30 150 • outubro_2012 suJeito oCulto : : rogÉrio Pereira a PisCina <strong>do</strong> Menino vivo QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S Queria pegá-lo no colo. Antes era fácil. Bastava um pequeno impulso e ele grudava em mim. Preservo a foto tirada sobre a bicicleta <strong>de</strong> plástico. Parecia assusta<strong>do</strong>. Nunca esteve confortável neste mun<strong>do</strong>. Nem mesmo diante <strong>do</strong> trem aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> no museu, que tanto o fascinara. Aquele sorriso suportou pouco tempo. Ele cresceu muito em 20 anos. Deci<strong>do</strong> abraçá-lo. É mais alto que eu. Somos <strong>do</strong>is <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>s. Nossos corpos não foram treina<strong>do</strong>s para o afago, o carinho, o toque. Envolveme com força <strong>de</strong>sproporcional. O cheiro <strong>do</strong> seu corpo é bom. Barba feita, cabelo corta<strong>do</strong>. Estamos num lugar distante, no meio <strong>do</strong> mato, entre estradas <strong>de</strong> terra, pássaros e árvores. Na portaria, um segurança. Pela chácara, as pessoas andam, comem, falam muito, silenciam muito. Quan<strong>do</strong> o mandamos para ali, não sabíamos como seria. Agora, conhecemos a nova casa — uma casa coletiva, compartilhada com muitos outros na mesma situação. E muitas histórias espalhadas pelo corpo. Todas muito ruins. Enchemos o porta-malas: comida, roupas, livros, gibis, mangás. Um arsenal para uma batalha <strong>de</strong>sconhecida, contra um inimigo perigoso. O <strong>do</strong>mingo seria longo. Não tínhamos alternativa. Pegamos a ro<strong>do</strong>via e seguimos em direção ao litoral. Somos quatro no carro: meu pai e suas histórias; eu e meu silêncio; minha mulher e sua fé; minha mãe e seu câncer. Cada um carrega o que é possível. O pedágio é caro. A neblina dificulta a visibilida<strong>de</strong>. Descemos a serra <strong>do</strong> mar. Dirijo com cuida<strong>do</strong>, COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO you’d have to nail me to the bed she says skilful skin unwinding flashing femurs in the bright broad sun hollow lids brimming blithely sorrow stretched from brow to bones the reticent dip of a finger in tomorrow’s vat it comes out blue and flattened bellows electric eyes splitting setting suns thighs crumbling and cracking grabs the bottle and pours and icy sheets <strong>de</strong>scend wanted bent and borrowed shuts the <strong>do</strong>or and folds the last of what she owns she said: (you’d better) nail me to the floor <strong>de</strong>vagar. Receio que alguma engrenagem se <strong>de</strong>sprenda <strong>do</strong> corpo da minha mãe. Daria trabalho parar no acostamento e recolher uma peça cujo tempo <strong>de</strong> vida útil está venci<strong>do</strong>. “Será que ele está bem?” é a pergunta que não nos fazemos. A cada sinal <strong>de</strong> vida na estrada — casa, chácara, cavalo, galinha — meu pai conta uma história, faz um comentário. Ele conhece um mun<strong>do</strong> que <strong>de</strong>sconheço. Invariavelmente, somos <strong>do</strong>is estranhos na mesma jaula. O plano era levá-lo à força. Já não havia saída. Nada o convencia. Nenhum trem da infância era capaz <strong>de</strong> arrastá-lo para outro lugar, para outra estação. Uma tar<strong>de</strong> quente, as algemas lhe sossegaram a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar resistin<strong>do</strong>. Ele caminha ao meu la<strong>do</strong>. Apresenta-me o novo território. Subimos em direção à casa central. O pescoço arca<strong>do</strong> para frente é herança familiar. A calça estampa vários remen<strong>do</strong>s. Noto que era minha. Nossa herança material também é frágil e <strong>de</strong>stroçada. No fim da subida, uma piscina. O homem baixinho implora a uma senhora gorda para ir embora. A mulher escon<strong>de</strong> o rosto entre as mãos e está prestes a chorar. A insistência <strong>de</strong>le me chama a atenção. Faltamlhe <strong>do</strong>is <strong>de</strong>ntes na lateral da boca, usa bermuda jeans e camisa xadrez. Uma indisfarçável careca lhe perfura a testa. Este mesmo homem estará o tempo to<strong>do</strong> por ali — um galizé ciscan<strong>do</strong> no terreiro em busca <strong>de</strong> milho —, sempre imploran<strong>do</strong> a algum parente que o leve, garantin<strong>do</strong> que está limpo, cura<strong>do</strong>, livre. No restaurante, pedimos a especialida<strong>de</strong> da casa. Levamos lasanha à bolonhesa, com arroz e medalhão <strong>de</strong> mignon. Salada ver<strong>de</strong> para acompanhar. Torta <strong>de</strong> banana <strong>de</strong> sobremesa. Comida pesada, com sustança. Tu<strong>do</strong> embala<strong>do</strong> em papel alumínio. No entanto, nada ficou muito aqueci<strong>do</strong> no improvisa<strong>do</strong> micro-ondas. Na pare<strong>de</strong> as palavras impressas em A4 branco: “reserva<strong>do</strong> para a família <strong>de</strong> V.”. Então, éramos sua família — o que restou <strong>de</strong>la: um tio magro, uma tia magra, um avô nem gor<strong>do</strong> nem magro, uma avó cadavérica. À mesa, ao la<strong>do</strong> da churrasqueira, apenas duas ca<strong>de</strong>iras. A família em franca extinção fora reduzida à meta<strong>de</strong>. Surrupiamos outras ca<strong>de</strong>iras e montamos o banquete. É sempre possível lutar contra a extinção. Na mata vizinha <strong>de</strong>ve viver algum mico-leão-<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>. Em pouco tempo, o almoço <strong>de</strong>saparece. Nós comíamos <strong>de</strong> garfo e faca. Ali ao la<strong>do</strong>, minha mãe engolia pela sonda gotas <strong>de</strong> um líqui<strong>do</strong> creme. Que gosto tem a comida que entra por um buraco na barriga? Parecia feliz em ver o neto após tanto tempo. Mas é difícil saber: no rosto <strong>de</strong>forma<strong>do</strong>, o mapa é sempre incerto. A solidão, às vezes, é espantosa. No prato, nada restou. Levanta-se e acen<strong>de</strong> um cigarro junto a um <strong>do</strong>s novos amigos. To<strong>do</strong>s fumam muito, o tempo to<strong>do</strong>. É permitida uma carteira por dia. Minha mulher recolhe os pratos, passa guardanapo <strong>de</strong> papel na mesa e nos talheres. Limpa nossos vestígios. Meu pai, após esvaziar seu embornal <strong>de</strong> histórias, mostra o sapato marrom e bege. Garante que são os mais confortáveis que já teve. Não lhe digo que nada combina naque- Poesia eM berKeleY (1) JessiCa becker ilustração: rafa caMargo tradução: sebastião edson Mace<strong>do</strong> : : luiz ruffato No primeiro semestre <strong>de</strong>ste ano estive na universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Berkeley, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, como escritor-resi<strong>de</strong>nte. Lá, conheci alguns jovens poetas, <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>s várias, em início <strong>de</strong> carreira, cujo trabalho quis compartilhar com os leitores brasileiros. Escolhi cinco, entre os melhores, que serão publica<strong>do</strong>s nesta e nas próximas edições <strong>do</strong> <strong>Rascunho</strong>. Diversos em suas opções estéticas e políticas, o que os une é apenas o fato <strong>de</strong> serem estudantes naquela universida<strong>de</strong> da Califórnia. você <strong>de</strong>via me cravar na cama ela diz perita pele <strong>de</strong>senrolan<strong>do</strong> refulgin<strong>do</strong> fêmures no vasto sol cegante pálpebras ocas enchidas <strong>de</strong> ar pesares estica<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s ombros aos ossos o lacônico <strong>de</strong>itar <strong>de</strong> um <strong>de</strong><strong>do</strong> no tonel <strong>de</strong> amanhã sai azul e chato urra olhos elétricos a cortar sóis poentes coxas <strong>de</strong>smoronan<strong>do</strong> e partin<strong>do</strong> agarra a garrafa e <strong>de</strong>rrama e <strong>de</strong>scem gélidas camadas caçada curva e emprestada fecha a porta e <strong>do</strong>bra seus restos ela disse: (por que você não) me crava no chão le conjunto: sapato não se usa com calça <strong>de</strong> agasalho. A camisa pólo realça a falta <strong>de</strong> elegância. O sapato é maior pelo menos <strong>do</strong>is números que o a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>. Ele calça 40. Eu, 42. O sapato era meu. Nossa herança nunca tem o mesmo número. Ele diz que é confortável, que não machuca o pé. Po<strong>de</strong> ser. Mas não combina. Quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixei o sapato (novo) na casa da mãe para <strong>do</strong>ação familiar, achei que iria parar nos pés <strong>do</strong> meu irmão, que usa 43. Antes um pé sufoca<strong>do</strong> por alguns dias até o couro lassear que um pé <strong>de</strong> palhaço vagan<strong>do</strong> pelas encostas da serra <strong>do</strong> mar. Nossa família não enten<strong>de</strong> nada <strong>de</strong> moda. Nem <strong>de</strong> circo. Alegre, ele nos mostra o quarto. Quatro camas empilhadas. Na pare<strong>de</strong>, um revólver <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>, fotos <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> seios à mostra e origamis. “Eram <strong>do</strong> outro mora<strong>do</strong>r”, alerta-nos sobre o revólver e os peitos <strong>de</strong> fora. A <strong>de</strong>coração é anárquica, mas o local está relativamente limpo e organiza<strong>do</strong>. De tempos em tempos, eles mudam <strong>de</strong> quarto. Agora, está no sete. Já esteve no nove. Reclama que um <strong>do</strong>s colegas uiva a noite toda, parece um lobisomem. Talvez seja. Converso com o rapaz que faz origamis. É <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> japoneses. Mas os traços estão se apagan<strong>do</strong> <strong>do</strong> rosto. Mostra-me com orgulho a sua arte: pulseirinhas <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> lã, enrola<strong>do</strong>s em plástico <strong>de</strong> garrafa pet, e origamis. Revela <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem a inspiração: <strong>do</strong>is livros em japonês com vários pontos, estratégias <strong>de</strong> montagem, etc. Penso em perguntar se sabe japonês. Mas simplesmente lhe <strong>de</strong>sejo sorte e saio <strong>do</strong> quarto. JeSSica becker Professora e tradutora, nasceu em luxemburgo, em 1982, e é <strong>do</strong>utoranda em espanhol e Português. QUEM SOMOS C O N T A T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R T A S “in pockets” EDIÇÕES ANTERIORES COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO leia Mais eM rasCunho.CoM.br Quan<strong>do</strong> regressamos até o local <strong>do</strong> almoço, uma correria chama a atenção. “Não se preocupem. Alguém vai embora”, ele nos explica. De repente, o homem baixinho, banguela na lateral da boca, bermuda jeans e camisa xadrez, passa carrega<strong>do</strong> em direção à piscina. Ouço apenas “três” e o barulho <strong>do</strong> corpo esguichan<strong>do</strong> água para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Ele conseguiu convencer a família. Está in<strong>do</strong> embora. Po<strong>de</strong> ser que volte em breve. Nunca se sabe. To<strong>do</strong>s temem o Lago da Menina Morta. Não é necessário explicar o porquê <strong>do</strong> nome. Então, resolveram criar o ritual: jogar na piscina os que estão <strong>de</strong> partida. A noite se aproxima. É preciso pegar a estrada, subir a serra, retornar a Curitiba. Minha mãe está muito cansada. O câncer se alimenta com voracida<strong>de</strong>. Sobra pouca energia ao corpo <strong>do</strong>ente. Na <strong>de</strong>spedida, junto-me ao abraço <strong>de</strong> avó e neto. Somos um amontoa<strong>do</strong> disforme e <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>. Minha mãe fecha a traqueostomia com o <strong>de</strong><strong>do</strong> e pronuncia um “se cuida”, que significa muitas coisas. Tenho vonta<strong>de</strong> novamente <strong>de</strong> pegá-lo no colo. E jogá-lo na piscina. Não consigo mais carregá-lo. Quem sabe na próxima visita. Ele caminha para o quarto. Passa ao la<strong>do</strong> da piscina. Sua roupa está seca. Vejo os remen<strong>do</strong>s na calça. Ao meu la<strong>do</strong>, meu pai e os sapatos exagera<strong>do</strong>s. Da próxima vez, levarei um par <strong>de</strong> tênis número 40. Nota Crônica publicada originalmente no site vida breve: www.vidabreve.com.br. keep my lovers in pockets like pebbles like cheap souvenirs fifty-one cents to make a penny bees unstung and drums untightened once upon a white-eyed dream unbroken tongues kidneys livers aligned never almost offen<strong>de</strong>d in out onesi<strong>de</strong> slung around the globe these lovers now just letters out of or<strong>de</strong>r boar<strong>de</strong>d up, listless and bare stealthy hours effaced my old words rearranged these lovers like lint balls in pockets all rolled into one “nos bolsos” manter meus amantes nos bolsos como pedras como lembrancinhas baratas cinqüenta centavos para gastar um abelhas <strong>de</strong>saferroadas e tambores <strong>de</strong>saperta<strong>do</strong>s uma vez um sonho com uma íris sem cor língua <strong>de</strong>squebrada baços rins alinha<strong>do</strong>s nunca quase ofendida aqui ali acola<strong>do</strong> arremesso ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> globo esses amantes só restos léxicos embaralha<strong>do</strong>s prega<strong>do</strong>s <strong>de</strong>spi<strong>do</strong>s horas baldadas esfregadas minhas velhas palavras rearrumadas estes amantes como farelos nos bolsos embola<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s em um a tradução é <strong>do</strong> poeta SebaStiÃo edSoN Mace<strong>do</strong> (autor <strong>de</strong> para apascentar o tamanho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>de</strong> 2006, e as medicinas, <strong>de</strong> 2010), atualmente <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> em <strong>literatura</strong> brasileira em berkeley.
hq : : raMon Muniz QUEM SOMOS C O N TA T O ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO C A R TA S COLUNISTASDOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTASPAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO 150 • outubro_2012 31