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FACOM - nº 14 - 1º semestre de 2005<br />
Stone nos incomoda exatamente por sua opção<br />
antiaristotélica; não nos conduz a uma purificação que<br />
nos redima de nossa alienação; pelo contrário, adota<br />
um distanciamento dialético aos moldes de Brecht que<br />
politiza o discurso, mas não dá respostas tranqüilas<br />
nem reparadoras. O público, perplexo, deve tomar<br />
uma posição do que não sabe, nem entende. A reação<br />
é naturalmente a de acusar o filme de chato, pesado,<br />
lento, demorado, confuso, ambíguo como a própria<br />
ideologia. Como a ideologia diante de um mundo que<br />
se transforma, mas no qual tudo continua na mesma.<br />
É um filme político da melhor espécie. Não defende<br />
uma causa, mas demonstra um mal-estar de uma época<br />
carente de causas. A melancolia do herói, seja Alexandre<br />
ou Hamlet, é que ele sabe que algo está podre, mas não<br />
sabe ainda o que colocar no lugar.<br />
A antropologia de Alexandre<br />
Nisto reside a atualidade do filme, não apenas nas<br />
novas tecnologias empregadas na reconstituição de duas<br />
das maravilhas do mundo antigo – o farol de Alexandria e<br />
os jardins suspensos da Babilônia – ou na demonstração<br />
de batalhas com um grau de magnífica e exuberante<br />
verossimilhança. Nem mesmo na consideração<br />
anacrônica de fatos passados há dois mil e trezentos<br />
anos como sendo uma repetição de fatos presentes do<br />
Império com relação ao Iraque ou Afeganistão. Duas<br />
regiões importantes para Alexandre: na primeira ficava<br />
a cidade de Babilônia, onde hoje está Bagdá, onde ele<br />
morreu aos 32 anos de idade em 323 a.C. Babilônia<br />
deveria ser a capital de seu império. De um império<br />
que rigorosamente nunca existiu. Na segunda, no atual<br />
Afeganistão, onde ele se casou e fundou mais uma de<br />
suas Alexandrias (hoje provavelmente Kandahar).<br />
Dizer que Alexandre faz o discurso do governo Bush<br />
é desmerecer a dimensão histórica do filme. Alexandre<br />
não pode em nenhum grau ser comparado ao Presidente<br />
George W. Bush. O anacronismo aí seria não só<br />
desastroso como incompatível com a seriedade histórica<br />
que o filme busca apresentar. Mas por outro lado, há uma<br />
clara ironia com relação ao contexto. Como demonstra o<br />
filme, Alexandre não fugia da batalha, não pedia a seus<br />
homens que fizesse o que ele mesmo não pudesse ou não<br />
tivesse coragem pessoalmente de fazer, nem mais nem<br />
menos. Em termos mais mitológicos do que ideológicos,<br />
é o que diferencia o herói do tirano.<br />
É claro também que há uma evidente mensagem atual<br />
quando o narrador lembra, no momento que Alexandre<br />
é recebido vitorioso na Babilônia, que foi mais fácil<br />
entrar do que sair da cidade. É por isso que a corrente<br />
ideológica que hoje domina o Império, e que procura<br />
manter a Academia de Cinema de Hollywood como sua<br />
correia de transmissão, não perdoa a ousadia do cineasta<br />
que até solicitou cidadania francesa, e hoje parece se<br />
considerar um exilado político em Paris. Uma opção<br />
semelhante à do escritor Gore Vidal, que vive recluso na<br />
Itália. Mas como a sorte favorece os destemidos, ainda<br />
teremos muitas chances de ver filmes ousados e atuais<br />
de Oliver Stone, assim como já estamos presenciando<br />
mudanças de juízo sobre um filme que crescerá com o<br />
tempo.<br />
Alexandre, de Oliver Stone, é um marco não só na<br />
obra do artista, mas a realização de uma das tarefas<br />
primordiais da arte cinematográfica, a de dialogar com<br />
seu tempo sem temer o risco da batalha. Muito menos<br />
confundir, como alertava Hegel, a floresta com a árvore.<br />
Mas não é Dioniso nem Bush a referência mitológica e<br />
ideológica mais forte no filme. A referência é Prometeu,<br />
o amigo dos homens, o que ensinou aos homens o<br />
uso do fogo e por isso foi condenado com crueldade<br />
por Zeus. A referência a Prometeu é uma opção ética<br />
pelo humanismo: nem cética, nem cínica, um tanto<br />
teológica, e muito mais antropológica. Teológica não no<br />
sentido do fundamentalismo dominante, pelo contrário,<br />
mais poética que doutrinária. Mas principalmente<br />
antropológica, com todas as contradições que isto<br />
encerra, da crueldade ao afeto, mas principalmente<br />
pela recusa a um etnocentrismo WASP (homem branco,<br />
anglo-saxão, protestante). Por uma sincera busca de um<br />
mundo tão distante e tão semelhante ao nosso. Esta é<br />
a mensagem do filme que desagrada tanta gente: um<br />
amor aparentemente anacrônico e pré-moderno pelo ser<br />
humano. Um tanto fora de moda, e do mercado, é bem<br />
verdade. Mas belo, sem dúvida. E perene. Alexandre é<br />
um belo e sublime filme, que sobreviverá a estes tempos<br />
sombrios.<br />
NOTAS<br />
1 Tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça e<br />
Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004, pág.<br />
208.<br />
2 Guia O Estado de S. Paulo, 28/01/2005, pág. 38.<br />
3 “A Poesia do Novo Cinema”. Revista Civilização Brasileira.<br />
Nº 7, Maio de 1966, pp. 267-287.<br />
4 “Why not?” Responde agressivamente Alexandre às acusações<br />
de suas pretensões divinas num dos momentos mais intensamente<br />
dramáticos do filme, e que salva o ator Colin Farrell de qualquer<br />
falha menor cometida em outras passagens do filme.<br />
5 Até Peter Burke, que conhece cinema e valor cultural nas<br />
imagens, um dos historiadores da cultura mais importantes<br />
do momento, confessou que fica incomodado com os filmes<br />
históricos, incluindo Alexandre, no qual vê debilidades de roteiro,<br />
embora tenha reconhecido um “esplendor das imagens” no filme<br />
de Oliver Stone. “O guerreiro multicultural”. Mais! Folha de S.<br />
Paulo. 16/01/2005, pág. 3.<br />
6 London: R & L, 2004.<br />
7 A citação é do poema “Perguntas de um trabalhador que lê”:<br />
“Alexandre conquistou a Índia sozinho?”<br />
8 A outra referência cinematográfica explícita em Alexandre é<br />
Lawrence da Arábia, de David Lean. Cf. Robin Lane Fox, op. cit.<br />
Também é importante destacar aqui que não há nenhum demérito<br />
nas referências. Como diz o próprio historiador, Gore Vidal,<br />
roteirista de Ben Hur, chegou a ser visitado por Oliver Stone. E<br />
Espártaco foi o único épico histórico de um grande cineasta:<br />
Stanley Kubrick.<br />
9 Sobre o escudo de Aquiles, ver Martin Cezar Feijó. “Homero<br />
e a representação mítica da guerra”. Revista FACOM Revista<br />
da Faculdade de Comunicação da FAAP. Nº 13. 2º semestre de<br />
2004, pp. 16-17. .<br />
10 Sobre isto, ver Martin Cezar Feijó. Anabasis Glauber. São<br />
Paulo: Anabasis, 1996 (há uma <strong>edição</strong> ampliada, atualizada e<br />
revista no prelo)<br />
11 Cf. Michel Esteve. “Ideologie et pouvoir: Alexandre Le Grand”.<br />
In: Theo Angelopoulos. Études cinématographiques. Nº 141-145.<br />
Paris: Lettres Modernes, 1995, pp. 97-110.<br />
12 Claro que não há nada contra fazer-se humor com Alexandre.<br />
Aliás, na antiguidade foi feito por Luciano de Samósata, que viveu<br />
no século II d.C. e que através dos Diálogos dos Mortos coloca<br />
Alexandre em situações bastante complicadas, tanto diante de<br />
outros guerreiros, como com Diógenes, que o despreza, e seu<br />
pai Filipe, que o condena. Ver tradução e notas de Maria Celeste<br />
Consolin Dezotti. São Paulo: Hucitec, 1996. Também pode<br />
ser registrado aqui a pândega versão de Alexandre, baseado<br />
na história de Sardanapalo, feita pelo grupo teatral paulista<br />
Parlapatões.<br />
FACOM - nº 14 - 1º semestre de 2005<br />
13 É claro que reconheço que há uma tese complicada aqui.<br />
Mas o que chama atenção em Shakespeare é que ele não<br />
trabalhou com uma situação dramática tão interessante como a<br />
de Alexandre. Mais interessante ainda é a presença de Alexandre<br />
em duas peças de Shakespeare que tem um jovem príncipe<br />
como protagonista. E nas duas não só há referências ao príncipe<br />
macedônico, como há características que o aproximam dos<br />
personagens. É, portanto, um estudo talvez a ser feito. E sobre<br />
a melancolia do jovem príncipe há um estudo polemicamente<br />
atribuído a Aristóteles que pode ter se inspirado em Alexandre: O<br />
homem de gênio e a melancolia. O Problema XXX, 1. Tradução<br />
do grego, apresentação e notas de Jackie Pigeaud. Tradução de<br />
Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. Como há<br />
um texto perdido de Aristóteles e conhecido pelo título Alexandre<br />
ou sobre a colonização.<br />
14 O historiador Pierre Lévêque, em livro clássico, define o fato<br />
histórico como “a epopéia de um jovem deus”. A Aventura<br />
Grega. Tradução de Raúl Miguel Rosado Fernandes. Lisboa:<br />
Cosmos, 1967, pág. 348.<br />
15 Existem registradas 80 versões de romances de Alexandre em<br />
24 línguas. Cf. George Sarton. Hellenistic Science and Culture in<br />
the three centuries B.C. New York: Dover Publications, 1987, pág.<br />
173. Há até quem defenda que dessas tradições de romances de<br />
Alexandre tenha surgido a lenda do rei Artur na Bretanha. Sobre<br />
isto, ver: Antonio L. Furtado. Artur e Alexandre. Crônica de dois<br />
reis. São Paulo: Ática, 1995.<br />
16 Até hoje mães iranianas ameaçam crianças desobedientes<br />
dizendo que se não forem comportadas, “Alexandre vem pegar...”,<br />
como se fosse um bicho-papão. Conforme documentário da BBC,<br />
realizado em 1997 pelo jornalista e historiador Michael Hood:<br />
In the Footsteps of Alexander. Este documentário foi lançado no<br />
Brasil pela editora Abril e distribuído em bancas em dois DVDs<br />
no início de 2005. .<br />
17 Se o filme não tivesse nenhum dos valiosos méritos apontados,<br />
só o fato de propiciar uma corrida editorial, mesmo em português<br />
do Brasil, já justificaria sua existência. Dentre as publicações,<br />
pode-se destacar o belo trabalho da helenista francesa Claude<br />
Mossé: Alexandre o Grande. Tradução de Anamaria Skinner. São<br />
Paulo: Estação Liberdade, 2004.<br />
18 V. R.J. Hankinson. “Pyrrho and the Socratic Tradition”. In: The<br />
Sceptics. New York: Routledge, 1995, pp. 52-73; Pierre Hadot.<br />
O que é a filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo:<br />
Loyola, 1999, pp. 165-169. .<br />
19 Sobre a relação de Alexandre com a comunidade judaica<br />
há um registro não muito confiável, mas revelador, de Flávio<br />
Josefo em História dos Hebreus. Trad. Vicente Pedroso. Rio de<br />
Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2004. Há<br />
também uma passagem bíblica que faria menção negativa ao<br />
conquistador: Daniel (8, 5-8), onde Alexandre é comparado a um<br />
bode de chifre na testa segundo intérpretes do texto bíblico.<br />
20 Refiro-me aos dois trabalhos já considerados clássicos na<br />
historiografia moderna sobre os gregos, com ênfases diversas,<br />
valorização da racionalidade no primeiro, no irracionalismo no<br />
segundo: Werner Jaeger. Paidéia. A Formação do Homem Grego.<br />
Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. ; e<br />
E.R. Dodds. Os gregos e o irracional Trad. De Paulo Domenech<br />
Oneto. São Paulo: Escuta, 2002.<br />
21 Cf. José Antonio Dabbab Trabulssi. Dionisismo, poder e<br />
sociedade na Grécia até o fim da época clássica. Belo Horizonte:<br />
Editora UFMG, 2004., pág. 240.<br />
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