texto. Entenderemos a espiritualidade como um processo contínuo de autoconhecimento, o que<br />

tem como conseqüência a interação com o meio em todos os aspectos: ambientais, culturais,<br />

étnicos, sociais, psicológicos, políticos. Contemporaneamente, “o holismo introduziu a idéia de<br />

espiritualidade não como religião ou crença em Deus, mas como busca permanente de sentido<br />

para a vida. A espiritualidade é algo pessoal, embora construída socialmente, que está presente<br />

no ser humano desde a infância” (GADOTTI, 2000, p.78). Portanto, a inclusão da refl exão sobre<br />

a espiritualidade no processo pedagógico requer fi rme consideração.<br />

A falta de refl exão sobre o autoconhecimento durante a prática educacional cotidiana pode<br />

resultar em problemas, os quais, normalmente, não são associados a tal ausência. Difi cilmente<br />

conseguimos, por exemplo, reconhecer a violência mostrada pelo aluno em sala de aula como<br />

sintoma de uma possível crise de identidade do mesmo. “Parece não se acreditar que o jovem<br />

tenha angústias e incertezas existenciais. Não se percebe que muito do que não se admite –<br />

e mesmo se reprime – do comportamento juvenil está vinculado a crises de espiritualidade”<br />

(D´AMBROSIO, 2001, p.150) .<br />

97


98<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Os principais referenciais teóricos pesquisados para este texto, felizmente, apontam para<br />

propostas pedagógicas fundamentadas no resgate do conhecimento do ser humano como<br />

um todo. Frente à miríade de conceitos que devem ser abordados no processo educacional,<br />

o que determina uma nova relação com o saber, propõe-se um abandono de paradigmas<br />

lineares, paralelos ou piramidais, os quais representam estruturas nivelares e hierárquicas,<br />

em substituição por um saber contínuo, em fl uxo, não linear, complexo (LEVY, 2000). O saber<br />

agora deve ser guiado por paradigmas tão fl exíveis e complexos, a saber, transdisciplinaridade,<br />

interdisciplinaridade, pluri/polidisciplinaridade, quanto a complexidade que enfrentamos no<br />

dia-a-dia. Esses referenciais teóricos apontam, acredita-se, para o resgate da espiritualidade:<br />

Para Edgar Morin:<br />

As crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições:<br />

possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser<br />

humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a<br />

afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade<br />

entre Homo faber, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o desenvolvimento<br />

do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico,<br />

mítico, mágico ou poético (MORIN, 2001, p. 59).<br />

Educar para compreender matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa;<br />

educação para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente<br />

espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e<br />

garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade (MORIN, 2001, p. 93).<br />

Moacir Gadotti, por sua vez, afi rma que atualmente estamos nos conscientizando que “o sentido<br />

de nossas vidas não está separado do sentido do próprio planeta (GADOTTI, 2000, p. 77, grifo do<br />

autor)”, ou seja, educar para a compreensão do planeta implica em educar também para o sentido<br />

de nossas próprias vidas, o que, conseqüentemente, implica na refl exão sobre a espiritualidade.<br />

Faz-se necessário, entretanto, esclarecer que a sugestão pela refl exão sobre a “espiritualidade”<br />

no processo educacional não é o mesmo que sugerir “ensino religioso”, o que poderia, inclusive,<br />

resultar no desenvolvimento do temido fundamentalismo preconceituoso que considera o<br />

seu próprio ponto de vista como superior aos outros. Embora a inclusão da refl exão sobre a<br />

espiritualidade no processo educacional − o que provavelmente nos permitiria reaproximar<br />

do planeta − pareça algo utópico e inatingível, acreditamos válido insistir na consideração<br />

da problemática apresentada, uma vez que, inegavelmente, deparamo-nos diariamente com<br />

a violência, injustiça social, falta de solidariedade, problemas ambientais, que nos atingem<br />

direta ou indiretamente. Em outras palavras, não existe mais espaço para cruzar os braços<br />

e esperar que os problemas sejam resolvidos por outros. É hora de nos munirmos de nossos<br />

conhecimentos e boa vontade a fi m de trabalhar efetivamente pela mudança de paradigmas<br />

obsoletos, deixando de lado o temor à criatividade e abrindo corajosamente as portas para<br />

o novo. Alguns já se mostram altamente engajados com o processo de melhora e mudança


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

de nosso sistema pedagógico. Podemos mencionar as reformas curriculares na Espanha e no<br />

Brasil que reconhecem a importância de temas “transdisciplinares ou transversais como:<br />

ética, cidadania, diversidade cultural, meio ambiente, saúde, sexualidade, paz, não violência,<br />

trabalho e consumo” (GADOTTI, 2000, p. 93) no cotidiano escolar. O engajamento de algumas<br />

pessoas envolvidas com a educação já determina o primeiro passo para a mudança. Iniciativas<br />

como as do trabalho feito no Pontal do Paranapanema confi rmam a existência no Brasil da<br />

contracorrente comentada por Edgard Morin, que luta contra a injustiça, a degradação do<br />

ambiente, a desigualdade social, a violência, o preconceito, a fome, a tristeza, a crise espiritual<br />

que enfrentamos em nosso núcleo social.<br />

Os educadores devem, entretanto, estar cientes que essa proposta de renovação de<br />

paradigmas é um processo lento. De qualquer forma, embora alguns conceitos demorem anos<br />

para “brotar”, bem sabemos que, uma vez enraizados, perdurarão por muitos anos, como têm<br />

perdurado os velhos conceitos de educação linear, hierárquica, dual e fragmentada, do tipo “eu<br />

ensino, tu aprendes”, com a qual convivemos atualmente. Com a nossa refl exão certamente<br />

podemos nos incluir entre aqueles participantes do processo de mudança que pedem seu<br />

espaço na prática pedagógica vigente. Ainda que não vejamos com nossos olhos um país onde a<br />

injustiça, a violência e o desrespeito não mais imperem, podemos estar certos que participamos<br />

da mudança. Talvez estejamos plantando as sementes de uma educação que substituirá o “eu<br />

ensino, tu aprendes” pelo “compartilhamos criativa e mutuamente ensino e aprendizagem de<br />

forma respeitosa, solidária e ética”.<br />

Sugestão para reaproximar<br />

Embora a questão da educação tenha sido exaustivamente discutida nos últimos anos,<br />

acreditamos que toda a refl exão seja válida no sentido de representar, pelo menos, uma<br />

reavaliação da prática exercida. Apoiamos a efetividade de todas as críticas, porém acreditamos<br />

que mais efi cazes são aquelas que apresentam uma proposta concreta de alteração do que já não<br />

mais surte o efeito que esperamos, ao contrário daquelas discussões retóricas que belamente<br />

apresentam o problema, mas raramente incorrem no risco de sugerir, de maneira prática,<br />

propostas de mudança. Considerando, portanto, a refl exão ora exposta, apresentamos uma<br />

proposta pedagógica objetiva: a inclusão da Carta da Terra e, conseqüentemente, a contemplação<br />

de seus princípios, como parte integrante da grade curricular escolar que, em última instância,<br />

visa tornar a espiritualidade diálogo constante e permanente no cotidiano escolar.<br />

O que se propõe é, sobretudo, a prática da auto-refl exão e da busca pelo autoconhecimento, no<br />

cotidiano escolar, visto que “a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão<br />

de outro” (MORIN, 2001, p. 97), e resulta em violência, preconceito e intransigência. É evidente<br />

que a sugestão tampouco deve ser compreendida como mais uma mera obrigação disciplinar,<br />

aquela que nos amarra aos conceitos pré-estabelecidos de avaliação e limita a criatividade do<br />

educador. Pretende-se, sim, que os princípios da Carta da Terra sejam fi lhos do uso autônomo e<br />

criativo do processo educacional por intermédio da refl exão sobre a espiritualidade e que essa<br />

99


100<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

se transforme efetivamente em projetos voltados ao benefício da comunidade, o que pode ser<br />

usado, inclusive, como forma de avaliação da disciplina. O intuito é que futuramente o educando<br />

seja capaz de alcançar um nível de desenvolvimento que espelhe a solidariedade, o respeito,<br />

em seu mais abrangente alcance, e a ética como partes integrantes de seu cotidiano.<br />

As atividades conduzidas no Pontal do Paranapanema representam o início de uma refl exão<br />

que consideramos essencial no processo educacional vigente. Por isso, acreditamos que, da<br />

mesma maneira que os alunos têm em seu currículo escolar disciplinas como matemática,<br />

português, ciências, entre outros, também deveriam ter “aula de Carta da Terra”. Essa aula<br />

seria a oportunidade para a refl exão sobre os seguintes temas:<br />

• Ética<br />

• Diversidade<br />

• Multiculturalismo<br />

• Intraculturalidade<br />

• Transculturalidade<br />

• Respeito às diferenças físicas, étnicas, culturais e religiosas<br />

• Cidadania<br />

• Solidariedade<br />

• Cooperação<br />

• Conscientização ambiental<br />

• Trabalho em rede<br />

• Coletividade<br />

• Conceitos ligados à saúde<br />

• Troca de saberes<br />

• Resgate histórico<br />

• Cultura popular<br />

• Tradições folclóricas<br />

• Participação comunitária<br />

• Economia solidária<br />

• Consumo sustentável<br />

• Respeito às minorias<br />

• Preservação do patrimônio comum<br />

• Alteridade<br />

• Espiritualidade<br />

• Processos de sustentabilidade<br />

• Gênero<br />

•<br />

Desenvolvimento humano


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

A liberdade de criar, principalmente no tocante aos temas a serem trabalhados, deve<br />

ser preservada em sala de aula. As atividades conduzidas no Pontal do Paranapanema<br />

representam um ótimo exemplo de como se trabalhar com tais temas, visto que a criatividade,<br />

a espontaneidade e a construção compartilhada foram eixos condutores da apresentação de<br />

temas complexos às crianças.<br />

Acreditamos que tais atividades, entretanto, sempre serão melhores aproveitadas quando<br />

revertidas em projetos práticos voltados ao benefício ou à conscientização da comunidade,<br />

tal qual ocorre na atividade “Campanha do leite”, por exemplo. Sugerimos, portanto, que o<br />

parâmetro de avaliação da “disciplina Carta da Terra” seja construído por meio do resultado do<br />

envolvimento com a comunidade. Se possível, tornando os alunos responsáveis por suas próprias<br />

avaliações no desempenho de seus projetos, levando em conta o resultado que geraram de fato<br />

em termos de mudança e mobilização comunitária e/ou social ou por aquilo que tal projeto<br />

conseguiu trazer à tona enquanto iniciativa ou potencial, a despeito do resultado ter sido positivo<br />

ou não sob o ponto de vista prático, material ou concreto e, enfi m, promover a capacidade<br />

de percepção que vários aspectos são abordados quando se desenvolve uma atividade como<br />

esta. Ainda no caso da “Campanha do leite”, o educador poderia, por exemplo, trabalhar<br />

matemática ao contar as caixas de leite, geometria ao refl etir sobre o formato das caixas,<br />

noção de distância ao refl etir sobre o tempo gasto para se chegar ao local de distribuição, e<br />

assim por diante. Além disso, temas como solidariedade são claramente também trabalhados<br />

com tal atividade, por exemplo, princípios de participação e economia solidária. É evidente<br />

que tais refl exões devem ser adaptadas de acordo com a idade das crianças, utilizando-se de<br />

linguagem que favoreça a compreensão de que a convivência em comunidade é sinônimo de<br />

uma complexa rede de fatores que determinam seu funcionamento e, conseqüentemente, o<br />

mesmo ocorre com o aprendizado.<br />

Denise Lopes de Souza é educadora, psicóloga e mestre em Ciências da Religião pela<br />

Pontifícia Universidade Católica de São <strong>Paulo</strong> – PUC/SP<br />

Referências<br />

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.<br />

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BUZZI, A. R. Introdução ao Pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. 28. ed., Petrópolis:<br />

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101


102<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

D’AMBROSIO, U. Transdiciplinaridade. São <strong>Paulo</strong>: Palas Athena, 2001.<br />

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.<br />

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Terceiro Nome, 2000.<br />

HUIZINGA, J. Homo ludens: O Jogo como elemento da Cultura. 5. ed. São <strong>Paulo</strong>: Perspectiva,<br />

2001.<br />

HOLANDA, S. B. de. Visão de Paraíso. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Cia. Editora Nacional, 1969.<br />

JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1984. (Obras Completas de C. G. Jung,<br />

v. 8/2)<br />

______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. (Obras Completas<br />

de C. G. Jung, v. 9/1)<br />

______. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 6)<br />

JUNQUEIRA, M. A. Estados Unidos: a consolidação de uma nação. São <strong>Paulo</strong>: Contexto, 2001a.<br />

______. Representações políticas do território latino-americano na Revista Seleções. Revista<br />

Brasileira de História, São <strong>Paulo</strong>, v. 21, n. 42, p. 323-342, 2001b.<br />

______. O discurso de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. Revista Margem:<br />

humanismo e barbárie, São <strong>Paulo</strong>, n. 17, p. 163-171, jun. 2003.<br />

LACAN, J. Escritos, Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998<br />

LÉVY, P. Cibercultura. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Ed. 34, 2000.<br />

MORIN, E. Os sete saberes necessários à Educação do Futuro. 4. ed. São <strong>Paulo</strong>: Cortez/<br />

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NEUMANN, E. História da origem da consciência. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Cultrix, 1995.<br />

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TISDELL, E. J.; TOLLIVER, D. E. Claiming a sacred face. in: Journal of Transformative Education,<br />

v.1, n. 4, 2003.<br />

TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. 2. ed. São <strong>Paulo</strong>: Itatiaia, 1977.<br />

VALENTE, J.P. Resgatando sentidos. In: MELO, J.A.C. (Org.). Educação: razão e paixão. Rio de<br />

Janeiro: ENSP, 1993.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

A CARTA DA TERRA E O EDUCAR PARA A IDENTIDADE TERRENA: PRINCÍPIOS E RUMOS<br />

Sementes de Esperança em Experiências Educacionais do Ensino Fundamental<br />

no Pontal do Paranapanema<br />

José J. Queiroz<br />

A Carta da Terra, em seus 16 princípios, constitui um extraordinário avanço em termos de<br />

declaração dos direitos humanos ao incluir, no seu texto “os direitos da Terra”, estabelecendo a<br />

vinculação inseparável do humano ao biológico e à Terra como ser vivo a ser respeitado, protegido,<br />

preservado e amado. A Carta pretende também ser um guia para ações efi cazes no intuito de<br />

garantir que esse direito ampliado seja posto em prática. No dizer de Leonardo Boff, a Carta<br />

“é uma proposta de ética mundial, seguramente a mais articulada, universal e elegante que se<br />

produziu até agora.” Mas o seu objetivo vai além, pois enuncia princípios que ela pretende sejam<br />

assumidos e realizados “nas instâncias de poder locais, nacionais e internacionais, nos sistemas<br />

educacionais e na aprendizagem que se faz ao longo da vida, integrando conhecimentos, valores<br />

e habilidades para um modo de vida sustentável” (Carta da Terra, Princípio 14).<br />

Em um texto elaborado sob os auspícios da Unesco e do seu projeto transdisciplinar “Educar<br />

para um futuro viável”, publicado sob o título Sete Saberes necessários para a Educação do Futuro,<br />

Edgar Morin (2000) elabora, no dizer de Jorge Werthein, representante da entidade no Brasil,<br />

“eixos e, ao mesmo tempo, caminhos que se abrem a todos os que pensam e fazem educação e<br />

estão preocupados com o futuro das crianças e dos adolescentes” (WETHEIN, 2000: 12).<br />

Em um dos eixos da obra, “Ensinar a identidade terrena”, Morin coloca a questão: “como os<br />

cidadãos do novo milênio poderiam refl etir sobre os seus próprios problemas e aqueles de seu<br />

tempo?”. Essa questão comporta, segundo Morin, a necessidade de se compreender não só “a<br />

condição humana no mundo” mas também “a condição do mundo humano” que, com o desenrolar<br />

da história moderna, tornou-se “condição da era planetária”, cujo início se deu a partir do século<br />

XVI e, na segunda metade do século XX, entra na fase de “mundialização” (MORIN, 2000: 65).<br />

Neste “turbilhão em movimento”, que é o nosso planeta, faz-se necessário um “pensamento<br />

policêntrico”, multi e transdisciplinar, capaz de captar o seu universalismo e a um tempo a<br />

unidade/diversidade da condição humana, que se nutre das culturas do mundo. A educação<br />

do futuro requer que se trabalhe nesta visão de complexidade para suscitar a identidade e a<br />

consciência terrenas na era planetária. (cf. Ibid. 64-65)<br />

Como quem usa um estereoscópio, pretendo, neste breve ensaio, rever os princípios da<br />

Carta da Terra e os indicativos do pensamento de Morin na obra citada e no Método 6, Ética<br />

(MORIN, 2005) para olhar as experiências educacionais do Pontal do Paranapanema no intuito<br />

de realçar os seus relevos e a sua profundidade.<br />

103


104<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Em um prelúdio histórico, Morin indica como chegamos à era planetária, desde as origens da Terra até<br />

o aparecimento das nações modernas da Europa, que se lançaram à conquistas do globo, destroçaram<br />

ou dominaram as antigas civilizações, levando progresso e ruínas, até chegarmos ao século XX, com<br />

os horrores das duas guerras mundiais, as crises econômicas, a generalização da economia liberal<br />

que sustenta a infraestrutura da assim dita “ação civilizatória” do Ocidente. Essa conjuntura gera a<br />

interdependência global: “cada uma de suas partes tornou-se dependente do todo e, reciprocamente, o<br />

todo sofre as perturbações e imprevistos que afetam as partes. O planeta encolhe” (MORIN, 2000: 67). E<br />

o indivíduo também é afetado. Como um holograma em que cada parte contém a informação do todo,<br />

“cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo” (Idem, 67).<br />

Surge, então, o caráter complexo da mundialização: une e ao mesmo tempo divide, gera confl itos:<br />

Os antagonismos entre nações, religiões, entre laicização e religião, modernidade<br />

e tradição, democracia e ditadura, ricos e pobres, Oriente e Ocidente, Norte e Sul<br />

nutrem-se uns aos outros, e a eles mesclam-se interesses estratégicos e econômicos,<br />

antagonismos das grandes potências e das multinacionais voltadas para o lucro [...]<br />

Exasperam-se onde existem religiões e etnias misturadas, fronteiras arbitrárias entre<br />

Estados – exasperação de rivalidades e negações de toda ordem - como no Oriente<br />

Médio. [...] Dessa maneira, o século XX a um só tempo criou ou dividiu um tecido<br />

planetário único; seus fragmentos fi caram isolados, eriçados e intercombatentes. [...]<br />

O próprio desenvolvimento criou mais problemas do que soluções e conduziu à crise<br />

profunda de civilização que afeta as próprias sociedades do Ocidente (Ibid., 69).<br />

Neste ponto, o autor, assim como o fazem Leonardo Boff e Valéria Viana Labrea em seus<br />

escritos neste livro, critica a noção de desenvolvimento sustentável, apontando a necessidade<br />

de uma “noção mais rica e complexa”.<br />

Concebido unicamente de modo técnico-econômico, o desenvolvimento chega a um<br />

ponto insustentável, inclusive o chamado desenvolvimento sustentável. E´ necessária<br />

uma noção mais rica e complexa de desenvolvimento que seja não somente material,<br />

mas também intelectual, afetivo, moral...” (Ibid., 70).<br />

Nesta mesma linha de pensamento, a Carta da Terra, embora ainda mantendo a mesma<br />

terminologia, dá-lhe outro signifi cado mais amplo pois, em seus 16 princípios, o desenvolvimento<br />

é entendido muito além do técnico-econômico e inclui necessariamente o respeito e o cuidado<br />

da comunidade da vida, a integridade ecológica, a justiça social e econômica com todas as<br />

exigências decorrentes desses temas.<br />

O legado do século XX, diz Morin, é uma herança de morte, não só pela proliferação das armas<br />

nucleares e de outros veículos de extermínio em massa, mas também pela possibilidade que<br />

se avizinha da morte ecológica, pela crescente agonia da biosfera, pelo espalhar-se de vírus e<br />

bactérias mortíferas, pela investida da morte em nossas almas ocasionada pela consumo crescente<br />

e mundializado das drogas.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

À vista desse panorama, conclui o autor: “se a modernidade é defi nida como fé incondicional no<br />

progresso, na tecnologia e na ciência, no desenvolvimento econômico, então esta modernidade<br />

está morta” (Ibid., 72).<br />

Entretanto, no âmago das tragédias e do espectro de um fi nal trágico, brotam esperanças.<br />

Surgem as contracorrentes regeneradoras, que podem reagir contra as correntes mortíferas<br />

dominantes, desenvolver-se e mudar o rumo dos acontecimentos.<br />

Chegado a este ponto, deixo o texto de Morin para retomá-lo mais adiante, porque é no<br />

âmbito dessas vias regeneradoras que focalizo as experiências educacionais do Pontal do<br />

Paranapanema.<br />

O Caderno de Atividades traz inúmeras experiências. Limito-me a algumas, escolhidas<br />

apenas a título de exemplifi cação, sem nenhum critério específi co, pois todas são relevantes.<br />

Realizadas em escolas do Ensino Fundamental em um contexto de periferia e de pobreza, têm<br />

o objetivo de aplicar, em sala de aula, de modo concreto, interdisciplinar e transversal, os<br />

princípios da Carta da Terra.<br />

Já os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, na apresentação dos<br />

temas transversais para o campo da Ética, coloca como um dos objetivos desse nível de ensino<br />

“perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identifi cando<br />

seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio<br />

ambiente” (Parâmetros, 2000 - Objetivos Gerais).<br />

Mais adiante, focalizando diretamente o meio ambiente, os Parâmetros apresentam a vida<br />

na Terra como uma “trama, uma grande rede de seres interligados, interdependentes. Essa rede<br />

envolve conjuntos de seres vivos e elementos físicos ... que interagem por meio de relações<br />

de troca de energia” (Idem, 33). Esse conjunto de elementos, seres e relações constitui o meio<br />

ambiente. Ele não se restringe aos aspectos físicos e biológicos, mas engloba o ser humano com<br />

suas relações sociais, econômicas e culturais. “Faz-se necessário tomar decisões adequadas<br />

na direção de metas desejadas por todos: o crescimento cultural, a qualidade de vida e o<br />

equilíbrio ambiental” (Ibid., 33).<br />

As experiências relatadas no Caderno vão além da educação ambiental, pois envolvem<br />

as preocupações mais amplas da Carta da Terra, que demandam uma educação para a<br />

sustentabilidade, nela incluindo o contexto das relações sociais, culturais, econômicas e<br />

políticas, que implicam não só o respeito à Terra e à vida em toda a sua diversidade, como<br />

também o cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor (Princípio<br />

2), construir sociedades democráticas, que sejam justas, participativas, sustentáveis e<br />

pacífi cas, erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental, afi rmar a<br />

igualdade e a equidade do gênero humano como pré-requisitos para o desenvolvimento<br />

sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência à saúde e às oportunidades<br />

econômicas (Princípio 11).<br />

105


106<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

As atividades descritas no Caderno se desenrolam com uma dinâmica envolvente,<br />

constituindo um todo harmonioso. O espelho é sempre a Carta da Terra. Nos seus princípios<br />

refl etem-se a realidade local e o cotidiano da escola e daí nasce o tema gerador de cada<br />

atividade. Vejamos alguns deles.<br />

Com o tema “Plantar uma semente” se pretende demonstrar a transformação social como<br />

resultado de um longo processo, cujo primeiro passo é o fundamento de toda e qualquer<br />

transformação. A atividade de plantar uma semente, dela cuidar, a expectativa e a alegria de<br />

vê-la germinar, acompanhá-la em seu crescer, simbolizam o ato educacional refl etindo o segundo<br />

principio da Carta: “cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor”.<br />

“Uma receita para o meio ambiente” focaliza as ameaças ao planeta, desde o aumento<br />

vertiginoso da fome no mundo até a extinção das espécies e a elevação da temperatura global.<br />

Após a confecção de cartazes retratando essas ameaças, os alunos são convidados a elaborar<br />

uma receita, como as da culinária, para salvar o planeta. O texto da atividade traz uma delas,<br />

que expõe, com muita criatividade, os ingredientes, o modo de preparo e o modo de servir o<br />

“bolo” que poderá afastar as ameaças à Mãe Terra. E assim a tarefa desperta o respeito pela<br />

nossa morada terrena e pela vida em toda a sua diversidade (Princípio 1), incentiva o cuidar da<br />

comunidade da vida (Princípio 2) e a necessidade de construir a sociedade democrática, justa,<br />

participativa, sustentável e pacífi ca (Princípio 3).<br />

“Identidade” relembra o “conhece-te a ti mesmo” socrático e convida à auto-refl exão, ao<br />

conhecimento de si, a pensar na vida, na existência e na história pessoal e no que estamos<br />

fazendo conosco. O auto-conhecimento é ensinado como um dos alicerces para o respeito<br />

ao ser humano e à vida em geral, sem o qual é impossível formar a identidade, pois requer<br />

o conhecimento da própria origem, da história de cada um, da sua tradição, dos seus valores<br />

familiares, para sentir-se alguém especial, importante, acolhido, amado, incluído na comunidade.<br />

Muito criativa é a atividade de construção de um livrinho, “O meu livrinho”, onde cada aluno<br />

registra a sua identidade, desde o seu auto-retrato desenhado até suas impressões digitais e o<br />

relato das coisas que mais gosta e que mais desgosta. O conhecimento de si e a construção da<br />

própria identidade é fundamental para o convívio comunitário e social. Sem essa identifi cação,<br />

frustra-se o terceiro principio da Carta, que aponta a necessidade de “proporcionar a cada um<br />

a oportunidade de realizar seu pleno potencial”. Nessa identifi cação, está presente também o<br />

plano da auto-ética, que será explicitado mais adiante, ao se retomar as refl exões de Morin.<br />

“Dengue” é um tema que focaliza essa epidemia que se alastra pelo país. Mas o intuito é<br />

também informar sobre as demais doenças infecciosas e despertar para a obrigação de todo<br />

cidadão em combatê-las. Desenvolvendo-se pelo manuseio de materiais, que contribuem para a<br />

proliferação da epidemia, a atividade quer ensinar ao aluno a maneira prática de reconhecer e<br />

eliminar os focos de incubação do mosquito causador da doença, repassando os conhecimentos<br />

aos familiares, vizinhos e amigos desinformados. Entre os vários princípios da Carta espelhados<br />

nessa atividade, destaco o de número 14: “integrar na educação formal e na aprendizagem<br />

ao longo da vida os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

sustentável. Oferecer a todos, especialmente crianças e jovens, oportunidades educativas que<br />

lhes permitam contribuir efetivamente para o desenvolvimento sustentável”. O conhecimento<br />

das epidemias, preveni-las e enfrentá-las é tarefa imprescindível na luta pela preservação do<br />

planeta e da vida.<br />

Em “A árvore do bem e do mal” os educandos, ao desenharem as duas árvores, exercem<br />

a capacidade de simbolizar valores éticos, sócio-culturais e religiosos, alguns deles julgados<br />

bons, outros maus, devido a uma formação pré-adquirida na família ou nas relações sociais.<br />

O intuito é de criar, no ambiente escolar, um espaço de convívio para aprender, assegurar,<br />

solidifi car e até mesmo questionar o que os alunos aprenderam até então. A formação da<br />

capacidade crítica sobre valores visa a superar aquela atitude que Morin, ao falar da auto-ética,<br />

qualifi ca de “moralina”, isto é, o julgamento com base em critérios exteriores e superfi ciais da<br />

moralidade (MORIN, 2005: 98). Ocorre superar os estigmas de bem e de mal, que contribuem<br />

para forjar o adulto intolerante, preconceituoso e não solidário, despertando o educando para<br />

pensar o que e para quem algo é bom e ruim. Muitas vezes, o que se pensa bom para si é nocivo<br />

para outrem e vice-versa.<br />

Na atividade, vejo espelhar-se, de maneira nítida, o Princípio 16 da Carta: “promover uma<br />

cultura de tolerância, não violência e paz. Estimular e promover o entendimento mútuo, a<br />

solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, dentro das e entre as nações”<br />

“É brincando que se aprende” encerra uma das mediações mais relevantes, e infelizmente<br />

pouco utilizada na aprendizagem, que é o lúdico, um aspecto fundamental para a saúde física<br />

e psíquica. Pelo lúdico, é possível adquirir a unidade entre a consciência corporal e os aspectos<br />

emocionais e intelectuais, o que possibilita um contato saudável com o outro, o diferente,<br />

com as volições ocultas ou explícitas. Brincar é um meio de recuperar valores culturais, de<br />

suscitar a noção de vínculo; no lúdico, estimula-se o corpo inteiro, questionam-se e promovemse<br />

oportunidades de atitudes e comportamentos saudáveis. Além de trabalhar com materiais<br />

recicláveis para a confecção de brinquedos, a atividade encerra-se com a elaboração de um<br />

livro, “Nossas brincadeiras preferidas”. Vejo, no relacionamento lúdico, uma ocasião ímpar de<br />

aprender a viver na alegria, na solidariedade, na cooperação mútua e na paz, que é o grande<br />

desejo expresso no Princípio 16 da Carta.<br />

Em “A campanha do leite”, questiona-se a sociedade de consumo, da ostentação e do<br />

desperdício, insufl ada pela mídia, o que leva amiúde à desqualifi cação do pobre frente aos mais<br />

aquinhoados e à competição para galgar o patamar dos privilegiados. “A campanha do leite”<br />

vai muito além de uma doação à Casa de Apoio a Pessoas com Câncer. Quer despertar para a<br />

necessidade de banir o preconceito e a diferença brutal e desumana da distribuição de renda<br />

no Brasil e estimular a solidariedade e a promoção de cidadãos íntegros, que busquem caminhos<br />

de ajudar os mais necessitados, contestando e evitando o mero assistencialismo. “A campanha<br />

do leite” ecoa o Princípio 9 da Carta: “erradicar a pobreza como um imperativo ético, social<br />

e ambiental. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem e<br />

permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações”.<br />

107


108<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A “Carta ao inquilino” tem como material principal uma carta anônima em que a Terra<br />

relembra aos seus “inquilinos” as graves infrações que vêm cometendo contra o “contrato<br />

de aluguel” que ela estipulou com os seus moradores. A carta não termina com a ameaça de<br />

despejo, mas com um amoroso convite: “Você pode mudar? Aguardo respostas e atitudes”.<br />

Além de centrar a discussão nessa carta e debater a degradação ambiental, o uso inadequado<br />

e descontrolado dos recursos naturais, a poluição, a fome e a extinção das espécies, os alunos<br />

são incentivados a responder à Terra com missivas contendo sugestões de novas atitudes e de<br />

soluções possíveis dos problemas identifi cados. A atividade sugere e incentiva experiências<br />

ambientais de culturas de subsistência, de plantio de hortas orgânicas, de ervas medicinais, de<br />

fl ores. Propicia o contato com as culturas de subsistência da região, almejando a valorização, o<br />

respeito e o resgate da cultura tradicional local, assim como o compartilhar saberes, promover<br />

a economia solidária, o respeito às minorias e à diversidade, o acesso a medicamentos de<br />

baixo custo e o melhoramento da qualidade de vida da população. São vários os princípios da<br />

Carta que podem ser relembrados nessa atividade. O Princípio 10 expressa a necessidade de<br />

“promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações”. O princípio 8<br />

quer que se “reconheça e se preserve os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em<br />

todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano”. Enfi m, as<br />

missivas de resposta à carta da Terra contêm a preocupação geral do Princípio 1 “respeitar a<br />

Terra e a vida em toda a sua diversidade”.<br />

São estes alguns exemplos colhidos do Caderno de Atividades. Importa agora apontar<br />

características comuns a todas, procurando olhar o alcance epistemológico, ético e educacional<br />

que elas encerram.<br />

O primeiro traço comum das atividades, além do espelhar-se na Carta da Terra, é a<br />

preocupação em superar o âmbito de uma disciplina e envolver a comunidade aprendente<br />

em um patamar de inter e transdisciplinaridade. Em um trabalho recém publicado, Educar<br />

para a solidariedade. Princípios e rumos (QUEIROZ, 2006) tive ocasião de apontar, na Ética<br />

de Morin, as vias abertas para a solidariedade, articulando-as com os Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais para e Ensino Fundamental, no que tange à Ética como tema transversal (Parâmetros,<br />

volume 8, 2000).Indiquei, então, que no pensamento de Morin a inter e a transdisciplinaridade<br />

contêm aspectos epistemológicos e também éticos, em especial, quando trata da “ética do<br />

pensamento” e distingue entre o “pensar mal” e o “pensar bem”. Essas refl exões corroboram a<br />

importância dada nas “Atividades” ao aspecto inter e transdisciplinar<br />

Na ética do pensamento, Morin (2005: 60-66) estabelece a correlação entre “pensar bem”<br />

e “pensar mal”, apontando a íntima articulação entre o epistemológico e o ético. O oposto da<br />

inter e da transdisciplinaridade é a fragmentação e a atomização dos saberes. O autor discorre,<br />

de início, sobre as conseqüências do “pensar mal”. Um saber fragmentado impossibilita imaginar<br />

um todo com “elementos solidários”; por isso, quem pensa mal vê atrofi ar o conhecimento e a<br />

consciência da solidariedade e da responsabilidade (MORIN, 2005: 61-62). Outra conseqüência do<br />

“pensar mal” é a corrosão da ética em suas fontes, que são a solidariedade e a responsabilidade


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

pela incapacidade de ver o todo, de religar-se a ele. Por oposto, o “pensar bem” religa e leva a<br />

imaginar a solidariedade entre os elementos de um todo, o que desperta a consciência do agir<br />

solidário (MORIN, 2005: 62-63).<br />

A ênfase em colocar a ética e o agir solidário no patamar da religação dos saberes, que é<br />

peculiar ao pensamento complexo, tem guarida nos Parâmetros... Eles sublinham que a realidade<br />

educacional, na qual o professor vai trabalhar os princípios e os rumos da ética em busca do<br />

agir solidário, há que ser vista sob o prisma da transversalidade e da interdisciplinaridade.<br />

Há, nessa indicação, uma clara opção por um pensar a educação que se aproxima e até inclui<br />

a epistemologia da complexidade. Assim, lemos: “Transversalidade e interdisciplinaridade se<br />

fundamentam na crítica de uma concepção de conhecimento que toma a realidade como um<br />

conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado” (Parâmetros,<br />

2000: 40). É a mesma crítica que Morin estabelece quando tem em mira o pensamento linear.<br />

Ao enveredarem pela transversalidade e interdisciplinaridade, os Parâmetros... mencionam<br />

explicitamente uma visão complexa da realidade, quando afi rmam que “ambas apontam a<br />

complexidade do real e a necessidade de se considerar teias de relações entre os seus diferentes<br />

e contraditórios aspectos” (Parâmetros, 2000: 40, grifos nossos). Embora não usem a palavra<br />

“transdisciplinaridade”, tema relevante na teoria da complexidade, possibilitam entender<br />

que ela está implícita no conceito de interdisciplinaridade, porquanto esta “questiona a<br />

segmentação entre os diferentes campos de conhecimento produzida por uma abordagem<br />

que não leva em conta a inter-relação e a confl uência e a infl uência entre eles – questiona a<br />

visão compartimentada (disciplinar) da realidade sobre a qual a escola, tal como é conhecida,<br />

historicamente se constituiu” (Parâmetros, 2000: 40).<br />

A transdisciplinaridade aparece de maneira visível também nos objetivos da transversalidade,<br />

quando afi rmam:<br />

a transversalidade promove uma compreensão abrangente dos diferentes objetos de<br />

conhecimento, bem como a percepção da implicação do sujeito do conhecimento<br />

na sua produção, superando a dicotomia entre ambos. Por essa mesma via,<br />

a transversalidade abre espaço para a inclusão de saberes extra-escolares,<br />

possibilitando a referência de sistemas de signifi cados construídos na realidade dos<br />

alunos (Parâmetros, 2000: 40).<br />

Como tema transversal – e transdisciplinar, diremos nós –, a ética também permeia<br />

“necessariamente toda a prática educativa, que abarca relações entre os alunos, entre<br />

professores e alunos e entre diferentes membros da realidade escolar” (Parâmetros, 2000: 39).<br />

O enfoque no aspecto complexo da realidade suscita uma exigência ética fundamental para<br />

a escola, a de “desenvolver um projeto de educação comprometida com o desenvolvimento<br />

de capacidades que permitam intervir na realidade para transformá-la”, cuja diretriz, entre<br />

outras, é a de “posicionar-se em relação às questões sociais e interpretar a tarefa educativa<br />

como uma intervenção na realidade no momento presente” (Parâmetros, 2000: 27).<br />

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110<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Ao trabalhar o caminho que conduz do pensamento complexo à ética, o livro de Morin<br />

explicita princípios de notável relevância e complementa o que foi dito acima. Morin (2005: 64)<br />

afi rma que todo conhecimento pode ser posto a serviço da manipulação, “mas o pensamento<br />

complexo conduz a uma ética da solidariedade e da não-coerção”. Abrindo um panorama mais<br />

amplo, o autor afi rma que é possível imaginar uma ciência que possibilite o auto-conhecimento<br />

e abra caminhos para a “solidariedade cósmica” (MORIN, 2005: 64).<br />

A antropologia complexa também tem vínculos com a solidariedade, pois “reconhece o sujeito<br />

na sua dualidade egocêntrica/altruísta, o que lhe permite compreender a fonte original da<br />

solidariedade e da responsabilidade”. Além de ir à fonte, o pensamento antropológico complexo<br />

indica os rumos para uma ética da responsabilidade, que implica no reconhecimento do sujeito<br />

relativamente autônomo, como também abre caminhos para uma ética da solidariedade, porquanto<br />

é um pensamento que religa. Mostra também que, quanto maior for a complexidade social e as<br />

liberdades, mais necessária é a liberdade para garantir o vinculo social (MORIN, 2005: 64-65).<br />

Uma visão histórica, sociológica e antropológica da ética é desejo também dos Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais:<br />

A moralidade humana deve ser enfocada no contexto histórico e social. Por conseqüência, um<br />

currículo escolar sobre a ética pede uma refl exão sobre a sociedade contemporânea na qual<br />

está inserida a escola. Tal refl exão poderia ser feita de maneira antropológica e sociológica:<br />

conhecer a diversidade de valores presentes na sociedade brasileira (Parâmetros, 2000: 70).<br />

Olhando as atividades, outra consideração é o aspecto da auto-ética que perpassa todas elas,<br />

embora apareça de modo mais explícito em “Identidades” e na “Árvore do bem e do mal”.<br />

A auto-ética ou a ética individualizada comporta, segundo Morin, quatro instâncias: 1. a<br />

ética de si para si (auto-análise, autocrítica, honra, tolerância, prática da recursão ética, que<br />

signifi ca avaliar as nossas avaliações, luta contra a moralina, que é o julgamento com base em<br />

critérios exteriores ou superfi ciais da moralidade, resistência à lei do talião e ao sacrifício do<br />

outro e prática da responsabilidade); 2. a ética da compreensão (a consciência da complexidade<br />

e dos desvios humanos; a abertura à magnanimidade e ao perdão); 3. a ética da cordialidade<br />

(cortesia, civilidade); 4. a ética da amizade.<br />

Morin (2005: 102) afi rma que “solidariedade, responsabilidade e auto-ética são termos, hoje,<br />

quase inseparáveis”. Voltando a enfatizar a ética da religação, diz ele que a ética altruísta religa<br />

e exige que se mantenha a abertura para o outro, salvaguardando o sentimento de identidade<br />

comum, consolidando e fortalecendo a compreensão do outro. Referindo-se ao “imperativo<br />

da religação”, o autor percebe que o excesso de separação entre os seres humanos é perverso<br />

quando não compensado pela união, solidariedade, amizade e amor.<br />

Um tratamento especial é dedicado ao tema da “ética da compreensão”, no qual o autor<br />

destaca a necessidade de compreender a incompreensão (MORIN, 2005: 116-117) e diz que o


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

pensamento complexo comporta um metaponto de vista sobre as estruturas do conhecimento<br />

que possibilita compreender o paradigma da disjunção/redução dominante nos modos de<br />

conhecimento comum. Isso é muito importante, pois o princípio de redução, que limita o todo<br />

complexo a um dos seus componentes e elimina o contexto em que se dá o agir ético, produz<br />

incompreensão de tudo o que é global e fundamental. O princípio de disjunção, por sua vez, aliase<br />

ao de redução para impedir a concepção dos vínculos e da solidariedade entre os elementos<br />

de uma realidade complexa, tornando inviável o que é global e fundamental.<br />

Pode-se resumir a auto-ética em dois imperativos: disciplinar o egocentrismo; desenvolver<br />

o altruísmo.<br />

A auto-ética é a mais individual possível, engajando a responsabilidade pessoal; ao<br />

mesmo tempo, é um ato transcendental, que nos liga às forças vivas da solidariedade,<br />

anterior às nossas individualidades, originarias da nossa condição social, biológica,<br />

física e cósmica. Une-nos ao outro e à nossa comunidade, mais amplamente ao<br />

Universo e, como tal, é ato de religação (MORIN, 2005: 142).<br />

Vários tópicos da auto-ética são tocados nos Parâmetros..., tendo em vista o cotidiano escolar.<br />

Eles notam, “por vezes, no cotidiano, comportamentos incoerentes, contraditórios, distanciados<br />

das atitudes e valores que se acreditam corretos. Isso signifi ca que a coerência absoluta não<br />

existe, e na formação de atitudes vive-se um processo não linear.” (Parâmetros, 2000: 45)<br />

A compreensão é um desafi o para o agir humano em geral e para a prática escolar. Para<br />

Morin (2005: 122), “a compreensão complexa comporta uma difi culdade terrível”. Isso acontece<br />

porque ela “enfrenta incessantemente o paradoxo da irresponsabilidade/responsabilidade<br />

humana”. Essa contradição é inevitável. “Pode-se somente tentar superá-la (superar signifi ca<br />

conservar aquilo que se supera) pela magnanimidade, pelo perdão” (MORIN, 2005: 122).<br />

Desse paradoxo nasce um grande desafi o, que é notado e realçado nos Parâmetros...: “Nas<br />

relações interpessoais, não só entre professor e aluno, mas também entre os próprios alunos,<br />

o grande desafi o é conseguir se colocar no local do outro, compreender seu ponto de vista<br />

e suas motivações no interpretar suas ações. Isso desenvolve a atitude de solidariedade e a<br />

capacidade de lidar e conviver com as diferenças.” (Parâmetros, 2000: 45)<br />

Por essa razão, o diálogo aparece entre os conteúdos a serem trabalhados como instrumento<br />

para esclarecer confl itos e implica escutar o outro e compreender o sentido preciso da sua ação e<br />

do que ele quer dizer (Idem, 2000: 109-111). Atitudes como generosidade, compaixão, ajuda aos<br />

necessitados, confi ança, respeito mútuo, convívio são enfatizadas em vários tópicos do documento.<br />

Mais um ponto forte a ser destacado é a presença explícita, nas atividades, do corpo e da<br />

corporeidade. O manuseio de objetos corporais, os subsídios áudio-visuais, o fazer em conjunto<br />

com o refl etir indicam o envolvimento de todos os sentidos, de tal forma que não se trata<br />

apenas de um educar para compreender e conscientizar, na esfera do entendimento, mas um<br />

“educar de corpo inteiro”, que constitui algo fundamental embora muito pouco praticado na<br />

111


112<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

relação pedagógica. Não há “pedagogia da Terra” sem uma “pedagogia do corpo”, que supere<br />

o dualismo razão/corpo e abra para a corporeidade o lugar que lhe cabe em todos os espaços<br />

educacionais (Cf QUEIROZ: 2001). Nessa linha relembro o pensamento enfático de Assman (1995:<br />

113) “o corpo é, do ponto de vista científi co, a instância fundamental para articular conceitos<br />

centrais para a teoria pedagógica. Em outras palavras, somente uma teoria da corporeidade<br />

pode fornecer as bases para uma teoria pedagógica”.<br />

As amostras de atividades que comentamos indicam o nascedouro de uma grande<br />

contracorrente de esperança, que pode obstar e mudar os rumos da trágica situação e das<br />

sombrias perspectivas para o planeta e para a humanidade. Aliadas aos macro-movimentos<br />

em âmbito local, nacional e internacional, as pequenas experiências no cotidiano escolar, em<br />

especial no Ensino Fundamental, no qual se lançam as sementes do futuro cidadão, carregam<br />

um grande potencial “de emancipação com relação à tirania onipresente do dinheiro, que se<br />

busca contrabalançar por relações humanas solidárias fazendo retroceder o reino do lucro”<br />

(MORIN, 2000: 73). Promissora é essa contracorrente que reage ao desencadeamento da<br />

violência, que germina da injustiça e da desigualdade e nutre “éticas de pacifi cação das almas<br />

e das mentes” (Idem, 73).<br />

As atividades patenteiam um mundo pequeno e ao mesmo tempo imenso, porque apontam<br />

caminhos para aprender a “estar aqui” no planeta, que signifi ca aprender a viver, dividir,<br />

comunicar, comungar e transformar, como humanos da terra, inscrevendo em nós a consciência<br />

antropológica, ecológica, cívica terrena, social transformadora e espiritual.<br />

Despertar a consciência de nossa unidade e responsabilidade planetária é a exigência racional<br />

mínima de um mundo encolhido e interdependente. Pequenas experiências educacionais que,<br />

ao contagiarem o cotidiano escolar, vão solidifi cando o comportamento planetário na luta pela<br />

vida, universal e singular, debelando as ameaças de morte. “Civilizar e solidarizar a Terra,<br />

transformar a espécie humana em verdadeira humanidade, torna-se o objeto fundamental e<br />

global de toda educação que aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade”<br />

(MORIN, 2000:78).<br />

Pequenas experiências lançadas no Pontal do Paranapanema, sementes de um futuro<br />

promissor. Oxalá cresçam e contagiem todo o nosso sistema educacional.<br />

Peço licença, agora, para dizer o que eu sinto. Na singeleza e simplicidade que as caracterizam,<br />

vejo a beleza e o aroma de um “poema pedagógico” de amor à Mãe Terra e a seus fi lhos,<br />

construído e ainda em construção pela dedicação, amor e carinho de todos os envolvidos nessa<br />

na empreitada.<br />

Finalizo dando voz ao poeta da esperança que, no exílio chileno, em tempos obscuros da<br />

repressão militar, cantava a madrugada e a aurora de um novo mundo.


Madrugada camponesa<br />

Madrugada camponesa,<br />

faz escuro ainda no chão<br />

mas é preciso plantar.<br />

A noite já foi mais noite,<br />

a manhã vai chegar.<br />

Não vale mais a canção<br />

feita de medo e arremedo<br />

para enganar a solidão.<br />

Agora vale a verdade<br />

cantada simples e sempre,<br />

agora vale a alegria<br />

que se constrói dia-a-dia<br />

feita de canto e pão.<br />

Breve há de ser (sinto no ar)<br />

tempo de trigo maduro.<br />

Vai ser tempo de ceifar.<br />

Já se levantam prodígios,<br />

chuva azul no milharal,<br />

estala em fl or o feijão,<br />

num leite novo minando<br />

no meu longe seringal.<br />

Já é quase tempo de amor.<br />

Colho um sol que arde no chão,<br />

lavro a luz dentro da cana,<br />

minha alma no seu pendão.<br />

Madrugada camponesa.<br />

Faz escuro (já nem tanto),<br />

vale a pena trabalhar.<br />

Faz escuro mas eu canto<br />

porque a manhã vai chegar.<br />

(THIAGO DE MELLO, 1980: 34)<br />

Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

113


114<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

José J. Queiroz é graduado em Filosofi a, Teologia e Direito e mestre em Filosofi a e Teologia.<br />

Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Internacional Santo Tomás de Aquino de Roma,<br />

professor titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC/SP.<br />

professor-doutor do Mestrado em Educação do Centro Universitário Nove de Julho – Uninove.<br />

Coordenador do Grupo Interinstitucional de Estudos e Pesquisas Pós-religare – Pós-modernidade<br />

e religião da PUC/SP, e pesquisador do Núcleo Interinstitucional de Estudos da Complexidade.<br />

Referências<br />

ASSMAN, Hugo. Paradigmas Educacionais e Corporeidade. 3ª. Ed. Piracicaba: UNIMEP, 1995<br />

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais. Volume 8. Apresentação<br />

dos Temas Transversais. Ética. 2ª. Ed. Brasília: 2000.<br />

MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.<br />

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São <strong>Paulo</strong>: Cortez/Unesco, 2000.<br />

_____, O Método 6. Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.<br />

QUEIROZ, José J. Educar para a Solidariedade. Princípios e Rumos. In ALMEIDA, Cleide e<br />

PETRAGLIA, Izabel (Org.). Estudos de Complexidade. São <strong>Paulo</strong>: Xamã, 2006.<br />

_____, Redescobrir a Corporeidade. Parte IV. Revés do Avesso. São <strong>Paulo</strong>: Centro Ecumênico de<br />

Publicações e Estudos – CEPE. X (6):49-53, junho 2001.<br />

WERTHEIN, Jorge. Apresentação. In MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do<br />

Futuro. São <strong>Paulo</strong>: Cortez/Unesco, 2000.


CUIDADO NA ERA DO DESCUIDO: O PROBLEMA DA LINGUAGEM<br />

Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

<strong>Paulo</strong> Roberto Monteiro de Araujo<br />

Já é lugar comum falarmos da nossa Era como horizonte de práticas desumanizadoras, no<br />

entanto cabe insistir mais uma vez na mesma pergunta: como superar tais práticas?<br />

Inicialmente, coube à Pedagogia, principalmente a partir do Iluminismo, que tinha como<br />

núcleo principal o conceito de autonomia racional dos indivíduos, a formação sistematizada do<br />

processo de aprendizado das novas gerações. As práticas que vimos ao longo dos últimos dois<br />

séculos (XIX e XX) em relação à formação educacional das crianças e jovens nos mostraram que<br />

o foco pedagógico quase sempre esteve calcado em uma forma de racionalidade procedimental,<br />

isto é, em uma racionalidade que se bastava a si mesma, separada das dinâmicas sociais, bem<br />

como das diversas formas de viver dos grupos humanos.<br />

A linguagem educacional iluminista, apesar dos seus bons intentos em buscar a realização da<br />

autonomia nos indivíduos, esqueceu que a linguagem, como diria o fi lósofo canadense Charles<br />

Taylor, não possui um centro gravitacional em que podemos dar conta do que é o homem.<br />

Taylor, ao falar da não existência de um centro de gravidade da linguagem, procura mostrar<br />

que o homem é um animal que a todo instante está auto-interpretando a si mesmo. Por isso, a<br />

linguagem a cada momento se modifi ca, criando novos signifi cados para as práticas humanas.<br />

Cabe a quem está envolvido com atividades sociais, sejam elas pedagógicas ou não, ter o<br />

cuidado de desenvolver ações e atividades que não se tornem puras mecanizações lingüísticas<br />

que procuram dar conta dos objetivos sócio-pedagógicos por meio de fórmulas universais.<br />

É evidente que para se desenvolver qualquer ação ou atividade é preciso que haja regras.<br />

Entretanto, elas não podem aparecer como simples fórmula que, ao ser usada, vá garantir<br />

o sucesso de aprendizado daquele que realiza a atividade proposta. Daí não basta somente<br />

propor atividades como meio ambiente, saúde, coleta de lixo, identidade pessoal, entre outros<br />

temas, se não houver um cuidado com a linguagem. O problema que surge, então, relaciona-se<br />

com os dois tipos de linguagem que se desenvolveram no Ocidente Moderno e Contemporâneo:<br />

a linguagem designativa e a linguagem expressivista. A primeira se refere a uma forma de<br />

defi nir as coisas de modo instrumental. Deste modo, a linguagem designativa se limita a servir<br />

aos propósitos de quem a utiliza para distinguir as idéias por meio de termos designados<br />

antecipadamente. Por isso, quem trabalha com atividades educacionais precisa ter o cuidado<br />

para não ver o outro como alguém que é defi nido como ignorante ou utilizar termos préestabelecidos<br />

pelo status quo sem considerar as particularidades culturais do grupo com o qual<br />

irá desenvolver uma determinada atividade. Já para segunda, a linguagem não é um simples<br />

envelope exterior do pensamento, nem um instrumento que poderíamos a princípio dominar e<br />

apreender integralmente. A preocupação da linguagem expressivista é possibilitar que o homem<br />

expresse a si mesmo, isto é, o seu modo de ser.<br />

115


116<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Ao trabalharmos com a linguagem expressivista deixamos de querer controlar as coisas,<br />

os homens e o ambiente em que estamos, pois o que interessa é permitir que as pessoas e os<br />

grupos com os quais trabalhamos educacionalmente compreendam e expressem o que elas são<br />

em suas identidades culturais. É na e pela linguagem, sem o seu caráter instrumental, que o<br />

homem ganha a capacidade de expressar a si mesmo, isto é, a sua identidade como aquilo que<br />

lhe é mais próprio. A linguagem é o elemento estratégico para se compreender a construção<br />

das articulações signifi cativas que constituem a tomada de decisão de um agente humano<br />

diante das questões ético-políticas que ocorrem no espaço público. Deste modo, as atividades<br />

educacionais desenvolvidas no âmbito da interdisciplinaridade precisam estar ajustadas com a<br />

fi nalidade de formar cidadãos que aprendam a expressar os seus posicionamentos políticos a<br />

partir das suas identidades sócio-lingüístico-culturais.<br />

A questão do cuidado com a linguagem é de suma importância, pois ela está relacionada<br />

diretamente com o poder de expressão humana na esfera das ações no espaço público. A<br />

linguagem leva ao problema da ação. Esclarecer as determinações da linguagem torna-se crucial<br />

para se entender a ligação entre expressão e ação.<br />

As teorias cientifi cistas não se preocupam com o problema da linguagem no que se refere<br />

diretamente à expressão e à ação. A questão da linguagem não é posta por elas. Para Charles<br />

Taylor, ao não se explicitar o problema da linguagem, na verdade, não se está abrindo a<br />

discussão para a questão da natureza humana. Desenvolvendo uma antropologia fi losófi ca como<br />

introdução ao seu pensamento político, Taylor tenta esclarecer os fundamentos da natureza<br />

humana. Eis o motivo do seu interesse pela linguagem. Para ele, o homem, ao ser um animal<br />

expressivo, tem como determinação a linguagem. É na e pela linguagem que o homem pode<br />

expressar a sua presença no mundo, bem como dar sentido a este. Neste aspecto o pensamento<br />

de Taylor se aproxima do de fi lósofos como Ernst Cassirer, no sentido de que ambos têm a<br />

preocupação com as formas lógicas das diversas construções simbólicas elaboradas pelo homem.<br />

Especifi camente, Cassirer se volta para o problema do formato lógico-expressivo das diversas<br />

elaborações simbólicas feitas pelo homem por meio do seu desenvolvimento cultural (o mito, a<br />

religião, a arte, a ciência como formas simbólicas).<br />

Já Taylor analisa a expressividade da linguagem naquilo que o homem procura analisar a si<br />

mesmo como possibilidade de construir a sua identidade com o propósito de confi gurá-la no mundo.<br />

Para que ocorra essa confi guração da sua expressão, o homem precisa entrar na perspectiva<br />

lingüística. É com Herder que Taylor consegue apreender as condições essenciais da linguagem:<br />

Uma criatura opera na dimensão lingüística quando pode usar signos – e a eles responder<br />

– em termos de sua verdade, ou justeza descritiva, do poder de evocar algum estado<br />

de espírito, recriar uma cena, exprimir alguma emoção, veicular alguma nuança de<br />

sentimento ou ser de algum modo le mot juste. Ser uma criatura lingüística é ser sensível<br />

a questões irredutíveis de justeza18 .<br />

18 Charles Taylor. A Importância de Herder. In: Argumentos Filosófi cos. Tradução brasileira. Ed. Loyola, p. 98.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

O problema da justeza entre aquilo que se quer dizer e aquilo que é expresso, traz em si um<br />

problema da compreensão subjetiva. A justeza da linguagem é o modo pelo qual o indivíduo<br />

procura confi gurar a si mesmo no espaço público com o intuito de expressar signifi cativamente<br />

a sua identidade ou aquilo que ele percebe ao seu redor. Deste modo, por mais ‘inconsciente’<br />

que esteja aquilo que o indivíduo expressa, a sua atitude deve refl etir o que ele quer dizer<br />

publicamente. O que Taylor capta de Herder é a sua noção de Besonnenheit (refl exão) 19 . É a<br />

refl exão que possibilita o indivíduo ser capaz de expressar aquilo que ele sente signifi cativamente,<br />

bem como elaborar distinções dos objetos percebidos. Assim, a justeza lingüística desenvolvida<br />

pelo homem por meio da refl exão serve para que este construa signos individuais, cuja função<br />

é permitir que as expressões sejam reconhecidas e distinguidas no espaço público sem terem<br />

um caráter reifi cado. A linguagem é remodelada a todo instante pelos diversos modos de ser<br />

do homem no mundo. Ela nunca pode ser dominada, pois o seu centro de gravidade 20 jamais é<br />

alcançado. “No que se refere à linguagem, somos tanto construtores como construídos” 21 .<br />

Ao tirar de Herder a idéia que o homem é ao mesmo tempo construtor e construído pela<br />

linguagem, Taylor consegue relacionar sentimento e linguagem.<br />

A idéia revolucionária implícita em Herder foi a de que o desenvolvimento de novas modalidades<br />

de expressão nos capacita a ter novos sentimentos, mais potentes ou mais aprimorados, e por<br />

certo mais autoconscientes. Ao serem capazes de exprimir nossos sentimentos, damos-lhes<br />

uma dimensão refl exiva que os transforma. O animal lingüístico pode sentir não só raiva como<br />

indignação, não só amor como admiração 22 .<br />

É essa capacidade de expressão que faz com que o homem possa viver as suas emoções<br />

exprimindo-as, sem a necessidade de descrevê-las em si. A linguagem permite ao homem criar<br />

formas lingüísticas que realizam a justeza daquilo que ele quer expressar sentimentalmente.<br />

Expressando isso que ele sente o homem remodela a língua, criando as suas próprias formas, no<br />

sentido de se fazer presente no mundo. Eis por que Herder diz que se cria assim um novo idioma.<br />

Num dado indivíduo há uma palavra que se esvazia, mas que permanece. Uma que se afasta<br />

do seu sentido principal por causa de pontos de vista secundários, outra em que o espírito do<br />

sentido principal se modifi ca com a própria seqüência temporal. E assim surgiram, em termos<br />

pessoais, fl exões, derivações, modifi cações, prefi xos e sufi xos, deslocamentos e supressões de<br />

parte do sentido ou da totalidade do sentido das palavras: um novo idioma! E tudo isto tão<br />

naturalmente quanto é natural no homem o fato de a língua constituir o sentido da sua alma 23 .<br />

Para Herder, a língua, ao estar em constante transformação, faz surgir sempre uma nova língua<br />

em cada novo mundo, língua nacional em cada nação. Sendo assim, “a linguagem é um Proteu sobre<br />

19 Id. A Importância de Herder, 102.<br />

20 O tradutor de A Importância de Herder usa a expressão pano de fundo para centro de gravidade.<br />

21 Idem, 111.<br />

22 Idem, 112.<br />

23 Herder. Ensaio sobre a origem da linguagem. Tradução José M. Justo. Ed. Antígona (1987), 148.<br />

117


118<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

a superfície curva do planeta” 24 . Taylor analisa essa estrutura auto-transformadora da língua, que<br />

faz brotar de si mesma novas formas de linguagem, com o propósito de desenvolver uma Política<br />

do Reconhecimento, em que as diferentes formas de expressão humana possam ser compreendidas<br />

em sua reivindicações sócio-político-culturais. A teoria herderiana da linguagem possibilita abrir<br />

os horizontes teóricos no que se refere à origem das expressões humanas como manifestação<br />

signifi cativa das suas identidades. Eis o motivo de o educador, ao estar desenvolvendo as suas<br />

práticas pedagógicas, considerar lingüisticamente às manifestações signifi cativas das identidades<br />

de seus alunos. É a partir das expressões dos alunos que o educador pode ajudá-los em relação à<br />

justeza daquilo que eles querem expressar para terceiros no espaço da convivência.<br />

É a linguagem que constitui as articulações emocionais e é por isso que as ações realizadas<br />

pelo aluno por meio da sua auto-referência emocional se apresentam como boas ou más. O Bem<br />

e o Mal estão na esfera da linguagem, daí ela ser a base sobre a qual as nossas atitudes se mostram<br />

imbuídas de signifi cações. Interpretarmo-nos signifi ca justamente avaliar as nossas articulações<br />

emocionais no plano da linguagem. A linguagem e a emoção estão entrelaçadas de modo que<br />

não é possível se referir a uma sem considerar a outra. Além disto, a linguagem possibilita<br />

a própria forma das nossas emoções. Não é à toa que um novo vocabulário pode modifi car<br />

a forma anterior de articulação das nossas emoções 25 . O que tinha um determinado sentido<br />

emocionalmente ganha um outro formato no processo temporal interpretativo lingüístico 26 .<br />

Assim, o que era considerado anteriormente vergonhoso para uma pessoa passa não ter mais<br />

sentido ou ganha uma outra reformulação signifi cativa.<br />

A mudança do vocabulário signifi ca tanto o aprofundamento como a transformação da nossa<br />

interioridade emocional ou eu-emocional. A interpretação do eu-emocional passa por constantes<br />

trans-avaliações do vocabulário que, a cada mudança, reestrutura o modo de sentir e de vida<br />

do indivíduo, principalmente quando esse está no processo de ensino/aprendizagem. Os novos<br />

vocabulários são incorporados às referencias do eu-emocional do indivíduo, que modifi cam<br />

toda a maneira de o eu se situar tanto emocionalmente como cognitivamente. A linguagem, ao<br />

concretizar-se por meio das diversas formas de vocabulário, articula discernimentos (insights)<br />

ou os torna possíveis no plano emocional-cognitivo do indivíduo. Deste modo:<br />

Dizer que a linguagem é constituída pela emoção é dizer que experimentar uma<br />

emoção implica essencialmente em verifi car se certas descrições ajustam-se; ou que<br />

uma dada emoção implica algum (grau de) discernimento27 .<br />

Os discernimentos (insights) que ocorrem em nossa articulação emocional signifi cativa tornam<br />

possível a compreensão dos sentimentos no que se refere às suas avaliações. Neste aspecto,<br />

as avaliações são a própria refl exão interpretativa do eu. Ocupando-se daquilo que o sujeito<br />

24 Idem, 150.<br />

25 Podemos nos referir ao processo psicanalítico que possibilita ao analisado rever as signifi cações das suas articulações emocionais<br />

criando, assim, condições para transformá-las.<br />

26 Taylor dá um exemplo sociocultural destas modifi cações com a expressão – black is beautiful. Self-interpreting animals, 69.<br />

27 Charles Taylor. Self-interpreting animals, 71.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

sente, a avaliação busca, por meio dos insights, esclarecer as estruturas signifi cativas com a<br />

intenção de possibilitar ao eu situar-se no seu processo de experimentação dos sentimentos.<br />

Experimentar os sentimentos é avaliá-los dentro de um quadro signifi cativo que, em última<br />

instância, faz com que o sujeito esclareça para si o que ele está sentindo, superando, assim, as<br />

confusas articulações signifi cativas.<br />

Superar as confusas articulações signifi cativas representa experimentar de um modo adequado<br />

aquilo que, no processo de avaliação, o eu antes sentia desordenadamente. Sentindo as coisas de<br />

uma forma adequada, o modo de avaliar do sujeito também muda. Desta maneira, a linguagem<br />

assume um papel fundamental para a redefi nição signifi cativa das articulações emocionais e<br />

cognitivas do eu; ela articula os nossos sentimentos, tornando-os mais claros e mais defi nidos. O<br />

motivo pelo qual reconhecemos as expressões ‘Eu a amo’ ou ‘Eu estou ciumento’ altera a emoção<br />

que se mostra nessas articulações do eu, possibilitando, assim, o esclarecimento signifi cativo do<br />

tipo de amor e de ciúme que estamos sentindo 28 . O reconhecimento é fundamental para tornar<br />

clara a constituição signifi cativa dos nossos sentimentos. Reconhecer os motivos que levam o eu<br />

a articular estruturas de linguagem para expressar os sentimentos é esclarecer o que signifi ca os<br />

termos empregados pelo indivíduo. A frase ‘Eu a amo’ pode ter signifi cados diferentes entre os<br />

sujeitos que a empregam nas suas falas. Como salienta Taylor, nós não experimentamos as mesmas<br />

coisas, nós não temos os mesmos sentimentos 29 . Por isso, quando estamos desenvolvendo alguma<br />

atividade sobre meio ambiente, artes, coleta de lixo, política etc., o que cada aluno sente não<br />

é igual ao outro. O educador deve estar atento ao eu-emocional de cada aluno para ajudá-lo<br />

a articular signifi cativamente o que ele sente em relação à atividade proposta. É a partir da<br />

estruturação signifi cativa do que o aluno sente que o mesmo pode formular o seu vocabulário de<br />

valor em relação aos temas que lhe são propostos nas atividades educacionais.<br />

A partir do reconhecimento das signifi cações construídas internamente pelas articulações<br />

emocionais, os indivíduos passam a compreender as diversas formas lingüísticas que são<br />

elaboradas pelo eu. Reconhecer as possíveis formas elaboradas no espaço íntimo-existencial<br />

dos indivíduos é reconhecer não só a identidade do eu, mas também as diversas identidades que<br />

diferenciam os homens entre si. Na sua identidade própria, cada um articula as emoções em um<br />

plano vocabular que faz o indivíduo, por exemplo, ter um tipo de amor ou ciúme de acordo com<br />

a sua articulação. Este caráter articulador da vida emocional dos seres humanos propiciou que<br />

as diferentes culturas trouxessem à baila vários tipos de vocabulários signifi cativos. Além disto,<br />

mesmo no bojo de uma cultura as pessoas elaboram diferentes vocabulários que as fazem ter<br />

diferentes experiências. Sendo assim:<br />

Considerem-se duas pessoas, uma com uma única dicotomia amor/luxúria para os tipos possíveis<br />

de sentimento sexual; a outra com um vocabulário muito diversifi cado de diferentes espécies<br />

de relações sexuais. Será diferente a experiência das emoções dessas duas pessoas30 .<br />

28 Quando eu reconheço o motivo, isto é, a articulação signifi cativa, que altera a minha emoção na frase Eu a amo, logo o signifi cado<br />

de amor é alterado emocionalmente em mim.<br />

29 Op. cit., 71.<br />

30 Op. cit., 71.<br />

119


120<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Os indivíduos sempre experimentam de forma diferente os objetos ou os assuntos que<br />

aparentemente possuem signifi cados iguais. Seguindo esta linha raciocínio, Taylor argumenta<br />

que isto acontece por causa da nossa capacidade de trans-avaliar (transvaluation) aquilo que<br />

nos é colocado lingüisticamente. Nós transpomos outras avaliações de acordo com as nossas<br />

articulações emocionais, no sentido de expressar o que tem importância signifi cativa para a<br />

nossa identidade.<br />

O processo de transpor outras avaliações no interior das sensações do eu traz à tona a<br />

possibilidade de o indivíduo reordenar, isto é, reinterpretar a si mesmo por meio do universo<br />

lingüístico. A linguagem permite ao indivíduo reordenar toda a sua sensação após avaliar aquilo<br />

que ele sente em sua experimentação. Deste modo, os termos do vocabulário empregados<br />

anteriormente à experiência do agente se modifi cam, expressando outra articulação signifi cativa<br />

das suas sensações. O eu está em constante transformação de si mesmo como possibilidade de<br />

se auto-esclarecer e de adquirir outras formas de expressão de si mesmo.<br />

Nós podemos dizer que o eu está sempre em um movimento de reestruturação tanto emocional<br />

como cognitivamente na sua atividade experimental. O eu é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto<br />

de si mesmo, situação esta que o leva a todo instante a se interpretar por meio das suas transavaliações.<br />

Estando no fl uxo das trans-avaliações, o sujeito, ao adquirir uma nova forma de<br />

auto-entendimento (self-understanding), passa a ter também outro modo de experimentar<br />

as suas emoções. Ao nos articularmos lingüisticamente, articulamos as nossas emoções, no<br />

sentido de dar-lhes novos signifi cados. Daí a nossa preocupação com a linguagem, ou melhor<br />

ainda, de como o educador, que desenvolve atividades interdisciplinares, precisa compreender<br />

a linguagem não como simples instrumento, mas como expressão signifi cativa dos seus alunos.<br />

<strong>Paulo</strong> Roberto Monteiro de Araujo é professor do Programa de Mestrado em Educação,<br />

Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.<br />

Referências<br />

TAYLOR, Charles. Sources of The Self – The Making of the Modern Identiy. Cambrigde: Harvard<br />

University Press, 1996 (oitava edição).<br />

______. As Fontes do Self – A construção da identidade moderna. (trad. Adail U. Sobral e<br />

Dinah de Azevedo de Abreu). São <strong>Paulo</strong>: Edições Loyola, 1997.<br />

______. Philosophical Arguments. Cambrigde: Harvard University Press, 1995 (Segunda<br />

edição).<br />

______. Argumentos Filosófi cos. (trad. Adail U. Sobral). São <strong>Paulo</strong>. Edições Loyola, 2000.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

______. Human Agency and Language – Philosophical Papers 1 Cambrigde: Cambridge<br />

University Press, 1996.<br />

______. Philosophy and The Human Sciences – Philosophical Papers 2. Cambrigde: Cambridge<br />

University Press, 1995.<br />

______. Multiculturalism. New Jersey: Princeton University Press, 1994.<br />

ABBEY, Ruth. Charles Taylor. Princeton: Princeton University Press, 2000.<br />

ARAUJO, <strong>Paulo</strong> R. M. Charles Taylor: para uma ética do reconhecimento. São <strong>Paulo</strong>: Ed.<br />

Loyola, 2004.<br />

______. Identidades Contemporâneas – criação, educação e política. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2006.<br />

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São <strong>Paulo</strong>: Ed. Martins Fontes, 1994.<br />

______. A Filosofi a das Formas Simbólicas. I – A linguagem. São <strong>Paulo</strong>: Ed. Martins Fontes, 2001.<br />

FOUCAULT, Michel. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de<br />

Janeiro: Forense Universitária, 1999.<br />

______. As Palavras e as Coisas. São <strong>Paulo</strong>: Ed. Martins Fontes, 2002.<br />

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêutica<br />

fi losófi ca. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.<br />

HERDER, Johann G. Ensaio sobre a origem da Linguagem. Lisboa: Edições Antígona, 1987.<br />

121


122<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

MEIO AMBIENTE, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: DIÁLOGO DE SABERES E TRANSFORMAÇÃO<br />

DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS – UMA REFLEXÃO SOBRE HISTÓRIAS DE APRENDER E ENSINAR<br />

Nosso Planeta requer mudanças<br />

Pedro Roberto Jacobi<br />

O século XXI inicia-se em meio de uma emergência socioambiental que promete agravar-se,<br />

caso sejam mantidas as tendências atuais de degradação; um problema enraizado na cultura,<br />

nos estilos de pensamento, nos valores, nos pressupostos epistemológicos e no conhecimento<br />

que confi gura, o sistema político, econômico e social em que vivemos. Uma emergência<br />

que, mais que ecológica, é uma crise do estilo de pensamento, dos imaginários sociais e do<br />

conhecimento que sustentaram a modernidade, dominando a natureza e multiplicando a lógica<br />

de mercantilização e consumo planetários.<br />

Vive-se um crise do ser no mundo, que se manifesta em toda sua plenitude nos espaços<br />

internos do sujeito, nas condutas sociais auto destrutivas; e nos espaços externos, na<br />

degradação da natureza e da qualidade de vida das pessoas (Beck, 1992).<br />

A humanidade chegou a uma encruzilhada que exige examinar-se para tentar achar novos<br />

rumos, refl etindo sobre a cultura, as crenças, valores e conhecimentos em que se baseia o<br />

comportamento cotidiano, assim como sobre o paradigma antropológico-social que persiste em<br />

nossas ações, no qual a educação tem um enorme peso.<br />

Atualmente, o avanço rumo a uma sociedade sustentável é permeado de obstáculos, na<br />

medida em que existe uma restrita consciência na sociedade a respeito das implicações do<br />

modelo de desenvolvimento em curso. A multiplicação dos riscos, em especial os ambientais e<br />

tecnológicos de graves conseqüências, é elemento chave para entender as características, os<br />

limites e as transformações da nossa modernidade. É cada vez mais notória a complexidade<br />

desse processo de transformação de uma sociedade crescentemente não só ameaçada, mas<br />

diretamente afetada por riscos e agravos sócio-ambientais.<br />

Nesse sentido, o conjunto de experiências aqui apresentadas, que têm como referência a Carta<br />

da Terra, como movimento e proposta que nos mobiliza para um agir em direção a uma concepção<br />

de sustentabilidade e diálogo com a natureza, abre um estimulante campo de refl exão e atuação<br />

em direção ao fortalecimento do que o Leonardo Boff defi ne como comunidade de vida.<br />

As possibilidades que a Carta da Terra e tantos outros documentos e propostas visam promover e<br />

avançar rumo a Sociedades Sustentáveis têm como premissa a democratização do conhecimento, do


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

acesso e a multiplicação de todo tipo de práticas articuladoras e colaborativas visando sensibilizar,<br />

integrar, divulgar, compreender e fortalecer a necessidade de um outro olhar e agir.<br />

O conjunto de histórias de aprender-e-ensinar elaborados por educadores engajados em um projeto<br />

de educação para a sustentabilidade, em comunidades pobres da região do Pontal do Paranapanema,<br />

é um forte estímulo à refl exão sobre as estimulantes e criativas possibilidades de avançar rumo a<br />

uma sociedade mais comprometida com a proteção dos recursos naturais, numa perspectiva que<br />

sensibiliza para um olhar e agir ético, integrador e abrangente. Os textos nos trazem ao contato com<br />

práticas socioambientais e educativas que procuram integrar e reforçar a importância de compreender<br />

as interdependências entre pobreza, degradação ambiental, injustiça social, confl itos étnicos, paz,<br />

democracia, ética e crise espiritual. As onze experiências, com vibrante e provocativa criatividade,<br />

desenvolvem movimentos que buscam articular idéias, práticas e referenciais de conhecimento e<br />

imagéticos para promover refl exões e ações em torno das ameaças que pesam sobre a biosfera, a<br />

multiplicação dos problemas ambientais do presente e a sua diminuição no futuro.<br />

A ênfase em práticas que estimulam a interdisciplinaridade e a transversalidade revela o<br />

fantástico potencial que existe para sair do lugar comum e o trabalho com temáticas que<br />

estimulam mudanças no comportamento tais como reciclagem, a relação lixo e meio ambiente,<br />

responsabilidade social e ética ambiental, possibilita um outro olhar. Trata-se da importância<br />

de compreender a complexidade envolvida nos processos e o desafi o de ter uma atitude mais<br />

refl exiva e atuante e, por conseguinte, tornar-se mais responsáveis, cuidadosos e engajados em<br />

processos colaborativos com o meio ambiente.<br />

Práticas Educativas para o Desenvolvimento Sustentável<br />

O caminho para uma sociedade sustentável se fortalece na medida em que se desenvolvam<br />

práticas educativas que, pautadas pelo paradigma da complexidade, aportem para a escola<br />

e os ambientes pedagógicos, uma atitude refl exiva em torno da problemática ambiental e os<br />

efeitos gerados por uma sociedade cada vez mais pragmática e utilitarista, visando traduzir o<br />

conceito de ambiente e o pensamento da complexidade na formação de novas mentalidades,<br />

conhecimentos e comportamentos (LEFF, 2001). Isto implica na necessidade de se multiplicarem<br />

as práticas sociais baseadas no fortalecimento do direito ao acesso à informação e à educação<br />

em uma perspectiva integradora.<br />

Trata-se de promover o crescimento da consciência ambiental, expandindo a possibilidade<br />

da população participar em um nível mais alto no processo decisório, como uma forma de<br />

fortalecer sua co-responsabilidade na fi scalização e no controle dos agentes de degradação<br />

ambiental (JACOBI, 2003).<br />

Nessa direção, a problemática ambiental constitui um tema muito propício para aprofundar a<br />

refl exão e a prática em torno do restrito impacto das práticas de resistência e de expressão das<br />

demandas da população das áreas mais afetadas pelos constantes e crescentes agravos ambientais.<br />

123


124<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

As práticas educativas devem apontar para propostas pedagógicas centradas na conscientização,<br />

mudança de comportamento e atitudes, desenvolvimento de competências, capacidade de<br />

avaliação e participação dos educandos. Isto desafi a a sociedade a elaborar novas epistemologias<br />

que possibilitem o que Morin (2003) denomina de “uma reforma do pensamento” (FLORIANI,<br />

2003:116). No novo contexto do conhecimento do qual emergem as novas epistemologias sócioambientais,<br />

plurais e diferenciadas, Capra representa a busca da unifi cação do conhecimento com<br />

a natureza e a sociedade, Morin pensa a complexidade como referencial principal para explicar<br />

os novos sentidos do mundo, e Leff, uma nova racionalidade ambiental, capaz de subverter a<br />

ordem imperante entre as lógicas de vida e o destino das sociedades (FLORIANI e KNECHTEL,<br />

2003: 16). Assim, o conceito de ambiente situa-se numa categoria não apenas biológica, mas que<br />

constitui “uma racionalidade social, confi gurada por comportamentos, valores e saberes, como<br />

também por novos potenciais produtivos” (LEFF, 2001: 224)<br />

Uma mudança paradigmática implica numa mudança de percepção e de valores, e isto deve<br />

orientar de forma decisiva para formar as gerações atuais não somente para aceitar a incerteza e<br />

o futuro, mas para gerar um pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à<br />

diversidade, à possibilidade de construir e reconstruir num processo contínuo de novas leituras e<br />

interpretações, confi gurando novas possibilidades de ação (MORIN, 2001; CAPRA, 2003; LEFF, 2003).<br />

Os principais referenciais teóricos apontam para matrizes alternativas de integração do conhecimento<br />

que superem o paradigma dualista e enfatizam a complexidade e a interdisciplinaridade<br />

como elemento constitutivo de um novo pensar sobre as relações sociedade-natureza.<br />

A premissa que norteia o paradigma proposto é o diálogo de saberes e uma orientação para<br />

formar as gerações atuais, não somente para aceitar a incerteza e o futuro, mas para gerar um<br />

pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à diversidade, à possibilidade<br />

de construir e reconstruir em um processo contínuo de novas leituras e interpretações,<br />

confi gurando possibilidades de ação para a emancipação.<br />

Meio Ambiente e diálogo de saberes – atores e práticas<br />

As práticas educativas articuladas com a problemática ambiental não devem ser vistas<br />

como um adjetivo, mas como parte componente de um processo educativo que reforce um<br />

pensar da educação e dos educadores orientados para a sustentabilidade. Isto nos permite<br />

enfatizar que este processo educativo deve ser capaz de formar um pensamento crítico,<br />

criativo e sintonizado com a necessidade de propor respostas para o futuro, capaz de analisar<br />

as complexas relações entre os processos naturais e sociais e de atuar no ambiente em uma<br />

perspectiva global, respeitando as diversidades socioculturais. O objetivo é o de propiciar novas<br />

atitudes e comportamentos face ao consumo na nossa sociedade e de estimular a mudança de<br />

valores individuais e coletivos (JACOBI, 2005). Assim a educação ambiental precisa construir um<br />

instrumental que promova uma atitude crítica, uma compreensão complexa e a politização da<br />

problemática ambiental, a participação dos sujeitos, o que explicita uma ênfase em práticas<br />

sociais menos rígidas, centradas na cooperação entre os atores.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

Na ótica da modernização refl exiva, a educação ambiental tem de enfrentar a fragmentação<br />

do conhecimento e desenvolver uma abordagem crítica e política, mas refl exiva.<br />

Portanto, a dimensão ambiental representa a possibilidade de lidar com conexões entre diferentes<br />

dimensões humanas, possibilitando entrelaçamentos e múltiplos trânsitos entre múltiplos saberes.<br />

Atualmente o desafi o de fortalecer uma educação para a cidadania ambiental convergente e<br />

multirreferencial se coloca como prioridade para viabilizar uma prática educativa que articule de<br />

forma incisiva a necessidade de se enfrentar concomitantemente a crise ambiental e os problemas<br />

sociais. Assim, o entendimento sobre os problemas ambientais se dá através da visão do meio<br />

ambiente como um campo de conhecimento e signifi cados socialmente construído, que é perpassado<br />

pela diversidade cultural e ideológica e pelos confl itos de interesse (JACOBI, 2005).<br />

Os educadores(as) devem estar cada vez mais preparados para re-elaborar as informações<br />

que recebem, e dentre elas as ambientais, para poder transmitir e decodifi car para os alunos<br />

a expressão dos signifi cados em torno do meio ambiente e da ecologia nas suas múltiplas<br />

determinações e intersecções. A ênfase deve ser a capacitação para perceber as relações entre<br />

as áreas e como um todo enfatizando uma formação local/global, buscando marcar a necessidade<br />

de enfrentar a lógica da exclusão e das desigualdades. Nesse contexto, a administração dos<br />

riscos sócio-ambientais coloca cada vez mais a necessidade de ampliar o envolvimento público<br />

através de iniciativas que possibilitem um aumento do nível de consciência ambiental dos<br />

educadores garantindo a informação e a consolidação institucional de canais abertos para a<br />

participação numa perspectiva pluralista.<br />

Considera-se, portanto, como parte ativa de um processo intelectual, enquanto aprendizado<br />

social, baseado no diálogo e interação em constante processo de recriação e re-interpretação<br />

de informações, conceitos e signifi cados, que se originam do aprendizado em sala de aula ou da<br />

experiência pessoal do aluno. A abordagem do meio ambiente na escola passa a ter um papel<br />

articulador dos conhecimentos nas diversas disciplinas, no contexto onde os conteúdos são resignifi<br />

cados. Ao interferir no processo de aprendizagem e nas percepções e representações sobre<br />

a relação indivíduos - ambiente nas condutas cotidianas que afetam a qualidade de vida, a<br />

educação ambiental promove os instrumentos para a construção de uma sociedade sustentável.<br />

A ótica inovadora refere-se à forma como se apreende o objeto de pesquisa e à dinâmica que<br />

se estabelece com os atores sociais que propõem uma nova forma de integração e articulação do<br />

conhecimento ambiental. Esta abordagem busca superar o reducionismo e estimula um pensar<br />

e fazer sobre o meio ambiente diretamente vinculado ao diálogo entre saberes, à participação,<br />

aos valores éticos como valores fundamentais para fortalecer a complexa interação entre<br />

sociedade e natureza. Nesse sentido, o papel dos professores é essencial para impulsionar<br />

as transformações de uma educação que assume um compromisso com o desenvolvimento<br />

sustentável e também com as futuras gerações.<br />

Isto nos leva à refl exão sobre a necessidade da formação do profi ssional refl exivo para desenvolver<br />

práticas que articulem a educação e o meio ambiente numa perspectiva de sustentabilidade.<br />

125


126<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

A inserção da educação para a cidadania ambiental numa perspectiva crítica ocorre na medida<br />

em que o professor assume uma postura refl exiva. Entende-se a educação ambiental, sob a ótica<br />

de uma “educação para a cidadania ambiental”, como uma prática político-pedagógica. Assim<br />

sendo, representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas<br />

formas de participação em potenciais fatores de dinamização da sociedade e de ampliação da<br />

responsabilidade socioambiental. Trata-se de criar as condições para a ruptura com a cultura<br />

política dominante e para a construção de uma nova proposta de sociabilidade, baseada na<br />

educação para a participação. Esta se concretizará principalmente pela presença crescente<br />

de uma pluralidade de atores que, através da ativação do seu potencial de participação, terão<br />

cada vez mais condições de intervir consistentemente e sem tutela nos processos decisórios<br />

de interesse público, legitimando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do<br />

acesso à informação e na consolidação de canais abertos para a participação (JACOBI, 2005).<br />

As experiências interdisciplinares são recentes e incipientes inclusive em nível de pós-<br />

graduação. Existem, segundo Tristão (2002:173-181), quatro desafi os da educação ambiental<br />

que, entrelaçados, estão associados ao papel do educador na contemporaneidade. O primeiro<br />

desafi o é o de “enfrentar a multiplicidade de visões”, e isto implica na preparação do educador<br />

para fazer as conexões (CAPRA, 2003:94-99) e articular os processos cognitivos com os contextos<br />

da vida. Assim, entender a complexidade ambiental, não como “moda” ou “reifi cação” ou<br />

“utilização indiscriminada”, mas como construção de sentidos fundamental para identifi car<br />

interpretações e generalizações feitas em nome do meio ambiente e da ecologia. O segundo<br />

desafi o é o de “superar a visão do especialista”, e para tanto o caminho é ruptura com as práticas<br />

disciplinares. O terceiro desafi o é “superar a pedagogia das certezas”, e isto converge com as<br />

premissas que norteiam a formação do “professor refl exivo”, o que implica em compreender a<br />

modernidade e os “riscos produzidos” e seu potencial de reprodução e desenvolver, no espaço<br />

pedagógico uma sensibilização em torno da complexidade da sociedade contemporânea e das<br />

suas múltiplas causalidades. O quarto desafi o, de superar a lógica da exclusão, soma ao desafi o<br />

da sustentabilidade a necessidade da superação das desigualdades sociais.<br />

O momento atual é o de consolidar práticas pedagógicas que estimulem a interdisciplinaridade<br />

na sua diversidade.<br />

O desafi o da interdisciplinariedade é enfrentado como um processo de conhecimento que<br />

busca estabelecer cortes transversais na compreensão e explicação do contexto de ensino<br />

e pesquisa, buscando a interação entre as disciplinas e superando a compartimentalização<br />

científi ca provocada pela excessiva especialização.<br />

Enquanto combinação de várias áreas de conhecimento, a interdisciplinariedade pressupõe<br />

o desenvolvimento de metodologias interativas, confi gurando a abrangência de enfoque,<br />

contemplando uma nova articulação das conexões entre as ciências naturais, sociais e exatas.<br />

A preocupação em consolidar uma dinâmica de ensino e pesquisa a partir de uma perspectiva<br />

interdisciplinar enfatiza a importância dos processos sociais que determinam as formas de


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

apropriação da natureza e suas transformações através da participação social na gestão dos<br />

recursos ambientais, levando em conta a dimensão evolutiva no sentido mais amplo, incluindo<br />

as conexões entre as diversidades biológica e cultural, assim como as práticas dos diversos<br />

atores sociais, bem como o impacto da sua relação com o meio ambiente.<br />

Assim, a ênfase na interdisciplinariedade na análise das questões ambientais deve-se à<br />

constatação de que os problemas que afetam e mantêm a vida no nosso planeta são de natureza<br />

global e que suas causas não podem restringir-se apenas aos fatores estritamente biológicos,<br />

revelando dimensões políticas, econômicas, institucionais, sociais e culturais.<br />

Para isso não é sufi ciente reunir diferentes disciplinas para o exercício interdisciplinar, mas deve<br />

apoiar-se em trocas sistemáticas e no confronto de saberes disciplinares que incluam não apenas<br />

uma problemática nas interfaces entre as diversas ciências naturais e sociais. Isto só se concretizará<br />

a partir de uma ação orgânica das diversas disciplinas, superando a visão multidisciplinar.<br />

Posto que os problemas ambientais transcendem as diferentes disciplinas, tanto o<br />

aprofundamento disciplinar quanto a ampliação do conhecimento entre as disciplinas são<br />

elementos fundamentais, porém de grande complexidade quanto à sua implementação.<br />

A complexidade da questão ambiental abre um espaço para, não só estimular a interdisciplinariedade,<br />

mas criar condições para promover um efetivo diálogo de saberes que possibilita,<br />

não apenas a união de diferentes disciplinas para abordar um problema comum, mas que tem<br />

como objetivo mais desafi ador contribuir como um processo produtor de novos conhecimentos.<br />

O desafi o de ampliar um novo olhar e agir<br />

A necessidade de uma crescente internalização da questão ambiental, um saber ainda<br />

em construção, demanda um esforço de fortalecer visões integradoras que, centradas no<br />

desenvolvimento, estimulam uma refl exão em torno da diversidade e da construção de sentidos<br />

nas relações indivíduos-natureza, dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambientedesenvolvimento.<br />

Nestes onde a informação assume um papel cada vez mais relevante (ciberespaço, multimídia,<br />

internet) a educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas<br />

para transformar as diversas formas de participação na defesa da qualidade de vida.<br />

Assim, a problemática ambiental urbana constitui um tema muito propício para aprofundar<br />

a refl exão e a prática em torno do restrito impacto das práticas de resistência e de expressão<br />

das demandas da população das áreas mais afetadas pelos constantes e crescentes agravos<br />

ambientais. Mas representa também a possibilidade de abertura de estimulantes espaços para<br />

implementar alternativas diversifi cadas de democracia participativa, notadamente a garantia<br />

do acesso à informação e a consolidação de canais abertos para uma participação plural.<br />

127


128<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

Os impactos negativos do conjunto de problemas ambientais resultam principalmente da<br />

precariedade dos serviços e da omissão do poder público na prevenção das condições de vida da<br />

população. Porém, são também refl exo do descuido e da omissão dos próprios moradores, inclusive<br />

nos bairros mais carentes de infra-estrutura, colocando em xeque aspectos de interesse coletivo.<br />

Isso traz à tona a contraposição do signifi cado dos problemas ambientais urbanos e as práticas<br />

de resistência dos que “têm” e dos que “não têm”, representados sempre pela defesa de<br />

interesses particularizados que interferem signifi cativamente na qualidade de vida da cidade<br />

como um todo.<br />

A postura de dependência e de desresponsabilização da população decorre principalmente<br />

da desinformação, da falta de consciência ambiental e de um défi cit de práticas comunitárias<br />

baseadas na participação e no envolvimento dos cidadãos, que proponham uma nova cultura de<br />

direitos baseada na motivação e na co-participação da gestão ambiental das cidades.<br />

A relação entre meio ambiente e educação para a cidadania assume um papel cada vez mais<br />

desafi ador, demandando a emergência de novos saberes para apreender processos sociais que<br />

se complexifi cam e riscos ambientais que se intensifi cam.<br />

Quando nos referimos à educação ambiental, a situamos num contexto mais amplo, o da educação<br />

para a cidadania, confi gurando-se como elemento determinante para a consolidação de sujeitos<br />

cidadãos. O desafi o do fortalecimento da cidadania para a população como um todo, e não para um<br />

grupo restrito, concretiza-se a partir da possibilidade de cada pessoa ser portadora de direitos e<br />

deveres, e se converter, portanto, em ator co-responsável na defesa da qualidade de vida.<br />

O principal eixo de atuação da educação ambiental deve buscar, acima de tudo, a solidariedade,<br />

a igualdade e o respeito à diferença, através de formas democráticas de atuação baseadas em<br />

práticas interativas e dialógicas. Isto se consubstancia no objetivo de criar novas atitudes e<br />

comportamentos face ao consumo na nossa sociedade e de estimular a mudança de valores<br />

individuais e coletivos.<br />

E como se relaciona educação ambiental com a cidadania? Cidadania tem a ver com o<br />

pertencimento e identidade numa coletividade. A educação ambiental, como formação de<br />

cidadania e como exercício de cidadania, tem a ver com uma nova forma de encarar a relação<br />

do homem com a natureza, baseada numa nova ética, que pressupõe outros valores morais e<br />

uma forma diferente de ver o mundo e os homens.<br />

A educação ambiental deve ser vista como um processo de permanente aprendizagem, que<br />

valoriza as diversas formas de conhecimento, e forma cidadãos com consciência local e planetária.<br />

As práticas inovadoras aqui apresentadas refl etem, na sua diversidade, uma convergência em<br />

conceitos, eixos transversais e enfoques interdisciplinares centrados numa preocupação de<br />

incrementar a co-responsabilidade das pessoas em todas as faixas etárias e grupos sociais quanto<br />

à importância de formar cidadãos cada vez mais comprometidos com a defesa da vida.


Parte 4 – Caderno de Atividades<br />

A educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para<br />

transformar as diversas formas de participação em potenciais caminhos de dinamização da sociedade<br />

e de concretização de uma proposta de sociabilidade baseada na educação para a participação.<br />

O complexo processo de construção da cidadania no Brasil, num contexto de agudização das<br />

desigualdades, é perpassado por um conjunto de questões que necessariamente implicam na superação<br />

das bases constitutivas das formas de dominação e de uma cultura política baseada na tutela.<br />

O desafi o da construção de uma cidadania ativa se confi gura como elemento determinante<br />

para constituição e fortalecimento de sujeitos cidadãos que, portadores de direitos e deveres,<br />

assumam a importância da abertura de novos espaços de participação.<br />

O desafi o é fortalecer a importância de garantir padrões ambientais adequados e estimular uma<br />

crescente consciência ambiental, centrada no exercício da cidadania e na reformulação de valores éticos<br />

e morais, individuais e coletivos, numa perspectiva orientada para o desenvolvimento sustentável.<br />

Nesse sentido, a dimensão cotidiana da educação ambiental leva a pensá-la enquanto somatória de<br />

práticas e, conseqüentemente, entendê-la na dimensão de sua potencialidade de generalização para<br />

o conjunto da sociedade. Entende-se que esta generalização de práticas ambientais só será possível se<br />

estiver inserida no contexto de valores sociais, mesmo que se refi ra a mudanças de hábitos cotidianos.<br />

A problemática socioambiental, ao questionar ideologias teóricas e práticas, propõe a questão<br />

da participação democrática da sociedade na gestão dos seus recursos atuais e potenciais, assim<br />

como no processo de tomada de decisões para a escolha de novos estilos de vida e a construção<br />

de futuros possíveis sob a ótica da sustentabilidade ecológica e a equidade social.<br />

Para tanto, é muito importante que se consolidem novos paradigmas educativos centrados na<br />

formulação de novos objetos de referência conceituais e principalmente a transformação de atitudes.<br />

A complexidade da questão ambiental abre um espaço para não só estimular a interdisciplinariedade,<br />

mas de criar condições para promover um efetivo diálogo de saberes que possibilita, não apenas<br />

a união de diferentes disciplinas para abordar um problema comum, mas que tem como objetivo<br />

mais desafi ador contribuir como um processo produtor de novos conhecimentos.<br />

A necessidade de uma crescente internalização da questão ambiental, um saber ainda em<br />

construção, demanda um esforço de fortalecer visões integradoras que centradas no desenvolvimento,<br />

estimulam uma refl exão em torno da diversidade e da construção de sentidos nas relações indivíduonatureza,<br />

dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambiente-desenvolvimento.<br />

Pedro Roberto Jacobi é professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de<br />

Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São <strong>Paulo</strong>.<br />

129


130<br />

Histórias de Aprender-e-ensinar para mudar o mundo<br />

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