O jornal de literatura do Brasil Preciso escrever ... - Jornal Rascunho
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12<br />
150 • outubro_2012<br />
entrevista<br />
: : nilza rezeN<strong>de</strong><br />
virar o<br />
QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S<br />
COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />
jogo<br />
Mais <strong>do</strong> que prazer e sofrimento, é um vendaval,<br />
“puxan<strong>do</strong> coisas muito fortes <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> você”, que<br />
marca a escrita <strong>de</strong> NiLza rezeN<strong>de</strong>. <strong>de</strong>ste fenômeno,<br />
impulsiona<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sejo e pela liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> narrar<br />
sua história — não necessariamente a sua pessoal, mas aquela<br />
que quiser contar —, nascem livros <strong>de</strong> tramas e personagens<br />
intensas em torno <strong>do</strong>s relacionamentos amorosos. É o caso <strong>do</strong>s<br />
romances um <strong>de</strong>us <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, um diabo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim<br />
(2003), cuja narrativa ao mesmo tempo sustenta e é impregnada<br />
pela tensão <strong>de</strong> uma mulher que enfrenta o fim <strong>de</strong> seu casamento<br />
e luta para ser protagonista <strong>de</strong> sua própria vida; <strong>do</strong>rme, querida,<br />
tu<strong>do</strong> vai dar certo (2005), conduzi<strong>do</strong> com humor e ironia<br />
por teresa, mãe <strong>de</strong> três filhos e diretora <strong>de</strong> marketing em uma<br />
empresa <strong>de</strong> moda que <strong>de</strong>seja ser escritora; e bocas <strong>de</strong> mel e<br />
fel (2011), em que a mulher passional, forte e inteligente <strong>de</strong> nilza<br />
reaparece como uma advogada dividida entre <strong>do</strong>is homens, um<br />
“comerciante insignificante” e um “professor estrangeiro”. unidas<br />
em torno <strong>de</strong> um assunto extensamente retrata<strong>do</strong> na <strong>literatura</strong>,<br />
as narrativas da escritora carioca são potencializadas pela sua<br />
linguagem ágil e intimista e por personagens que, se compartilham<br />
da biografia da autora e têm muito em comum entre si, carregam a<br />
verossimilhança da complexida<strong>de</strong> humana.<br />
o contato <strong>de</strong> nilza rezen<strong>de</strong> com a palavra escrita, no entanto,<br />
vem da infância, e sua estréia na <strong>literatura</strong> é anterior a esses três<br />
romances, com o infanto-juvenil uma menina, um menino, o<br />
amor, <strong>de</strong> 1993, segui<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is outros livros — Lili, a menina<br />
que cansou <strong>de</strong> ser boazinha e Já pensou se alguém<br />
acha e lê esse diário – volta<strong>do</strong>s ao público jovem, além <strong>de</strong><br />
trabalhos para cinema, teatro e publicida<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s contos <strong>de</strong><br />
elas querem é falar... este percurso é tema da entrevista a<br />
seguir, em que nilza fala sobre como sua biografia se insere<br />
em sua ficção e sobre o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> transformar experiência em<br />
linguagem, <strong>do</strong>man<strong>do</strong> assim o vendaval para fazer <strong>literatura</strong>.<br />
: : YasMin taKetani<br />
Curitiba – Pr<br />
• Há uma semelhança temática<br />
em sua obra e na psicologia<br />
<strong>de</strong> suas personagens. O que a<br />
levou a <strong>de</strong>dicar três livros aos<br />
relacionamentos amorosos?<br />
Desejo <strong>de</strong> <strong>escrever</strong> sobre isso, simplesmente.<br />
Foi o que quis <strong>escrever</strong>.<br />
Mas reconheço que minhas histórias,<br />
<strong>de</strong> alguma forma, se inspiram<br />
em algum ponto <strong>do</strong> que vivi. E não<br />
são só os romances. Tenho um livro,<br />
Já pensou se alguém acha<br />
e lê este diário, <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> ao público<br />
infanto-juvenil, que conta a<br />
história <strong>de</strong> João Gabriel, um menino<br />
que está sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>speja<strong>do</strong> da<br />
casa on<strong>de</strong> mora, ao mesmo tempo<br />
em que seu pai <strong>de</strong>sapareceu e ele<br />
está passan<strong>do</strong> da infância à a<strong>do</strong>lescência.<br />
Esse livro surgiu <strong>de</strong> quan<strong>do</strong><br />
eu morava em São Paulo, numa vila<br />
que o Paulo Maluf resolveu <strong>de</strong>rrubar<br />
para fazer passar uma avenida.<br />
Então, reconheço, sem qualquer<br />
problema: até agora, minha <strong>literatura</strong><br />
busca o fio na minha vida. Mas<br />
também é preciso dizer: mais que o<br />
miolo, me interessa a forma <strong>de</strong> contar,<br />
a linguagem. Esse é o <strong>de</strong>safio.<br />
De como o discurso po<strong>de</strong> guiar o<br />
leitor pela narrativa. Assim, os três<br />
romances têm como pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong><br />
o relacionamento amoroso, mas os<br />
três romances têm uma linguagem,<br />
um discurso, completamente diferente.<br />
O amor é apenas o recheio.<br />
• Em que medida acredita ser<br />
necessário a um escritor reinventar-se,<br />
levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração<br />
que a forma e o conteú<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> seus livros têm muito em<br />
comum?<br />
Acho que uma das vantagens da <strong>literatura</strong><br />
é a liberda<strong>de</strong>. Você po<strong>de</strong><br />
<strong>escrever</strong> sobre o que quiser. Se vai<br />
ser publica<strong>do</strong> ou não, vendi<strong>do</strong> ou<br />
não, é outra questão. Mas o escritor<br />
tem autonomia para <strong>escrever</strong> o livro<br />
que está na sua cabeça, no seu <strong>de</strong>sejo.<br />
Há uma voz narrativa que é o<br />
fio condutor da obra <strong>de</strong> um escritor.<br />
Só um louco po<strong>de</strong> confundir a obra<br />
<strong>de</strong> Macha<strong>do</strong> com a <strong>de</strong> Graciliano, <strong>de</strong><br />
Guimarães ou <strong>de</strong> Marçal Aquino, por<br />
exemplo. Há uma contextualida<strong>de</strong>,<br />
uma voz, um tempo, um estilo, digamos,<br />
que — po<strong>de</strong> parecer contraditório<br />
—, por mais que se reinvente,<br />
não se reinventa. Os livros, cada<br />
um na sua especificida<strong>de</strong>, revelam<br />
um escritor, o mesmo escritor. No<br />
meu caso, uma mulher carioca, que<br />
nasceu em 1959, que não pertence a<br />
nenhuma escola literária, que pouco<br />
faz vida literária, que é divorciada,<br />
que é passional, etc., etc. — isso tá lá,<br />
<strong>de</strong> alguma forma tá lá. Não me interessa<br />
— e nem saberia — cada hora<br />
apresentar um texto totalmente <strong>de</strong>svincula<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> outro e <strong>de</strong> mim.<br />
• O amor é cerca<strong>do</strong> por clichês.<br />
Fugir <strong>de</strong>les foi uma preocupação<br />
ou, antes, você buscou<br />
aceitá-los e até mesmo incorporá-los<br />
a seus livros?<br />
To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ama mais ou menos<br />
da mesma forma; ciúmes, paixão,<br />
rejeição, traição — isso faz a vida<br />
(e a <strong>literatura</strong>) há séculos e séculos.<br />
Não dá para inventar o amor, seria<br />
uma ambição <strong>de</strong>smedida, uma pretensão<br />
sem sucesso. No entanto, é<br />
claro que o clichê não dá boa <strong>literatura</strong>.<br />
A felicida<strong>de</strong> não dá <strong>literatura</strong>,<br />
não é? O amor clichê também não<br />
dá a <strong>literatura</strong> que me interessa.<br />
Então, é preciso investir na linguagem,<br />
elaborar o discurso, buscar os<br />
recursos que a palavra oferece para<br />
contar uma história — com ou sem<br />
clichês. E não é o clichê que vai fazer<br />
reconheço, sem<br />
qualquer problema:<br />
até agora, minha<br />
<strong>literatura</strong> busca o fio<br />
na minha vida. Mas<br />
também é preciso<br />
dizer: mais que o<br />
miolo, me interessa<br />
a forma <strong>de</strong> contar,<br />
a linguagem. esse<br />
é o <strong>de</strong>safio.”<br />
o texto ser ruim; nem falta <strong>de</strong> clichê<br />
vai transformá-lo em obra <strong>de</strong> arte.<br />
Literatura pra mim é literarieda<strong>de</strong>,<br />
ou seja, linguagem, discurso. Em<br />
Bocas <strong>de</strong> mel e fel, por exemplo,<br />
a narra<strong>do</strong>ra é uma advogada. Trabalhei,<br />
então, para que a linguagem<br />
fosse sedutora, mais que a história<br />
<strong>de</strong> sedução que Irene conta, dividida<br />
entre <strong>do</strong>is homens antagônicos.<br />
É por isso que a <strong>literatura</strong> não<br />
se esgota. Porque ela se diferencia<br />
não pelo tema, mas pela linguagem.<br />
Temos milhões <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s livros<br />
sobre o amor, sobre triângulos<br />
amorosos, por exemplo, mas o que<br />
faz <strong>de</strong>les <strong>literatura</strong> certamente é a<br />
enunciação, não o enuncia<strong>do</strong>.<br />
• Em seus romances, as mulheres<br />
surgem como personagens,<br />
vão se apossan<strong>do</strong> da<br />
narrativa e terminam elas<br />
mesmas como narra<strong>do</strong>ras <strong>de</strong><br />
suas histórias. Esta é uma espécie<br />
<strong>de</strong> vingança?<br />
Po<strong>de</strong> ser... João Antônio já dizia que<br />
o escritor quan<strong>do</strong> escreve “vai à forra”...<br />
O fato é que a gente vive, mesmo<br />
com toda a liberalização sexual, com<br />
to<strong>do</strong>s os avanços, em uma socieda<strong>de</strong><br />
machista. Então... Mas talvez tenha<br />
a ver com algo maior. Minha vida <strong>de</strong><br />
alguma forma é uma tentativa (e um<br />
esforço) <strong>de</strong> romper com um papel<br />
<strong>de</strong> coadjuvante. Minha mãe era uma<br />
mulher muito forte, muito bem-sucedida,<br />
que viveu 92 anos com uma<br />
luci<strong>de</strong>z e uma iniciativa impressionantes.<br />
Difícil para nós, seus filhos,<br />
superarmos a matriarca. Ainda<br />
mais pra mim, que tenho o mesmo<br />
nome... Talvez aí nasça a briga, o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> pegar a direção, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />
<strong>de</strong> ser personagem e se transformar<br />
em narra<strong>do</strong>ra. Minhas personagens<br />
querem se ver protagonistas. E fazem<br />
por on<strong>de</strong>. É um <strong>de</strong>sejo meu e<br />
também das mulheres contemporâneas,<br />
acredito. Virar o jogo.<br />
• Escrever sob o ponto <strong>de</strong> vista<br />
<strong>de</strong> um homem chegou a ser uma<br />
possibilida<strong>de</strong>? Por que elegeu<br />
as personagens, elas mesmas<br />
sujeitos das ações e objetos das<br />
histórias, narra<strong>do</strong>ras?<br />
Em Já pensou se alguém acha<br />
e lê este diário, isso acontece. O<br />
narra<strong>do</strong>r é João Gabriel. A opção foi<br />
feita para tentar <strong>de</strong>rrubar esse mito<br />
<strong>de</strong> que só as meninas escrevem,<br />
como se <strong>escrever</strong> fosse uma coisa<br />
feita para um temperamento dócil,<br />
típico das meninas... Puro esteriótipo.<br />
O livro faz um sucesso dana<strong>do</strong><br />
com os meninos. Um amigo <strong>do</strong> meu<br />
filho, outro dia, gritou da condução<br />
da escola: “Nilza, te <strong>do</strong>u a minha<br />
mesada pra você continuar o livro!”<br />
Nos três romances a que você se re-<br />
fotos: divulgação<br />
fere (Um <strong>de</strong>us <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim,<br />
um diabo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le; Dorme,<br />
querida, tu<strong>do</strong> vai dar certo e<br />
Bocas <strong>de</strong> mel e fel), houve essa<br />
coincidência (coincidência?). Sinceramente,<br />
escrevi os livros que<br />
quis <strong>escrever</strong>, e quis <strong>escrever</strong> sobre<br />
personagens femininas. Não é o<br />
caso, no entanto, <strong>do</strong> próximo livro,<br />
cujo narra<strong>do</strong>r é um homem.<br />
• Em seu mais recente livro, Bocas<br />
<strong>de</strong> mel e fel, a personagem<br />
— ainda que lance um olhar irônico<br />
e crítico sobre si mesma e<br />
seja, em boa parte, <strong>de</strong>finida<br />
por fortes paixões, assim como<br />
suas mulheres anteriores — soa<br />
mais tranqüila, madura e preocupada<br />
em reconstruir sua história<br />
<strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista que<br />
já não é mais o <strong>de</strong> vítima nem<br />
<strong>de</strong> crise, livran<strong>do</strong>-se da carga<br />
mais intensa, quase frenética,<br />
<strong>de</strong> seu primeiro livro. Ainda<br />
que o fim da trama justifique<br />
parte <strong>de</strong>sta mudança, que outros<br />
fatores contribuíram para<br />
a construção <strong>do</strong> romance?<br />
A personagem-narra<strong>do</strong>ra, Irene, é<br />
uma advogada. Sou filha <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>s<br />
(não disse que minha <strong>literatura</strong><br />
busca inspiração na vida?), sei<br />
o quanto manejar a palavra é fundamental<br />
nesta profissão. Os advoga<strong>do</strong>s<br />
sabem que a versão, muitas<br />
vezes, é mais forte que o fato. É<br />
preciso, então, trabalhar o discurso,<br />
segurá-lo com ré<strong>de</strong>as curtas,<br />
saber exatamente aon<strong>de</strong> se quer ir.<br />
Totalmente diferente <strong>de</strong> Lila, a narra<strong>do</strong>ra<br />
<strong>de</strong> Um <strong>de</strong>us <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le,<br />
um diabo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, que<br />
vivia aquele momento pós-separação,<br />
atormentada. Ali, a linguagem<br />
precisava ser frenética, compulsiva,<br />
pois a cabeça <strong>de</strong>la era assim. Já Irene,<br />
não; ela maneja a palavra, ela