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FACOM - nº 14 - 1º semestre de 2005<br />
criação, no malabarismo formal dos versos e estrofes.<br />
João Cabral percebeu, com clareza admirável, o embate<br />
em que a sua produção poética se encontra: entre a<br />
ambição de comunicar e o hermetismo próprio de<br />
suas imagens. Em carta de 23 de novembro de 1941 a<br />
Carlos Drummond, o desassossego ganha forma: Sinto<br />
que não é esta poesia (Pedra do sono) que eu gostaria de<br />
escrever, o que eu gostaria é de falar numa linguagem mais<br />
compreensível desse mundo de que os jornais nos dão notícia<br />
todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta; uma coisa<br />
menos “cubista” (SÜSSEKIND, 2001, p. 171).<br />
Já no primeiro livro, existe a preocupação de<br />
encontrar a medida entre a forma e o intuito de<br />
comunicar. A finalidade, portanto, está alheia ao poema,<br />
pois João Cabral compreende os versos e imagens<br />
como instrumento para interferir, ainda que em grau<br />
insignificante, na sociedade. O intuito de manifestar-se<br />
de modo aderente ao real é uma preocupação precoce<br />
do poeta. O problema não se resolve, contudo, pela<br />
manifestação ou pela consciência do desejo. A realidade<br />
revela-se pelo barulho que vem das ruas. Novamente, o<br />
acesso ao mundo sensível é representado por metáforas<br />
sonoras como visto na Pequena ode mineral. A percepção<br />
não deve ser imediata, pois é preciso identificar o ruído<br />
e distinguir os timbres que o compõem. Ao escritor, a<br />
tarefa exige atenção e disciplina auditiva. A relação<br />
entre ele e o mundo revela-se problemática, uma vez<br />
que o poeta parece não se conformar com a primeira<br />
audição. O desejo de aproximar a poesia da realidade<br />
acompanha uma série de dificuldades que, no cerne<br />
desse movimento, manifesta o caráter intelectual a que<br />
poesia deve submeter-se. Crítica e comunicação são<br />
companheiras inseparáveis desse exercício poético. É<br />
preciso, portanto, identificar o barulho das ruas para<br />
nomeá-lo. A subjetividade, nesse sentido, cede lugar<br />
para o trabalho de uma razão vigilante e desconfiada.<br />
A carta a Drummond é emblemática. João Cabral<br />
representa a relação de sua poesia com o mundo pelo<br />
signo do barulho, e, não, do som. Permeia o impasse<br />
pela posição incômoda do ouvido diante do ruído, do<br />
que deve ser debulhado pelo exercício da atenção.<br />
Objetiva-se, com isso, a tensão entre o lugar que ocupa<br />
o homem, e o espaço que o cerca. Não seria, portanto,<br />
falsa a afirmação de que a fratura entre o poeta e o real<br />
projeta, em sentido paradoxal, um estranho e sugestivo<br />
grau de interação. As relações são problemáticas quando<br />
se evidencia o desejo de compreender, de criar juízo<br />
sobre os fenômenos. Todavia, elas anunciam-se também<br />
orgânicas, pois o ruído envolvente não permite, num<br />
primeiro momento, ao poeta criar uma distância segura<br />
para olhar e compreender. Se João Cabral acreditasse no<br />
mundo de que os jornais nos dão notícia todos os dias, ele<br />
certamente não se serviria de uma desconfiança que<br />
tudo mede. A sua poesia é via de mão dupla: identifica<br />
o que se lhe apresenta barulho e (re) nomeia, com<br />
finalidade de revelação, aquilo que o mesmo barulho<br />
encobre.<br />
Essa percepção do enquadramento do processo que<br />
elege o poeta como tradutor da realidade não é isento<br />
de dificuldades de toda ordem, sobretudo, quando se<br />
questiona a figura do público leitor, peça fundamental<br />
da engrenagem. Para entender as bases que sustentam<br />
essa discussão, é preciso recorrer ao estudo clássico de<br />
Antonio Candido, escrito em 1970, sobre as relações<br />
entre “literatura e subdesenvolvimento”. Ainda que o<br />
crítico desenvolva um debate mais amplo das questões<br />
referentes a esse tema, os argumentos a respeito da<br />
dificuldade de estabelecer a literatura como meio de<br />
compreensão do real pelo público leitor, nos países<br />
periféricos, esclarecem alguns obstáculos que o projeto<br />
de comunicação de João Cabral teve de enfrentar.<br />
Com efeito, ligam-se (nos países subdesenvolvidos) ao<br />
analfabetismo as manifestações de debilidade cultural: falta<br />
de meios de comunicação e difusão (editoras, bibliotecas,<br />
revistas, jornais); inexistência, dispersão e fraqueza dos<br />
públicos disponíveis para a literatura, devido ao pequeno<br />
numero de leitores reais (muito menor que o número já<br />
reduzido de alfabetizados); impossibilidade de especialização<br />
dos escritores em suas tarefas literárias, geralmente<br />
realizadas como tarefas marginais ou mesmo amadorísticas;<br />
falta de resistência ou discriminação em face de influências e<br />
pressões externas. (CANDIDO, 1989, p. 143).<br />
O projeto literário encontra várias dificuldades: a<br />
inexistência de um público leitor constituído no Brasil<br />
da primeira metade do século XX; a falta de um plano<br />
editorial consistente que garanta a distribuição dos<br />
livros; e, no caso particular da poesia de João Cabral,<br />
soma-se isso a construção hermética. Se há vontade<br />
de comunicar, e esse não me parece um termo preciso,<br />
é evidente que, na contrabalança, uma consciência<br />
implacável dos problemas existente redimensiona o<br />
alcance de sua ambição.<br />
Sob esse ângulo, as duas entrevistas mencionadas<br />
de João Cabral não parecem contraditórias. Elas<br />
complementam-se à medida que centram aspectos<br />
peculiares de um movimento poético que objetiva, de<br />
algum modo, uma interferência social. Se a realidade<br />
é a sede dos estímulos para a produção, o escritor<br />
é o construtor capaz de ordenar, sob o domínio da<br />
linguagem, as imagens elaboradas a partir e para a<br />
sociedade. Isso talvez ajude a compreender o esforço<br />
do poeta em encontrar uma forma capaz de definir,<br />
sem afetações de nenhuma instância, o desenrolar<br />
dos acontecimentos. Em outro momento da mesma<br />
entrevista de 1996, João Cabral é categórico:<br />
Para mim, a poesia é uma construção, como uma<br />
casa. Isso eu apreendi com Le Corbusier. A poesia é uma<br />
composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa<br />
construída, planejada - de fora para dentro. (...) É por isso<br />
que eu posso gastar anos fazendo um poema: por que existe<br />
planejamento.<br />
O termo construção é recorrente nas declarações de<br />
João Cabral, quando o tema é o exercício poético. O<br />
problema é, mais uma vez, dimensionar de que modo<br />
esse planejamento influencia a sua poesia. De acordo com<br />
a metáfora da casa, utilizada pelo poeta para explicar o<br />
seu processo de criação, é possível dizer que alguns<br />
leitores privilegiaram em suas análises a discussão sobre<br />
a origem da argamassa empregada na construção, ou<br />
a revelação sobre as tintas misturadas para atingir a<br />
coloração das paredes dos aposentos. É raro encontrar<br />
na fortuna crítica considerações mais significativas<br />
sobre o porquê do tamanho da sala ou para quantas<br />
pessoas e portadoras de que hábitos a morada serviria.<br />
Em outras palavras, a serviço de quem e do que se realiza<br />
o esmero formal da poesia de João Cabral?<br />
A ausência de uma resposta para essa pergunta resulta,<br />
quando a fortuna crítica é vista em perspectiva histórica,<br />
num número significativo de ensaios que privilegiam<br />
a descrição de alguns motivos e opções estilísticas,<br />
recorrentes nos poemas. Em sentido mais amplo,<br />
alguns desses trabalhos almejam alinhavar a obra do<br />
poeta pernambucano numa tradição literária. Curioso<br />
é a percepção de que comparações entre a obra do poeta<br />
pernambucano e outras literaturas permanece, na suas<br />
dimensões sensíveis, restritas às questões formais.<br />
Recorrentes, nesse grupo de estudos, são as análises das<br />
influências de Murilo e Drummond, no caso brasileiro, e<br />
Valery, Mallarmé e Guillén, no caso estrangeiro. Alguns<br />
dos ensaios primam pela ambição arqueológica das<br />
imagens criadas pelo poeta pernambucano. Revela-se<br />
um verdadeiro trabalho de erudição que aponta fatos<br />
curiosos a respeito dos diálogos da obra de João Cabral<br />
com as de outros poetas. 8<br />
Na mesma chave, a fortuna crítica apresenta algumas<br />
dezenas de estudos que projetam as relações entre a sua<br />
literatura e outras artes, especialmente a arquitetura e<br />
a pintura. 9 É raro outro poeta brasileiro que tenha, no<br />
FACOM - nº 14 - 1º semestre de 2005<br />
corpo de leitores da sua obra, uma gama significativa<br />
de análises cuja finalidade é estabelecer os poemas<br />
como materialização, por meio da linguagem, de opções<br />
formais próprias dos traços arquitetônicos ou das artes<br />
pictóricas. É verdade que esses trabalhos encontram<br />
respaldo em inúmeras declarações de João Cabral a<br />
respeito de suas influências, bem como nos textos<br />
críticos do autor de Pedra do sono em que é notória a<br />
importância, por exemplo, de Miró e Le Corbusier para a<br />
sua formação de poeta.<br />
Para o leitor afeito a discutir os métodos de leitura,<br />
o predomínio das formulações críticas apoiadas nas<br />
questões formais da poesia de Cabral pode explicar<br />
a prevalência de análises horizontais da obra em<br />
detrimento de estudos isolados de cada livro. Não é<br />
raro encontrar na fortuna crítica uma certa inflexão<br />
de compreensão dos poemas como parte de um grupo<br />
homogêneo de experiências estéticas. A palavra de<br />
ordem é, quase sempre, a discussão sobre a formação<br />
literária de João Cabral. Por isso, o discurso crítico,<br />
muitas vezes, navega, sem cerimônia, pelos diversos<br />
textos do autor à procura de estruturas recorrentes na<br />
sua produção. Tal opção de compreensão não seria, em<br />
si mesma, equivocada; alguns achados são relevantes e<br />
despertam inquietações nos leitores da sua poesia. O<br />
exemplo mais significativo desse movimento analítico<br />
encontra-se em A imitação da forma, de João Alexandre<br />
Barbosa. 10<br />
O crítico revela que a obra de João Cabral realiza-se<br />
a partir de dois núcleos básicos: a aderência à realidade<br />
e plasticidade das imagens. Entretanto, João Alexandre<br />
adverte que esta é característica da obra do poeta<br />
pernambucano desde os primeiros livros e aquela,<br />
por sua vez, é alcançada à medida que se desenvolve<br />
a literatura de João Cabral. Por isso, a tendência<br />
predominante em Pedra do sono arrefeceu nos livros<br />
seguintes, pois a presença mais significativa do real na<br />
formulação estética influenciou a construção pictórica<br />
das imagens. João Alexandre credita à plasticidade das<br />
imagens de João Cabral um caráter abstrato. De acordo<br />
com A imitação da forma, a abstração dos primeiros<br />
livros ocorre por uma incapacidade inicial do poeta<br />
tratar dos assuntos corriqueiros da vida cotidiana, o<br />
que, possivelmente, indica, quando se vê o conjunto da<br />
produção, um traço de uma imaturidade estética própria<br />
de uma obra ainda em curso.<br />
Para dar cabo de sua argumentação, o crítico<br />
compreende a aderência ao real pela presença de<br />
uma coloração topográfica nos poemas. A situação<br />
realística, nesse quadro, seria alcançada pela imagem<br />
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